Bairrão, J. F. M. H. (2002) Subterrâneos da Submissão: Sentidos do Mal no Imaginário Umbandista. Memorandum, 2, 55-67. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/ artigos02/ bairrao01.htm.

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Subterrâneos da Submissão:
Sentidos do Mal no Imaginário Umbandista
 
Undergrounds of Submission:
The Senses of Evil in the Umbandist Imaginary
 
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Universidade de São Paulo
Brasil
 

Resumo

A resistência à opressão étnica e cultural obriga comumente a recuos para regiões que, de físicas, passam também a ser psíquicas e fantásticas. Os caminhos que a elas conduzem e a sua topografia encontram-se cifrados no imaginário social. O termo de origem banto "umbanda" denomina uma religião brasileira que reflete a história e a sociedade do país, possibilitando empiricamente o estudo desse imaginário. Este estudo objetiva aprofundar o conhecimento da verdade social brasileira, fazer justiça à memória de ancestrais e conhecer e reconhecer formas populares de reflexão ética e de cognição social. Os seus principais colaboradores foram Exus, que gentilmente concordaram em serem entrevistados. Os seus depoimentos e a observação participante de terreiros permitiram rastrear subterrâneos daquele imaginário.

Palavras-chave: imaginário; religião; memória social; psicologia e cultura; transe.

Abstract

The resistance against ethnic and cultural oppression commonly compels recoils for regions that, from physical realities, also come to be psychic and fantastic realities as well. The paths that lead to them and its topography meet ciphered in the social imaginary. The term of Bantu origin "umbanda" names a Brazilian religion that reflects the history and the society of the country, enabling an empirical study of this imaginary. This study intends to deepen the knowledge of the Brazilian social reality, to do justice to the memory of ancestors and to know and to recognize popular forms of ethical reflection and social cognition. Their main collaborators are Eshus, that kindly agreed in being interviewed. Their depositions and the participating observation of the life of "terreiros" (the places of the cult) allowed to trace the undergrounds of those imaginary.

Keywords: imaginary; religion; social memory; psychology and culture; trance.

 

Introdução

Este trabalho (1) reflete enunciações do imaginário umbandista, formuladas a partir de exus, postas nos seus próprios termos, proferidas pela boca de seus "cavalos" (médiuns).

No seu âmbito prestou-se especial atenção à fala de médiuns e de entidades e a todos os demais recursos expressivos do fenômeno estritamente por razões metodológicas. Não se cogita a atribuição de um privilégio metafísico à linguagem, nem se presume reduzir o sagrado umbandista a uma questão de discurso. Tão somente se privilegia esta forma de acesso ao seu mistério no intuito de poder acessar o que em paralelo pode revelar sobre memórias pessoais e coletivas inconscientes, criptografadas nas suas enunciações.

Ao examinar a variedade dos seus procedimentos semióticos prestando atenção ao seu cunho de performance, verificou-se que a sua linguagem dirige-se à totalidade do ser humano, atingindo-o pré-representacionalmente e significando-o a partir do seu próprio corpo e em todos os sentidos (Bairrão, 1999).

Muito rente à esfera pulsional, verificou-se que a linguagem umbandista produz sentido sensorial-significativamente e por isso são necessárias para a descrever polissemias e metáforas da profundidade, no caso dos exus, (não apenas) literalmente "viscerais".

O complexo semiótico umbandista pode ser tratado como uma coleção de enunciações, cálculos, reflexões, memórias e críticas, que perpetuam e re-produzem tradições e identidades (populares), boa parte delas recalcadas, reprimidas. Esta abordagem em hipótese alguma deprecia o seu valor e sentido de sacralidade. Apenas não é compatível com pré-concepções do sagrado.

No caso da umbanda, a par de assumir forma humana, o sagrado corporifica-se em histórias de tipos sociais cujas narrativas têm valor exemplar. O subjugado dá a volta por cima. O "baixo" é o alto. Honra-se o popular. Há uma harmonia complexa entre os sentidos de todas as linhas (tipificações de formas de transe decalcadas de "modelos" sociais) e um valor de inclusão de todo o marginalizado (Birman, 1985; Brumana e Martinez, 1991).

O intuito deste estudo e de outros desenvolvidos no âmbito de um mesmo projeto é estabelecer pontes para um real diálogo intracultural, não autoritário, revelador da dimensão reflexiva do popular e seu interlocutor respeitoso. Com o conhecimento assim obtido, espera-se construir pontes para uma intervenção social e comunitária, ética e dialógica, isenta de narcisismo paternalista.

Sobre a Umbanda

Antes de adentrar no assunto é importante esclarecer alguns equívocos sobre a umbanda, no quadro da religiosidade brasileira. Sobre o assunto há diversos mal entendidos.

Muitas vezes compreendida como coleção de resquícios e perda de tradições de outros cultos, a umbanda ora é vista como catolicismo popular e degenerado, ora como forma involuída de kardecismo (baixo espiritismo), ora como candomblé degradado (pela falta de capacidade em ser fiel a uma fantasiada "pureza" africana). Desta maneira a sua especificidade é ignorada.

Outras tentativas de redução repetem-se nos meios acadêmicos. Historicamente houve uma propensão para respaldar a introdução de novas discriminações entre os africanos trazidos como escravos (Ferretti, 1995, 1999). Em síntese, os bantos seriam mais obtusos e, portanto, adequados para trabalhos físicos sem nenhuma qualificação. O seu patrimônio cultural teria se perdido com facilidade e seria inferior. Estes preconceitos são tão veementes que, não obstante a universal presença e extrema influência da cultura banto no Brasil, ela acontece como se fosse invisível ou transparente, supondo-se outras origens para muitas das suas contribuições.

Especificamente quando se fala da sua tradição religiosa, é comum que esta seja vista como perdida, inexistente; ou limitada a práticas mágicas de diferentes proveniências, progressivamente racionalizadas, sobre as quais posteriormente se construiu uma nova religião (a umbanda). Na direção oposta, mas não menos infeliz, a sua espiritualidade freqüentemente é encarada como religião degradada em práticas mágicas. Ignora-se que a religião é uma criação brasileira (Concone, 1973), suportada na nomenclatura de uma tradição de práticas de cura bantos (denominada umbanda) ministradas por especialistas intitulados quimbandas (Rodrigues de Areia, 1974). Não houve perda nem acréscimo, a não ser os normais nos processos culturais, incompatíveis com juízos de valor. Ocorreu apenas um deslocamento semântico. A denominação de uma parte do complexo cultural africano passou a ter outro uso no Brasil: enquanto religião, a umbanda não é degradação de outra - o termo na África não se reporta especificamente a algo religioso, pura e simplesmente nomeando a terapêutica tradicional (Estermann, 1983; Coelho, 2000). Por outro lado, há uma notável homogeneidade entre a plasticidade e o culto dos ancestrais na umbanda contemporânea e as formas bantos de religiosidade (Ligiero e Dandara, 1998).

Não é recomendável aplicar a processos de transculturação raciocínios voluntária ou involuntariamente evolucionistas. Assumir que uma tradição contemporânea deva ser avaliada pela sua correspondência com alguma matriz, real ou fantasiada, projetada num passado pensado no âmbito de uma temporalidade linear é, no mínimo, propor-se a lidar com a complexidade do imaginário e com a sua temporalidade intrínseca de maneira inadvertida para com o tempo que lhe é inerente, adotando pressupostos que seria preferível rever.

Esta ilusão sobre a linearidade do tempo, não obstante mantida por muitos que presumem reivindicar uma fidelidade à tradição, ignora que o tempo do sagrado é sempre presente. A origem acontece atual e é revivida em cada reiteração do sagrado (Corbin, 1977, 1981, 1983). O imaginário religioso, tal como o inconsciente, não se regula pela cronologia e, curiosamente, a umbanda, que aparentemente é uma das religiões que mais consagra o profano (sendo por vezes difícil diferenciar a vida comum das pessoas das lendas dos seus deuses e discernir onde acaba uma roda de samba e começa uma "gira") apresenta um senso do tempo imaginal e uma proximidade com o sagrado menos intelectualizadas, mais espontâneas, mas bastante genuínas e fieis ao modo próprio do seu acontecer (talvez por não ter sido objeto de racionalizações sócio-políticas, nem vítima de interpretações fundamentalistas, aliás incompatíveis com o "ethos" da sua espiritualidade).

A umbanda é uma tradição presente. Uma "co-memoração" criativa da brasilidade atual. Os seus fundamentos têm uma inconsistência solidária do descrédito atual em fundamentalismos. Para um observador filosoficamente informado, a falta de cerimônia com que se criam e recriam os seus "fundamentos" soa como uma paródia muito contemporânea da metafísica. O mau endereçamento do sentido do sagrado para proposições e teses metafísicas é denunciado pela mutabilidade e reconfigurabilidade das suas crenças e doutrinas, na forma de um jogo alegre, leve e bem humorado - aparentemente norteado por critérios mais propriamente estéticos do que metafísicos -, verdadeiro espelho caricatural da defunta disciplina. Involuntariamente, o fenômeno umbandista situa-se para além do consórcio, habitualmente em tom trágico e fúnebre, entre os discursos nostálgicos de certezas e aqueles que "festejam" de maneira ressentida o fim da metafísica.

Por mais paradoxal que isso possa parecer, o descompromisso umbandista para com a intocabilidade dos efeitos retóricos de jogos de palavras, o seu evidente descaso para com a cristalização de "tradições", a sua liberdade de recriação de fundamentos e doutrinas e a dimensão lúdica do seu sincretismo permitem que apareça sem disfarces a puerilidade da metafísica. Nesta religião o essencial nunca são conceitos - a verdadeira "essência" do culto resume-se a gestos e ações inspirados pelo cuidado para consigo e para com outrem, subordinando-se a estes a mutável "doutrina".

A umbanda não precisa de origens míticas ou inventa-as literariamente (Meyer, 1993). Desta forma é mais dócil ao sopro do espírito e à respiração dos corpos e talvez por isso apresente maiores dificuldades a sua intelecção a partir de esquemas rígidos. Mantém laços de inclusão entre o sagrado e o mundano, às vezes na forma de transparência (mais do que transcendência ou imanência). Promove como que uma sacralização do social e humano brasileiro e uma re-invenção constante, que ofendem a nostalgia de metafísica e a paixão pelo estático. Não apresenta dogmas nem codificações. As suas doutrinas são suficientemente sérias para não se levarem muito a sério.

A sua prática poderia resumir-se em estratégias para manter uma polifonia de vozes sobre diversos assuntos. Cada espírito, do seu prisma, incorpora-se para dizer algo que acrescenta ou se contrapõe a outra voz enunciada de outra perspectiva e igualmente válida. Este processo é favorável à inclusão de conflitos e à explicitação de contradições. O lugar de autoridade, em ultima instancia, é devolvido ao fiel.

É interessante acompanhar processos de afirmação progressiva das múltiplas identidades do transe (o chamado desenvolvimento mediúnico). A partir de material simbólico consagrado, vão-se compondo e integrando médium e "entidade". Ambos "evoluem" juntos. Esta construção segue uma gramática dada e obedece a uma linguagem integral, com aspectos pictóricos e sensoriais (Price-Mars, 1984). Atinge esferas pré-representacionais. O cunho alusivo das suas metonímias freqüentemente afasta-se do solene (que tende a ridicularizar, já que sempre foi imposto como signo do opressor) e a sua simplicidade muitas vezes roça o pueril (o que no contexto umbandista é um elogio, posto que o culto leva a sério a vinculação bíblica entre o infantil e o celestial).

Descomprometida com direitos autorais, a umbanda incorpora vorazmente toda e qualquer "influência" que possa ser útil à produção de um sentido contemporâneo (Negrão, 1996). Não apenas doutrinas, ritos e panteões, mas também músicas, literatura, etc.

Esta recepção de influencias, não se pense acontecimento passivo (Trindade, 2000). A riqueza do fenômeno cultural umbandista, que tudo incorpora e utiliza, desde lendas e práticas indígenas até à retórica da Nova Era, não é compatível com uma absorção amorfa. Artisticamente, o Outro suposto autor da macumba combina velhos elementos em novos padrões estético-religiosos.

Uma dificuldade comum é pretender entender estes elementos a partir do sentido proposicional que teriam no contexto do seu uso anterior, ignorando que são meros significantes chamados a responder por novos usos (Goldman, 1984). Como este processo de construção não deixa de ser um desmascaramento de procedimentos semelhantes, mas não assumidos, o cunho de denúncia que implicitamente comporta incomoda os religiosos que, por não perceberem o vínculo entre o sagrado e o brincar, se levam demasiado a sério.

De fato, um ritual de umbanda é um evento alegre e muito festivo, uma grande brincadeira, mesmo que muitas vezes se lide com dramas humanos da maior gravidade (e talvez exatamente por isso). A sua teatralidade e a ironia para consigo mesmo e para com a realidade circundante são uma constante - característica que já havia sido reconhecida e descrita no início do século passado, em cultos africanos que com ela guardam relações de semelhança profundas (Leiris, 1958/1996).

O sagrado incognoscível, em vez de se reduzir a objeto de estertores e de fervores místicos de egos muito crescidos, resolveu brindar os seus filhos brasileiros com significantes de grande plasticidade, sempre capazes de propiciarem enunciações e re-enunciações que façam sentido para uma compreensão e elaboração da experiência coletiva e social contemporânea (Turner, 1988).

Esta liberdade de espírito permitiu à umbanda resistir plasticamente a inúmeras tentativas de imposição física e metafísica e, neste processo, assume lugar de vulto uma personagem do seu panteão, exu, cedida sem autorização prévia pela cultura ioruba (Trindade, 1975).

O Exu Umbandista

Para tal eleição contribuíram a assimilação complexa da figura de exu ao diabo católico (nexo que longe de ser apenas feito brasileiro, se encontra estabelecido na própria África).

A vivência popular do diabo não o associa propriamente a uma instância metafísica do mal, salvaguardando-o como representante e advogado de bens e prazeres pessoais e imediatos que, por razões o mais das vezes incompreendidas, são proibidos em função de interesses alheios aos do indivíduo (embora habitualmente legitimados em função do "seu" bem). Por vezes os interesses de distintas pessoas ou grupos são antagônicos e é neste caso que o bem alheio pode ser sentido como um mal pessoal (nunca um Mal absoluto).

É o papel de oposição a essa expropriação de bens pessoais, afetivos e de todo o tipo, que o "compadre" exu está destinado a cumprir na umbanda.

Não bastasse a sua assimilação ao diabo (contra todas as evidencias, recusada por muitos umbandistas que tentam disciplinar a espontaneidade do imaginário, confessando dessa forma terem soçobrado à difamação contra a simpática figura do capeta), talvez por influência kardecista, ainda por cima o exu umbandista perdeu o seu estatuto de divindade (ainda que decaída). Foi "despromovido" a mero parceiro exemplar da aventura humana, uma criança, homem ou mulher vividos (em duas acepções: experientes e mortos), o que certamente também desagrada ao excesso de seriedade em metafísica.

Como todas as demais personalidades do panteão umbandista, os exus se organizam em linhas e falanges que semanticamente revelam cenas do imaginário (com todas as suas implicações éticas, estéticas e cognitivas) e desvendam a funcionalidade de metáforas.

Boa parte destas (se não a totalidade), no caso dos exus, estão marcadas pelo signo da resistência e da liberdade. Subvertem (literalmente) a "paz dos cemitérios" e preservam, sob uma aparente adesão, o espaço de uma identidade própria e irredutível, à qual dão vazão, e cujo culto é claramente percebido como "defesa" e proteção.

Nesta medida, como o panteão umbandista, tão humano, é profundamente solidário, a sua inclusão (ainda que em lugar discreto, fora das vistas de curiosos e de intenções duvidosas) confere à umbanda o seu componente libertário e o seu cunho de prática de defesa popular contra o "mau-olhado" dos grupos dominantes e de todos aqueles que inadvertidamente não se apercebam do seu papel de "inocentes úteis" e se deixem levar pela conversa dos senhores opressores (mesmo quando adotam estratégia muito comum no nosso âmbito cultural e político, e se mostram "bons moços"). Para efeito da vigilância umbandista, pouco importa que estas maviosas maneiras procedam de pessoas individuais, de lideres de seitas adversas, de reivindicadores da pureza africana, de braços políticos de religiões dominantes, de políticos paternalistas, de autoridades da saúde publica e mental, ou mesmo de cientistas sociais e psicólogos.

Indubitavelmente em compromisso com estratégias de disfarce perante o dominante, os exus associam-se às trevas. Mas trevas em acepção não apenas ou exatamente metafísica: também sociais e políticas.

Inerente ao seu sentido religioso, os exus comportam a função de dar cidadania ao recalcado, de simbolizá-lo miticamente, tanto do ponto de vista psicológico (Segatto, 1995), como social (e portanto também histórico e político).

O reino dos exus guarda o escondido, o desconhecido pessoal, e também o indócil ao discurso do outro e às tentativas de dominação.

Igualmente preserva e possibilita a integração de aspectos sociais e psíquicos menos aceites, simbolizados por estas entidades.

Lidar com a "esquerda" é aprender a respeitar e elaborar os aspectos pessoais e coletivos menos exibíveis e muitas vezes os mais verdadeiros.

Depoimentos

Ao serem entrevistados, os exus reportam a sua condição "trevosa" ao fato de em vidas humanas terem sido coagidos a tomar atitudes que contingentemente se justificavam, mas genericamente criticáveis. Por exemplo, atentados à vida (mesmo em autodefesa ou para preservar próximos). A sua trajetória, como todas as narrativas na umbanda, tem um valor de exemplo, sem que o seu destino implique por parte dos praticantes numa diminuição da admiração pela sua coragem e conhecimento.

Uma vez que puderam agir com liberdade, podem guardar os caminhos dos desvãos com conhecimento de causa e, caso seja necessário, empregar o seu "know-how" mais uma vez, posto que são corajosos para arrostar o infortúnio e descomprometidos com as cantadas do dominante (mesmo que este dominante seja ou esteja eticamente justificado).

O discernimento e a inteligência, a par da força e do sentido de individualidade, são deles emblemáticos. Um Meia-Noite resume a situação: declara estar no escuro porque quer. Trata-se de uma escolha. Aquém de um juízo extrínseco, um anestesiamento voluntário que diminui a dor pelo sofrimento causado, mas, acima de tudo, é uma decisão que conjuga liberdade e autojulgamento.

Muitas vezes esta tomada de posição é fundamentada na importância da sua ação para que encontrem suporte epifanias e haja força para empreendimentos e energias menos profundos ou mesmo muito elevados. O telúrico e visceral alimenta e opera em harmonia com a luminosidade do mais sublime (na linguagem do culto, os exus respaldam e dão suporte à ação da "direita").

Têm a justificada fama de serem diretos ao falar, o que pode torná-los desagradáveis aos olhos dos que buscam não ver as próprias trevas. Não poderiam proceder de outra forma, quando é seu papel serem dispositores do sombrio e trevoso na vida pessoal e social.

Os umbandistas admitem que um excesso de contacto com estas dimensões pode levar ao desenvolvimento de características de personalidade afins da índole de cada tipo de entidade (por exemplo, no caso do Meia-Noite, introversão, melancolia, soturnez, laconismo, isolamento e seriedade na acepção de ausência de senso de humor).

É notável a sofisticação e o grau de homogeneidade na construção dos seus tipos entre pessoas que os "incorporam" e não se conhecem entre si. Isto comprova um elevado grau de estruturação do imaginário umbandista, não obstante a sua quase impenetrabilidade compreensiva, e é indício do seu provável elevado valor como veiculador e preservador de memórias populares e sociais mal tratadas.

Os exus da Meia-Noite, por exemplo, apresentam uma fala ainda mais rouquenha do que o habitual nestas entidades. É como se falassem "para dentro". Falam pouco, baixo, por vezes sussurram. Alguns manifestam um evidente ceticismo quanto às limitações da linguagem verbal e tentam comunicar-se provocando situações evocadoras do frio, da solidão, do silencio e da seriedade da morte. A par disso é notável a coincidência da sua apresentação imaginal. Descrevem-se e são descritos na forma da tradicional representação da morte: esqueletos com caveiras cobertas por um capuz negro, que às vezes carregam um símbolo e instrumento do seu ofício, a foice. Além disso, fazem-se situar em algum lugar noturno em que a Lua se veja entre nuvens. Muitas vezes são persentidos pelos seus médiuns de costas, ou sequer chegam a ser percebidos. Vários deles surgem em panteões pessoais (enredos de santo) nos quais Obaluaiê e principalmente Omulu ocupam posições de destaque, o que sugere que a elaboração imaginal umbandista tende a codificá-los como vinculados a este orixá. Não obstante remeterem a uma representação clássica da morte, importa sublinhar o rigor e precisão com os quais a mesma se perpetua e reproduz na umbanda, independentemente das influencias que tenham propiciado a sua eclosão.

Praticamente todas as qualidades negativas do humano podem dignificar-se e ser refletidas existencialmente, personificando-se em metáforas deste segmento subterrâneo do panteão umbandista: há os malandros Zés Pelintras, as Marias da Praia, Moças do Cais, Mulheres das Esquinas, as Mulambos, os Capetinhas, os Girinhos, os do Lodo, Cobras, Morcegos, e tantos outros humanos animais, alusivos a aspectos menos simpáticos ou pouco valorizados pela sociedade e moral dominante, mas existentes e vitais.

Nem todos os seus nomes são tão transparentes. Os listados têm apenas um valor ilustrativo do seu cunho de humana significância. De qualquer modo, cada uma das suas múltiplas denominações, a par de testemunhar humanos "defeitos" necessários, cada vez que se incorpora e "atende" alguém, tanto manifesta o geral da linha, como dramatiza aspectos da situação a ser cuidada.

Exemplifique-se uma outra destas metáforas de vivencias (sem presumir que, a não ser metodologicamente, a isso se reduzam) recorrendo a outra linha de depoentes, os Exus Tranca-Ruas.

Se Meia-Noite aludia à morte, este é alusivo a outra faceta metafórica de aludir às Trevas. É literalmente "o Cão", no qual sua versão das Encruzilhadas pode "epifanizar-se" (ou na opinião de outros, faz-se acompanhar deste animal, como é próprio de alguém incumbido da guarda dos caminhos). Pode igualmente "mostrar-se" associado a qualquer outro animal noturno, de preferência de cor escura, para o qual os caminhos não apresentem obstáculos. Num dos terreiros estudados, faz-se assinalar especialmente pelo gato (preto ou pelo menos malhado). Mesmo quando este exu não é explicitamente associado ao animal, a animalidade é descrita como uma condição "moral" sob a qual os "espíritos" podem julgar-se, ver-se e mostrar-se a si próprios. A "rua" apresenta igualmente um valor de metáfora: significa o que se põe "à margem" dos valores familiares, mas dos quais estes também dependem para que possam subsistir com firmeza e vitalidade (a sexualidade, por exemplo).

No panteão umbandista é freqüente a sua aparição em paralelo com Ogum ou quaisquer outras entidades que "carreguem" aspectos da força guerreira. Vários Tranca-Ruas foram soldados. Outros reportam-se ao Egito do tempo dos faraós (tradicional figura imaginal da oposição ao domínio judaico-cristão). Alguns advogaram e lutaram por causas injustas.

As suas histórias imaginais correspondem a este modelo: lidaram com armas. Podem ter sido generais sanguinários, advogados de criminosos ou meros larápios. Caminhavam pelas ruas... Alguns reportam-se aos caminhos dos mortos (Tranca-Ruas das Almas). A morte também aqui é polissêmica...

Personagem falante e muito tradicional na umbanda, a sua composição permite diferentes combinatórias. Podem ser Tranca-Ruas das Encruzilhadas, das Sete Encruzilhadas ("Sete Encruzilhadas" que, tomadas isoladamente, definem um outro tipo e classe de exus ou caboclos), Tranca-Ruas das Almas, Tranca-Tudo, Trancas de qualquer lugar em que se encontrem uma pluralidade de caminhos... (ou seja, se façam escolhas, haja liberdade).

O que fazem e como sucedem comumente é refletido e elaborado a partir da noção de "tranca". Espiritual, psicológica, ou fisicamente, aludem a bloqueios e impedimentos e tentam administrá-los. Guardam caminhos de libertação e de insurreição contra a contenção (dos sentidos e de sentidos).

Talvez por isso sejam tão necessários e tradicionalmente populares, uma vez que a experiência do trancado, do impedido, é típica não apenas da vivencia psicológica, como também da realidade política que circunscreve a vida dos brasileiros. Abrir e guardar caminhos é muito precioso. Há o maior cuidado no trato ritual com esta linha, à qual é atribuído este papel crucial.

Conclusão

A esquerda umbandista não guarda o mal metafísico. Apenas o pessoal e socialmente "mal dito": a sensualidade, a revolta, a crítica mordaz, as falas inconvenientes, a falta de hipocrisia, o prazer sem mordaças...

O lugar da esquerda é, no panteão umbandista, o de um guardião de um miolo precioso: a irredutibilidade individual e a liberdade. Encarna um sentido social de resistência e de vitalidade. Os exus não são maus, embora assim possam ser (mal) vistos. São a resposta ao Mal como expropriação de si em prol de um bem do outro. Vozes proféticas dos interesses materiais e pessoais, estes mensageiros têm o valor de sinal psicológico de reconhecimento e de admissão de si.

Sobre a sua médium, um Meia-Noite, muito honestamente, enuncia que "ela deve ir a lugares onde eu possa entrar" (ou seja, admitir-se a si mesma em todas as suas nuances).

Este sentido do entrar, psicológico, integrativo, preserva o morto (no sentido de recalcado) vivo, social e psiquicamente.

Do ponto de vista social isso é muito claro. Um exemplo notável é um "mito" carioca de fundação da umbanda como religião brasileira. O Padre Maladriga, vítima da Inquisição, seria "noutra vida" o mesmo Caboclo das Sete Encruzilhadas fundador, no início do século passado, da umbanda como religião brasileira acolhedora de todos os excluídos.

Na mesma toada, um Exu (Capa Preta) relata (asseverando saber que isso seria importante para a pesquisa) que em vida anterior foi um padre inquisidor, e daí advir o seu atual estatuto "infernal". A inversão em relação à ordem dominante é nítida e eloqüente.

Desta forma a umbanda e a sua "esquerda" são uma excelente oportunidade para refletir formas sociais de cognição e alternativas de resistência étnica e cultural. Eminentemente performance, o culto conjuga saber popular, uma prática de cura de feridas históricas e de mazelas da memória, e uma ética crítica implícita às suas "magias".

A umbanda constitui-se em ocasião ímpar para aprender com os setores populares a relativizar o psicologismo e o individualismo. Ensina a revitalizar o "morto" e a questionar a estaticidade da tradição. Consagra o humano, pondo no seu panteão a totalidade das suas sutilezas, agradáveis ou nem tanto.

Prova-se testemunho de uma ética singular e social, de vocação universal, a partir do presente cotidiano. Uma ética que propugna um sentido de inclusão psicológica e social, politicamente indócil a tentativas históricas e teóricas de manipulação.

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Notas

(1) Auxílio à Pesquisa FAPESP (Processo 00/02550-8). Este trabalho é profundamente devedor do acolhimento e do apoio das comunidades umbandistas colaboradoras da pesquisa. Apresento os meus agradecimentos às autoridades religiosas que o possibilitaram, bem como a todos os entrevistados.

Uma versão preliminar foi apresentada no XI Encontro Nacional da Associação Brasileira de Psicologia Social, no âmbito da Mesa Redonda intitulada "Caminhos da Ética e da Etnicidade no Imaginário Brasileiro". (voltar)

Nota sobre o autor

Graduado em Filosofia (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo) e em Psicologia (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo). Doutor em Filosofia (Universidade de Campinas). Professor de Psicologia Social (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo) e pesquisador na mesma área (FAPESP/FFCLRP-USP).

 

Data de recebimento: 09/01/2002
Data de aceite: 11/03/2002
 
Memorandum, Abr/2002
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos02/bairrao01.htm

 

 

 

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