O social histórico
A noção de
domínio social histórico aqui utilizada prende-se, primordialmente, ao
pensamento de Cornelius Castoriadis (1975, 1987, 1999). Para ilustrá-la,
parte-se de interpretação de exemplo dado pelo autor relativo à
surpreendente importância do tamanho do nariz de Cleópatra na história
universal. De forma irônica, Castoriadis sugere a relevância da
indeterminação – o acaso de um belo nariz, numa face poderosa - e
mostra uma instância de surgimento de fatos contingentes e de significações
imaginárias sociais novas. A história poderia ser outra se o nariz da
rainha egípcia fosse diferente. Pode-se acrescentar: Júlio César
possivelmente não teria entrado em sua vida; Cesárion, o filho dos dois,
futuro Ptolomeu XV, não teria nascido; Antônio, o senhor do Oriente
romano, não teria sido seduzido e o Egito não teria recuperado seu
poderio e ameaçado Roma:
A
primeira surpresa que experimentamos, ao examinar a história, é a de
constatar que, com efeito, se o nariz de Cleópatra fosse um pouco mais
curto, a face do mundo teria mudado. A segunda, mais surpreendente ainda,
é constatar que, na maioria das vezes, os narizes tiveram exatamente as
proporções requeridas (Castoriadis, 1975, p. 71).
Uma reflexão
a partir do exemplo aponta a importância de se superar a separação rígida
entre diacronia e sincronia, entre história e sociedade e mostra, na história,
a presença do aleatório, improvável e indeterminado. Essa presença
ocorre não só nos fatos imprevisíveis, mas também nos criativos, em
cada nova instituição de regras sociais, invenção de objetos antes
desconhecidos ou formulações de respostas originais.
O exemplo
permite, também, introduzir a crítica a uma abordagem puramente
determinista da história. Como o indeterminado existe, as categorias de
acidente e de acaso não podem ser excluídas do estudo da história nem
da sociedade.
Finalmente,
o exemplo aponta o social como auto-alteração que ocorre ou se passa
como história, como temporalidade. Mostra o histórico como auto-alteração
dos modos específicos de coexistência que constituem o social, isto é,
como fato social.
Assim, da
perspectiva social histórica de Castoriadis, um tratamento puramente
estruturalista, sincrônico, atemporal da história está fadado a ser
incompleto. Ao lidar com a justaposição simples de estruturas
diferentes, cada uma delas atemporal, esse tratamento não responde por
que as estruturas se sucedem, desaparecem, gastam-se. Ao deixar de lado a
temporalidade, as abordagens sincrônicas, no dizer de Castoriadis (1975),
acabam por atribuir ao tempo uma curiosa propriedade, a de não ser nada
e, ao mesmo tempo, ser capaz de transformar e destruir o que é.
O mesmo
insucesso ocorre numa aproximação essencialmente diacrônica, como a das
teorias voltadas exclusivamente para a explicação de modificações,
como as de inspiração evolucionista. A abordagem diacrônica é incapaz
de dar conta, por exemplo, no domínio da física, mais especificamente da
cosmologia, da estrutura do universo, que é, simultaneamente, a sua história
e portadora de sua história, formada de estrelas que surgem,
transformam-se e morrem. Incapaz, também, de dar conta de algumas áreas
da biologia que consideram um sistema como vivo porque tem as propriedades
de se desenvolver e evoluir, isto é, de organizar-se de outra forma: é a
sua própria organização que o torna capaz de transformar um acidente ou
uma perturbação em uma outra organização (Atlan, 1979). Nesses
exemplos, tudo se passa como se a sincronia “diacronizasse” e a
diacronia “sincronizasse”.
A abordagem
social histórica busca captar, simultaneamente, as dimensões sincrônica
e diacrônica, sem tomar como absoluta a distinção entre elas. Pressupõe-se
que no domínio social histórico, de nada vale distinguir diacronia e
sincronia, a não ser de forma provisória, circunstancial:
O
exemplo mais claro é fornecido pela própria linguagem considerada em seu
aspecto essencial, isto é, na sua relação com a significação. Pois uma propriedade essencial da linguagem enquanto
sistema é a de não se esgotar no seu estado sincrônico, de não se
reduzir jamais a uma totalidade fechada em significações fixas,
determinadas, disponíveis, mas de comportar sempre um a
mais eminente e constantemente iminente, de ser sempre sincronicamente
aberta a uma transformação das
significações. (...) Uma linguagem, enquanto sistema, é impensável
como pura sincronia; ela só é linguagem enquanto sua própria transformação
incessante encontra recursos nela própria, tal como ela é, em um
“momento dado”. (Castoriadis, 1975, p. 298)
Na
perspectiva social histórica, pode-se dizer que existe língua, sociedade
e história porque as pessoas podem, hoje, entender bem os textos antigos,
os textos clássicos e as inovações originais de um escritor contemporâneo.
Muitas das significações de uma sociedade que permitem essa compreensão
são instituídas direta ou indiretamente pela linguagem (e na linguagem).
Muitas outras, por determinações sociais, econômicas, geográficas,
embora essas próprias determinações sejam também criações sociais,
institucionalizações e instrumentos sociais históricos.
A abordagem social histórica
busca, também, colocar-se além do pensamento herdado, que é basicamente
determinista (Castoriadis, 1975, 1987, 1999). Pressupõe que, na instituição
de uma sociedade, ao lado das determinações, surgem continuamente –
como fruto do acaso, do inesperado, do contingente, do indeterminado - significações
imaginárias sociais que vão sendo incorporadas. Assim, a instituição
de uma sociedade desenvolve-se nessas duas dimensões, indissociáveis uma
da outra: a primeira opera segundo o esquema da determinação, mediante
noções postuladas como distintas e definidas, tais como elementos,
classes, propriedades, relações, categorias; a segunda é uma dimensão
propriamente imaginária, formada por um “tecido imensamente complexo de
significações que impregnam,
orientam e dirigem toda a vida daquela sociedade e todos os indivíduos
concretos que, corporalmente, a constituem” (Castoriadis, 1987, p. 230).
Educação,
ciência, família e outras instituições sociais “agem” e
“pensam” (Castoriadis, 1987, p. 235) sobretudo segundo a primeira
dimensão, valendo-se do pensamento herdado. Porém, as significações
imaginárias que instituem continuamente a sociedade instituinte (Castoriadis, 1987, p. 231), isto é, em
constante transformação ou auto-alteração, não se reduzem a elementos
ou a referências racionais ou reais, mas configuram criações
compartilhadas por um coletivo impessoal e anônimo, singulares de cada
sociedade (deuses, espíritos, nações, Estado, partidos, mercadoria,
dinheiro, capital, cidadania, mercado, virtude, pecado). Por meio de tais
significações, cada sociedade cria seu mundo, atribui-lhe sentido e o
interpreta, operando num quadro altamente indeterminado e aleatório.
O social
histórico não é, pois, redutível a determinações ou a significações
imaginárias. De um lado, a
ontologia e a lógica herdadas, ao se aterem a um número limitado de
categorias rigorosas, ignoram o seu próprio domínio social histórico,
sua criação, sua autopoiesis,
sua transformação. De outro, a dimensão imaginária instituinte dificilmente é apreendida desvinculada da sociedade
instituída que a cria.
A dimensão
determinista e as significações imaginárias sociais – a serem
apreendidas em sua concomitância [isto é, sincronizando a diacronia e
“diacronizando” a sincronia, como sugerido por Castoriadis (1975, pp.
296-297)] - residem na vida social e na linguagem. Por isso, a pesquisa de
uma formação discursiva específica
ou de formações discursivas permite,
simultaneamente, ultrapassar o pensamento herdado e apreender, de maneira
imediata, espaço e tempo, sincronia e diacronia, sociedade e história.
A
formação discursiva
Como
a apreensão do social histórico implica captar simultaneamente o
acidente, contingente e efêmero – gerador de novos fatos e de novas e
singulares significações sociais - e a estrutura, mais ou menos
permanente, contínua e determinada, a noção de formação
discursiva, proposta inicialmente por Michel Foucault (1987) e
modificada por Michel Pêcheux (1990b) no âmbito da análise do discurso,
torna-se teórica e metodologicamente pertinente.
Caso
se amenizem, na noção de formação discursiva, o caráter determinista,
muito acentuado por Foucault, e o caráter estrutural, pontificado por Pêcheux
em suas primeiras análises do discurso, a noção abre uma perspectiva teórica
para a apreensão do domínio social histórico e, ao mesmo tempo, fornece
um instrumento de pesquisa hoje consolidado, a análise do discurso.
Curiosamente, datam do mesmo ano, 1969, a noção foucaultiana de formação
discursiva, contida em A arqueologia do saber, e a criação da análise automática do
discurso por Michel Pêcheux (1990a).
A
definição de formação discursiva implica
um
conjunto de regras anônimas, históricas, sempre determinadas no tempo e
no espaço, que definiram, em uma dada época e para uma determinada área
social, econômica, geográfica ou lingüística as condições de exercício
da função enunciativa. (Foucault, 1987, p. 136).
A
noção foucaultiana de discurso se refere ao conjunto de enunciados
provenientes de uma mesma formação discursiva.
Pêcheux
levou a noção para a análise do discurso, inicialmente construída no
âmbito de uma tomada de posição puramente estruturalista e cujo objeto
fora definido como as relações entre “máquinas” discursivas
estruturais. Segundo Pêcheux:
A
noção de formação discursiva
tomada de empréstimo a Michel Foucault começa a fazer explodir a noção
de máquina estrutural fechada (...): uma formação discursiva não é um
espaço estrutural fechado, pois é constitutivamente “invadida” por
elementos que vêm de outro lugar (isto é, de outras formações
discursivas). (Pêcheux, 1990b, p. 314).
A
noção de interdiscurso foi, então, introduzida na análise do discurso para
designar o espaço exterior específico de uma formação discursiva e,
pouco mais tarde, Pêcheux (1990b) modificou os procedimentos de análise
do discurso que vinha utilizando, reconhecendo que as palavras mudam de
sentido quando passam de uma formação discursiva a outra.
Patrick Charaudeau e Dominique Mainguenau (2004) sugerem que essa dupla
origem do termo “formação discursiva” (Foucault/Pêcheux) fez com
que este permitisse designar todo conjunto de enunciados sócio-historicamente
circunscrito que pode relacionar-se a uma identidade enunciativa: o
discurso comunista, o conjunto de discursos proferidos por uma administração,
os enunciados que decorrem de uma ciência dada, o discurso dos patrões,
dos camponeses, etc.
Pode-se
acrescentar à enumeração de Charaudeau e Mainguenau de conjuntos
enunciativos o discurso da eqüidade e da desigualdade sociais (deds) -
objeto de pesquisa proposta pela autora e para a qual ela busca elaborar
uma metodologia capaz de apreender o objeto como uma instância social
histórica.
Análoga
à imagem do cosmos, cuja estrutura traz consigo sua história e é a sua
história, a formação discursiva do discurso da eqüidade e da
desigualdade sociais pode ser apreendida imediatamente, sem que sua
pesquisa se confunda com o trabalho do historiador e sem que cronologia e
evolução – instrumentos, entre outros, do pensamento herdado – sejam
essenciais. Importa, especialmente, a criação de dispositivos para a
apreensão simultânea das dimensões sincrônica e diacrônica e das
significações imaginárias sociais, além das determinações sociais,
econômicas, geográficas, linguísticas. A metodologia proposta visa
abrir uma janela para o social histórico e viajar em diferentes formações
discursivas correlatas entre si de acordo com um determinado tema, no
caso, a eqüidade e a desigualdade sociais.
Uma
metodologia para a apreensão do domínio social histórico: a pesquisa do
discurso da eqüidade e da desigualdade sociais (deds)
Tendo
como objeto de pesquisa o discurso da
eqüidade e da desigualdade sociais (deds), a investigação pretendida
será feita a partir do levantamento das significações
de eqüidade e desigualdade em narrativas fictícias sobre sociedades e
comunidades (utopias, lendas, sagas, poemas, romances e aventuras em
sociedades imaginadas, descrições fantásticas e críticas da organização
social) e a partir do estudo das condições
de produção dessas narrativas (contexto e situação em que foram
escritas).
O
objetivo da pesquisa é
apreender o domínio social histórico da criação da eqüidade e da
desigualdade sociais na articulação das narrativas com suas respectivas
condições de produção e na contraposição entre elas. Parte-se da
suposição de que práticas discursivas e sociais se correlacionam e que,
em conseqüência, a análise do deds permite inferir como, em comunidades
e sociedades reais, diferenças de etnia, nacionalidade, raça/cor da
pele, gêneros, gerações, classe social ou outra se transformam,
discursiva e socialmente, em desigualdade social.
Discursos
são produzidos a partir de lugares definidos na organização e estruturação
sociais e endereçados a interlocutores que, supostamente, compartilham a
mesma comunidade discursiva e uma mesma história coletiva. O deds está,
pois, inscrito no contexto social histórico que o produz, reflete concepções
correntes de sua época e só pode ser compreendido integralmente tendo
essas concepções como pano de fundo. Por isso, a partir dele, é possível
conhecer também acontecimentos macrossociais reais e os vínculos de eqüidade
e desigualdade que congregam e separam indivíduos reais. Em síntese, o
deds reflete e, ao mesmo tempo, cria os lugares sociais históricos, não
apenas de enunciação, mas também de vida real.
O
método de pesquisa será a análise do discurso: de cada narrativa
extrai-se um conjunto de frases (seqüências discursivas) que permitem
conservar o sentido e o encadeamento geral e, especificamente, frases
pertinentes ao tema de interesse, a eqüidade e a desigualdade sociais.
Essa segunda série de seqüências discursivas é selecionada tendo como
critério a presença de palavras-chaves marcadoras da desigualdade, isto
é, palavras que apontam situações em que aparecem aqueles que controlam
e que não controlam a própria vida, a primeira categoria incluindo,
entre outros, colonizadores, proprietários, senhores, adultos, patrões e
a segunda categoria incluindo colonizados, velhos, crianças, empregados,
criados, servos, súditos, escravos, doentes, tudo dependendo do contexto
em que aparecem. O conjunto de narrativas assim reconstruídas forma o
arquivo de pesquisa, que se pretende tão heterogêneo quanto possível,
cobrindo diferentes formações discursivas, épocas e lugares diversos.
Em
termos mais técnicos, o método comporta os seguintes momentos: seleção
dos textos a partir dos quais os corpora
empíricos da pesquisa são gerados e analisados; construção do arquivo
de pesquisa formado pelo conjunto dos corpora;
análises “intratextos” – lingüísticas e sociais; levantamento das
condições de produção de cada narrativa (em dicionários, enciclopédias,
críticas e biografias); definição das articulações entre cada
narrativa e suas respectivas condições de produção; análises
comparadas intertextos definindo as articulações e oposições entre
dois ou mais textos diferentes; definição da formação discursiva do
deds.
Para
concluir, alguns exemplos de apreensão do domínio social histórico
A
título de exemplos e para definir a apreensão do domínio social histórico,
mencionam-se fragmentos da análise de duas utopias do século XVII, Nova
Atlântida de Francis Bacon (1627/1979),
obra publicada postumamente, em 1627, e Commonwealth
of Oceana,
de James Harrington (1656/1992),
publicada em 1656, além de uma utopia do século XX, O
macaco e a essência, de Aldous Huxley (1987).
No
livro de Bacon (1561-1626), as seguintes seqüências discursivas foram
extraídas da narração dos primeiros contatos entre os viajantes que
chegam à misteriosa ilha de Besalém e funcionários do governo da ilha
(no texto, as hierarquias são rigorosamente estabelecidas de ambos os
lados e seus graus evidenciados pelas roupas e atitudes das pessoas):
(...)
oferecemos-lhe alguns dobrões, ao que, sorrindo, disse “que não devia
ser pago duas vezes pelo mesmo trabalho”, significando (assim pensei)
que recebia salário suficiente do Estado pelo seu serviço. Por isso,
como vim a saber depois, eles chamam um funcionário que aceita recompensa
de “duplamente pago”. (Bacon, 1627/1979,
p. 240).
Oferecemos-lhe
também vinte dobrões, ao que sorriu e disse somente: “O quê? Pago
duas vezes!” (Bacon, 1627/1979,
p. 241).
Analisando-se
as condições de produção do discurso, descobre-se que Bacon, educado
para a carreira diplomática, incorporou o comportamento mundano de um
cortesão. Vivia como um grão-senhor, servido por 72 criados. Como
auxiliar imediato do rei, cabia-lhe opinar sobre autorizações para comércio
e manufaturas, monopólios e patentes comerciais. Nessas atividades
recebia presentes, o que o levou à condenação e, por alguns dias, à
prisão, da qual saiu por intercessão do rei. Evidentemente, não se
sentia tão bem pago pelos serviços que prestava ao Estado, como sugere o
episódio em que
os viajantes oferecem recompensas aos funcionários de Besalém. A
narrativa da Nova Atlântida e
seqüências discursivas como as citadas mostram ser indissociável a relação
entre um autor e seu tempo, entre narrativa e vida pessoal. Contudo, nada
disso prejudica a emergência de significações imaginárias sociais
inteiramente originais como as da Nova
Atlântida.
Não
se sabe muito sobre Harrington (1611-1677), autor de Commonwealth
of Oceana,
utopia republicana, marco de um pensamento político inglês inovador. O
livro foi publicado 16 anos após a revolução inglesa de 1640 e sete
depois da execução de Charles I, em 1649, rei de quem Harrington,
que pertencia à nobreza rural, foi camarista. No seu texto, sugerem-se,
entre outras coisas, a universalização do voto e o fim dos direitos da
primogenitura (embora o próprio autor fosse um primogênito). O livro é
anticlerical, busca um Estado ideal. Diferente das utopias conterrâneas
de More e Bacon, que a antecederam, a de Harrington deixa antever a
Inglaterra real na fictícia e parece que vem propor algo para reduzir o
descontentamento com o Protetorado de Cromwell, conhecido então,
simplesmente, por Commonwealth.
O
texto de Harrington demonstra, na sua própria linguagem, a
indissociabilidade entre a obra e seu tempo. Por exemplo, o vocábulo subject,
contraposto a cidadão no texto, deve ser sempre traduzido por “súdito”,
como no exemplo abaixo:
Let states that aim at greatness (saith Verulamius)
take heed how their nobility and gentlemen do mutiply too fast, for that
maketh the common subject grow to be a peasant and base swain, driven out
of heart and in effect but a gentleman’s labourer. (Harrington,
1656/1992, pp. 3-4)
O
macaco e a essência,
de Huxley (1894-1963), foi escrito em 1949 e está fortemente marcado pelo
pós-guerra. O
texto, supostamente
encontrado numa lata de lixo de Hollywood, é irônico, mordaz e, como
outros do mesmo autor, uma crítica ferrenha à ciência e à tecnologia
modernas. Abre-se com “um
grito sufocado [que] anuncia a morte, por suicídio, da ciência do século
XX” (Huxley, 1987, p. 48). Passa-se na Los Angeles de 2018, no pesadelo
pós-terceira guerra mundial. Predomina, então, o culto ao diabo, com
sacrifícios de crianças deformadas.
Muitos
marcadores podem ser utilizados para a análise do discurso da eqüidade e
da desigualdade sociais: chefes versus
subordinados; eclesiásticos versus
leigos; nações versus blocos
de nações. Citam-se abaixo as seqüências discursivas relativas à
mulher, lembrando que o livro se propõe profético. As seqüências falam
por si próprias, mostrando, no pesadelo da contaminação nuclear, o
surgimento de significações imaginárias da mulher como vaso satânico,
geradoras de monstros, pessoas repugnantes, que a todo custo devem ser
controladas e subjugadas e, fora do texto (que, como se viu, é como uma
caixa dentro de outra caixa), as possíveis conseqüências da guerra
moderna.
O
Chefe abaixa os olhos para ela. (...) Com um esforço, ele desvia o olhar.
Seus lábios se movem. Ele está repetindo a passagem adequada do Pequeno
Catecismo: “Qual é a natureza da mulher? Resposta: A mulher é o vaso
do Espírito Satânico, a fonte de todas as deformidades, a inimiga da raça,
a...” (p.63)
Vinte
ou trinta mulheres (...) tecem laboriosamente em rocas primitivas (...).
–
Nenhum desses vasos deu à luz nesta temporada – o Chefe explica ao dr.
Poole. (...) – Quando não estão produzindo monstros, são estéreis.
Como nos iremos arranjar com a mão-de-obra, só Belial sabe. (...) (p.
78)
–
Muito bem - diz o praticante (...). E agora eu preciso de um jovem
vaso.(...)
–
Suba aqui – guincha a voz quase infantil em tom autoritário. (...)
O
praticante aponta acusadoramente [uma menina de 15 anos].
–
Olhem isto – diz ele, franzindo o rosto numa careta de repugnância. –
Já viram coisa mais nojenta? (p. 81)
–
Depois volta-se para a mocinha (...) – Agora diga-me, qual é a Natureza
da Mulher? (...)
–
A mulher – começa – a mulher... (...)
–
Continue! – berra o praticante estridentemente. E apanhando do chão uma
vara de salgueiro, aplica uma forte vergastada nas barrigas das pernas
nuas da criança. – Continue!
–
A mulher – recomeça a menina mais uma vez – é o vaso do Espírito
Satânico, a fonte de todas as deformidades, a... a... ai!
Ela
encolhe sob um novo golpe.
O
praticante de Ciência ri e toda a classe o acompanha.
–
A inimiga... – ele auxilia. (p. 82)
–
Ah, sim, a inimiga da raça, punida por Belial e atraindo punição sobre
todos os que sucumbem a Belial nela. (p. 83)
Os
exemplos das três utopias permitem entrever que a metodologia proposta é
apta a apreender o domínio social histórico a partir da análise da
formação discursiva das narrativas, tendo em vista duas dimensões, a
imaginária e a das determinações sociais, econômicas, geográficas,
lingüísticas, temporais e espaciais.
O
indeterminado e o novo estão imbricados na própria narrativa -
descoberta de uma ilha altamente civilizada e isolada, de uma república
em plena época de poder absoluto, de um grupo humano vivendo como bestas
no século XXI – e vinculam-se ao surgimento de novas significações
imaginárias sociais, a serem apontadas. O levantamento das condições de
produção do discurso mostra as determinações presentes.
A
apreensão do deds pode ser feita de imediato. A imagem é a de se abrir
uma janela de onde é possível examinar, de uma só vez, muitas
sociedades, antigas e modernas, sem se separar sociedade e história,
sincronia e diacronia. Isso é realizado simultaneamente e com o recurso
direto a uma das fontes mais completas e ricas do imaginário social histórico,
as narrativas sobre sociedades utópicas e fictícias.
Para
tanto, a metodologia lança mão, sobretudo, do trabalho com a linguagem.
Tem como principal instrumento a análise do discurso.
Referências
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publicado em 1983).
Nota sobre a autora
Marília Novais da Mata Machado
é doutora pela Universidade de Paris Norte, Paris XIII (1990) e mestre
pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (1972). Foi
professora na área de Psicologia Social na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais (1967-1992) e pesquisadora
visitante na Universidade Federal de São João Del Rei, no Laboratório
de Pesquisa e Intervenção Psicossocial (2001-2003). Contato: Rua
Prof. Júlio Mourão, 17 apto. 101 / CEP 30380-340 Belo Horizonte – MG,
Brasil. E-mail: marilianmm@terra.com.br.
Data de recebimento:
07/06/2005
Data de aceite: 19/09/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/machado01.htm