O Cuidado e a Pólis em tempos de COVID-19 (Tradução)

O presente texto se trata de uma tradução do textoLA CURA E LA POLIS AL TEMPO DEL CORONAVIRUSdos Gestalt-terapeutas italianos Michela Gecele e Gianni Francesetti sobre o tempo pandêmico em que vivemos e como isso afeta todo nosso ambiente experiencial enquanto sujeitos imersos nessa nova realidade. O texto apresentará reflexões sobre as adversas condições de existência das quais se apresentaram a nós. A tradução fica por parte dos alunos Gustavo Dias dos Passos e Vanessa Santos Liberal e a revisão pelo Prof. Dr. Paulo Evangelista e pela Profª Drª Claudia Lins Cardoso, coordenadores do projeto de extensão “Plantão Psicológico”, do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH) da Universidade Federal de Minas Gerais, do qual os alunos fazem parte.

O Cuidado e a Pólis em Tempos  de COVID-19

Michela Gecele and Gianni Francesetti

Nós publicamos este artigo no blog de psiquiatria italiana,  pol.it, em 7 de março, no início da emergência do COVID-19 na Itália. Sentimos a necessidade de compartilhar nossos sentimentos e pensamentos com uma comunidade mais ampla. Estamos fazendo o mesmo agora tentando alcançar você com essa publicação online. 

Filhos da época 

(…)

Querendo ou não querendo,

teus genes têm um passado político,

tua pele, um matiz político,

teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,

o que silencia tem um eco

de um jeito ou de outro político.

(…)

Wislawa Szymborska (trad. Regina Przybycien)

Dias frenéticos, literal e metaforicamente, dias febris. Gianni deveria estar em Kazan lecionando em um seminário agendado, como muitos outros seminários, três anos atrás. Michela antecipou sua volta da turnê de lançamento de seu último livro. Seminários no exterior, agendados há muito tempo sem qualquer preocupação, foram cancelados. Seminários que fazem parte dos treinamentos internacionais de psicopatologia em Turim estão cancelados. Treinamentos básicos em psicoterapia não podem continuar face a face. Estamos tendo que descobrir novas maneiras de ensinar e de aprender para os nossos alunos italianos.

Atividades diárias normais, ambas no Serviço Público de Saúde Mental e na Clínica Central Mattia Maggiora, estão canceladas ou estão online, assim como grupos de supervisão e reuniões de equipe. Tudo o que tínhamos como certo até ontem, ou até mesmo até poucas horas atrás, mudou. Sim, porque os relatórios médicos e de segurança chegam e mudam os cenários, não mais em dias, mas em algumas horas ou até mesmo em minutos. Contatos anteriormente garantidos, que antes nos davam suporte – e nos limitavam – sem que precisássemos pensar a respeito, agora estão cancelados. O chão treme, às vezes colapsa como um terremoto. 

Nós escrevemos e nos comunicamos uns com os outros porque precisamos, uma necessidade que nos envolve e nos ultrapassa. Uma forma de expressarmos as vozes do campo e de ouvirmos uns aos outros e de nos tocarmos, ao menos virtualmente. Nós percebemos uma responsabilidade, primeiro por nossos pacientes e alunos com quem vivemos este momento, mas também com a comunidade mais ampla, que inclui todos os seres humanos. Portanto, queremos tecer, ou ao menos, alinhavar a textura narrativa que cria os fios – mesmo que somente no ar ou no éter – a fim de costurar, para manter unidas essas ressonâncias afetivas que, de outra forma, permaneceriam caóticas. Nós queremos criar uma oportunidade para que as experiências de todos possam se sedimentar e amadurecer, não em memórias solitárias ou idiossincráticas, mas em memórias compartilhadas e rastreáveis. Nossa tentativa é de tecer uma ‘personalidade social’, para reunir as experiências que, talvez, caso contrário, permaneceriam como fragmentos individuais sem conexão, sem base ou sem suporte. Chocante. Pânico é, por definição, um sentimento opressor, que não está contido nessa fronteira entre as dimensões individuais e sociais que nós chamamos de personalidade. Não está con-tido (do latim continēre: con – tinere, para-se-segurar): usamos esse verbo em um duplo sentido de segurar-com-o-outro e de ser o tecido-que-segura. Narrar e compartilhar com os outros cria figuras invisíveis, mas muito eficazes para manter-juntos e suportar-juntos. O solo fértil é terreno comunitário. Sempre narramos com este fim. A maneira de nos expressarmos é conectar nossa experiência à teoria.  Mais uma vez, encontramos confirmação e um entendimento para a nossa experiência nos referindo às teorias já construídas.  Essas teorias, por sua vez, vêm da experiência, através de um caminho curricular de impulso e de pressão. 

A fim de expressar o que sentimos e vemos nesses estranhos dias de corona vírus, há dois trabalhos diferentes, mas complementares, os quais nos dão suporte. O artigo sobre experiência bipolar escrito pela Michela no livro Absence in the Bridge Between Us (e no Gestalt Therapy in Clinical Pratice) e em todo o trabalho interdisciplinar do Gianni sobre atmosferas, recentemente publicado em Psychopatholgy and Atmospheres

Por que escolhemos esses dois textos?

Se quiser ler, ou reler, esses artigos, você os encontra aqui: www.ipsig.it. Mas aqui gostaríamos de conectar os conteúdos desses dois textos com aquilo que estamos experienciando aqui e agora. 

O capítulo sobre estados de mania apoia a noção de que a experiência bipolar é um tipo de experiência que ultrapassa e precede a psicopatologia e que envolve todos os parâmetros fundantes da experiência humana: tempo, espaço, a ferida, o senso de limite, a necessidade de ir além, o suporte e a falta de suporte, a necessidade de um relacionamento e, frequentemente, a dificuldade de vivê-lo. E então, há uma ideia muito simples que condensa tudo isso. A ideia de que os episódios de mania ou de hipomania, a experiência de bem-estar, de excesso, de desafio, de ultrapassar, de ousar, de assumir riscos, dependem de uma relação favorável entre energia e limites: eles dependem da dissolução do que a Gestalt chama de introjeções, em um sentido duplo de tijolos, os quais definem e estabelecem os critérios e os conteúdos da experiência, mas também as limitações da experiência em si.

Neste tempo de corona vírus, por que nos importamos com isso? Porque, como dissemos no início e como todos estamos experienciando, neste período, muitas das nossas certezas, hábitos diários, rotinas diárias, modos de viver tidos como garantidos, estão se dissolvendo. Estão desaparecendo.

Essa dissolução de contatos tidos como garantidos, por definição, produz e libera energia, a qual não está mais amarrada a padrões pré-formados e já não é mais aprisionada ou contida neles. Nos primeiros dias desta contínua “novidade”, alguns de nós poderia ter sentido um aumento estranho e paradoxal de energia, uma excitação, quase um bom humor, uma euforia.  Isto não é psicopatologia. Nós simplesmente sentimos a energia liberada de uma vida diária que perturba e desaparece. Nós podemos tocar o espectro inteiro de experiências maníacas e hipomaníacas, com seus riscos, limites e potencialidades. Mas após de um tempo, podemos experimentar um tipo de abatimento, um impasse depressivo no qual nos sentimos bloqueados por medos, por palavras do mundo, por velhas preocupações, por alertas ancestrais. Esses bloqueios ocupam o espaço do encontro e impedem a experiência. Nós não queremos atribuir valor positivo ou negativo para esse contínuo processo de oscilações. Sobretudo, não queremos fazer um julgamento ou atribuir um valor psicopatológico, nem dar interpretações ou soluções. Simplesmente, como costumamos fazer em nossas práticas clínicas e nos treinamentos, nós gostaríamos de ressaltar os riscos e as possibilidades desse momento, de cada momento da vida, de cada período, positivo e negativo, simples ou difícil. Nós tentamos fazer isso com vocês. Tecer os fios que costuram e sustentam a experiência, encontrar significado, sedimentar memórias, dar suporte à assimilação. Produzir presença. 

Uma palavra-chave neste capítulo sobre mania e também sobre toda a teoria e prática da Gestalt é “suporte”: a questão é que tipo de suporte precisamos para não sermos dominados pelo medo e que tipo de suporte também precisamos para captarmos a potencialidade de um tempo que estará, e já está, para a melhor ou para a pior, mudando muitos aspectos e pressupostos sobre nossa vida diária e sobre o futuro. Pode haver muitas formas de suporte e esta é definitivamente uma delas, ao menos para nós: expressar o que estamos vivenciando e pensando, compartilhar isso com vocês como parte de um diálogo contínuo mais amplo.  Dar sentido – não justificativas ou soluções – ao que estamos experienciando, para encontrar, vislumbrar, caminhos a tomar, ainda que dolorosos ou exaustivos. Deste modo, podemos dar o primeiro passo que nos constitui como seres humanos: nós criamos um mundo compartilhado. Pertencer a um mundo compartilhado não é mais imediato, dado como certo, como auto-evidente em uma emergência. Por isso, estamos escrevendo para vocês.

Neste momento, conectamos com o outro fundo teórico, e não por acaso o chamamos de fundo: aquele que se refere às atmosferas. No final de fevereiro, nós voltamos para a Itália do exterior e encontramos um outro mundo. Primeiramente, antes de qualquer relato ou evento, antes de qualquer crônica, ela foi percebida como uma atmosfera diferente: tensa, flutuante, suspensa. Algo no ar nos mantinha em suspense. Atmosferas que emergem através de nós e nos levam, as quais simultaneamente incluem e ultrapassam nossa individualidade. Há um bom tempo sabemos que em Gestalt-terapia a relação precede o indivíduo, que os campos social e relacional precedem os seres humanos individuais e contribuem para seu crescimento. Agora nosso desafio teórico e experiencial é abordar as atmosferas de modo que possamos perceber e sentir os movimentos do campo relacional, social, humano e não-humano. O espaço afetivo sintonizado que dá o tom para nossos sentimentos. Dessa dimensão emerge nossa experiência. 

Quantas vezes nestes dias temos sentido ou pensado que estamos vivendo em um filme, em um romance com uma atmosfera precisa, em uma distopia montada por outros. É uma maneira criativa de dar uma forma familiar para as atmosferas que estamos experienciando, um enquadre com o qual podemos entender e nos conectar. O que acontece, de uma maneira condensada e predeterminada, quando assistimos a um filme, ou quando somos expostos a diferentes tipos de arte, é o mesmo que na vida real. Como a vida é um tipo de trabalho artístico, nos ultrapassa com suas próprias atmosferas. Mas o filme termina e saímos do cinema: então percebemos – de uma maneira imediata – que nós estávamos dentro da história do filme. Tremendo, tendo esperança, odiando, amando, apertando os braços das cadeiras enquanto o personagem principal estava em perigo extremo. Então, saímos do cinema, conversamos, comentamos, rimos, criamos uma distância da experiência artística, das atmosferas nas quais estávamos imersos. Nós nos diferenciamos. Não importa se nós temos opiniões diferentes sobre o filme ou acerca do trabalho artístico, quando nós falamos sobre ele, criamos novos fios que sustentam a experiência. O filme se torna memória, nós podemos virar a página e ir e tomar um drink. 

Isso é o que acontece quando o filme termina. Mas e se não for um filme? Nós simplesmente não podemos sair do cinema. Portanto, temos que aprender a viver lá, a habitar naquela atmosfera. E aqui está o ponto crucial: sermos capaz de nos tornarmos aware das atmosferas quando nós a estamos experienciando, já que não podemos sair da sala. Caso contrário, podemos apenas ser manipulados por elas. Sentir o poder das atmosferas nos permite reconhecê-las e isso nos permite não sermos submetidos a elas, não permitindo que elas sejam amplificadas. A ciência é uma grande ajuda pois é o grande diferenciador; seu ponto de vista é independente, objetivo, impessoal, quantitativo. Por isso, é a grande salvadora em tempos de emergência. Mas isso não é suficiente. Primeiramente, a ciência cria atmosferas específicas das quais precisamos estar aware: atmosferas científicas vão além da subjetividade e podem se tornar desumanas. Há tantos exemplos disso na história, mesmo as ações extremas dos médicos nazistas “para o bem da ciência”. Um pequeno exemplo contemporâneo: durante estes dias, pessoas em hospitais não podem ter contato direto com seus entes queridos. Aqui não há mais funerais. A passagem que na história da humanidade criou a civilização está cancelada. O ponto é que isto está agora além de qualquer discussão, nunca considerado como um problema, já que foi imposto pela ciência. A ciência não é suficiente, pois pode ser um ponto de referência autoritário, desde que tenha algo preciso ou pelo menos provável a dizer. Há muito mais na experiência, na angústia, no medo, na insegurança, nos cenários que mudam rapidamente. Não é suficiente simplesmente seguir a ciência para manter o barco estável. Queremos ser claros: ela é crucial. Mas também precisamos nutrir os espaços relacionais onde nós podemos narrar nossas histórias para nos diferenciarmos da situação. Desta forma, não estamos simplesmente presos. Reconhecemos o momento presente – ao menos um pouco -, nós não perdemos o fundo – não completamente-, podemos dar suporte uns aos outros – tanto quanto possível. Lembramos que somos frágeis, vulneráveis, limitados. É somente devido a esses espaços intermediários que nós conseguimos não nos perder. Eles nos lembram que nossa vulnerabilidade constitucional e nossa necessidade do outro não são novidades. Ainda mais em tempos de emergência por COVID-19.

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