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O Grupo de Estudo e Trabalho em História e Linguagem (GETHL) nasceu em 2005, tendo se registrado no Diretório dos Grupos de Pesquisa do CNPq em 2009 (http://goo.gl/6VBkmI).

Formado pela junção das áreas de História e Linguagem, caminhou para uma prática de fundo transdisciplinar pela abordagem múltipla de problemas do interesse concomitante de diversas áreas das Humanidades.

Nesse sentido, o GETHL tenta não exatamente responder, mas problematizar uma ampla gama de questionamentos que se inter-relacionam, a saber: como a linguagem funciona no mundo? Como o mundo funciona através da linguagem? Ela representa nossas vivências ou, em certa medida, fabrica nossos pontos-de-vista? Como percebemos e construímos as realidades? Como a linguagem atua de forma política? Como as políticas se apresentam e se efetivam por meio da linguagem? De que modo representamos o que sabemos sobre o passado? Como sabemos o que sabemos?

Entendemos que novas práticas criam novas linguagens e, ao mesmo tempo, as palavras e as imagens engendram fazeres, aplicações e, a rigor, novas realidades. Essas considerações são caras ao ofício do historiador, ao pesquisador da linguagem, ao estudioso dos gêneros de leitura, ao profissional da educação, da comunicação, entre outros.

O GETHL é um grupo de estudos que, de modo cumulativo, traz ao debate essas e outras questões importantes para as discussões e práticas dos profissionais citados. Anima o grupo a ideia de pesquisa permanente e cotidiana, trazendo para os nossos fazeres as dúvidas sobre as linguagens e construção política do mundo que polemicamente permanecem sem resposta unívoca.









A incorporação de novas fontes no ofício do historiador desde meados do século XX nos colocou um problema. Novas fontes implicavam em dominar novas linguagens. Isto permitiu um considerável avanço na disciplina tanto na perspectiva metodológica quanto na do conhecimento acumulado.

Por outro lado, as questões que emergiram daí nos levam a repensar nossa fonte tradicional: o documento. A noção de documento foi (re)qualificada sendo associado à de monumento, através da qual sua dimensão de intencionalidade e construção/artefato foram enfatizadas. O documento deixou de ser visto exclusivamente como chave e evidência que permitia equacionar questões e análise de processos, mas ele próprio foi elevado à condição de problema e de processo. A linguagem da fonte escrita passa ser tratada como um objeto ao invés de uma simples janela para o passado (BURKE, 1993). A fonte e a história das fontes históricas tornaram-se preocupação.

A partir destas certezas uma terceira questão emerge no trato das fontes escritas: sua sintaxe e gramática. A necessidade de dominarmos a linguagem das fontes emergiu quando da incorporação de novos tipos de fontes. Agora é o momento de colocarmos esta mesma questão onde ela parecia não ter procedência: nas fontes escritas. Faz-se necessário incorporarmos toda uma discussão da lingüística, sociolingüística e sobre a linguagem no trato das  mesmas. O caminho se revela profícuo se considerarmos diferentes ensaios apresentados por Burke e Porter, nas coletâneas publicadas no Brasil (1993. 1997-a, 1997-b). A questão se revela importante se considerarmos as análises apresentadas por outros autores acerca da linguagem e seus efeitos na definição/instituição de papéis, hierarquias, práticas e lugares sociais.

A importância da linguagem, analisada sob a perspectiva lingüística, como procedimento fundamental para compreensão dos processos e ações sociais foi destaca por Hymes.


    “Você trabalha com aquilo que as pessoas dizem e escrevem; elas fazem isto por meio de estruturas e elementos que podem condicionar o que é feito é (sic), o que você considera seu material. Você poderia não atentar para esses elementos e estruturas, desconsiderando-os?”  BURKE, 1993:433)


Esta indagação pretende realçar a importância da linguagem na análise dos processos sociais: 1) relação entre forma e conteúdo; 2) quem em que condições comunica o que e a quem; e 3) a diferença entre escrita e recepção.

Assim, configura-se uma área de estuda relativamente nova: a História Social da Linguagem. A preocupação com a linguagem e seu lugar na cultura busca problematizar o falar, o ouvir, a escrita e a leitura, enfim, a comunicação entre os membros de uma sociedade. Algumas certezas justificam esta problematização. O reconhecimento da linguagem como instituição social, como parte da cultura e da vida cotidiana, que constitui um meio para melhor compreensão das fontes orais e escritas pela via da consciência de suas convenções lingüísticas e que as formas de comunicação não são neutras (BURKE, 1995:10).

O que se pretende então é buscar instrumental da lingüística e da sociolingüística para uma crítica das fontes escritas que considere forma, conteúdo, a relação entre ambos e desta com os diferentes grupos sociais, bem como seus significados. Resumidamente as principais idéias que se pretende buscar para esta análise são as seguintes:

1) grupos sociais diferentes usam variedades diferentes de língua;

2) os mesmo indivíduos empregam variedades diferentes de língua em situações diferentes;

3) a língua expressa a sociedade ou a cultura na qual é usada;

4) a língua molda a sociedade na qual é usada;

5) a forma (condições de enunciação) informa e é parte das mensagens.


A importância das palavras em uma conjuntura de mudanças foi destacada por Furet (1988) na análise sobre a Revolução Francesa. O poder durante a Revolução caracterizava-se por aparecer a todos como um vazio, disponível, propriedade da sociedade, que devia investi-lo e submetê-lo às suas leis. Além dessas mutações, a Revolução promove uma sacralização inversa à do Antigo regime: o povo é o poder. Essa equação só pode existir na e pela opinião, afirmará o autor. Neste caso, o discurso e a palavra ocupariam papel central na Revolução, pois será através destes que aquela equação será viável.


A palavra substitui-se ao poder como única garantia de que o poder pertence ao povo, isto é, a ninguém. E contrariamente ao poder, que tem a doença do segredo, a palavra é pública, e por isto submetida ela própria ao controle do povo.”(FURET, 1988:75)


O resultado desta dinâmica seria a disputa para “saber quem representa o povo, ou a igualdade, ou a nação” (FURET, 1988).


A Revolução substitui à luta dos interesses pelo poder uma competição dos discursos para apropriação da Legitimidade. Os seus dirigentes desempenham outra ‘função’ para além da acção; são intérpretes da acção.” (FURET,1988:76-77).


Em que pese as especificidades da análise citada, a indicação de que na luta pelo poder o uso da palavra pública ocupa uma posição primordial nos parece útil para nossa questão. Ou seja, podemos afirmar que o conflito político passa pela procura dos grupos em aparecerem como portadores dos valores, virtudes, soluções e propostas, representando-os. A luta e conflitos políticos seriam, assim, também “luta entre representações, quer no sentido de imagens mentais, quer naquele outro sentido de manifestações sociais destinadas a manipular as imagens mentais” (BOURDIEU, 1998:108). O aparecer é constitutivo do ser, as representações são um momento reale imaginário, observa Chauí (1978:11); “o mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é também ser percebido, aliás, percebido como distinto”, afirma Bourdieu (1998:112).Neste sentido as lutas sociais e políticas são também lutas permanentes para definir esta “realidade” (BOURDIEU, 1998:112).

Nesta perspectiva o debate e conflito de falas nos quais podemos perceber disputas pela atribuição do sentido do mundo social e das posições políticas faz-se necessário aprofundar as análises com recursos da sociolingüística. Discordâncias aparentes podem estar obscurecendo uma concordância de suma importância: a dos termos da discórdia. Como observou Bourdieu:


Embora os homens cultivados de uma mesma época possam discordar a respeito da questão que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas questões. (...) O desacordo supõe um acordo nos terrenos do desacordo, e os conflitos manifestados entre as tendências e as doutrinas dissimulam, aos olhos dos que dele participam, a cumplicidade em que implicam e choca o observador estranho ao sistema." (1987:207)


Se a sugestão de Bourdieu nos permite enxergar o consenso por trás do aparente dissenso, não nos autoriza a ignorar o dissenso real. Se há concordância quanto aos temas do desacordo, esses nem sempre devem ser entendidos da mesma forma, o que nos permite falar em desentendimento:


Por desentendimento entenderemos um tipo determinado de situação de palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele que diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa, ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome de brancura.” (RANCIÈRE, 1996:11)


A partir das sugestões desses dois autores podemos perceber uma situação de disputa. De um lado, só há disputa quando há território ou valores comuns (o acordo quanto ao desacordo) em torno dos quais se estabelece uma contenda; por outro, neste território o desentendimento é possível na medida em que sob os mesmos valores nomeados escondem diferentes de substâncias. A situação de disputa configura-se quando o acordo dos termos permite o a compreensão e o diálogo entre as partes, condição sine qua non para que haja o desentendimento em torno das substâncias que se escondem sob os nomes, ou seja, “a disputa sobre o que quer dizer”.


Os caso de desentendimento são aqueles em que a disputa sobre o que quer dizer falar constitui a própria racionalidade da situação da palavra. Os interlocutores então entendem e não entendem aí a mesma coisa nas mesmas palavras. Há todas as espécies de razão para que um X entenda e não entenda ao mesmo tempo um Y: porque, embora entenda claramente o que o que o outro diz, ele não vê o objeto do qual o outro lhe fala; ou então porque entende e deve entender, vê e quer fazer ver um objeto diferente sob a mesma palavra, uma razão diferente no mesmo argumento.” (RANCIÈRE, 1996:12)


Em a Economia das Trocas Lingüística, Bourdieu (1998:81-125) discute a representação como variável cons/instituinte do social, e suas proposições nos parecem de grande relevância para o trabalho que pretendemos fazer.

Na construção do mundo social as palavras adquirem poder estruturante (“sua capacidade de prescrever sob a aparência de descrever, ou então, de denunciar sobre a aparência de enunciar”). A linguagem e os esquemas de percepção e de pensamento por elas propiciados tornam-se poder instituinte. As palavras tornam-se poderosas, capazes de orientar e informar a percepção da realidade, por receberem o cetro: tornarem-se falas autorizadas e serem reconhecidas como tais pelos ouvintes.

Sendo assim, pretendemos fugir de uma concepção que opõe a objetividade de um lado e o subjetividade de outro. Entendemos que as formas de perceber o mundo social têm um efeito definidor do mesmo. Precisamos incorporar na análise do social os feitos da teoria na própria constituição desta dinâmica. Denuncia e enunciado, prescrição e descrição confundem-se nas falas. Na instituição de uma nova percepção do social apresentada como fundamentada na razão e/ou em valores, as novas representações apresentam como enunciados e descrições o que pode ser percebido como denuncias e prescrições. Isto é, escondem-se em uma suposta objetividade racional, falas que são subjetivas e valorativas.

A palavra, o ato de nomear, transforma o mundo exterior, material e objetivo ao dotá-lo de significado (valor, utilidade, etc). Se isto é verdadeiro para o mundo das “coisas”, dos objetos inanimados que nos cercam, quanto mais para o universo das práticas sociais, as representações podem contribuir para produzir o que aparentemente descrevem (BOURDIEU, 1998:107). A ação política


tem como objetivo produzir e impor representações (...) do mundo social capazes de agir sobre esse mundo, agindo sobre as representações dos agentes a seu respeito. Ou melhor, tal ação visa fazer ou desfazer os grupos (...) produzindo, reproduzindo ou destruindo as representações que tornam visíveis esses grupos perante eles mesmo e perante os demais” (BOURDIEU, 1998: 117).


Decorre disto que a subversão política é também uma subversão cognitiva, ou seja, visa a destituir uma visão de mundo substituindo-a por outra, romper com a ordem e produzir um novo senso comum.

Assim, a linguagem é fator primordial na (des)construção do mundo social, nos informando sobre aspectos fundamentais dos atores sociais na sua luta por instituir e manter suas práticas, valores e interesses. A linguagem é não só o suporte de diferentes idéias e conteúdos, mas é ela própria aspecto constitutivo da idéia. Em sendo assim, ela assume, no nosso caso, uma dupla significação: é fonte e objeto.


(Belo Horizonte, 2005)



Referências

BOURDIEU, Pierre. “Sistemas de ensino e sistemas de aprendizagem.” A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.

BOURDIEU, Pierre. “Linguagem e poder simbólico”. A Economia das Trocas Lingüísticas – O que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998.

BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). Linguagem, Indivíduo e Sociedade. São Paulo: Unesp, 1993.

BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). História social da linguagem. São Paulo: Unesp/ Cambridge, 1997-a.

BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). Línguas e Jargões. São Paulo: Unesp/ Cambridge, 1997- b.

BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Unesp, 1995.

FURET, François. Pensar a Revolução Francesa. Lisboa: Edições 70, [1988]. 

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento  Política e filosofia. São Paulo: Edit. 34, 1996.










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