Machado, M.N.M. (2005). Uma metodologia para a pesquisa do domínio social histórico. Memorandum, 9, 57-64. Retirado em    /   /   , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/machado01.htm

  PDF FILE

Uma metodologia para a pesquisa do domínio social histórico

 A methodological approach for studying the social historical domain

 Marília Novais da Mata Machado
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil
 

Resumo
No artigo, o domínio social histórico é definido, acompanhando o pensamento de C. Castoriadis, segundo duas dimensões, uma determinista e outra imaginária. Argumenta-se que toda pesquisa que se atém apenas a uma das dimensões permanece incompleta. Mostra-se como a noção de formação discursiva pode ser útil em investigações que adotam uma abordagem social histórica, contribuindo com uma teoria e com um instrumento metodológico, a análise do discurso. O exemplo de um trabalho de pesquisa desenvolvido pela autora sobre um tema específico, o discurso da eqüidade e da desigualdade sociais, mostra a utilização de uma metodologia para a pesquisa do domínio social histórico fundamentada na noção de formação discursiva.

Palavras-chave: domínio social histórico; formação discursiva; análise do discurso; desigualdade social

Abstract
The social historical domain is defined according to C. Castoriadis as having two dimensions, a deterministic one and an imaginary one. It is argued that any research work which holds to only one of these dimensions remains incomplete. It is described how the notion of discursive formation can be used allowing an investigation within the social historical research approach and providing a theory and a methodological tool (the discourse analysis). It is presented an example of a research work developed by the author on the discourse of the social equity and inequality. The example shows the utilization of a methodological approach for studying the social historical domain based on the notion of discursive formation.

 Keywords: social historical domain; discursive formation, discourse analysis; social inequality

 

O social histórico

A noção de domínio social histórico aqui utilizada prende-se, primordialmente, ao pensamento de Cornelius Castoriadis (1975, 1987, 1999). Para ilustrá-la, parte-se de interpretação de exemplo dado pelo autor relativo à surpreendente importância do tamanho do nariz de Cleópatra na história universal. De forma irônica, Castoriadis sugere a relevância da indeterminação – o acaso de um belo nariz, numa face poderosa - e mostra uma instância de surgimento de fatos contingentes e de significações imaginárias sociais novas. A história poderia ser outra se o nariz da rainha egípcia fosse diferente. Pode-se acrescentar: Júlio César possivelmente não teria entrado em sua vida; Cesárion, o filho dos dois, futuro Ptolomeu XV, não teria nascido; Antônio, o senhor do Oriente romano, não teria sido seduzido e o Egito não teria recuperado seu poderio e ameaçado Roma:

A primeira surpresa que experimentamos, ao examinar a história, é a de constatar que, com efeito, se o nariz de Cleópatra fosse um pouco mais curto, a face do mundo teria mudado. A segunda, mais surpreendente ainda, é constatar que, na maioria das vezes, os narizes tiveram exatamente as proporções requeridas (Castoriadis, 1975, p. 71).

Uma reflexão a partir do exemplo aponta a importância de se superar a separação rígida entre diacronia e sincronia, entre história e sociedade e mostra, na história, a presença do aleatório, improvável e indeterminado. Essa presença ocorre não só nos fatos imprevisíveis, mas também nos criativos, em cada nova instituição de regras sociais, invenção de objetos antes desconhecidos ou formulações de respostas originais.

O exemplo permite, também, introduzir a crítica a uma abordagem puramente determinista da história. Como o indeterminado existe, as categorias de acidente e de acaso não podem ser excluídas do estudo da história nem da sociedade.

Finalmente, o exemplo aponta o social como auto-alteração que ocorre ou se passa como história, como temporalidade. Mostra o histórico como auto-alteração dos modos específicos de coexistência que constituem o social, isto é, como fato social.

Assim, da perspectiva social histórica de Castoriadis, um tratamento puramente estruturalista, sincrônico, atemporal da história está fadado a ser incompleto. Ao lidar com a justaposição simples de estruturas diferentes, cada uma delas atemporal, esse tratamento não responde por que as estruturas se sucedem, desaparecem, gastam-se. Ao deixar de lado a temporalidade, as abordagens sincrônicas, no dizer de Castoriadis (1975), acabam por atribuir ao tempo uma curiosa propriedade, a de não ser nada e, ao mesmo tempo, ser capaz de transformar e destruir o que é.

O mesmo insucesso ocorre numa aproximação essencialmente diacrônica, como a das teorias voltadas exclusivamente para a explicação de modificações, como as de inspiração evolucionista. A abordagem diacrônica é incapaz de dar conta, por exemplo, no domínio da física, mais especificamente da cosmologia, da estrutura do universo, que é, simultaneamente, a sua história e portadora de sua história, formada de estrelas que surgem, transformam-se e morrem. Incapaz, também, de dar conta de algumas áreas da biologia que consideram um sistema como vivo porque tem as propriedades de se desenvolver e evoluir, isto é, de organizar-se de outra forma: é a sua própria organização que o torna capaz de transformar um acidente ou uma perturbação em uma outra organização (Atlan, 1979). Nesses exemplos, tudo se passa como se a sincronia “diacronizasse” e a diacronia “sincronizasse”.

A abordagem social histórica busca captar, simultaneamente, as dimensões sincrônica e diacrônica, sem tomar como absoluta a distinção entre elas. Pressupõe-se que no domínio social histórico, de nada vale distinguir diacronia e sincronia, a não ser de forma provisória, circunstancial:

O exemplo mais claro é fornecido pela própria linguagem considerada em seu aspecto essencial, isto é, na sua relação com a significação. Pois uma propriedade essencial da linguagem enquanto sistema é a de não se esgotar no seu estado sincrônico, de não se reduzir jamais a uma totalidade fechada em significações fixas, determinadas, disponíveis, mas de comportar sempre um a mais eminente e constantemente iminente, de ser sempre sincronicamente aberta a uma transformação das significações. (...) Uma linguagem, enquanto sistema, é impensável como pura sincronia; ela só é linguagem enquanto sua própria transformação incessante encontra recursos nela própria, tal como ela é, em um “momento dado”. (Castoriadis, 1975, p. 298)

Na perspectiva social histórica, pode-se dizer que existe língua, sociedade e história porque as pessoas podem, hoje, entender bem os textos antigos, os textos clássicos e as inovações originais de um escritor contemporâneo. Muitas das significações de uma sociedade que permitem essa compreensão são instituídas direta ou indiretamente pela linguagem (e na linguagem). Muitas outras, por determinações sociais, econômicas, geográficas, embora essas próprias determinações sejam também criações sociais, institucionalizações e instrumentos sociais históricos.

A abordagem social histórica busca, também, colocar-se além do pensamento herdado, que é basicamente determinista (Castoriadis, 1975, 1987, 1999). Pressupõe que, na instituição de uma sociedade, ao lado das determinações, surgem continuamente – como fruto do acaso, do inesperado, do contingente, do indeterminado - significações imaginárias sociais que vão sendo incorporadas. Assim, a instituição de uma sociedade desenvolve-se nessas duas dimensões, indissociáveis uma da outra: a primeira opera segundo o esquema da determinação, mediante noções postuladas como distintas e definidas, tais como elementos, classes, propriedades, relações, categorias; a segunda é uma dimensão propriamente imaginária, formada por um “tecido imensamente complexo de significações que impregnam, orientam e dirigem toda a vida daquela sociedade e todos os indivíduos concretos que, corporalmente, a constituem” (Castoriadis, 1987, p. 230).

Educação, ciência, família e outras instituições sociais “agem” e “pensam” (Castoriadis, 1987, p. 235) sobretudo segundo a primeira dimensão, valendo-se do pensamento herdado. Porém, as significações imaginárias que instituem continuamente a sociedade instituinte (Castoriadis, 1987, p. 231), isto é, em constante transformação ou auto-alteração, não se reduzem a elementos ou a referências racionais ou reais, mas configuram criações compartilhadas por um coletivo impessoal e anônimo, singulares de cada sociedade (deuses, espíritos, nações, Estado, partidos, mercadoria, dinheiro, capital, cidadania, mercado, virtude, pecado). Por meio de tais significações, cada sociedade cria seu mundo, atribui-lhe sentido e o interpreta, operando num quadro altamente indeterminado e aleatório.

O social histórico não é, pois, redutível a determinações ou a significações imaginárias.  De um lado, a ontologia e a lógica herdadas, ao se aterem a um número limitado de categorias rigorosas, ignoram o seu próprio domínio social histórico, sua criação, sua autopoiesis, sua transformação. De outro, a dimensão imaginária instituinte dificilmente é apreendida desvinculada da sociedade instituída que a cria.

A dimensão determinista e as significações imaginárias sociais – a serem apreendidas em sua concomitância [isto é, sincronizando a diacronia e “diacronizando” a sincronia, como sugerido por Castoriadis (1975, pp. 296-297)] - residem na vida social e na linguagem. Por isso, a pesquisa de uma formação discursiva específica ou de formações discursivas permite, simultaneamente, ultrapassar o pensamento herdado e apreender, de maneira imediata, espaço e tempo, sincronia e diacronia, sociedade e história.

A formação discursiva

Como a apreensão do social histórico implica captar simultaneamente o acidente, contingente e efêmero – gerador de novos fatos e de novas e singulares significações sociais - e a estrutura, mais ou menos permanente, contínua e determinada, a noção de formação discursiva, proposta inicialmente por Michel Foucault (1987) e modificada por Michel Pêcheux (1990b) no âmbito da análise do discurso, torna-se teórica e metodologicamente pertinente.

Caso se amenizem, na noção de formação discursiva, o caráter determinista, muito acentuado por Foucault, e o caráter estrutural, pontificado por Pêcheux em suas primeiras análises do discurso, a noção abre uma perspectiva teórica para a apreensão do domínio social histórico e, ao mesmo tempo, fornece um instrumento de pesquisa hoje consolidado, a análise do discurso. Curiosamente, datam do mesmo ano, 1969, a noção foucaultiana de formação discursiva, contida em A arqueologia do saber, e a criação da análise automática do discurso por Michel Pêcheux (1990a).

A definição de formação discursiva implica

um conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área social, econômica, geográfica ou lingüística as condições de exercício da função enunciativa. (Foucault, 1987, p. 136).

A noção foucaultiana de discurso se refere ao conjunto de enunciados provenientes de uma mesma formação discursiva.

Pêcheux levou a noção para a análise do discurso, inicialmente construída no âmbito de uma tomada de posição puramente estruturalista e cujo objeto fora definido como as relações entre “máquinas” discursivas estruturais. Segundo Pêcheux:

A noção de formação discursiva tomada de empréstimo a Michel Foucault começa a fazer explodir a noção de máquina estrutural fechada (...): uma formação discursiva não é um espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente “invadida” por elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras formações discursivas). (Pêcheux, 1990b, p. 314).

A noção de interdiscurso foi, então, introduzida na análise do discurso para designar o espaço exterior específico de uma formação discursiva e, pouco mais tarde, Pêcheux (1990b) modificou os procedimentos de análise do discurso que vinha utilizando, reconhecendo que as palavras mudam de sentido quando passam de uma formação discursiva a outra.

Patrick Charaudeau e Dominique Mainguenau (2004) sugerem que essa dupla origem do termo “formação discursiva” (Foucault/Pêcheux) fez com que este permitisse designar todo conjunto de enunciados sócio-historicamente circunscrito que pode relacionar-se a uma identidade enunciativa: o discurso comunista, o conjunto de discursos proferidos por uma administração, os enunciados que decorrem de uma ciência dada, o discurso dos patrões, dos camponeses, etc.

Pode-se acrescentar à enumeração de Charaudeau e Mainguenau de conjuntos enunciativos o discurso da eqüidade e da desigualdade sociais (deds) - objeto de pesquisa proposta pela autora e para a qual ela busca elaborar uma metodologia capaz de apreender o objeto como uma instância social histórica.

Análoga à imagem do cosmos, cuja estrutura traz consigo sua história e é a sua história, a formação discursiva do discurso da eqüidade e da desigualdade sociais pode ser apreendida imediatamente, sem que sua pesquisa se confunda com o trabalho do historiador e sem que cronologia e evolução – instrumentos, entre outros, do pensamento herdado – sejam essenciais. Importa, especialmente, a criação de dispositivos para a apreensão simultânea das dimensões sincrônica e diacrônica e das significações imaginárias sociais, além das determinações sociais, econômicas, geográficas, linguísticas. A metodologia proposta visa abrir uma janela para o social histórico e viajar em diferentes formações discursivas correlatas entre si de acordo com um determinado tema, no caso, a eqüidade e a desigualdade sociais.

Uma metodologia para a apreensão do domínio social histórico: a pesquisa do discurso da eqüidade e da desigualdade sociais (deds)

Tendo como objeto de pesquisa o discurso da eqüidade e da desigualdade sociais (deds), a investigação pretendida será feita a partir do levantamento das significações de eqüidade e desigualdade em narrativas fictícias sobre sociedades e comunidades (utopias, lendas, sagas, poemas, romances e aventuras em sociedades imaginadas, descrições fantásticas e críticas da organização social) e a partir do estudo das condições de produção dessas narrativas (contexto e situação em que foram escritas).

O objetivo da pesquisa é apreender o domínio social histórico da criação da eqüidade e da desigualdade sociais na articulação das narrativas com suas respectivas condições de produção e na contraposição entre elas. Parte-se da suposição de que práticas discursivas e sociais se correlacionam e que, em conseqüência, a análise do deds permite inferir como, em comunidades e sociedades reais, diferenças de etnia, nacionalidade, raça/cor da pele, gêneros, gerações, classe social ou outra se transformam, discursiva e socialmente, em desigualdade social.

Discursos são produzidos a partir de lugares definidos na organização e estruturação sociais e endereçados a interlocutores que, supostamente, compartilham a mesma comunidade discursiva e uma mesma história coletiva. O deds está, pois, inscrito no contexto social histórico que o produz, reflete concepções correntes de sua época e só pode ser compreendido integralmente tendo essas concepções como pano de fundo. Por isso, a partir dele, é possível conhecer também acontecimentos macrossociais reais e os vínculos de eqüidade e desigualdade que congregam e separam indivíduos reais. Em síntese, o deds reflete e, ao mesmo tempo, cria os lugares sociais históricos, não apenas de enunciação, mas também de vida real.

O método de pesquisa será a análise do discurso: de cada narrativa extrai-se um conjunto de frases (seqüências discursivas) que permitem conservar o sentido e o encadeamento geral e, especificamente, frases pertinentes ao tema de interesse, a eqüidade e a desigualdade sociais. Essa segunda série de seqüências discursivas é selecionada tendo como critério a presença de palavras-chaves marcadoras da desigualdade, isto é, palavras que apontam situações em que aparecem aqueles que controlam e que não controlam a própria vida, a primeira categoria incluindo, entre outros, colonizadores, proprietários, senhores, adultos, patrões e a segunda categoria incluindo colonizados, velhos, crianças, empregados, criados, servos, súditos, escravos, doentes, tudo dependendo do contexto em que aparecem. O conjunto de narrativas assim reconstruídas forma o arquivo de pesquisa, que se pretende tão heterogêneo quanto possível, cobrindo diferentes formações discursivas, épocas e lugares diversos.

Em termos mais técnicos, o método comporta os seguintes momentos: seleção dos textos a partir dos quais os corpora empíricos da pesquisa são gerados e analisados; construção do arquivo de pesquisa formado pelo conjunto dos corpora; análises “intratextos” – lingüísticas e sociais; levantamento das condições de produção de cada narrativa (em dicionários, enciclopédias, críticas e biografias); definição das articulações entre cada narrativa e suas respectivas condições de produção; análises comparadas intertextos definindo as articulações e oposições entre dois ou mais textos diferentes; definição da formação discursiva do deds.

Para concluir, alguns exemplos de apreensão do domínio social histórico

A título de exemplos e para definir a apreensão do domínio social histórico, mencionam-se fragmentos da análise de duas utopias do século XVII, Nova Atlântida de Francis Bacon (1627/1979), obra publicada postumamente, em 1627, e Commonwealth of Oceana, de James Harrington (1656/1992), publicada em 1656, além de uma utopia do século XX, O macaco e a essência, de Aldous Huxley (1987).

No livro de Bacon (1561-1626), as seguintes seqüências discursivas foram extraídas da narração dos primeiros contatos entre os viajantes que chegam à misteriosa ilha de Besalém e funcionários do governo da ilha (no texto, as hierarquias são rigorosamente estabelecidas de ambos os lados e seus graus evidenciados pelas roupas e atitudes das pessoas):

(...) oferecemos-lhe alguns dobrões, ao que, sorrindo, disse “que não devia ser pago duas vezes pelo mesmo trabalho”, significando (assim pensei) que recebia salário suficiente do Estado pelo seu serviço. Por isso, como vim a saber depois, eles chamam um funcionário que aceita recompensa de “duplamente pago”. (Bacon, 1627/1979, p. 240).

Oferecemos-lhe também vinte dobrões, ao que sorriu e disse somente: “O quê? Pago duas vezes!” (Bacon, 1627/1979, p. 241).

Analisando-se as condições de produção do discurso, descobre-se que Bacon, educado para a carreira diplomática, incorporou o comportamento mundano de um cortesão. Vivia como um grão-senhor, servido por 72 criados. Como auxiliar imediato do rei, cabia-lhe opinar sobre autorizações para comércio e manufaturas, monopólios e patentes comerciais. Nessas atividades recebia presentes, o que o levou à condenação e, por alguns dias, à prisão, da qual saiu por intercessão do rei. Evidentemente, não se sentia tão bem pago pelos serviços que prestava ao Estado, como sugere o episódio em que os viajantes oferecem recompensas aos funcionários de Besalém. A narrativa da Nova Atlântida e seqüências discursivas como as citadas mostram ser indissociável a relação entre um autor e seu tempo, entre narrativa e vida pessoal. Contudo, nada disso prejudica a emergência de significações imaginárias sociais inteiramente originais como as da Nova Atlântida.

Não se sabe muito sobre Harrington (1611-1677), autor de Commonwealth of Oceana, utopia republicana, marco de um pensamento político inglês inovador. O livro foi publicado 16 anos após a revolução inglesa de 1640 e sete depois da execução de Charles I, em 1649, rei de quem Harrington, que pertencia à nobreza rural, foi camarista. No seu texto, sugerem-se, entre outras coisas, a universalização do voto e o fim dos direitos da primogenitura (embora o próprio autor fosse um primogênito). O livro é anticlerical, busca um Estado ideal. Diferente das utopias conterrâneas de More e Bacon, que a antecederam, a de Harrington deixa antever a Inglaterra real na fictícia e parece que vem propor algo para reduzir o descontentamento com o Protetorado de Cromwell, conhecido então, simplesmente, por Commonwealth.

O texto de Harrington demonstra, na sua própria linguagem, a indissociabilidade entre a obra e seu tempo. Por exemplo, o vocábulo subject, contraposto a cidadão no texto, deve ser sempre traduzido por “súdito”, como no exemplo abaixo:

Let states that aim at greatness (saith Verulamius) take heed how their nobility and gentlemen do mutiply too fast, for that maketh the common subject grow to be a peasant and base swain, driven out of heart and in effect but a gentleman’s labourer. (Harrington, 1656/1992, pp. 3-4)

O macaco e a essência, de Huxley (1894-1963), foi escrito em 1949 e está fortemente marcado pelo pós-guerra. O texto, supostamente encontrado numa lata de lixo de Hollywood, é irônico, mordaz e, como outros do mesmo autor, uma crítica ferrenha à ciência e à tecnologia modernas. Abre-se com “um grito sufocado [que] anuncia a morte, por suicídio, da ciência do século XX” (Huxley, 1987, p. 48). Passa-se na Los Angeles de 2018, no pesadelo pós-terceira guerra mundial. Predomina, então, o culto ao diabo, com sacrifícios de crianças deformadas.

Muitos marcadores podem ser utilizados para a análise do discurso da eqüidade e da desigualdade sociais: chefes versus subordinados; eclesiásticos versus leigos; nações versus blocos de nações. Citam-se abaixo as seqüências discursivas relativas à mulher, lembrando que o livro se propõe profético. As seqüências falam por si próprias, mostrando, no pesadelo da contaminação nuclear, o surgimento de significações imaginárias da mulher como vaso satânico, geradoras de monstros, pessoas repugnantes, que a todo custo devem ser controladas e subjugadas e, fora do texto (que, como se viu, é como uma caixa dentro de outra caixa), as possíveis conseqüências da guerra moderna.

O Chefe abaixa os olhos para ela. (...) Com um esforço, ele desvia o olhar. Seus lábios se movem. Ele está repetindo a passagem adequada do Pequeno Catecismo: “Qual é a natureza da mulher? Resposta: A mulher é o vaso do Espírito Satânico, a fonte de todas as deformidades, a inimiga da raça, a...” (p.63)

 

Vinte ou trinta mulheres (...) tecem laboriosamente em rocas primitivas (...).

– Nenhum desses vasos deu à luz nesta temporada – o Chefe explica ao dr. Poole. (...) – Quando não estão produzindo monstros, são estéreis. Como nos iremos arranjar com a mão-de-obra, só Belial sabe. (...) (p. 78)

 

– Muito bem - diz o praticante (...). E agora eu preciso de um jovem vaso.(...)

– Suba aqui – guincha a voz quase infantil em tom autoritário. (...)

O praticante aponta acusadoramente [uma menina de 15 anos].

– Olhem isto – diz ele, franzindo o rosto numa careta de repugnância. – Já viram coisa mais nojenta? (p. 81)

– Depois volta-se para a mocinha (...) – Agora diga-me, qual é a Natureza da Mulher? (...)

– A mulher – começa – a mulher... (...)

– Continue! – berra o praticante estridentemente. E apanhando do chão uma vara de salgueiro, aplica uma forte vergastada nas barrigas das pernas nuas da criança. – Continue!

– A mulher – recomeça a menina mais uma vez – é o vaso do Espírito Satânico, a fonte de todas as deformidades, a... a... ai!

Ela encolhe sob um novo golpe.

O praticante de Ciência ri e toda a classe o acompanha.

– A inimiga... – ele auxilia. (p. 82)

– Ah, sim, a inimiga da raça, punida por Belial e atraindo punição sobre todos os que sucumbem a Belial nela. (p. 83)

Os exemplos das três utopias permitem entrever que a metodologia proposta é apta a apreender o domínio social histórico a partir da análise da formação discursiva das narrativas, tendo em vista duas dimensões, a imaginária e a das determinações sociais, econômicas, geográficas, lingüísticas, temporais e espaciais.

O indeterminado e o novo estão imbricados na própria narrativa - descoberta de uma ilha altamente civilizada e isolada, de uma república em plena época de poder absoluto, de um grupo humano vivendo como bestas no século XXI – e vinculam-se ao surgimento de novas significações imaginárias sociais, a serem apontadas. O levantamento das condições de produção do discurso mostra as determinações presentes.

A apreensão do deds pode ser feita de imediato. A imagem é a de se abrir uma janela de onde é possível examinar, de uma só vez, muitas sociedades, antigas e modernas, sem se separar sociedade e história, sincronia e diacronia. Isso é realizado simultaneamente e com o recurso direto a uma das fontes mais completas e ricas do imaginário social histórico, as narrativas sobre sociedades utópicas e fictícias.

Para tanto, a metodologia lança mão, sobretudo, do trabalho com a linguagem. Tem como principal instrumento a análise do discurso.

Referências bibligráficas

Atlan, H. (1979). Entre le cristal et la fumée: essai sur l'organisation du vivant. Paris: Seuil.

Bacon, F. (1979). Nova Atlântida. (J. A. R. Andrade, Trad.). (pp. 233-272). São Paulo: Abril Cultural. (Os pensadores). (Original publicado em 1627).

Castoriadis, C. (1975). L´institution imaginaire de la société. Paris: Éditions du Seuil.

Castoriadis, C. (1987) As encruzilhadas do labirinto. v. 2: Os domínios do homem. (J. O. A. Marques, Trad.). Rio de Janeiro: Paz e Terra. (Original publicado em 1987).

Castoriadis, C. (1999). Feito e a ser feito. As encruzilhadas do labirinto V. (L. Valle, Trad.).Rio de Janeiro: DP&A Editora. (Original publicado em 1997).

Charaudeau, P.; Mainguenau, D. (2004). Dicionário de análise do discurso. (F. Comesu, Trad.). São Paulo: Contexto. (Original publicado em 2002).

Foucault, M. (1987). A arqueologia do saber (L. F. B. Neves, Trad.). Rio de Janeiro: Forense Universitária. (Original publicado em 1969).

Harrington, J. (1992). Commonwealth of Oceana. (J. G. A. Pocock, Ed.). Cambridge: Cambridge University Press. (Original publicado em 1656).

Huxley, A. (1987). O macaco e a essência. (J. G. Linke, Trad.) Rio de Janeiro: Globo. (Original publicado em 1949).

Pêcheux, M. (1990a). Análise automática do discurso (AAD-1969). Em F. Gadet; T. Hak (Org.s). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (E. P. Orlandi, Trad.). (pp. 61-161). Campinas: Editora da Unicamp. (Original publicado em 1969).

Pêcheux, M. (1990b). A análise do discurso: três épocas (1983). Em F. Gadet; T. Hak (Org.s). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (J. A. Romualdo, Trad.). (pp. 311-317). Campinas: Editora da Unicamp. (Original publicado em 1983).

Nota sobre a autora

Marília Novais da Mata Machado é doutora pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII (1990) e mestre pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972). Foi professora na área de Psicologia Social na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (1967-1992) e pesquisadora visitante na Universidade Federal de São João Del Rei, no Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (2001-2003). Contato: Rua Prof. Júlio Mourão, 17 apto. 101 / CEP 30380-340 Belo Horizonte – MG, Brasil. E-mail: marilianmm@terra.com.br.

Data de recebimento: 07/06/2005
Data de aceite: 19/09/2005

Memorandum 9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/machado01.htm

 

 

 

 Português  English Envie seu comentário sobre este artigo e sobre a revista Memorandum. Clique aqui

Indique este artigo