Mahfoud, M. (2001) Empenhado na mudança do milênio: identidade, história e profecia em uma comunidade rural tradicional. Memorandum, 1, 2-12. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos01/mahfoud01.htm.

  PDF FILE

Nota Bene: o presente artigo foi concebido em um âmbito de debate, estabelecendo analogias e diferenças entre horizontes culturais diversos. Sugere-se a leitura confrontada de três artigos publicados neste número 1 da revista Memorandum: "Empenhado na mudança do milênio: identidade, história e profecia em uma comunidade rural tradicional", "Identidade, Tempo, Profecia na Visão de Padre Antônio Vieira", "Rei, Sacerdote, Profeta: historicidade, religiosidade e subjetividade".
 
 
Empenhado na mudança do milênio:
identidade, história e profecia em uma comunidade rural tradicional
 
Engaged in the turn of the millennium: identity, history and prophecy in a traditional rural community
 
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
 
Resumo
Estudo de caso sobre um líder de uma comunidade rural tradicional que se diz empenhado na mudança do milênio. A apreensão do significado desse empenho para sua própria pessoa, sua comunidade e todo o mundo – assim como vivido e representado pelo sujeito – permite contemporaneamente apreender os horizontes temporais, espaciais e sociais em que se dá a elaboração da experiência. Os resultados da análise fenomenológica indicam que esse momento cultural suscita no sujeito uma concepção de identidade associada à participação na história universal através do empenho nesse momento histórico de “purificação radical”. A concepção do valor sagrado da história comunitária baseia-se na inserção na história bíblica, ao mesmo tempo que a concepção do valor político do empenho se baseia na participação da história política brasileira. Nessa visão político-religiosa a identidade pessoal e comunitária é tecida com caráter profético diante da história universal.
 
Palavras-chave: Religiosidade Popular; Psicologia e Cultura; Fenomenologia Social.
Abstract
Case study about a leader of a traditional rural community who affirms he is engaged in the turn of the millennium. The understanding of the meaning of this engagement for himself, his community and the whole world – as it is lived and represented by the subject – allows us to understand the temporal, spatial and social horizons in which the elaboration of the experience takes place. The results of the phenomenological analysis indicate that this cultural moment rouses, in the subject, a conception of identity associated with his participation in the universal history through his engagement in this historical moment of “radical purification”. The conception of the value of “sacred” in the communitarian history is based on its insertion in the biblical history. Concurrently, the conception of the political value of the engagement is based on the participation in the political history of Brazil. Within this political and religious vision, the personal and communitarian identity is built with prophetic zeal within the horizon of the universal history.
 
Keywords: Popular Religiosity; Psychology and Culture; Social Phenomenology.
 
 
 

Na pequena comunidade rural de Morro Vermelho (Caeté – MG), em sintonia com o mundo todo, o tema da passagem do milênio tornou-se recorrente. Como comunidade tradicional, seus fortes laços de parentesco, sua referência viva e precisa às tradições locais, suas celebrações religiosas com forte poder ordenador da organização comunitária e das relações interpessoais (cf. Mahfoud, 2001), Morro Vermelho tornou-se palco de um acirrado debate travado pelos moradores em busca de compreensão do que é o homem e a história, em busca de um posicionamento acertado neste preciso momento histórico.

O presente artigo quer acompanhar a elaboração própria daquela comunidade sobre o tema, identificando os horizontes do mundo-da-vida constituídos naquele contexto cultural popular e tradicional, de maneira a evidenciar suas articulações entre identidade pessoal e comunitária; entre passado, presente e futuro; entre mito e historicidade; entre religião e política; entre local e universal. Oxalá torne-se uma contribuição ao conhecimento da elaboração popular sobre o tema da história e suas vicissitudes, tema este tão caro e dramaticamente atual para toda a comunidade humana.

De fato, as repercussões psicológicas ligadas ao tema da passagem do milênio associada ao final dos tempos têm sido objeto de debates em todos os âmbitos da sociedade, em todo o mundo, como bem o documenta a já célebre obra de Georges Duby (1999) “Ano 1000, ano 2000” acomunando nossos desafios atuais aos já vividos por homens de sociedades bem distintas e distantes no tempo. Nesta perspectiva ampla, não faltaram contribuições para uma revisão do sentido da história e dos desafios econômicos e políticos do presente (Cf. Cardini, 1991; Finzi, 1991). Mesmo no Brasil, o milenarismo não é “privilégio” dos últimos anos do final de século, e algumas vezes tem sido abordado de maneira sensível e cuidadosa, como em “Os errantes do novo século” de Monteiro (1974).

Conheçamos, aqui, as elaborações de um líder da comunidade de Morro Vermelho, que se diz “empenhado com a mudança do milênio”. Zé Leal, 65 anos, casado e pai de três filhos, com escolaridade primária (4a. série do primeiro grau), é mestre da banda local, diretor e membro fundador da Associação da Cavalhada que tem forte atuação nas festas locais, é líder reconhecido na comunidade enquanto Igreja e enquanto sociedade civil, é benzedor e sindicalista rural.

Examinamos o conteúdo de duas entrevistas concedidas por ele sobre o tema, em dezembro de 1999 e maio de 2000, evidentemente momentos em que a passagem do milênio e as iniciativas em relação a ela estavam acontecendo.

Numa perspectiva fenomenológica, as entrevistas, como coleta de dados, foram conduzidas tendo em vista obter a descrição do vivido, para depois, com uma análise no mesmo enfoque (van der Leeuw, 1970), chegarmos a apreender o significado afirmado no posicionamento do sujeito em seu mundo. Procedemos, então, à descrição fenomenológica segundo a exigência de estabelecer de modo essencial as características fundamentais do fenômeno tomado em exame. Segundo a característica de tal descrição seguiremos dupla direção: (a) para o interior do sujeito analisando as experiências vivenciais e a vida da consciência com as suas modalidades de se manifestar, e (b) análise das concepções do mundo através da investigação da intersubjetividade. A descrição fenomenológica nos aponta, então, pontos de referência essenciais, permitindo identificar estruturas universais no mundo-da-vida tomado em sua essencialidade. Enquanto psicologia fenomenológica, de caráter descritivo, nos interessa o ser humano e sua atividade cognitiva enquanto ele estabelece relações espaço-temporais e causais em um horizonte inter-subjetivo. (Bello, 1998; 2000).

Nesta perspectiva, os objetos culturais são tomados como descrição do vivido (Amatuzzi, 1996). E cultura “é reconduzida ao seu significado profundo, constituído pelas mentalidades, pela forma de orientação, pelas expressões e pelos produtos próprios de um grupo humano mais ou menos extenso (...) Uma ontologia do mundo da vida, por conseguinte, coincide com a ontologia da cultura” (Bello, 1998, p.42).

 

“Essa mudança, eu to empenhado nela. (...) Eu mesmo tô trabalhando pra acontecer coisas boas”: Com voz firme e ares convictos, Zé Leal, ao longo das entrevistas, vai explicitando o significado de tal frase e mostrando-nos sua concretude dentro dos amplos horizontes do mundo-da-vida de Morro Vermelho.

Procuremos, inicialmente, apreender sua visão de si mesmo neste preciso momento histórico:

Vez em quando eu falo assim que eu sou um homem de visão. Visão é o seguinte: ou seja, visão é ocê enxerga longe, enxerga um pouco o amanhã, né? Que vez em quando, eu uso falar assim: o ontem a gente viu, o hoje a gente vê e o amanhã a gente prevê. Então, por exemplo, o povo num sabe muito distinguir. Tipo assim, no Velho Testamento, principalmente, Deus escolhia um homem pra ser o profeta no meio daquele povo lá. Então o profeta ficava falando coisas que ainda ia acontecer de bom para o povo, outra hora é de castigo, né?, se o povo num mudasse de vida; mas o povo não levava isso muito em conta, o que os profetas falavam, né?, mas no final... Tipo eu baseei muito no profeta Isaías, principalmente, que ele profetizava que a Virgem iria dar à luz a um filho, né? Quer dizer, o profeta Isaías é do Velho Testamento. O que ele falou foi acontecer no Novo, que é Nossa Senhora, né? que deu à luz a Jesus Cristo. Então, o que ele andou falando, foi acontecer no Novo Testamento. Quer dizer, o amanhã, o imprevisto. Então, vez em quando eu falo isso. É, eu tenho essas características de preparar um pouco o amanhã. O amanhã é assim, a gente vai falando mesmo, mas o povo não vai muito dando crédito àquilo que a gente fala.

Ser “homem de visão”, com “características de preparar o amanhã”, tem seu fundamento não só bíblico como indicado no relato acima, mas também um fundamento catequético e sacramental:

Esse ato profético, por exemplo, nós já recebemo ele é no batismo; é o contrário do Velho Testamento. E no Novo Testamento, ao sermos batizados, Jesus já nos dá o dom, que os padres mesmo falam: após ser batizado, nós recebemos o perdão. Sacerdote, profeta e rei. Quer dizer, então, é um dom que Deus tem; é pra gente preparar o amanhã. Esse amanhã, eu sou um dos que anda falando muito nele aí e o povo mesmo, pouco.

Num tecer cuidadoso, caracteristicamente mineiro, Zé Leal chega a explicitar, então sua identidade de profeta e a origem sagrada de seu dom recebido para “preparar o amanhã”. E, ao mesmo tempo, numa atitude típica de Morro Vermelho, procura evidenciar fundamentos de sua compreensão de si também tomando por base os acontecimentos quotidianos e sua própria reação a eles:

E eu tô nessa perspectiva. Eu falo que é coisas que vêm pra mim assim, que chega e serve pra alimentar minha idéia: eu acredito que vai ter uma mudança.

A correspondência entre suas idéias e o que vai acontecendo ao redor, ao alimentar suas idéias, confirma sua identidade de “homem de visão” e de “profeta”. A apreensão do sentido das coisas, a conexão entre os eventos, sua afirmação em gestos concretos, o diferenciam e o definem como “ligado”:

Eles num dá muito sentido a nada. Eles até caminha com a gente, mas é porque a gente puxa a caminhada, eles acompanha; mas se depender deles até nem faz: ‘já fizemos adoração do Santíssimo’; a caminhada fica tipo supérfluo, né? Mas, igual eu tô te falando, que eu sou ligado às duas coisas: eu acho importante a vigília que vamos fazer e concretizar com essa caminhada, porque a própria letra convida essa caminhada, né? Ela faz um convite. Se eu convido: ‘Vamo lá em casa?’. ‘Ah, não, Zé Leal, num vou lá não’; releva. Mas era bom cê ter ido lá, né? Assim é essa caminhada aí.

A conexão entre os elementos da realidade alimenta suas idéias e ao mesmo tempo indica o valor objetivo: afirmá-lo em um trabalho.

De fato, Zé Leal logo havia nos indicado que está “trabalhando”. Em que consiste, então, seu trabalho?

Na perspectiva de um “homem de visão”, guardava há dez anos a cópia da partitura de músicas para uma missa com letra adequada para o solene momento da passagem do milênio. O primeiro trabalho foi guardá-la, mesmo sem saber muito precisamente como a música seria musicada. Agora é  hora de novos passos:

Eu tinha uma missa qu’eu tinha guardado a cópia dela desde ’89; quer dizer, tá com dez anos! A música eu sabia, mas eu nunca tive a curiosidade de querer saber o ritmo da música. Agora não. Agora já tô com a música gravada pra ensinar o grupo pra cantar ela na passagem do 2000. É tanto que eu tô fazendo um aviso pra sair na missa; tá até aqui, quer ver? Por isso que eu falo que eu estou trabalhando pra coisa fazer séria, aqui ó: “Aviso: José Leal comunica ao grupo de cantores, catequeses, adolescente, crismando, carismáticos e as crianças do grupo escolar, que já está gravada a letra da música a ser cantada na primeira missa do ano 2000, à meia-noite, do dia 31 de dezembro próxima, se Deus quiser. Os interessados, marcar comigo, o dia e a hora de ensaiar as músicas”. É isso que eu estou trabalhando pra acontecer.

Guardar por anos, executá-la agora, propô-la a todos como adequada ao importante momento: seu “trabalho” é dar corpo a um valor intuído, sempre na dinâmica de “usar as coisas que vem pra mim” e sempre na busca de conexões:

eu sou um que tô pensando, pensando e vigiando, vigiando os acontecimentos, que poderá melhorar pr’os que souber obedecer a Deus.

Manter-se firme, sem parar, nessa vigilância é visto como parte de sua identidade de profeta e ao mesmo tempo como uma graça:

Num paro com a idéia não, porque às vezes Deus, Ele quer que a gente dá uma mensagem, né? Se a gente fica calado, a gente tá ocultando a mensagem. Aí, eu continuo falando. Eu tenho perspectiva. (A música) Tava falando: castigos e graças. Então, agora a graça a gente tem que tá obedecendo como um vigilante. O próprio Jesus Cristo fala na volta d’Ele, né? ‘Ficais vigilante’.

Seu trabalho é vigiar firmemente os acontecimentos, reconhecendo-os e afirmando-os, e então seu trabalho é, a um só tempo, acolher a graça nos acontecimentos e viver a graça de percebê-los e desenvolve-los, viver essa graça destinada a todos.

De fato, outro “trabalho para acontecer coisas boas” que Zé Leal vem realizando é a reza do rosário tendo em vista a misericórdia para com todo o mundo:

há uns dois ou três anos, toda primeira quinta-feira - num sei se eu já te falei isso - eu rezo sete rosários, que corresponde 1050 ave-marias... Sete rosários. E eu tô fazendo essa oração em favor de evitar castigos no mundo. Quer dizer, então eu tô fazendo alguma coisa. Cê fala assim: “Ah, mas não...”. Não, eu sou um dos que, aqui no Morro, eu tô fazendo, rezando para evitar castigo no mundo. Porque Deus é assim: Deus, Deus ameaça castigar, mas se tem ao menos um que fica pedindo a Deus que não, Deus atende, né? Então, tem essas profecias, mas também tem a misericórdia de Deus que Ele vai atendendo a vida das pessoas.

Começamos, então, a apreender o que significa para ele “coisas boas” pelas quais ele trabalha vigilantemente.

Outro sentido fortemente afirmado das “as coisas boas” é o concretizar-se de algumas idéias cheias de significado, especialmente quando há coincidência com o posicionamento de outras pessoas, confirmando o seu valor e sua origem sagrada:

É. Pra acontecer coisas boas. Outra coisa que tá dentro desse caminhar nosso aí, é tá se desenvolvendo uma idéia também, d’uma procissão de Nossa Senhora com o Santíssimo Sacramento na rua toda, após a missa da meia-noite. A procissão de 8 de setembro agora tá inspirando na nossa cabeça... A nossa cabeça, eu falo assim, minha que já tô trabalhando há mais tempo na idéia, né? e Márcio que nós todos conhecemo ele por Biló, ele que introduziu na idéia que: ‘Ah, vamo fazer uma procissão de Nossa Senhora, com a rua toda, com o Santíssimo Sacramento; esse ano vai ser diferente’. Vai ser: Ela na frente e o Santíssimo Sacramento atrás, como o comandante da coisa [Ri]. Tamo trabalhando pra acontecer coisas boas.

É interessante notar que a “as coisas boas” que estão por acontecer baseiam-se nas principais celebrações da comunidade: a procissão de Nossa Senhora de Nazareth no dia de sua natividade, a 8 de setembro, quando a imagem muito venerada sai pela rua principal – quase a única – do vilarejo; e a procissão pelo mesmo trajeto com o Santíssimo Sacramento encerrando vitoriosamente a celebração do mistério da Cruz e Ressurreição de Cristo. Sendo que toda a vida da comunidade se organiza em torno dos dois grandes ciclos - o da festa de Nossa Senhora e o da Quaresma e Semana-Santa - (cf. Mahfoud, 2001), a boa novidade proposta se configura como uma síntese dos grandes momentos que caracterizam a vida local.

Mas Zé Leal havia nos indicado também, desde o início, que seu empenho se volta para uma mudança neste tempo de passagem de milênio. Vejamos, então, de que se trata.

Eu tenho uma convicção que, nessa mudança, Deus vai fazer uma seleção de povos. Vai fazer seleção de povos. Quer dizer, aqueles que souber ouvir Deus, né? ele será protegido, mas eu tenho uma impressão que tem uma mudança radical nesse novo milênio.

Fundamentando-se em palavras proféticas de Nossa Senhora de Fátima, conhecidas através de uma música, que se refere a “prêmios e castigos”, Zé Leal interpreta:

Quer dizer, prêmios para quem souber observar as coisas de Deus, né? Castigo pr’aqueles que ficar descuidando e achar que ‘Ah, não! O amanhã é sempre amanhã’. Então, este poderá apanhar muita gente de surpresa, né? E eu tô nessa perspectiva.

Firmado também no dito mariano profético de que “por fim, o meu coração imaculado triunfará”, Zé Leal identifica, convicto, que a mudança iminente é uma radical seleção de povos, tendo por crivo a pureza sexual, e “prêmio ou castigo” está fortemente condicionado ao posicionamento de cada pessoa diante de sua condição de vida:

É muito fácil chegar bem no ano 2000. Basta observar duas coisas: primeiro, aos casados, ter fidelidade conjugal; e aos solteiros, preservar a castidade, é simples. E eu tenho impressão comigo que quem tiver dentro desses requisitos vão receber graça; quem não tiver, vai receber castigo. Tá nessa palavra lá, ‘prêmios e castigos’: prêmios pr’aqueles que tiver ou que souber obedecer; os que num souber obedecer, castigo. Eu tenho essa convicção também. Eu num falo ‘acho’.

Um outro fundamento para essa concepção radical de seleção de povos é tomado do Evangelho sempre em confronto com a observação dos tempos atuais:

Eu falo assim: purificação, seleção de povos, né? Quer dizer, tipo assim, que o próprio Evangelho dá a gente umas dicas disso, né? Notando os tempos... Fala o trigo e o joio, né? Então, o próprio Jesus Cristo deixou uma pista assim: que que é trigo, que que é joio; então, ele mesmo falou pra nós, com os discípulos dele: ‘Ó, o trigo são gente boas, os outros são gente ruins. Os ceifadores serão os anjos e a terra é o mundo’. Então, dá uma pista de seleção também. É fundamental aí.

A observação leva Zé Leal a confirmar uma profecia proferida há séculos e que realiza na atualidade. Isto também se coloca como fundamento de sua convicção no cumprimento de outra profecia que estaria por se cumprir nesta mudança de milênio, encerrando um período de impurezas. O final do século e do milênio é indicativo de um grande término: é o tempo da realização da profecia de purificação realizando a mudança radical, iniciando um novo povo.

O século XX num está acabando? Ele tá acabando! Fim de tempo. É, tem uma das coisas - que eu tenho observado – que... e que Nossa Senhora; ela falou no final de 1600 pra início de 1700, Nossa Senhora do Bom Sucesso. Ela apareceu a uma irmã e falou pra irmã o que iria acontecer no século XX. Que ia ter: a virgindade seria descartada, ia haver, leis para facilitar o divórcio... Quer dizer, Nossa Senhora falou em 1700 o que ia acontecer no ano ‘900. Quer dizer, quem são os sobreviventes do ano ‘900? É nós. Nós é que tamos aí. O que Nossa Senhora falou em 1700, mais ou menos, aquele povo não viu acontecer, que nós tamos vendo acontecer. Outra coisa que ela falou com a irmã, é que as impurezas seriam praticadas em ruas, em praças e logreidores públicos, no século XX, que graças a Deus está terminando. E quem tá vendo isso? É nós! Quer dizer, daquela conversa que Nossa Senhora teve com a irmã, aquele povo num viu o que nós tamo presenciando hoje - a gente mesmo, aqui no Morro mesmo, um lugar muito pequenininho; Caeté nem se fala! Aqui também, a gente acha impureza aí pra rua afora. É uma das coisa que eu falo: a virgindade, por exemplo, nos anos 60, o que desvirginasse uma moça era punido, hoje não. Hoje é muito raro, um desvirgina e num tem sentido nenhum. Quer dizer, mas já tava falado, né? Tá acabando, graças a Deus, esse tempo, também [Ri], tá acabando.

O fim da impunidade - esta sinal de injustiça, típica de um tempo impuro – é esperado também no campo social e político, como aspecto da radical mudança que está por vir:

Num pode continuar desse jeito que está, porque eu já entendi que nesse final de milênio, quem faz coisas erradas que tão sendo protegidos, até o momento, né?... Então eu acho que, se Deus quiser, do 2000 em diante vai ter uma mudança até nisso aí.

De fato, um campo histórico, social e político é muito marcante no mundo da vida de Zé Leal e de Morro Vermelho, ainda que seja fortemente caracterizado por uma concepção mítica. Na verdade, é neste campo que se evidencia a abrangência totalizante de seu posicionamento. Tal abrangência é dada justamente por sua posição religiosa, indicada como sendo própria da comunidade local. A partir desse crivo religioso, há crítica em relação à sociedade moderna, bem como em relação à própria comunidade. A expectativa religiosa instaura imediatamente um âmbito de pertença, que se torna fonte de identidade, em seu aspecto de identificação e de diferenciação:

A gente vê aí, por exemplo, tem uns falando no reveillon, né? No reveillon, por exemplo, já é requisitando hotel até caro, né? Eu já vi pela televisão, mas aí - como é que se diz? - é perspectiva que é igual uma coisa, é uma passagem; agora nós, é tipo assim: nós tão com uma expectativa religiosa, né? Uma expectativa religiosa, tem... tem na parte da Igreja, por exemplo, tudo; a Igreja vai fazer tudo, toda a nossa Igreja vai, desde Roma, né? desde a nossa sede central. Roma, vai fazer o jubileu, né? É considerado também um ano santo, né? Vai fazer, Roma, quer dizer, as Igrejas Católicas tudo comandada por ela vai fazer; mas vez em quando, eu ainda falo com as pessoas assim, igual outro dia eu falei - um programa, uma festa, tipo eles tão fazendo pra ordem carismática, por exemplo: não, “um reveillon de Jesus Cristo, lá no rebanhão”, num sei o que que é. Falei com ele: ‘ó, eu acho que a gente deve de ir nessas coisas com os outro, que os outro prepara de Deus, de igreja, é quando nós num temo nada promovido na nossa comunidade. Se nós estamos promovendo uma festa aqui também, num tem sentido ocê largar a festa na sua casa pra ir na casa dos outros’. [Ri] Agora, essa é uma festa que digo: é cada um fazendo festa na sua casa. Quer dizer, a casa, eu tô comparando a nossa comunidade, né? Morro Vermelho. Se nós vamos fazer uma festa aí dia 31, num tem sentido, ir nem em Caeté participar da festa de passagem de ano em Caeté. E eu acho que essa aí vai ser tipo palavra rural, que sempre o povo gosta de pôr as palavra rural, mesmo, porque eu sou rural e tenho muito orgulho de ser, né? Tem gente que tem vergonha de ser trabalhador rural; não, eu tenho orgulho de ser trabalhador rural; portanto, eu sou até presidente, né?, da categoria rural de Caeté.

O horizonte político da pequena comunidade de Morro Vermelho é reafirmado pela participação de eventos históricos marcantes da vida nacional, em particular Zé Leal se refere ao Levante do Quinto do Ouro (em 1715) (cf. Anastásia, 1994; 1998; Mahfoud, 2001) e a uma inédita manifestação pública pelas eleições diretas para a presidência da república, em sintonia com o grande movimento nacional das ‘Diretas Já” meses depois.

Que eu tenho falado pra pessoas que num dá muito sentido ao Morro Vermelho, e eu falo assim – engraçado -, eu falo assim: ‘O Morro já fez muita coisa pelo Brasil e o Brasil num faz nada pro Morro’. Então, quando é...: ‘Mas que que é que Morro fez por Brasil?; aí eu fico: ‘Levante do Quinto do Ouro’. Quer dizer, nós, os nossos antepassados, que revoltou para o bem estar do Brasil, né? Depois eu vou: ‘Diretas Já’; quer dizer, as ‘Diretas Já’ também é da volta da democracia, né? Quer dizer, quem que leu a ‘Carta Manifesto’, que os comícios funcionou de janeiro de ‘84, mas a leitura da carta foi em 07 de setembro de 1982, a “Carta Manifesto”. Quer dizer, essa que foi a pedra principal de início da democracia, o resto foi desenvolver. Quer dizer, hoje o nosso Estado mesmo num fala. Quando eles fala nas a volta da democracia, eles fala de Belo Horizonte pra lá, mas aonde foi lida a “Carta Manifesto” mesmo, eles nem cita. É, mas mas uma coisa que o Brasil envolve, Brasil regozija a democracia, mas o Morro mesmo, num percebemos nada disso até hoje. [silêncio].

A tensão do depoimento evidencia a consciência de uma pertença ‘a comunidade nacional nascida de uma identidade comunitária calcada em lutas sociais e políticas em um relativamente extenso período histórico. A expressão acima “nós, os nossos antepassados revoltou” é indicativa dessa comunidade viva agindo com firmeza política em favor da liberdade e da democracia há quase três séculos, vivida como dimensão pessoal por Zé Leal.

A contradição dramática de contribuir consistentemente e não ter reconhecimento é tomada por ele na imagem do fundamento: “a pedra principal de início” não se vê. Esta é a posição de Morro Vermelho diante do Brasil. Esta é a mesma posição de Zé Leal diante da história:

Se olhar lá na ‘Carta Manifesto’, ce num vê meu nome. Nesse tempo eu num era político, mas quem autorizou a leitura da carta aqui no Morro foi eu [Ri].

Esta é a mesma posição de Zé Leal, homem de visão, ligado, profeta, quase imperceptível mas atuante diante dos homens.

Mas esta leitura contemporaneamente mítica e histórica, esta capacidade de abrangência da totalidade ali naquele pequeno contexto, não se estabelece somente como um olhar geral e genérico para a vida da comunidade. Esta dinâmica cheia de crivos críticos e de capacidade de valorização foi por nós identificada durante as entrevistas mesmas, no relacionamento ali estabelecido, especialmente quando Zé Leal comenta o significado da pesquisa que temos realizado em Morro Vermelho há alguns anos:

Os três arcanjos é Gabriel, Miguel e Rafael. O nome de Gabriel significa ‘Deus anuncia’, o nome de Miguel significa ‘Deus combate’ e o de Rafael significa ‘Deus cura’. Então o nome seu, por exemplo, é o nome que quando eu converso com’ocê eu sei que eu converso... Miguel significa “Deus combate”. Aí é combate o que? Ajuda a combater as coisas que de ruim que tão feias, pra melhorar, né? É tudo que precisa de meta, que tá em combate, né? O povo num chega a entender muito não, mas a gente lembrando um pouco da Guerra dos Emboabas, por exemplo, o desfecho dos emboabas foi com os paulistas, né? aonde que teve aquela guerra.... Então, na guerra depois tem que ter os apaziguador, o fazedor de paz, né? Então, de vez em quando, eu converso com cê: ‘Ah, agora um emboaba, conversando com um paulista!’ [Ri]. Um descendente de emboaba conversando com um descendente de paulista. Quer dizer, naquela rancha dos emboaba, no meu entender, nós dois fechamos assim - com’é que fala? - a conciliação, né? Porque, eu falo muito, eu tenho pouca leitura; minha leitura é terceira série primária, né? mas meus pensamentos, eu falo assim: ‘Caeté e Morro Vermelho tinha uma dívida muita grande com Deus, com relação a essa Guerra dos Emboabas’. E também com os maltrato com os escravo, né? Que a história de Caeté e a do Morro é baseada na escravidão, né? Quer dizer: que que os escravos faziam? Trabalhavam dado, num recebiam nada, quando ainda era chicoteado ainda, uai! Então, eu falo: tá chegando a hora de Deus perdoar nós, desses erros de nossos antepassados.

Fundamento invisível mas sustentáculo, profeta às vezes incompreendido mas trabalhador empenhado nas mudanças radicais em curso, história longa marcada por tantos erros e impurezas mas também por possibilidades vivas de reconciliação, vida bem circunscrita social e espacialmente mas participante da história universal. As mudanças do novo milênio começam com reconciliação, restaurando – começamos a perceber, com algum sentido – uma pureza. E na precisa relação afetiva, social, histórica, um horizonte de totalidade se afirma, insistente:

Tamos em final de tempos. E eu tenho essa conversa de nós dois: eu como um dos emboabas, ocê como um dos paulista, fechando um reconciliamento até com Deus.

 

Referências Bibliográficas

Amatuzzi, M. M. (1996). Apontamentos acerca da pesquisa fenomenológica. Estudos de Psicologia, 13 (1), 5-10.

Anastasia, C. M. J. (1998). Vassalos rebeldes: violência coletiva nas Minas na primeira metade do século XVIII. Belo Horizonte: C/ Arte.

Anastasia, C. M. J. (1994). Vassalos rebeldes: motins em Minas Gerais no século XVIII. Varia História, 13, 26-43.

Bello, A. A. (1998). Culturas e Religiões: uma leitura fenomenológica. (A. Angonese, Trad.). Bauru - SP: Edusc. (Original publicado em 1997).

Bello, A. A. (2000). A fenomenologia do ser humano: traços de uma filosofia no feminino. (A. Angonese, Trad.). Bauru - SP: Edusc. (Original publicado em 1992).

Cardini, F. (1991). Apocalisse e senso della storia nell´Italia medioevale (séc. XII-XV). I Quaderni di Avallon: rivista di studi sull´uomo e il sacro, 24, 11-26.

Duby, G. (1999). Ano 1000, ano 2000: na pista de nossos medos. (E.M. da Silva e M.R.L. Borges-Osório, trad.s). São Paulo: Ed. UNESP / Imprensa Oficial do Estado. (original publicado em 1995).

Finzi, C. (1991). Tecnologia e fine dei tempi. I Quaderni di Avallon: rivista di studi sull´uomo e il sacro, 24, 51-71.

Mahfoud, M. (2001). Percorrendo as distâncias: memória e história. Em A. Hoffmann,  J. L. O. Bueno & M. Massimi (org.s). Percorrer distâncias: um desafio para a razão humana (pp. 53-64) . São Paulo: Ed. Companhia Ilimitada.

Monteiro, D. T. (1974). Os errantes do novo século: um estudo sobre o surto milenarista do Contestado. São Paulo: Livraria Duas Cidades. (Série Universidade, n. 2).

Van der Leeuw, Gerardus (1970). La religión:dans son essence et ses manifestations - phenomenologie de la religión. (Jacques Marty, Trad.). Paris: Payot. (Original publicado em 1933).

 

Nota sobre o autor: Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte, Brasil. Contatos: mmahfoud@fafich.ufmg.br.

 

Data de recebimento: 15/10/2001
Data de aceite: 29/10/2001
 
Memorandum, Out/2001
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos01/mahfoud01.htm

 

 

 

 Português  English Envie seu comentário sobre este artigo e sobre a revista Memorandum. Clique aqui

Indique este artigo