Safra, G. (2002) Memória e Subjetivação. Memorandum, 2, 21-30. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos02/safra02.htm.

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Memória e Subjetivação
 
Memory and Subjectivity
 
Gilberto Safra
Universidade de São Paulo
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil
 

Resumo

A subjetivação do ser humano ocorre em presença de muitos. Cada ser humano é a singularização da história de seus ancestrais. Na atualidade, surgem psicopatologias decorrentes da ruptura do indivíduo com a sua história, não só transgeracional, mas também com a história humana. O re-estabelecimento da memória é questão vital na recuperação de detenções no processo de vir a ser do indivíduo. A clínica do self nos apresenta diferentes modalidades de memória: 1. Memória representada: elementos que representam a história de uma pessoa, articulados pela suas angústias e desejos; 2. Memória inconsciente: aspectos que se revelam na situação transferencial desvelando o reprimido; 3. Memória do não acontecido: situações que são pressentidas no curso da vida e que assinalam as necessidades ontológicas; 4. Memória étnica: formas sensoriais que constituíram a fundação do self e que enraízam a pessoa em uma determinada etnia.

Palavras-chave: memória; self; etnia; historia; subjetividade.

Abstract

The human being ‘happens’ in the presence of many. Each human being is the singularization of the history of its ancestral ones. At the present time, new kinds of psychopatology appear generated not only by the individual's rupture with his/her transgenerational history, but also by the rupture with the human history. The re-establishment of the memory of a person is vital to the recovery of detentions in the individual’s process of being. The clinic of the self shows different modalities of memory: 1. Memory by representation: elements that represent a person's history through his/her anxieties and desires; 2. Unconscious memory: aspects that are revealed in the transferential phenomena unveiling the repressed; 3. Memory of the 'never happened': situations that are foresighted in the course of the individual’s life that point to the ontological needs of the person; 4. Ethnic memory: sensorial forms that constituted the foundation of the self and that root the person in an ethnical group.

Keywords: memory; self; ethnic; history; subjectivity.

 

Tradicionalmente, na psicologia e na psicanálise, tem havido ênfase no estudo da subjetividade, do psiquismo, da realidade interna ou do mundo interno. O comum tem sido conceber o homem independentemente do seu meio, de seu acontecer e de suas ações no mundo. Trata-se de um vértice que isola o ser humano e que compreende as suas diversas manifestações psíquicas sempre a partir de uma problemática subjetiva.

O fato é que esse tipo de recorte leva-nos a perder de vista fenômenos importantes na compreensão da condição humana.

Quando Winnicott afirmou que não existe um bebê sem a sua mãe, estava assinalando um princípio para a compreensão do self, que na verdade está presente a cada momento do processo maturacional: não existe o self sem o outro, o self acontece no mundo.

O acontecer humano demanda a presença de um outro. As primeiras organizações psíquicas do bebê, a entrada na temporalidade, a abertura da dimensão espacial, a personalização só se constituem e ganham realização pela presença de alguém significativo.

Hanna Arendt (1997) ensina-nos que a realidade do mundo é garantida pela presença dos outros. O mundo consiste nas coisas, que devem a sua existência aos homens e que, por sua vez, também condicionam os autores humanos. Assim, tudo o que adentra o mundo humano torna-se parte da condição humana. O trabalho e seu produto, o artefato humano, emprestam permanência e durabilidade ao caráter efêmero do tempo humano. A cada nascimento, o novo começo pode fazer-se sentir no mundo, porque o recém-chegado possui a capacidade de iniciar algo novo: agir. Adentramos no mundo ao nascer e o deixamos para trás ao morrer. O mundo transcende a duração de nossa vida, tanto no passado como no futuro. Ele preexistia à nossa chegada e sobreviverá à nossa breve permanência. O nascimento humano e a morte de seres humanos não são ocorrências simples e naturais, mas referem-se a um mundo ao qual vêm e do qual partem indivíduos únicos, entidades singulares, impermutáveis e irrepetíveis.

Tenho encontrado, no pensamento de Arendt, intuições fecundas para a compreensão e abordagem clínica das perturbações do self no mundo. O seu olhar rompe com uma visão que considera o mundo uma manifestação natural, aponta para a singularidade de cada ser humano, reconhece a importância dos outros para o acontecer humano e enfatiza o valor da ação como forma de o bebê surgir no mundo. O mundo compreendido por essa perspectiva, ganha sua permanência pela memória transgeracional, que se fixa nos objetos culturais, nos mitos e nos ritos sagrados e profanos.

Na situação clínica, tenho ouvido inúmeras vezes pacientes falando de um tipo de sofrimento de uma maneira bastante próxima àquelas formulações utilizadas por Arendt para referir-se à condição humana.

Sem dúvida, pode-se afirmar que é preciso entrar no mundo para que o indivíduo sinta-se vivo e existente, mas tem de ser de uma maneira singular e pessoal. Não basta, para o acontecer do self do bebê, que o mundo esteja pronto com suas estéticas, com seus códigos, com seus mitos. A criança precisa, pelo gesto, transformar esse mundo em si mesma. É preciso que o mundo, inicialmente, seja ela mesma, para que ela possa apropriar-se dele e compartilhá-lo com outro. O bebê, dessa forma, faz-se singularidade pelo gesto criativo que a leva a encarnar a memória de seu grupo cultural de maneira peculiar.

A realidade compartilhada é construção de muitos, é campo em que existe a construção de todos. Com Arendt, poderíamos afirmar que a Existência é o que aparece a todos. Tudo o que deixa de ter essa aparência surge e se esvai como um sonho, realidade subjetiva, mas desprovida da realidade do mundo compartilhado com outros.

A "mãe suficientemente boa" também não existe sem os outros. Ela não existe sem um campo sociocultural, que lhe dê possibilidades de exercer suas funções. A boa maternagem, assim como suas falhas, têm origem na mãe, no pai, nos ancestrais, na situação social em que a mãe se encontra, nas características da sua cultura e de sua época. Trata-se de um fenômeno de grande complexidade, pois cada gesto materno presentifica a memória do que é o cuidado materno naquele grupo cultural.

Pela experiência de onipotência, o bebê cria a sua mãe, e isso lhe possibilita a sua entrada no mundo. É um momento em que, por seu gesto, ele recria o mundo preexistente, transformando-o, por intermédio de sua mãe, à sua (do bebê) imagem e semelhança. Este também é o ponto em que se constitui a dimensão étnica de seu self, pois, na medida em que o bebê toma o corpo materno como o próprio, organiza-se segundo os aspectos étnicos da comunidade em que nasceu. O corpo do bebê constitui-se, nesse registro, a memória étnica de seu grupo cultural. Cada ser humano é a memória étnica de todos os seus ancestrais. Esses elementos étnicos se desenvolvem e ganham sofisticação, ao longo do desenvolvimento, pelo convívio da criança com as pessoas em seu meio ambiente, pela apropriação do ethos, refletido na corporeidade, nas emoções e atitudes, desses outros significativos. (vide Devereux, 1978 e Kardiner & Linton, 1939)

Observa-se que pacientes que não encontraram essa experiência identificam-se com uma coisa, um vegetal, um animal, um alienígena, quando não organizaram uma psicose, como forma de proteção, frente à agonia impensável, decorrente da impossibilidade de criar um mundo ao qual possam pertencer.

Este é o ponto de partida para que o self venha, ao longo da história do indivíduo, a alcançar as diferentes nuances do habitar o mundo.

Se o encontro inicial é importante pelo estabelecimento das dimensões étnicas do self e pela criação do mundo pelo gesto do bebê, em um momento posterior, a criança poderá destruir a sua criação do mundo, pois poderá encontrá-lo em sua durabilidade e realidade não subjetiva. O mundo revela-se como permanente e capaz de ser apropriado pela criança e também de acolher o gesto inaugurante-transformador, através do qual ela poderá inserir-se na realidade compartilhada de maneira original.

É grande o número de casos clínicos em que, por exemplo, uma criança com um comportamento compulsivo e destruidor busca a possibilidade de inscrever-se na subjetividade do outro, buscando, assim, lugar no mundo humano. Todo gesto humano, genuinamente criativo, transmite e rompe a memória do povo. Transmite, pois em sua etnia, passa adiante a etnia do povo; rompe, pois a ação criativa insere o novo, o singular na história de todos.

Se a inscrição no mundo não pôde ser realizada pela interação e comunicação com alguém significativo, certamente tenderá a acontecer de forma impulsiva e desorganizada, que expressa o desespero sem nome, vivido pelas pessoas que não tiveram aqueles acontecimentos em suas histórias.

Milner (1987) apresenta um caso em que pôde perceber o sentido da destrutividade de um paciente como expressão da necessidade que ele tinha de encontrar a maleabilidade do mundo externo, para que pudesse se reencontrar em sua criatividade original. Milner conclui, em seu artigo, que esse tipo de destrutividade não podia ser considerada simplesmente como uma regressão defensiva, mas como uma fase recorrente no desenvolvimento da relação criativa com o mundo.

Quando lidamos com seres humanos, estamos trabalhando com seres que buscam intensamente, com os meios disponíveis, a sua possibilidade de humanizar-se. Penso que o artigo de Milner ilustra essa questão de maneira bastante clara.

Indivíduos que não puderam viver esse tipo de experiência não sentem que podem ter fecundidade no mundo. Sentem que não podem ter uma ação no mundo que os transforme de forma pessoal, vivem uma impotência básica, uma castração do ser, decorrente de um despencamento da história humana.

Winnicott (1975a) tratou dessa questão de maneira brilhante, ao abordar o que denominou "Uso de um objeto". Ele assinala que a passagem de relacionar-se com o objeto para usar o objeto assenta-se sobre a capacidade do sujeito de destruir o objeto, para, desta forma, tirá-lo da área de seu controle onipotente. Segundo ele, isso é parte do caminho para o estabelecimento do princípio de realidade. Eu diria que é mais do que isso. Trata-se do momento em que a pessoa entra na possibilidade de não só criar o mundo, como fez no estado subjetivo, mas de criar no mundo, pois o indivíduo entra, por esse meio, no mundo.

O alojamento do self no mundo prossegue em movimentos cada vez mais sofisticados. Eventualmente, o indivíduo terá uma história que poderá ser narrada e datada, nesse ponto a memória acontece como elemento que permite que a pessoa possa organizar uma identidade. Esse é o ponto em que a memória representada começa a fazer parte do sentido de si.

Um outro aspecto fundamental na organização do self é a fundação do privado e do público. Muitos pacientes não conseguem ter uma vida privada; essa possibilidade não aconteceu em suas histórias, apesar de ansiarem pelo senso do privado.

Se o indivíduo não pode destruir o mundo para encontrá-lo em sua permanência, não pode também repudiar o que não faz parte de sua subjetividade. Essas são pessoas que experimentam a onipresença dos pais e, em decorrência disso, vivem também a onipresença dos outros. Para elas não há espaço, tempo ou recolhimento privados.

É comum, na situação clínica, quando a confiança está estabelecida na situação transferencial, esses pacientes procurarem criar o senso de privacidade através de faltas, atrasos, mutismo, segredos. É claro que interpretar esses fenômenos como resistência ou atuação é repetir, na situação analítica, a falha ambiental, agora pela onipresença avassaladora do analista que proíbe o privado. Esses comportamentos poderiam ser considerados resistência ou atuação, já que sempre é possível ao paciente falar para seu analista dos anseios que possa ter de alcançar o espaço privado.

Penso que a questão é outra. Quando falamos de self, de sua constituição e de suas organizações, a questão não é mais a palavra, mas é o gesto. É a ação no mundo, como assinala Arendt. A palavra tem a sua eficácia para a abertura de possibilidades de ser, se ela tiver a função de gesto, de ação no mundo. Cabe ao analista discriminar as situações em que a ação é uma atuação, ou seja, movimento ao qual o paciente se segura para não cair no terror sem nome da ação, que é abertura de possibilidade de acontecência no mundo. Memória singularizada!

Alguns pacientes, sem poder criar o privado, buscam no isolamento uma saída para a angústia de sentir-se invadido pela presença constante dos outros em seu espaço íntimo. Freqüentemente, essa solução defensiva traz um outro tipo de angústia: o horror de jamais ser encontrado.

Quando, pelo trabalho de análise, o isolamento pode ser superado, e o indivíduo abre-se para o mundo, há a ocorrência de um temor intenso de estar excessivamente exposto, sem defesas para lidar com a presença transbordante do outro. Até que o gesto criador da privacidade possa acontecer, é freqüente o aparecimento de terrores noturnos e também de sintomas psicossomáticos, tais como: dermatites ou alergias intensas. É como se, ao nível do corpo, estivessem se apresentando as poucas defesas possuídas pelo analisando frente à presença excessiva do outro.

Arendt (1997) discute a questão do social e do privado afirmando que uma existência vivida inteiramente em público torna-se superficial, pois retém a sua visibilidade, mas perde a qualidade de vir à tona a partir de um terreno mais sombrio. . Terreno que deve permanecer oculto, a fim de não perder sua profundidade em sentido muito real e não subjetivo. Concordo totalmente com essas colocações. Assim, cada ser humano é memória singularizada, mas é também esquecimento-descanso É a partir de questões como essas que podemos perceber como o processo de realização de si mesmo é de grande complexidade, pois, para que ocorra, é preciso que, a cada momento do processo maturacional, novas dimensões de sentido de si sejam criadas pelo indivíduo.

Na questão do estabelecimento do público e do privado como sentido de si mesmo, está um dos pontos contundentes da natureza humana, ou seja a criação da singularidade de si no mundo com outros e a criação dos "muitos" em si no campo da singularidade do self. Uma vez que o self esteja bem constituído, em um registro, a pessoa é única e singular, enquanto, em outro, ela é muitos. Esses "muitos" são seus ancestrais, sua história com todos que a auxiliaram com suas presenças atuais ou simbólicas na constituição de si mesma.

Nossa cultura está tão impregnada pela idolatria da individualidade que perde de vista que o homem é um ser singular que abriga o coletivo. A consciência dessa dimensão paradoxal do self humano é mantida por outras culturas, nas quais o mito da individualidade não foi tão prevalente. Na filosofia russa, por exemplo, temos vários autores como Khomiakov (1804-1860), Solovyov (1853-1900), Florensky (1882-1937), entre outros, que formularam essas questões, por se tratarem de aspectos bastante presentes na consciência do povo russo. Solovyov (1995) afirma:

O ser humano para ser real necessita ser, ao mesmo tempo, um e muitos, entretanto, não é meramente a essência comum e universal de todos os seres humanos, tomada deles como uma abstração. O ser humano é universal, mas também individual, é uma entidade que contém todos os indivíduos humanos em si. Cada um de nós, todo ser humano, é essencialmente e realmente enraizado e também partilha do universal ou absoluto ser humano (1). (nossa tradução, p.118)

Na clínica do self, os dois diferentes registros, o do singular e o do coletivo, como aspectos fundamentais na realização do si-mesmo. Na ausência de um dos pólos, há um sofrimento e uma vivência de não existência e de não realização do self. Esses são aspectos que ecoam na célebre frase de Winnicott (1990): "é uma alegria estar escondido, mas um desastre não ser encontrado".

Com a evolução do self, à medida que a pessoa caminha rumo ao campo social, há a necessidade de que o indivíduo possa articular, ao mesmo tempo, a vida privada e a vida social, para encontrar, no campo social, inserções que preservem o seu estilo de ser e a sua história. É o momento da participação na sociedade por meio do trabalho, do discurso, da obra , da ação política, ou seja, da capacidade criativa acontecendo no mundo com os outros. Pela ação criativa no mundo, o homem colabora com a durabilidade do mundo, com a transmissão e enriquecimento da memória de seu grupo e com o processo histórico da sociedade. Este é um fenômeno que precisa acontecer de maneira que o indivíduo realmente apresente a si mesmo nas ações no campo social.

Aqui também se pode observar, na situação clínica, o sofrimento decorrente da impossibilidade de a pessoa criar o seu lugar na sociedade pela singularidade de seu gesto. O self em seu processo de devir se detém, e o indivíduo experimenta o não-ser no abismo que se abre entre ele e o campo social. É claro que, para que o ser humano possa criar o seu self no registro social, é necessário que as etapas anteriores de sua constituição tenham acontecido. No entanto, há fenômenos, nesse momento do processo, que podem jogar o indivíduo na ansiedade impensável, apesar das etapas anteriores terem ocorrido de maneira satisfatória.

Simone Weil (1996) tem colocações muito lúcidas a respeito dessas questões. Ela nos ensina que o ser humano tem uma raiz por sua participação real, ativa e natural na existência de uma coletividade, que conserva vivos certos tesouros do passado e certos pressentimentos do futuro. Ela alerta para as decorrências do desenraizamento, que podem se dar por desemprego, má qualidade de situação de trabalho, imigração, falta de instrução. Para ela, o desenraizamento é a mais perigosa doença das sociedades humanas, pois multiplica a si própria. Os desenraizados, segundo ela, só têm dois comportamentos possíveis: ou caem numa inércia de alma equivalente à morte ou se lançam em uma atividade que perpetua o desenraizamento, podendo originar situações de intensa violência. O desenraizado está deslocado do tempo e da história, sem contato com a memória étnica e com a memória cultural de seu povo.

Em nossa época, esse tipo de problemática é bastante sério. Nossa cultura manifesta-se, na atualidade, de uma maneira que já não mais reflete a medida humana. Recriar o mundo e o campo social torna-se mais complicado, pois, pela invasão da técnica como fator hegemônico da organização social, o ser humano só mais raramente encontra a medida do seu ser, que permita o estabelecimento do objeto subjetivo a cada um dos níveis de realidade para a constituição e o devir de seu self.

Em nosso tempo, as variantes do desenraizamento multiplicam-se em diversas direções, pela qualidade do trabalho realizado pelo indivíduo, pelas características do campo social, pelo tipo de organização do espaço urbano e rural, pela aceleração do tempo apresentado pelos meios de comunicação, pela mundialização das formas de vida. Santos (1997) mostra que a proximidade física é indispensável à reprodução da estrutura social. A crescente separação entre as classes agrava a distância social. Os homens vivem cada vez mais amontoados em aglomerações monstruosas, mas estão isolados uns dos outros.

Tendo clareza de que o self acontece em um meio ambiente, é evidente que as fragmentações culturais favorecem o aparecimento de fendas na constituição do si-mesmo.

Winnicott (1975) assinala que, quando se fala de alguém, está se falando dessa pessoa com a soma de suas experiências culturais. A cultura, para ele, é o campo em que se pode encontrar experiências sobre a vida de outras gerações e também o lugar em que se pode inserir as próprias experiências, como contribuição para outros. Ele dá grande importância aos mitos, que são produtos da tradição oral, pois por eles o relato de uma história se dá junto com a transmissão da tradição. É nela que a singularidade da criatividade do indivíduo pode acontecer: "Não é possível ser original, exceto tendo por base a tradição". O interjogo entre originalidade e a aceitação da tradição como base para a capacidade inventiva é um exemplo do interjogo entre separação e união, indivíduo e comunidade. (vide Solovyov citado anteriormente)

O campo cultural dá continuidade à vida da espécie humana, que transcende a vida pessoal. É interessante observar como, na maturidade do self, assim como foi necessário ao indivíduo realizar a sua inserção na vida social, será também fundamental que ele sinta que pode contribuir para a herança cultural da humanidade. Isso é realizado por meio dos filhos, da arte, da ciência, da religião, da história, da ação política. Aqui o que parece importar não é tanto a vida singular e pessoal, mas a vida do Homem, através das gerações.

Neste ponto, é comum a pessoa buscar outras culturas com o objetivo de ampliar as formulações sobre a vida realizada por outros seres humanos. Nenhum grupo social ou cultural dá conta da diversidade da experiência humana. Assim, o contato com o diferente funciona como o outro, com quem é possível estabelecer-se novos objetos subjetivos para a constituição de outros aspectos da experiência de ser e de vir-a-ser.

Os objetos culturais atravessam o tempo e permitem que se dialogue com os seres humanos de outras épocas, para o contínuo relacionar-se com os mistérios da vida e da morte.

O indivíduo desenraizado vive uma permanente nostalgia: anseia pelo que nunca aconteceu! Há uma busca no fundo de cada ser humano que o leva a buscar em um outro, o encontro que lhe dê acesso à memória que desconhece. Esse acesso lhe garantiria a participação no mundo humano. Estar sem a memória étnica ou sem a memória dos ancestrais é estar em solidão medonha, em terror sem eco!

É só a partir desses diferentes fenômenos que possibilitam o acontecer humano que o ser humano em suas relações com o outro deseja. Esse é o campo em que emerge um outro registro de memória: o vivido recalcado.

A memória é mãe do homem, o que lhe dá acesso à vida com outros, e é também, na morte, as pegadas de sua partida!

Referências Bibliográficas

Arendt, H. (1997). A condição humana. 8 ed. (R. Raposo, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1958)

Devereux, G. (1978). Ethnopsychoanalysis. Psychoanalysis and anthropology as complementary frames of reference. Los Angeles / London: University of California Press.

Florensky, P. (1997). The pillar and ground of truth. An essay in orthodox theodicy in twelve letters. (B. Jakim, Trad.). New Jersey: Princeton University. (Original publicado em 1914)

Kardiner, A. & Linton, R. (1939). The individual and his society. New York: Colombia University Press.

Khomiakov, A. (1914). Polnoe sobranie sochineii. Moscow.

Milner, M. (1987). The role of illusion in symbol formation. In The suppressed madness of sane men. London / New York: Tavistock. (Original publicado em 1952)

Santos, M. (1997). Técnica espaço tempo. Globalização e meio técnico-científico informacional. São Paulo: Hucitec.

Solovyov, V. (1995). Lectures on divine humanity. (P. Zouboff, Trad.). New York: Lindisfarne Press. (Original publicado em1878).

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Winnicott, D. W. (1975). A localização da experiência cultural. Em O brincar e a realidade. (J. O. A. Abreu e V. Nobre, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Original do capítulo publicado em 1967).

Winnicott, D. W. (1975a). O Uso de um objeto e relacionamento através de identificações. Em O brincar e a realidade. (J. O. A. Abreu e V. Nobre, Trad.). Rio de Janeiro: Imago. (Original do capítulo publicado em 1969)

Winnicott, D. W. (1990). Comunicação e falta de comunicação levando ao estudo de certos opostos. Em O ambiente e os processos de maturação: estudos sobre a teoria do desenvolvimento emocional. 3 ed. (I. C. S. Ortiz, Trad.). Porto Alegre: Artes Médicas. (Original publicado em 1963)

Notas

(1) To be actual, such a being (human being) must be both one and many and therefore is not merely the universal comon essence of all human individuals, taken in abstraction from them. Such a being is universal but also individual, an entity that actually contains all human individuals within itself. Every one of us, every human being, is essentially and actually rooted in and partakes of the universal, or absolute, human being. (voltar)

Nota sobre o autor
Psicólogo, doutor em psicologia, professor do Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Clínica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, Brasil.

 

Data de recebimento: 05/03/2002
Data de aceite: 26/03/2002
 
Memorandum, Abr/2002
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich. ufmg.br/~memorandum/artigos02/safra02.htm

 

 

 

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