As nossas observações sobre a Nota Técnica no. 11/2019 CGMAD/DAPES/SAS/MS independem dela ter sido retirada de circulação sob o comando do Ministro da Saúde, conforme informações mais recentes. Avaliamos que, se ela não se mantém, deve-se à enorme pressão social e do movimento organizado do campo da saúde mental, que tem se manifestado amplamente em repúdio às suas determinações. No entanto, as mudanças legais e os argumentos que justificam essas mudanças, presentes nessa nota técnica, continuam relevantes, já que essas novas portarias não foram revogadas, e elas indicam uma orientação que vai na contramão do que foi preconizado e construído ao longo de, pelo menos, três décadas de Reforma Psiquiátrica Brasileira. Em primeiro lugar, não se trata de uma “Nova” Reforma Psiquiátrica, mas de uma Contra-Reforma Psiquiátrica, ou seja um retrocesso, uma vez que a principal instituição que garante a perpetuação do modelo manicomial é recolocada na rede de atenção, a saber, o hospital psiquiátrico ou a “comunidade terapêutica”, instituição manicomial correspondente no atendimento a pessoas em uso problemático de álcool e outras drogas.
Diferentemente do que é apresentado no documento, os “hospitais modernos” que podem conviver com os serviços comunitários, presentes nos modelos mistos, trazidos por autores como Thornicroft e Tansella (2002), aliás citados de modo indevido na nota técnica, não são os hospitais monovalentes de grande porte e isolados, como aqueles ainda existentes no Brasil e que querem ser mantidos pelo Ministério da Saúde, mas “serviços que oferecem tratamento para pacientes agudos internados, sempre em unidades de hospitais gerais (cuidado baseado em hospitais modernos)” (p. 84, nossa tradução). Prova dessa tendência ao fechamento dos hospitais psiquiátricos, tanto no Reino Unido quanto em muitos outros países que avançaram na Reforma Psiquiátrica, é que “dos 130 hospitais presentes na Inglaterra e no País de Gales em 1995, apenas 14 permanecem abertos” (ANTUN, 2002). O que está em questão, mesmo quando se fala em internação (e essa possibilidade nunca foi negada pela Reforma Psiquiátrica), é a defesa de serviços que sejam próximos às pessoas que precisam de cuidados e das suas famílias, para manter os tratamentos territorializados, sem o risco de segregação, tão nociva e cronificadora nos casos de pessoas com transtorno mental e uso problemático de substancias psicoativas.
Ora, a RAPS da Portaria 3.088 de 2011 já previa a existência desses leitos em hospitais gerais, como também os leitos de acolhimento noturno em CAPS III e CAPS ad III. Então por que essa falácia da nota técnica quando fala em “ofertar uma variedade de cuidados”? A RAPS da Reforma Psiquiátrica Brasileira já é a rede mais plural dentre as redes do sistema de saúde; a diferença é que ela, propositadamente, deixava de lado instituições manicomiais e estimulava o tratamento no território habitado pelas pessoas em sofrimento mental e suas famílias e onde existem as suas redes de apoio e de sociabilidade, ainda que às vezes precárias, além da rede de serviços intersetoriais fundamentais à sua recuperação e vida digna (escola, trabalho, moradia, saúde geral, lazer, etc.). Essa territorialidade, totalmente ausente na “nova” política (nem uma só linha a respeito), é fundamental, por uma simples razão: só assim é possível reabilitar e ressocializar pessoas, ou, eventualmente, impedi-las de serem dessocializadas, estigmatizadas ou excluídas.
Muito do arsenal retórico e ideológico subsequente, presente nessa nota técnica, especialmente aquele que se quer “novo”, segue uma mesma lógica que, ao falar reiteradamente de evidências científicas, parece querer traduzir-se exclusivamente por evidências biomédicas (negando o conhecimento de um conjunto de profissões que atuam na área). E essas requeridas evidências científicas ainda assim se mostram, muitas vezes, frágeis. Exemplar e emblemática é, nesse sentido, a propaganda feita no documento em defesa da eletroconvulsoterapia (ECT), comumente chamada de eletrochoque. Longe de ser uma técnica absolutamente segura e incontroversa na sua aplicação contemporânea, o ECT, assim como psicocirurgias mais recentes, é objeto de um debate científico, bioético e judicial acirrado em relação a sua eficácia clínica e potencial iatrogênico (READ ET AL, 2019; BREGGIN, 2008). O risco de uma banalização de seu uso, além dos casos extremamente resistentes de depressão, é considerável. Isso sem falar no simbolismo da sua prática violenta e punitiva que assombra tantas pessoas que foram vítimas de seu uso abusivo.
O raciocínio reducionista do documento permanece quando parece negar (não se sabe o quão voluntariamente) que muitos dos transtornos considerados comuns na psiquiatria, e aqueles que têm crescido em incidência, ao modo do suicídio e suas tentativas, traduzem um mal-estar severo na sociedade, reflexo, cada vez mais intenso, das políticas de austeridade, falta de oportunidades de trabalho, baixa qualidade de vida, múltiplas intolerâncias e violências, inclusive traumas associados a acidentes totalmente preveníveis (como os que encontramos em Mariana e Brumadinho, só para falar dos mais graves, recentemente), perda de esperança, entre tantos outros.
Não se resolvem essas dores com serviços ambulatoriais especializados, especialmente se esses se tornarem reféns das indústrias farmacêuticas, exorbitando, como tantos estudos têm revelado, o uso indevido de psicofármacos, notadamente antipsicóticos (HARROW & JOBE, 2013; HARDING, 1990) e antidepressivos (GOLDSMITH & MONCRIEFF, 2011), na medicalização dos problemas da vida, especialmente em países que vivem crises socioeconômicas e políticas. Para esses males, é preciso escuta sensível de sujeitos que sofrem, cuidado integral, serviços abertos aos usuários, suas famílias, à comunidade e a seus problemas agudos e crônicos e, sobretudo, mudanças estruturais em uma sociedade cada vez mais desigual e intolerante. Esse conjunto de medidas só é possível de ser efetivado se orientado por um pensamento complexo e por modelos culturalmente sensíveis às particularidades e regionalidades do nosso país e socialmente equitativos. Pessoas que vivem experiências de sofrimento mental, mais ou menos graves, mais ou menos intensos, precisam ter suas necessidades sociais e de saúde escutadas.
Neste sentido, a crítica à nota técnica se apresenta como convite a uma reflexão ampliada onde a política de saúde mental é compreendida por um conjunto de ações forjadas em dimensões plurais. Ela aponta para uma compreensão do cuidado em saúde mental e as políticas que o garantam, como uma gama de intervenções cujo pressuposto norteador é a construção da cidadania de sujeitos historicamente excluídos, cerceados de sua voz. Cidadania que pressupõe liberdade em contraposição a exclusão, acolhimento em contraposição a protocolos padronizados e, principalmente, construção coletiva através do debate amplo com a sociedade e seus atores. A política nacional de saúde mental, álcool e outras drogas, preconizada pela Reforma Psiquiátrica brasileira e pela lei nacional 10.216/01, foi uma conquista deste processo. Podemos afirmar que o desenho de sua rede territorial pressupõe ser substitutiva sim. Substitutiva aos dispositivos que, por séculos, foram utilizados para esconder a miséria, a pobreza e o descaso do poder público sob a égide de uma forma de ciência corporativa e mercantil.
A desinstitucionalização é um processo árduo que exige, sim, a destruição das clausuras, dos desejos de manicômio e das sanhas de lucro com o sofrimento alheio. Desinstitucionalizar é reintegrar pessoas que, por violência histórica, passaram a morar nos manicômios longos anos da sua vida, mas é também impedir reinternações repetidas. Desinstitucionalizar é, sobretudo e ainda, acabar com espaços que estimulem e favoreçam a institucionalização.