O presente artigo pretende propor uma discussão sobre os diferentes modos de representação do feminino em diferentes mídias. Para isso utilizamos os conceitos do Ciborgue, cunhado por Donna Haraway e nos apoiamos na discussão sobre a crise das identidades na pós-modernidade feita por Stuart Hall. Como objeto de pesquisa, utilizamos o vídeo Semiotics of the kitchen (1975) de Martha Rosler e os atuais programas dedicados ao público feminino, em especial o programa “Mais Você” exibido na rede globo. Procuramos identificar através de um estudo comparativo como a negociação da mulher e sua representação nos meios de comunicação se tornam cada vez mais complexas e difíceis de delimitar.
identidade feminina, vídeoarte, negociação da identidade.
Meios de comunicação, construção de identidades, sujeito: mulher. A construção do sujeito dentro da contemporaneidade está intrincada no avanço das tecnologias da Comunicação que despontou nos dois séculos passados. E tal fato pode nos remeter a uma série de questões que estão passando por profundas transformações na nossa atualidade. A contemporaneidade é o lugar onde questões como emancipação feminina, mercado de trabalho, opção sexual e raça modificaram antigos painéis sociais.
Neste contexto novas formas de lutas sociais surgem. As lutas por reconhecimento e afirmação da identidade ganham força perante a sociedade. Agora não somente será a questão do dentro e do fora da sociedade material, mas de inúmeras formas e maneiras de poder e discurso como sugeriu Foucault. O estudo de Stuart Hall, As identidades culturais na Pós-modernidade (2001), aponta para uma “crise de identidade” não somente dentro deste contexto das tecnologias da comunicação, mas para uma crise dentro de uma série de processos que deram origem a chamada Pós-modernidade. Dentro dessa contemporaneidade as “velhas identidades” fundadas dentro do projeto modernista de um sujeito centrado e positivista são fragmentadas por vários processos, dentre eles, a crescente interferência e aceleração da comunicação na sociedade.
Alguns teóricos vão mais além, para a bióloga Dona Haraway em seu ensaio Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX (1985) essa crise da identidade pós-moderna seria uma crise da subjetividade humana. “A subjetividade humana seria uma construção em ruínas... A questão não seria agora quem é o sujeito, mas queremos ainda ser o sujeito?”. Para Donna Haraway a humanidade e as máquinas estão intrincadas, em processos de construção não só de identidades, mas de afinidades, já que tanto a natureza a nossa volta quanto à “natureza humana” são construções do pensamento e também do desenvolvimento tecnológico. “Somos todos ciborgues”, afirma Haraway. O ciborgue de Haraway é a encarnação de um futuro aberto à ambigüidades e às diferenças.
A mulher é fundadora de importantes questões porque a partir, principalmente, dos anos 60 ela passa a ter um status quo na sociedade e no pensamento científico. Esse papel será ocupado em diferentes âmbitos e lugares, entre deles, um de relevante importância, será o das artes e o da mídia. Junto às demais minorias sociais as feministas utilizaram diferentes meios e suportes para manifestar seus discursos.
O presente artigo pretende pontuar dentro da multiplicidade de diferentes discursos e manifestações midiáticas algumas formas de emergência de discursos de reconhecimento, no caso o do feminismo. Este movimento, dentre outros, se amparou por diversos recursos e suportes midiáticos, dentre eles o vídeo. É massiva a presença de mulheres no início da produção artística e videográfica da década de 60, 70 e 80 e essas mesmas mulheres se utilizaram não só do vídeo, mas principalmente das novas possibilidades de transgressão que o meio proporcionava em relação ao discurso vigente dos meios de comunicação da época.
Elegemos neste trabalho alguns desses vídeos para análise, entre eles, Semiotics of the kitchen (1975), realizado pela vídeoartista Martha Rosler. Este vídeo se apresenta como um contra-discurso para o estereotipo da mulher dentro da televisão da época. Ainda hoje após a luta de emancipação feminina e das inúmeras propostas do feminismo para a mulher, o público feminino ocupa um espaço significativo nas grades televisivas, principalmente na América Latina, onde grande parte da produção televisiva é de teledramaturgias voltadas para a mulher.
Por último investigaremos de que forma essas produções iniciais permanecem e convivem presentes com as diferentes as atuais representações da identidade feminina em produções contemporâneas como o, por exemplo, o programa matinal “Mais Você”, apresentado por Ana Maria Braga e outros programas televisivos voltado ao público feminino. Porém, antes de iniciarmos uma discussão sobre como tais relações ocorrem de fato, faz-se necessário primeiro uma breve discussão sobre o feminismo, os suportes tecnológicos de comunicação e como se deu início essa relação dentro do espaço midiático.
Para Stuart Hall, os movimentos feministas são um dos fatores responsáveis pela crise de identidade do pós-modernidade. Os movimentos feministas ao promoverem um diálogo com outros movimentos sociais (estudantil, sindical, de libertação nacional e pelo Estado de Direito, movimento gay e negro etc.) afirmam suas identidades próprias e questionam as contradições desses movimentos e dos partidos políticos de esquerda, por descuidarem da crítica e do combate à dominação patriarcal e ao sexismo presentes mesmo nas práticas e formações políticas que se reconhecem como democráticas e mesmo socialistas. Assim, na concepção de Hall, os movimentos feministas fazem parte daquele grupo de “novos movimentos sociais”, juntamente com as revoltas estudantis, os movimentos juvenis contraculturais e antibelicistas, as lutas pelos direitos civis. Essa segunda onda do movimento feminista tem características vitais para uma emancipação efetiva da mulher, que não aconteceu anteriormente por causa da forte repressão ainda existente em muitas sociedades. Pela primeira vez o feminismo atingirá a esfera privada. De dentro dos lares trará a mulher para o mundo público que passará a ser supervalorizado. Esse último feminismo abriu para a contestação política, arenas inteiramente novas de vida social: família, sexualidade, divisão doméstica do trabalho, o cuidado com as crianças. Essa segunda onda enfatizou a questão político/social da tipificação do ser humano em sociedade, politizando a subjetividade, a identidade e o processo de identificação de (como homens/ mulheres, mães/pais, filhos/ filhas).
Para Donna Haraway, autora do Manifesto do Ciborgue, e também uma das mentoras do ciberfeminismo, tem-se tornado difícil nomear os feminismos atuais por um único adjetivo _ ou até mesmo insistir na utilização desse nome, sob qualquer circunstância. “A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato da nomeação é aguda. As identidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas”.(HARAWAY, 1985) A declaração de Haraway que somos todos ciborgues diz sobre as ambigüidades do presente: em um mesmo corpo, não só feminino, reúnem-se o mecânico e orgânico, a cultura e natureza, o simulacro e o original, a ficção científica e a realidade social.
A declaração de Haraway que somos todos ciborgues deve ser tomada em sentido literalmente e ao mesmo tempo metaforicamente. Literalmente porque as tecnologias biológicas e tele-informáticas estão de fato, redesenhando nossos corpos. Metaforicamente, porque estamos passando de uma sociedade industrial orgânica para um sistema de informação polimorfo. Ao transgredir as fronteiras que separam o natural do artificial, o orgânico do inorgânico , o ciborg , por sua própria natureza questiona os dualismos, evidenciando que não há mais nem natureza, nem corpo, pelo menos no sentido que o iluminismo lhes deu. (Santaella,2003, p.186)
Para a Haraway, depois do reconhecimento arduamente conquistado do gênero feminino, raça e classe são socialmente e historicamente elementos que não podem mais formar a base da crença em “unidade identitária”. As crises de identidade afetaram até mesmo as feministas. É visível a cisão proposta por Haraway sob este ponto de vista, não existe nada no fato de ser “mulher” que naturalmente una as mulheres_ “não existe nem mesmo tal situação “ser” mulher.” (HARAWAY, 1985)
Tem-se tornado difícil nomear nosso feminismo por um único adjetivo – ou até mesmo insistir na utilização desse nome, sob qualquer circunstância. A consciência da exclusão que é produzida por meio do ato de nomeação é aguda. As identidades parecem contraditórias, parciais e estratégicas. Depois do reconhecimento, arduamente conquistado, de que o gênero, a raça e a classe são social e historicamente construídos, esses elementos não podem mais formar a base da crença em uma unidade “essencial”. A questão é de uma categoria altamente complexa, constituída por meio de discursos científicos sexuais e de outras práticas questionáveis. A consciência de classe, de raça ou de gênero é uma conquista que nos foi imposta pela terrível experiência do colonialismo, do patriarcalismo e capitalismo. E quem é esse nós que é enunciado em minha própria retórica? Quais são as identidades que fundamentam esse mito político tão potente chamado “nós” e o que pode motivar o nosso envolvimento nessa comunidade? (Haraway, 1985, p.52).
Aquilo que começou como um movimento dirigido á contestação da posição social das mulheres expandiu-se para incluir a formação de identidades sexuais e de gênero. O feminismo foi um dos movimentos sociais que questionou a noção de que homens e mulheres eram parte da mesma identidade, a “humanidade”, a “essência humana”, substituindo-a pela questão da diferença sexual. A mulher e homem passaram a serem vistos como uma construção social __ os significados que a sociedade irá dar para ambos são sociais. O gênero passou a ser uma categoria social com seu repertório de signos e símbolos compartilhados pela sociedade. Ainda que existam estudos que comprovem que a mulher é “naturalmente” mais sensível, teoricamente, maior é o esforço para uma análise sociológica do gênero. A mulher não é mais atributo e significação apenas do outro.
Os novos movimentos sociais tiveram uma relação direta com o descentramento conceitual das identidades porque “através de sua crítica social questionou a noção de que os homens e mulheres eram parte de uma mesma identidade, a“humanidade”, substituindo-a pela questão do “dentro” e do “fora””.(HALL, 2001, p.45)
O objetivo deste debate sobre construção de identidades, mulher e mídias é a interpretação dessa “mulher” dentro da mídia e sua produção dentro dos primórdios das lutas de reconhecimento. Donna Haraway (1985, p.29) argumenta que tanto a criação de gêneros homem/ mulher e a subjetividade são construções em cheque. Não existe um homem e muito menos, uma mulher naturais. Uma vez assim, a mulher também é “reconstruída” dentro da mídia: estereótipos e imagens são reafirmados tanto na publicidade, programas de tv. Aqui se apresenta o campo de batalha para a principal questão deste debate: como a mulher travou e trava sua luta por reconhecimento de sua identidade contra os estereótipos dentro dos meios de comunicação?
Talvez uma resposta concreta para essa questão deságüe em mares vastos; dentro do que Stuart Hall (2001, p.25) chama de “celebração móvel da identidade”, uma formação e uma transformação contínua em relação às formas pelas quais somos representados ou interpelados dentro de sistemas culturais, incluindo a cultura midiática. A construção em ruínas de Haraway! Isso significa que a probabilidade de uma única forma de negociação dessa identidade “feminina” possa ser maleável e se dar ad infinitum.
Para esclarecimento e elucidação podemos nos remeter a um exemplo dessa nova negociação ou nova construção de uma “afinidade feminina” partindo dos novos movimentos feministas que eclodiram nas décadas de sessenta e setenta. Para Donna Haraway as feministas foram as primeiras a tirar proveito dessa possibilidade de desnaturalização do self em conjunto com as tecnologias, inclusive as tecnologias da comunicação.
As preocupações feministas estão dentro da tecnologia, não são um simples verniz teórico. Estamos falando de co-habitação: entre diferentes ciências e diferentes formas de cultura, entre organismos e máquinas. Penso que as questões que realmente importam (quem vive, quem morre e a que preço) – essas questões políticas-estão corporificadas na tecnocultura. Elas não podem ser resolvidas de nenhuma outra maneira. (Haraway, 1985, p.31).
Para exemplificar o pensamento de Haraway, podemos apontar o fato de que foi contemporâneo aos “novos feminismos” o surgimento da primeira câmera de vídeo portátil, o Portapack, produzido pela Sony. Essa primeira câmera de vídeo é um suporte midiático advindo da televisão, uma mídia que era considerada por muitos cerrada e massificante. Ironicamente, o uso desse suporte por grupos de artistas, feministas e outros movimentos sociais, questionará as ordens de produção entre público e mídia, ampliando de certa forma a interação entre esses mesmos e também as ordens de público e televisão. Algumas características específicas do vídeo foram construídas com o surgimento de câmeras de cinema portáteis, que ganharam uso doméstico, como a 16mm e, posteriormente, o Super-8. A possibilidade de realizar cinema individual e subjetivamente de uma maneira altamente acessível implicou numa abertura para uma renovação criativa e estética. Um exemplo disso, segundo a teórica do feminismo e vídeoartista Martha Rosler, em seu ensaio, Vídeo: Shedding the Utopian Moment (1995, p.7), foi “o surgimento das Televisões Comunitárias (EE.UU.) nesta mesma época na maioria das vezes encabeçadas por feministas.”
Retornando ao tema da mulher e sua negociação dentro da mídia, a questão aqui seria o modo como a mulher passa a se ver e suas conseqüências dentro de diferentes níveis de pensamento e sociedade a partir do surgimento do vídeo e do feminismo. A mulher começa a lidar com uma série de novas questões como a opção de maternidade, a ocupação de espaço no mercado de trabalho, redefinição de sua função dentro da esfera familiar, entre outros. Aqui se pode identificar o que Stuart Hall (2001, p.15) chama de uma das características principais da pós-modernidade e da crise de identidade “o aparecimento da diferença atravessando diferentes posições do sujeito”. A partir desta questão podemos visualizar a subjetividade feminina como a “construção em ruínas” que Donna Haraway aponta. O vídeo se torna um dos suportes das feministas (assim como de outros movimentos sociais) trazendo este questionamento sobre a mulher na sociedade. Para Martha Rosler (1995, p.7) “a história do vídeo acontece como arte e como surgimento para uma televisão alternativa á TV de massa”. Rosler afirma que muitas das TVs Comunitárias surgiram encabeçadas por feministas que construíram uma TV voltada para os novos interesses da mulher.Basicamente sua programação será constituída de programas que eram fruto dos primeiros vídeos documentários educativos, sobre saúde, sexualidade, política que ampliaram a gama de “assuntos para mulher” na mídia. Nestes canais estavam proibidos programações sobre cozinha, culinária e beleza.
Assim como nos anos 20, a década de 60 se destaca por novos questionamentos sobre a sociedade, como por exemplo, a posição da mulher na família, no mercado de trabalho, o surgimento da pílula anticoncepcional, etc. Todas essas mudanças se referem à expressão nas artes, que por sua vez, também se apresentam de forma inovadora, com instalações, performances, etc. Em 1965, com o advento do Portapack da Sony (o primeiro gravador portátil de vídeo), Nam June Paik apresenta ao público de N. Y. o registro da visita do Papa à cidade, exibido no mesmo dia de sua gravação. Até a década de 70, o vídeo se propaga e passa a ser usado de forma mais significativa como meio característico de duas vertentes principais. No primeiro caso, o vídeo se torna o meio da experimentação, é usado para representar as poéticas cotidianas e segue uma vertente mais ligada às vanguardas históricas. Por outro lado, o vídeo também é adotado como instrumento na busca pela realização do sonho da TV alternativa. Grupos de minoria, como as feministas norte-americanas, que tratam de temas como a violência, a opressão da sociedade machista, a identidade da mulher e a expressão de sua sexualidade, utilizam o meio de forma a produzir uma TV sócio-politizada. A partir disso surgem as primeiras TVs comunitárias, TVs educativas que segundo Martha Rosler no artigo, Vídeo: Shedding the Utopian Moment, possuíam um cunho fortemente utópico, pois em seus objetivos estes grupos viam a TV através do vídeo libertado da passividade e dos fins comerciais.
Não somente uma crítica sistêmica, mas também utópica estava implícita nas origens do vídeo, o objetivo era transformar o sistema e todos os seus aspectos _ legado de um projeto revolucionário de vanguarda _ consiste numa redefinição desse sistema unindo arte com a vida cotidiana e assim colocando o público como produtor interagente do vídeo. (Rosler, p.4)
Em 1975 a vídeo-artista, Martha Rosler realizou o vídeo Semiotics of the Kitchen (Semióticas da Cozinha) aonde a artista e também feminista propõem uma série de questionamentos sobre os padrões de feminilidade e o lugar de ocupação da mulher na sociedade. Martha ironiza a relação entre mulher e cozinha, exatamente aos moldes dos programas de culinária, utilizando os típicos cenários e os enquadramentos de câmera, com a diferença que o vídeo traz um amadorismo intencional. A imagem está desbotada e “indefinida”. Rosler utiliza das limitações técnicas do suporte para enfatizar os significados que quer transmitir.
No vídeo uma mulher está em uma cozinha, vestida com um avental, mostrando vários utensílios comuns a cozinha, como colheres de pau, panelas, batedeiras etc. O vídeo é uma paródia do ato de cozinhar, a mulher vai mostrando os objetos de uso e ingredientes de uma “receita”, mas ao invés de usar as palavras que denominam os objetos a mulher substitui, ao mesmo tempo em que mostra os objetos para câmera, as palavras de frustração que denotam o estado de dominação e violência da mulher pela sociedade. Quando a mulher mostra a colher ela diz “Pegue a violência doméstica”. Neste vídeo-performance, Rosler, afirma que "quando esta mulher fala, ela denomina sua própria opressão”.(ROSLER, 1995). O vídeo mostra de forma irônica através dos sons e gestos da mulher uma transgressão do sistema familiar de significados da cozinha para a mulher em geral.
Semiotics of the Kitchen é um pequeno exemplo de como a mulher inicia uma nova negociação de sua identidade dentro de um arcabouço de estereótipos pré-definidos pela mídia. A grande questão não será mais se esses estereótipos naturalizam os modos de ver da sociedade em relação a mulher, mas como essa mulher quer se entender dentro da sociedade. As mulheres dentro das diferentes humanidades que segundo Stuart Hall eclodem junto com outros movimentos sociais dos anos sessenta como o movimento gay, os movimentos negros e estudantis, levam ao máximo o que este autor chama de fragmentação do sujeito. A mulher passa a ter outras identidades culturais que não resumiram apenas a “cozinha” e isso passará também a ser refletido na mídia.
De forma crescente, as paisagens poéticas do mundo moderno são fraturadas dessa forma por identificações rivais e deslocantes_ advindas, especialmente, da erosão da “identidade mestra” da classe de emergência de novas identidades, pertencentes à nova base política definida pelos movimentos sociais: o feminismo, as lutas negras etc.(HALL,2001, P.43)
O vídeo de Rosler ainda instiga uma série de outras questões, agora não só sobre a mulher, mas também sobre o meio. O caráter performático dessa obra indica o caminho enveredado pelo vídeo nos seus primórdios e contém em si muitos aspectos da linguagem deste com que nos deparamos até hoje: imagem precária, desfragmentada e conteúdo altamente subjetivo. A vídeo-arte insurge como uma forma de utilizar-se da tecnologia entrando em choque com a sua real função. O intuito das obras não tivesse outro sentido senão o de questionar o padrão de imagens vigente, na época a mídia de massa que de certa forma difere das mídias de massa de hoje e a vídeoarte de hoje também é diferente. Este exemplo entre o uso de uma tecnologia da comunicação, um meio e mais especificamente um suporte que na época era considerado de ponta é o que Donna Haraway denomina de Ciborgue, a “Co-habitação” entre os meios tecnológicos e movimentos políticos, no caso para Haraway o feminismo. A miniaturização da câmera de vídeo permitirá esse “acesso” e essa transformação de imagens preestabelecidas pela mídia. “As máquinas são eminentemente, portáteis e móveis_ um fragmento da imensa dor humana que é infligida ocasionalmente”. (HARAWAY,1985)
E o que isso diz a respeito da negociação de identidades da mulher na mídia? O descentramento, a fragmentação de identidades o questionamento do ser mulher, do ser feminino, de membros de uma humanidade à diferença. Talvez o vídeo mais especificamente a vídeoarte, represente e “traduza” neste exemplo a “celebração móvel”, a negociação de identidades que Stuart Hall propõem como a base para a formação do individual e de grupos sociais nessa contemporaneidade que tem uma das causas de seu descentramento o rápido avanço das tecnologias da comunicação.
Mais Você é um programa de televisão da rede Globo, apresentado por Ana Maria Braga e pelo papagaio de fantoche "Louro José". Gravado no estúdio 3 da Rede Globo de São Paulo, é voltado para o público feminino e aborda temas tais como culinária, música, dicas de beleza, artesanato, paisagismo temas e também apresenta entrevistas com artistas da emissora. A estréia do programa aconteceu no final de 1999 e o horário era o das 13h40.Os primeiros programas renderam ibope acima dos 20 pontos. Passado um mês, a audiência de "Mais Você" caiu, atingido os 12 pontos de média.O programa foi para as manhãs, ás 8h05, onde sua performance melhorou.Com médias de audiência de 8 pontos e share de 35%, em mercado nacional, o Mais Você atinge quase 5 milhões de telespectadores em todo o Brasil.
No site do programa encontramos várias informações diárias sobre o programa, além de dicas extras. O site é dividido como os quadros são divididos no programa. Uma seção para paisagismo, outra para beleza e assim por diante. Tanto as cores do cenário, quanto do site são em tons de rosa. A apresentadora não só apresenta seu programa ao lado do papagaio Louro José, mas comumente também de sua cadela poodle Belinha. O programa segue os mesmos moldes do programa norte-americano que era apresentado por Martha Stuart. Apesar de ser um programa de variedades domésticas, o quadro que mais famoso do “Mais Você” é o quadro sobre culinária onde a apresentadora aprova as receitas chamando “os cachorros” debaixo da mesa.
O discurso acima representa a complexidade que os meios de comunicação trazem atualmente. “As leituras preferenciais estão de acordo com o discurso da sociedade. Acontece que o próprio código preferencial dominante fagocita usos profissionais de discurso de oposição dentre os próprios discursos dominantes”. (HALL, 1983) Mesmo que o programa apresente características de um discurso dominante e machista ao limitar os assuntos de interesse da mulher ao âmbito doméstico, tal fato convive paradoxalmente com a representação do feminino que a apresentadora invoca: de uma mulher que lutou por sua independência e hoje alcançou o lugar onde poucas mulheres de sua idade estão. A cultura e a política são dimensões da representação e, portanto indissociáveis, mas mesmo assim a mídia possui clivagens irredutíveis, o programa ainda traz um discurso dominante sobre o papel da mulher em pleno século XXI.
Em suma, ainda que existam discursos dominantes na grande mídia sobre a representação da mulher, cada vez mais é complexa a tentativa de instituição de uma representação sobre os gêneros. Ana Maria Braga apresenta e representa um exemplo dessa dificuldade ao encarnar diferentes papéis midiáticos ao mostrar-se uma mulher independente, forte e ao mesmo tempo estereótipo de uma dona de casa, mas uma dona de casa de meia idade moderna que sabe usar dos aparatos tecnológicos para facilitar sua vida e ao mesmo tempo resgata o passado com atividades artesanais do tempo das avós submissas.
Atualmente vê-se cada vez mais o surgimento de programas aos moldes dos programas de culinária na TV, mas que trazem inovação tanto na linguagem audiovisual como no posicionamento perante um público cada vez mais complexo e de difícil identificação. Programas como “Truques de Oliver”, “Nigela” e “Mesa Para Dois” abrem o espaço da cozinha para públicos diferentes e tornam um espaço, ainda de dominância feminina, um lugar nobre onde jovens rapazes e mulheres independentes circulam. Programas diferentes, para públicos diferentes, mas que ainda se ligam a mulher indiretamente por estarem um lócus (cozinha) de predominância feminina. Ainda que um jovem guitarrista, também chef de cozinha ocupe um lugar novo convidando agora também os jovens à cozinha a presença de um homem jovem passa a funcionar como um novo chamariz às mulheres.
A negociação dessas identidades perante os programas de predominância feminina se torna cada vez mais complexa no mundo de hoje a partir da fragmentação das identidades. Cada vez mais é menos importante a identificação social do ser humano perante classificações estanques como raça, sexo e gênero. A negociação do “ser” na atualidade é complexa e a mídia ainda que apresente discursos hegemônicos negocia constantemente com seu público. Cada vez mais também é maior a dificuldade de se identificar quais afinidades o público necessita eleger como identificação perante os meios de comunicação em mundo onde o próprio ciborgue não só apenas um híbrido de ser humano e máquina, mas um ser intrincado em relações arbitrárias onde o tecnológico é apenas uma parte de todo o universo simbólico humano.
Em um primeiro momento, os movimentos sociais, não só os Movimentos Feministas, é preciso lembrar, estavam carregados de discursos radicais, imbuídos em uma profunda mudança dos sentidos e dos modos de ver dentro dessa mesma sociedade. Essa negociação de uma nova identidade ou novas identidades sociais e culturais da mulher a princípio eram latentes e mais fáceis de visualizar. Nas décadas de sessenta e setenta é visível o “boom” dos estudos de gênero como forma de subversão de uma ordem social. Talvez, tenha sido necessário em um primeiro momento que o feminismo eclodisse do pensamento da “diferença sexual para igualdade de direitos” e após isso se subdividisse em diferentes visões da mulher tanto no campo acadêmico quanto no campo político.
Neste trabalho há uma tentativa de identificar de uma forma mais elucidativa como esses pontos de partida dos movimentos sociais, como também o próprio Stuart Hall afirma, desencadearam as relações de identidade, mídia e mulher na atualidade. Hoje o campo de discussão sobre mulher e mídia é vasto, não só pelo acelerado desenvolvimento de tecnologias, mas também pela complexificação do “ser mulher” na atualidade. No primeiro momento algumas feministas viram um meio midíático recém surgido como alternativa de subversão de estereótipos. Se isso se deu realmente de fato na mídia é outra questão. Mas é fato que, ainda vemos, principalmente na TV brasileira exemplos de como alguns estereótipos reafirmam uma feminilidade cerrada em padrões.
Talvez a realidade seja de que a mulher deu um pontapé inicial e os desdobramentos em torno disso continuam acontecendo a medida que inúmeros processos, como por exemplo a globalização, acontecem. O que resta de agora em diante é prosseguir com a identificação desses processos de negociação de identidades, mudanças no padrão cultural da mulher dentro das novas tecnologias. O processo e suas conseqüências na sociedade existem, porém suas dimensões não são totalmente mensuráveis.
HARAWAY, Donna J. Manifesto Ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Antropologia do Ciborque. As Vertigens do Pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica, 2000.
HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-modernidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2001.
ROSLER, Martha, "Video: Shedding The Utopian Moment", ensaio retirado do livro Illuminating Video: An Essential Guide to Video Art; Jesse Drew (Org.), [s.n.].Nova York: Editora City Lights, 1995
SANTAELLA, Lúcia. Culturas e artes do pós-humano. 1ª edição. São Paulo: Editora Paulos, 2003.
LOTMAN, Iuri, Sobre o problema da tipologia da cultura, IN. SCHNAIDERMAN, Boris. (Org) Semiótica Russa. 1ª edição. São Paulo: Editora Perspectiva,1979. GAZIRE, Marina, Eu-corpo;palavra. In: Mídia e feminismos. PUCMinas, 2004 , pág.40
Vídeos:
SEMIOTICS of the Kitchen, direção: Martha Rosler,1975, 6:09 min, b&w, sound
Site:
Site do Programa “Mais Você” hospedado no site da Rede Globo de Televisão: http://maisvoce.globo.com/