A percepção (1)
de que o decorrer do tempo provoca transformações remonta aos séculos
XVIII e XIX, quando inaugura-se a noção de que o homem é dotado de uma
historicidade. Uma das conseqüências diretas foi a análise das
sociedades, das ciências, das artes, das doutrinas e religiões –
conjunto que se denomina civilização – como historicamente
constituídas.
Se neste panorama a história e a
memória aparecem como termos já mais ou menos estabelecidos, ou de certa
forma delimitados falta definir, ainda que de modo geral, o que entende-se
por abordagens históricas: são as concepções que consideram as
produções e os respectivos contextos materiais e sociais humanos
(ciências, artes, religiões, sistemas de idéias e também crítica e
história destas mesmas produções) como expressão concreta de
indivíduos situados histórica e socialmente.
Das abordagens históricas
optou-se pela proposta em psicologia histórica de Ignace Meyerson
(Varsóvia,1888-Paris,1983), para quem
As
civilizações, as instituições, as obras têm um lugar e uma data. A
análise dos comportamentos através dos fatos históricos modifica a
perspectiva do psicólogo. Ele nada faz com o homem abstrato, e sim com o
homem de um país e de uma época, engajado em seu contexto social e
material, visto através de outros homens igualmente de um país e de uma
época (1948, p.11).
Portanto, adotar como marco
histórico comum para a emergência da história, da memória e das
abordagens históricas modernas a Alemanha e a França dos séculos
XIX-XX, tratado a seguir, segue pelo menos um dos preceitos metodológicos
da proposta meyersoniana.
Alguns aspectos históricos
No ano de nascimento de Bismarck
(1815) Napoleão é derrotado em Waterloo, termina o Primeiro Império
francês e o Congresso de Viena organiza a Confederação Germânica –
que engloba o Império Austríaco, o Reino da Prússia, principados e
cidades livres. Em meados do século (1848) os levantes da França que
culminam na Segunda República ecoam na Alemanha, onde ganha o programa
moderado: uma união federal regida pela monarquia liberal e uma
constituição elaborada a partir da assembléia nacional. A unificação
alemã (1871), efetivada por Bismarck e coroando Guilherme I, coincide com
o estabelecimento da Terceira República francesa e o fim da Guerra
franco-prussiana, quando a Alsácia-Lorena é entregue aos alemães
vitoriosos (Kent, 1982, pp.5-26; Volkmann, 1999, pp.41-46).
Em 1870 o Concílio do Vaticano
definiu o dogma da infalibilidade papal, e isto atualiza sua intervenção
nos assuntos de Estado. As reações anticlericais alemã – Kulturkampf
- e francesa - Ralliement - incluem suspensão de subsídios
governamentais; substituição da supervisão eclesiástica pela
supervisão estatal em escolas e hospitais; expulsão dos jesuítas e
fechamento de suas escolas; taxação sobre as propriedades de
congregações religiosas e limitação dos poderes disciplinares da
Igreja, por exemplo. Se na Alemanha as relações diplomáticas com o
Vaticano foram restabelecidas e algumas leis anti-católicas revogadas, na
França ocorre a lei da separação da Igreja e do Estado (Corrigan, 1946,
pp.215-236; Kent, 1982, pp.90-94).
Na primeira metade do século a
Alemanha se caracteriza pela liberdade de ensino e pela liberdade do
pesquisador e do estudante - o chamado modelo universitário alemão
concebido por Humboldt; multiplicam-se os seminários de novas
disciplinas; laboratórios e clínicas visam à formação de professores
e especialistas. A França, por outro lado, privilegia a divisão de
trabalho e a estrita especialização dentro de um programa universitário
uniforme e de acordo com o novo Estado; a pesquisa concentra-se nos
grandes estabelecimentos e as localidades menores servem apenas aos exames
de bacharelado. Depois a França segue o modelo alemão e desenvolve a
pesquisa, ao passo que na Alemanha a técnica está a serviço do
desenvolvimento econômico e social (Charle & Verger, 1995, p.71-79;
97-110).
A história como disciplina
autônoma e detentora de cientificidade emerge no decorrer do século XIX,
sendo justamente na historiografia alemã que ela se constituiu como
relato erudito fundado na verossimilhança, na verdade (Châtelet, 1994,
p.119). Datam do final do século XIX manuais e livros de história -
franceses e alemães - que, abundando em notas de rodapé explicativas ou
remetendo aos documentos originais, expressam a veracidade e a
objetividade do fato, a história positivista (Carbonell, 1987,
p.131-137).
A psicologia emerge como saber
legítimo, como ciência, também na Alemanha da segunda metade do século
XIX - seja com Fechner, nos Elementos de psicofísica (1860/1966),
ou Wundt, em Contribuições para a teoria da percepção sensorial
(1858-1862) (citado em Garcez, 1979, p.4).
A memória, considerada
inacessível à pesquisa para Wundt, teve o primeiro estudo experimental
realizado por Ebbinghaus, também na Alemanha deste período. Datam ainda
desta época livros sobre o tema, como Os distúrbios da memória (Ribot,
1881/1886) e Matéria e memória (Bergson, 1896/1949), por exemplo.
A abordagem histórica em
psicologia aparece mais ou menos na mesma época, na Alemanha, com a Psicologia
dos povos, de Wundt (1918) e é também anunciada na França, em O
futuro da filosofia (Berr, 1899). Segundo Henri Berr
O
espírito é o produto da história e a história é a concreção do
pensamento. Psicologia da humanidade, psicologia dos povos, psicologia
biográfica: ensaios diversos se multiplicam. E todas estas concepções
aspiram a se fundir, absorvendo a erudição. Há uma psicologia
histórica que se elabora, sem ter encontrado sua forma definitiva (citado
em Mandrou, 1961, p.423).
Se na Alemanha do século XIX
história e psicologia tornam-se campos de saber e se abordagem histórica
e memória tornam-se temas, o século XX testemunhará a migração da
história e da abordagem histórica para a França: de factual, uma se
tornará história-problema - com os Annales; e a outra, de psicologia dos
povos, será psicologia histórica e história das mentalidades.
Portanto, é na versão francesa
da história e numa psicologia já instituída que Ignace Meyerson
sistematizará a psicologia histórica. E, nela, história e memória
serão problematizadas.
A história e a memória na
psicologia histórica de Ignace Meyerson
A biografia do autor divide-se em
dois momentos. No primeiro, ele concluiu cursos de Filosofia e de
Medicina, trabalhou na Salpêtrière durante 4 anos, foi co-diretor
do Laboratório de psicofisiologia (1920-1923), fez a primeira tradução
francesa da Interpretação dos sonhos, de Sigmund Freud (1926),
co-assinou pesquisas experimentais com macacos (1929-1937) e iniciou a
carreira no Journal de Psychologie Normale et Pathologique
(1920-1983), entre outras atividades. Após a defesa da tese, Les
fonctions psychologiques et les œuvres (1947, publicado em 1948),
começa a fase mais produtiva: iniciou os cursos de psicologia comparativa
na École Pratique des Hautes Études/École des Hautes Études
en Sciences Sociales – EPHE/EHESS - (1951-1983), fundou o Centre
de Recherches de Psychologie Comparative – CRPC - (1953), organizou
ciclos temáticos de conferências (1954-1981) e promoveu os colóquios
interdisciplinares Problèmes de la couleur (1954, publicado em
1957), Problèmes de la personne (1960, publicado em 1973) e Le
signe et les systèmes de signes (1962, não publicado). Datam desta
fase as considerações sobre história e memória.
Ignace Meyerson define claramente
as bases da psicologia histórica em uma exposição ao CRPC, em 1957
Nós
temos uma posição de doutrina e de método que orienta nosso trabalho.
Ela pode se resumir assim: o homem, o homem psicológico, tem uma
história estreitamente ligada à história das obras que construiu, aos
fatos de civilização. O homem se edifica edificando. Daí nosso método:
ver o homem através de todos os tipos de obras – línguas, religiões,
formas sociais, economias, ciências e técnicas, artes. Esta pesquisa nos
conduz a constatar pluralidades e transformações históricas: às
diversidades da história dos fatos de civilização correspondem
diversidades psicológicas.
É a partir deste princípio, e
visando uma história das funções psicológicas, que se enquadra o tema
da história e da memória. É também nesta perspectiva que os termos
são recorrentes na correspondência, em artigos, nos cursos à
EPHE/EHESS, colóquios e conferências do CRPC:
Escreve ele a Piaget "minha
última história, é a memória e a história. Os estados da descoberta
do passado pessoal pelo homem" (citado em Fernandez-Zoila, 1989,
p.180).
No artigo Le temps, la
mémoire, l’histoire, considera ele que
a
significação da consciência histórica do passado ... apresenta uma
dupla e difícil invenção humana: a invenção da memória humana
enquanto função do passado individual do homem; a invenção do
pensamento histórico enquanto função do passado comum dos grupos
humanos. A memória é outra coisa que o hábito; ela é do nível humano
... desenvolvida, aperfeiçoada em certos momentos da história do homem
(1987, p.265).
Algumas ementas aos cursos à
EPHE/EHESS relacionam tópicos sobre o assunto: "o tempo na
historiografia: na Antigüidade, no Novo Testamento, em Santo Agostinho e
nos historiadores dos séculos XVII ao XX" (biênio 1957/1958);
"as disciplinas históricas: a memória, o tempo" (biênio
1958/1959); ou ainda "significação psicológica do pensamento
histórico: ela representa uma mutação mental, uma invenção nos
domínios da memória e do tempo. Aparição das diversas histórias - a
história das funções psicológicas se enquadra nesta série"
(biênio 1969/1970), por exemplo (2).
Ignace Meyerson encerra o
colóquio Problèmes de la couleur dizendo "fisiologia,
física e técnicas, línguas, poesia, pintura, séries históricas em
todos os grandes domínios: o homem diversamente fabricou sua
civilização da cor" (1957a, p.362). No colóquio Problèmes de la
personne J. Cohen, da Universidade de Manchester, apresenta o trabalho
L’homme, le temps, et l’hasard (1973); e Ignace Meyerson fecha
o evento com La personne et son histoire (1973, p.473-482).
Algumas conferências ao CRPC (3)
contemplam o tema: Les séries historiques dans l’étude du travail
(Ignace Meyerson, em 1955); Le temps dans certaines formes du droit
archaïque (Louis Gernet, em 1956); Aspects mythiques de la
mémoire em Grèce (Jean-Pierre Vernant, em 1957); Ecrit et
histoire en Chine ancienne (Louis Gernet, em 1958); Introduction
aux réunions sur les concepts d’histoire (Ignace Meyerson, em
1963); ou L’évolution des concepts de l’histoire sociale à l’époque
contemporaine (A. Soboul, em 1963), por exemplo.
Em Existe-t-il une nature
humaine?, edição do curso oferecido em 1975/1976 à EPHE/EHESS, no
capítulo Análise histórica de uma função: a memória, conclui
ele
a
memória não foi anteriormente nada daquilo que ela é para nós:
função do passado, conhecimento do passado, organização temporal de um
passado individual, organização do passado comum de um número mais ou
menos grande de homens, função ligada à inteligência e ao
conhecimento, ligada também à pessoa. Ela apareceu em nossa exploração
histórica como passiva, como presentificação do passado, como uma
pesquisa, como um tipo de prática adivinhatória destinada a revelar os
segredos do universo. (...) Estas constatações nos fazem concluir que
não apenas as idéias sobre a memória eram outrora diferentes das
nossas, mas que a própria função da memória era talvez outra (2000,
p.427-428).
Meyerson avalia ainda a
variação da memória na história
O
advento do pensamento científico, nos séculos XVI e XVII, produzirá
mudanças de assunto e de perspectiva. Desta vez o papel da memória será
mais afetado do que antes. O raciocínio científico, de base matemática,
prestará atenção aos processos do pensamento, e o papel da memória
diminuirá (2000, p.403).
O rigor metodológico de Ignace
Meyerson é duplamente primoroso: a história das funções psicológicas
se insere no quadro mais amplo da aparição das diversas histórias, e o
aspecto temporal do humano, ao longo do tempo, veio moldando tanto a
história quanto a memória. Portanto, a história, a memória e as
abordagens históricas, ao mesmo tempo em que exigiram um longo percurso,
são também construções recentes: elas datam, tal como se concebe
atualmente, de meados do século XIX, aproximadamente.
Algumas considerações finais
A psicologia histórica de Ignace
Meyerson considera história, memória e abordagens históricas na
perspectiva de uma história da variabilidade das funções psicológicas.
Nesse sentido, é um pensamento característico da passagem do século.
Por outro lado, participa de uma novidade que se difunde após a II Guerra
Mundial, quando aparecem temas até então menores (cotidiano, mulheres,
morte, loucura) ao mesmo tempo em que proliferam correntes teóricas
(história oral, estudos culturais, etnometodologia, antropologia
histórica), instituições (Institute for psychohistory, International
association for cross-cultural psychology, Société française
pour l’histoire des sciences de l’homme) e periódicos (Culture
and psychology, Revue de psychologie des peuples). O assunto é
pressentido por Augras (1985) no acertado título, A psicologia da
cultura, que aborda uma mudança na perspectiva disciplinar, mas não
avalia o panorama histórico mais amplo destas inovações temáticas e
teórico-metodológicas do pós-guerra.
História, memória e abordagens
históricas são obras humanas já faz algum tempo. Porém, cabe ainda
perguntar sobre as variações mais recentes destas mesmas obras: quais
aspectos psicológicos estão contidos nesta fase histórica cujo
denominador comum, entre a profusão de abordagens, é partir do homem
concreto que vive, fala, significa e rememora?
Referências Bibliográficas
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Notas
(1) Texto
inicialmente apresentado em mesa-redonda à XI Encontro Nacional da
Associação Brasileira de Psicologia Social (Florianópolis,
novembro/2001). (voltar)
(2) Conforme
relacionado em Leroy (1986, p. 93-101). (voltar)
(3) Conforme
Poulat (1996, p. 108-115). (voltar)
Nota sobre a autora
Maria Fernanda Costa Waeny é doutoranda pelo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo – PUCSP, Brasil.
- Data de
recebimento: 09/01/2002
- Data de aceite:
11/03/2002
-
- Memorandum,
Abr/2002
- Belo Horizonte:
UFMG; Ribeirão Preto: USP.
- http://www.fafich.
ufmg.br/~memorandum/artigos02/waeny01.htm