Coelho Júnior, A.G. e Mahfoud, M. (2006). A relação pessoa-comunidade na obra de Edith Stein. Memorandum, 11, 08-27. Retirado em / / , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/coelhomahfoud01.htm

A relação pessoa-comunidade na obra de Edith Stein

The relation person-community in the work of Edith Stein

Achilles Gonçalves Coelho Júnior
Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil
 

Resumo
Discutem-se as contribuições de Edith Stein para compreensão da relação pessoa-comunidade. Adotando o método fenomenológico, a estrutura da pessoa humana – nas suas dimensões corpórea, psíquica e espiritual – é explicitada de forma orgânica e interdependente por Stein, reconhecendo a relação propriamente comunitária como elemento essencial no processo de formação pessoal. Comunidade vem considerada não apenas como agrupamento humano, mas estruturalmente como um tipo de relação interpessoal, marcada pelo posicionamento da pessoa a partir do uso da razão e liberdade. A comunidade é considerada em analogia à pessoa humana, sendo essencial para sua definição e para a apreensão de seus aspectos originais, o reconhecimento e o posicionamento das pessoas. A relação pessoa-comunidade é essencialmente uma relação de interdependência constitutiva, onde os aspectos ativo e passivo da pessoa e da comunidade são necessários no processo de tornarem-se si mesmas, o que só pode acontecer a partir de uma abertura recíproca.

Palavras-chave: relação pessoa e comunidade; Edith Stein; fenomenologia

Abstract
Focusing on the theoretic dichotomy of the relation person-community, this article discusses the contributions of Edith Stein regarding comprehension of this relation. Using the phenomenological method, the structure of the human person in its bodily, psychic e spiritual dimensions is explained in an organic and interdependent way, recognizing the communal relationship as an essential element in the process of personal formation. Community is considered not only as grouping together, but also as a structural type of interpersonal relation, marked by the positioning of the person based on the use of reason and freedom. Community is considered in analogy to the human person. The relation person-community is essentially a relation of constitutive interdependency, in which active and passive aspects of the person and community are necessary in the process of becoming themselves, which happens only if the starting point is a reciprocal opening.

 Keywords: Phenomenology; Edith Stein; relation person-community.

 

1) Introdução

O problema da relação pessoa-comunidade vem sendo discutido amplamente pela psicologia social, contudo, geralmente esta relação é reduzida a um caráter essencialmente conflitivo, por partir da consideração de entes separados que precisam se esforçar para se adequar um ao outro. Buscamos enfrentar este tema a partir de uma perspectiva relacional, enfatizando o aspecto interconstitutivo e interdependente da pessoa e da comunidade (1).

O conceito de indivíduo tem sido utilizado por vários autores para se referir à pessoa em seu contexto social, contudo esse conceito apresenta uma concepção de homem dividido de seu meio, sendo necessário um esforço para se integrar à sua realidade social ou se defender das exigências sociais que lhe são endereçadas (Álvaro e Garrido, 2003; Elias, 1994; Morin, 1996; Spink e Medrado, 1999; Lopes, 2002; Duarte, 2003; Mahfoud, 2005b). Por outro lado, o conceito de comunidade tem sido estudado de forma genérica, faltando elementos teóricos precisos para sua definição que o diferenciem de um grupo ou até mesmo de uma sociedade (Sawaia, 2000; Gomes, 1999; Montero, 2004). Existe uma dificuldade em descrever como a comunidade contribui para a constituição e formação dos indivíduos, apesar de vários estudos sobre as influências exercidas pela comunidade em sua formação.

A dicotomia pessoa-comunidade vem sendo enfrentada por autores a partir de uma perspectiva interacionista, buscando explicitar o caráter interdependente e dialético da pessoa e da comunidade. Dentro desta perspectiva, a fenomenologia oferece também suas contribuições partindo de um método que permite chegar às essências, apreendendo que pessoa e comunidade são ontologicamente interdependentes. O próprio conceito de pessoa possui na sua formulação teórica um caráter relacional ontológico, o que tem contribuído para que ele seja retomado por vários autores. Contudo, é necessário resgatar sua fundamentação filosófica e contextualizá-la no âmbito da psicologia e das ciências humanas.

Edith Stein, discípula de Edmund Husserl, apropriando-se do método fenomenológico, dedicou-se a pesquisas visando uma fundamentação filosófica da psicologia e das ciências do espírito, discutindo temas de antropologia filosófica e psicologia. No decorrer de sua obra, enfrentou diretamente o tema da pessoa e da comunidade, explicitando seus elementos essenciais e interconstitutivos de forma precisa e filosoficamente rigorosa. As contribuições desta autora estão sendo retomadas recentemente no âmbito da filosofia e da psicologia, por oferecerem respostas a um problema recentemente enfrentado sobre o tema da pessoa e comunidade (Ales Bello, 1998a, 1998b, 2000a, 2004a, 2004b, 2005; Mahfoud, 2005a, Mahfoud, 2005b; Manganaro, 2004; Safra, 2005).

O objetivo deste artigo é discutir os aspectos essenciais do ser pessoa e do ser comunidade, explicitando a estrutura relacional e interconstitutiva destes, na obra de Edith Stein.

Identificamos e selecionamos alguns textos filosóficos, nos quais a autora discute temas de antropologia filosófica que abordam o conceito de pessoa e seus aspectos constituintes (Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932-33/2000, 1930-32/1999i 1932/2001, 1942/1999a) e textos pedagógicos, nos quais a autora discute a concepção de educação, relação educativa e formação religiosa enquanto aspectos culturais que agem na dinâmica da formação da pessoa (Stein, 1926/1999q, 1928/1999l, 1929/1999f, 1930/1999c, 1930/1999e, 1930/1999o, 1931/1999b, 1932/1999g, 1932/1999h, 1932/1999j, 1932/1999k, 1932/1999m, 1932/1999p). Buscamos identificar e discutir os principais conceitos abordados pela autora referentes ao enfrentamento do tema relação pessoa e comunidade.

2) A estrutura ôntica da pessoa humana

O ponto de chegada da análise fenomenológica das vivências explicitou diferentes gêneros de vivências, remetendo a dimensões distintas da pessoa: corporeidade, psique e o espírito (Husserl, 1913/1992; Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932-33/2000, 1934-36/1996; Ales Bello, 2000a, 2004a). Estas análises foram realizadas primeiramente nas pesquisas de Husserl e, posteriormente, assumidas por Stein a partir de uma problematização própria (Husserl, 1913/1992; Stein, 1917/1998, 1922/1999n; Ales Bello, 2000a). Em suas análises, Stein apreende o ser humano como microcosmo, no sentido de compartilhar elementos estruturais típicos com os seres do reino vegetal e animal (Stein, 1932-33/2000).

Stein não se negou a adotar o termo “pessoa” em unidade com a história da filosofia, sobretudo com a filosofia medieval. Na filosofia moderna e contemporânea, para grande parte dos pensadores protestantes, o conhecimento produzido na Idade Média era considerado apenas como teologia, o que não se adequaria à concepção de ciência (Ales Bello, 2000b, 2004). Neste contexto, a filosofia elaborada na Idade Média era desconsiderada seja devido a preconceitos intelectuais, seja por um preconceito religioso dos filósofos. Através da leitura de Tomás, Stein chega à leitura aristotélica para compreender a filosofia da natureza. Assim, ela estabelece uma relação intrínseca entre a leitura aristotélico-tomista da natureza e do ser humano e a interpretação que os fenomenólogos, Husserl e Conrad-Martius, haviam proposto. Essa confrontação se realiza através da apropriação dos termos e dos conceitos aristotélico-tomista. Stein reconheceu na escolástica – sobretudo na obra de Tomas de Aquino com quem teve maior contato ao realizar a tradução das Quaestiones disputatae de Veritate para a língua alemã – vários elementos comuns descritivos do ser humano que ela e seu mestre Husserl também haviam chegado através do método fenomenológico (Ales Bello, 1998b, 1999b). Edith Stein passa a adotar em algumas de suas obras elementos e categorias filosóficas da escolástica que expressariam com precisão a unidade da pessoa humana, em harmonia com os resultados de suas primeiras pesquisas (Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932-33/2000, 1934-36/1996).

a) Corporeidade

Partindo da atitude fenomenológica, o primeiro elemento da pesquisa sobre a estrutura da pessoa é isto que temos diante dos olhos quando encontramos alguém na experiência vivida: a corporeidade. A pessoa se apresenta a nós com diversas características físicas que podem ser apreendidas em sua exterioridade (altura, peso, cor, etc.) o que significa que, em sua constituição corpórea, o ser humano pode ser considerado como “coisa material” (Stein, 1932-33/2000, p.67). Contudo, junto às qualidades sensíveis apreendidas na forma material identificada, percebemos também que o ser humano possui pontos de recepção nos quais colhe a realidade que está diante de si, assim como uma capacidade de se mover, isto é, responder de forma motora àqueles estímulos que o tocam, configurando-se como “ser sensível” e “ser animado” (Stein, 1932-33/2000; 1932/2001). A capacidade sensível se conecta ainda a estados atuais, onde percebemos que sua capacidade de movimento próprio está influenciada por impulsos internos.

O corpo não é apenas uma massa corpórea (Körper), mas um corpo vivente próprio (Lieb) (Stein, 1917/1998). Eu o percebo não apenas quando sou tocado por algo externo, mas também o percebo a partir de dentro, sinto o que lhe acontece e este se oferece a mim como um objeto que está sempre aqui, com uma estabilidade temporal e espacial que me permite reconhecer que a existência está vinculada diretamente a ele, de forma que não existiria um corpo próprio sem sujeito. O eu está sempre ligado ao corpo próprio e não seria possível desligar-me dele, exceto através da vivência da fantasia ou da recordação (Stein, 1922/1999n).

“O que é corporal nunca é somente corporal” (Stein, 1934-36/1996, p.383). A presença da corporeidade própria aponta para a existência de uma vida interior, de uma vida presente que anima e dirige o corpo, que pode o tomar como instrumento de expressão, de ação e de intervenção na realidade criando novos objetos intencionalmente (Stein, 1932-33/2000; 1932/2001). A corporeidade enquanto “órgão da vontade” ou como “órgão da expressão”, remete à unidade da pessoa (Stein, 1917/1998; 1932/2001).

Enquanto ser vivente, a pessoa possui um núcleo que anima e vivifica a corporeidade, ditando uma direção própria ao processo de desenvolvimento. Durante todo o curso do processo de crescimento identificamos uma série de “atividades” (alimentação, respiração, etc.) que servem como meios para atingir os objetivos do processo, mas também encontramos “estados mutáveis” (saúde, doença, vigor, fraqueza) que testemunham a presença de uma “força vital” presente no organismo e que influenciará de modo favorável ou inibitório o processo de desenvolvimento e as vivências da pessoa (Stein, 1932/2001).

A corporeidade pode estar presente de maneira impessoal, no sentido de que as sensações advindas dos sentidos não despertam na pessoa nenhum movimento espiritual de compreensão ou de apreensão de significado (Stein, 1934-36/1996). Entretanto, pode também estar presente de maneira pessoal, onde cada movimento pode ser assumido livre e intencionalmente, constituindo atos pessoais em referência a meu corpo próprio, vivenciado como instrumento meu. Desta forma, “o eu humano não é somente um eu puro, nem unicamente um eu espiritual, mas também um eu corporal” (Stein, 1934-36/1996, p.383).

b) Psique

Considerando a análise da corporeidade, identificamos uma interioridade juntamente com a materialidade do corpo próprio; esta interioridade implica uma unidade de um sujeito psicofísico, constituído de corpo e alma (Stein, 1932/2001) (2). Edith Stein utiliza o conceito de alma para se referir à estrutura da psique específica da pessoa humana. Na pessoa humana, a psique é apreendida estruturalmente como uma psique unida e modificada pelo espírito e, ao mesmo tempo, estritamente vinculada à corporeidade. O termo espírito, no contexto citado, refere-se ao que Stein (1922/1999n, 1932-33/2000) identifica como atividade do eu que atualiza as capacidades de se voltar para algo – seja para os objetos externos do mundo natural ou cultural, seja para os objetos interiores, constituídos das vivências da pessoa – de maneira consciente e livre, apreendendo e elaborando o significado das vivências e se posicionando voluntariamente diante destas. As vivências próprias da psique estão simultaneamente influenciadas pela vida espiritual, pela qual a pessoa colhe o significado dos objetos apreendidos, e pela corporeidade que influencia, através do estado vital e da intensidade da força vital sensível, a tensão própria como a pessoa apreende os objetos e se posiciona espontaneamente diante deles.

Para compreender a estrutura da psique, é necessário diferenciá-la da consciência. Por consciência, Stein (1922/1999n) entende a unidade do fluxo de vivências de um eu puro, que dispensa uma existência real e concreta por referir-se a algo que é estrutural no ser humano. Por outro lado, a psique significa uma realidade existente no mundo, dotada de qualidades identificadas em um eu real e concreto, empiricamente existente (Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932/2001). Apesar de podermos identificar vivências puras, no caso de estados vividos pelo eu em sua consciência, podemos nos referir simultaneamente a vivências psíquicas da pessoa em suas características concretas – podemos estudar a essência da tristeza enquanto sentimento ou a tristeza que agora sinto (Stein, 1932/2001). Isto significa reconhecer que em cada vivência empírica de uma pessoa, simultaneamente, se mostra algo de estrutural da pessoa humana, uma potencialidade vivencial comum que ela compartilha com outros sujeitos que podem ou não atualizá-la.

A psique pode ser compreendida como a dimensão da interioridade que se expressa na corporeidade e como expressão dos atos espirituais que podem direcionar as vivências propriamente psíquicas (Stein, 1922/1999n). Aquilo que é propriamente psíquico na pessoa, pode ser ainda identificado como estados e qualidades de um eu real, que se manifestam em diferentes vivências ou se constituem como vivências propriamente fundantes. Como vivências fundantes, Stein considera aquelas que podem servir de fundamento para vivências próprias da dimensão espiritual, onde podemos identificar um sentimento específico e se colocar a refletir sobre seu significado, elaborando um juízo e posicionando-se diante dele.

A psique possui uma existência concreta, uma duração determinada no tempo e, embora sua extensão espacial não possa ser definida com precisão, está vinculada ao corpo próprio vivente. Enquanto ente, também está submetida a leis de causalidade e sofre influências do mundo externo e do ambiente direto com o qual a pessoa está em contato imediato (Stein, 1932/2001). Edith Stein fala de valores objetivos e subjetivos quando apreende que no contato com a realidade das pessoas ou coisas, estes provocam em nós uma reação espontânea (prazer, desprazer) que remete a um significado valorativo (útil, perigoso) constitutivo e característico do próprio objeto ou próprio de uma pessoa. Stein (1922/1999n) retoma o conceito de hilética, para referir-se aos elementos significativos que o próprio objeto carrega e nos apresenta quando se mostra a nós. (3)

A psique apresenta qualidades específicas em cada pessoa, qualidades estas que podem ser tipificadas como sensíveis (como uma visão ou da audição apurada) e espirituais (como uma inteligência bem desenvolvida ou uma força de vontade persistente) (Stein, 1922/1999n). Desta forma, falamos em caráter da pessoa e de seu “tipo”. O que permite identificar e descrever o caráter de uma pessoa não é apenas sua capacidade de responder às normas sociais morais e éticas. O caráter refere-se à forma como a pessoa, em sua unidade, está diante do mundo dos valores (estéticos, éticos, religiosos, etc.) e responde a eles. É pelo relacionamento da pessoa com sua realidade e pela sua capacidade de identificar o significado valorativo objetivo da realidade é que teremos elementos para conhecer verdadeiramente alguém; em outros termos implica também observá-la em ação.

O âmbito autêntico do caráter é aquele da vida afetiva e da vontade. O caráter é a capacidade de sentir e o impulso com o qual este sentir se transforma em vontade e ação. (...) O caráter é abertura (eventualmente até mesmo um fechamento) ao âmbito dos valores e o modo com que se mobiliza para a realização deles (Stein, 1932/2001, p.175).

As qualidades psíquicas de uma pessoa podem ser agrupadas em sua totalidade e reconhecidas como um caráter pessoal. Estas qualidades determinarão um espectro de respostas que a pessoa pode emitir diante dos estímulos que a realidade lhe propõe, de forma mais adequada ou menos adequada ao significado expresso e à reação correspondente a este significado (Stein, 1922/1999n). Mesmo reconhecendo que as qualidades psíquicas podem ser identificas como pertencente a um tipo específico de caráter, podemos ainda reconhecer na experiência vivida uma “nota individual” ou uma “peculiaridade pessoal” com que a pessoa se posiciona diante da realidade. A pessoa não se reduz a um tipo psicológico, mas apresenta aspectos individuais e particularidades. Muitas destas qualidades foram desenvolvidas através de um treinamento ou de circunstâncias ambientais que formaram e contribuíram para o surgimento e aperfeiçoamento destas qualidades. Contudo, se estas qualidades foram treinadas é porque já estavam aí de alguma maneira, de forma que não poderíamos desenvolver uma qualidade que não existisse já no organismo.

A predisposição originária do caráter, ou a essência da pessoa, revela-se a nós como este núcleo central da personalidade que acompanha a pessoa desde sua origem e vai sendo desdobrado e manifesto no decorrer do processo de desenvolvimento (Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932/2001). Este núcleo não se desenvolve, pelo contrário, imprime sua marca a todo o desenvolvimento da pessoa em sua corporeidade, em suas qualidades psíquicas e espirituais, conferindo um horizonte de possibilidades e de limites para o desenvolvimento pessoal. “Para uma pessoa não é possível qualquer processo evolutivo, a sua ‘essência’ ou ‘núcleo’ põe um limite à sua capacidade de mudança” (Stein, 1932/2001, p.182).

Reconhecer uma disposição originária não significa adotar uma concepção de homem que se resuma a uma pré-destinação ou a um fatalismo de qualidades características. Ao contrário, por ser constituída de uma dimensão espiritual, a liberdade e a responsabilidade da pessoa exerce uma ação imprescindível no processo de desenvolvimento vital, bem como as condições ambientais a que ela está submetida (a forma como vêm sendo nutrida em suas necessidades corpóreas, psíquicas e espirituais). A pessoa pode exercer uma influência através de atos livres onde se posiciona diante destas qualidades originárias, exercitando aquelas que deseja desenvolver e inibindo aquelas que deseja excluir. Trata-se de um processo de autoformação onde as virtudes e vícios vão configurando-se como qualidades do caráter e atuarão na maneira da pessoa se colocar diante da sua realidade empírica (Stein, 1932/1999m). Surge deste fundamento a possibilidade da pessoa ser si mesma e desenvolver uma personalidade unitária e própria, ou uma personalidade fragmentada e constituída de várias qualidades desarmônicas e até impessoais ao assumir modelos externos que não correspondam à sua natureza própria (Stein, 1922/1999n, 1932-33/2000, 1932/2001).

c) Espírito

Já ao final de sua pesquisa sobre o problema da empatia, Stein (1917/1998) identifica que no homem existe um eu que apreende a realidade e seus significados, acolhendo em si os valores e significados dos dados que lhe são oferecidos na experiência pela sua realidade, reconhece-se nele um sujeito espiritual como correlato deste mundo espiritual (Stein, 1917/1998, 1922/1999n, 1932-33/2000, 1932/2001).

Reconhecer a dimensão espiritual da pessoa significa apreender o espírito como um “emergir de si mesmo” e uma “abertura para” o mundo objetivo das coisas da natureza, para o mundo subjetivo da experiência dos outros seres humanos ou do ser divino (Stein, 1922/1999n, 1934-36/1996). A dimensão espiritual da pessoa implica a possibilidade estrutural de abertura para o outro, para as coisas e para si mesma, num processo de apreensão que remete à presença da razão. Através da razão, a pessoa organiza suas impressões e sensações vivenciadas ao encontrar com a realidade, identificando e elaborando seu sentido. É pelo sentido que a pessoa conhece a realidade, acolhendo-o e elaborando-o, pode emitir um juízo sobre si mesma e sobre a realidade. A “possibilidade” reflexão, juízo, implica reconhecer a liberdade e a vontade como elementos essenciais da pessoa humana, uma vez que ela pode atualizar ou não estas potências (Stein, 1932-33/2000).

A vida espiritual é o campo mais autêntico da liberdade, onde a pessoa toma iniciativa de se posicionar diante da realidade que lhe é oferecida, expressando-se e atuando de forma criativa (Stein, 1934-36/1996). Através dos atos livres como a decisão, a aceitação ou rejeição de um pensamento ou impulso, a pessoa confere uma direção definida à suas ações, podendo entregar-se a um certo conteúdo da experiência e dirigir a sua vida rumo a um propósito.

A abertura da pessoa não é apenas para o mundo exterior das coisas e dos outros, mas também para o seu mundo interior, para sua vida consciente e para os conteúdos valorativos que ela acolhe em si (Stein, 1934-36/1996). Voltar-se para si mesma, possibilita um reconhecimento dos aspectos essenciais da sua pessoa, suas necessidades e exigências, de forma que ela pode se envolver ativamente no seu processo formativo e conferir um propósito para suas ações.

A vida espiritual está essencialmente vinculada aos estados psíquicos (força vital psíquica) e aos estados sensíveis da corporeidade (força vital sensível). Ao mesmo tempo que vem por estes alimentada, exerce uma influência sobre estes através da força vital espiritual (Stein, 1922/1999n). A força vital espiritual tem sua fonte nos valores objetivos (mundo cultural) e nos valores subjetivos (influxo recebido da tomada de posição dos outros em relação a si), alimenta toda a dinâmica vivencial através dos propósitos, das tomadas de posição voluntária e das ações livres.

Stein (1917/1998, 1922/1999n) ressalta ainda que, na liberdade da vida espiritual, os atos não estão um ao lado do outro sem nenhuma relação entre eles, mas estão submetidos às leis da razão, sendo a motivação o princípio que rege os atos do espírito. Existe um brotar de uma vivência à outra, um fluir das vivências do eu de um ato ao outro revelando um nexo significativo. Por exemplo,

um sentimento, segundo seu significado, motiva uma expressão, e este significado delimita um âmbito de possibilidades expressivas, assim como o sentido de uma parte da proposição delimita a integração de possibilidades (seja formais, seja materiais) (Stein, 1917/1998, p.202).

A pessoa vivencia sua unidade com sua corporeidade e psique através do espírito. Os valores e significados apreendidos pelo espírito provocam uma tomada de posição espontânea através dos sentimentos (dimensão psíquica) e, reconhecendo-os, a pessoa pode agir de forma concreta posicionando-se ou atuando no seu ambiente e adotando o corpo próprio como instrumento do espírito. Agindo assim, a pessoa pode viver a partir do seu centro, configurando sua personalidade e assumindo uma autêntica existência (Stein, 1922/1999n).

Quando me dedico a apreciar uma determinada paisagem, conforme exemplo utilizado por Stein, na medida em que estou vivenciando esta atividade, me dou conta que simultaneamente estou exposto a vários estímulos externos e internos. Enquanto aprecio a paisagem, uma preocupação pode estar presente ali, na minha vivência, mesmo que eu não esteja voltado prioritariamente para ela, devido ao propósito de me permitir a apreciar a beleza da paisagem. Se considerarmos que a preocupação se refere a um problema muito importante, posso me voltar a esta que ocupa um lugar mais “profundo” e “central” na minha experiência ou me voltar à apreciação da paisagem, o que em relação à primeira ocupa um lugar mais na “superfície” da minha alma (Stein, 1932-33/2000). Daquele “centro” da minha pessoa, reconhecido nas vivências centrais, estes conteúdos provocam um impulso para serem considerados e priorizados pela pessoa, embora o eu possa acolher ou rejeitar este impulso. Quando a pessoa está atenta a estes conteúdos que emergem de seu centro, ela pode se sentir mais integrada e em paz, porque vive por inteiro a si mesma e deste lugar central pode acolher as impressões que recebe do mundo exterior ou interior e se posicionar voluntariamente diante delas.

Somente daqui pode tomar decisões em plena consciência, daqui pode empenhar-se em qualquer coisa, pode sacrificar-se e doar a si mesma. Estes são todos atos da pessoa (Stein, 1932-33/2000, p. 132).

A pessoa que vive a partir deste centro, vivencia a si mesma de forma mais integrada e experimenta a liberdade, no sentido de poder escolher de forma pessoal como se posicionar diante da realidade. A pessoa pode, de maneira livre e consciente, buscar este centro e viver a partir dele ou se guiar por vivências superficiais. O fruto desta escolha determinará o tipo de caráter da pessoa que será expresso em todos seus atos.

O homem é chamado a viver em seu íntimo e, conseqüentemente, a governar-se a si próprio, o que só é possível nesse ponto de apoio. Somente assim poderá decidir a assumir um lugar conveniente frente ao mundo. Entretanto, o homem jamais conseguirá explorar totalmente seu íntimo, este é um segredo de Deus que só ele pode desvendar conforme lhe aprouver (Stein, 1942/1999a, p.134).

d) Unidade da pessoa humana

Quando nos deparamos com uma pessoa, imediatamente a reconhecemos como uma unidade e uma organicidade própria de um ser humano (Stein, 1917/1998, 1932-33/2000, Ales Bello, 2004a). A corporeidade, a psique e o espírito não são dimensões seccionadas da pessoa onde precisaríamos nos esforçar para configurar-lhes uma unidade, seja no reconhecimento do outro ou de si mesmo. Colhemos a pessoa em sua unidade e isto caracteriza algo de essencial desta. Portanto, como podemos apreender a unidade de corpo vivente, psique e espírito?

Ao considerar o fluxo de vivências de uma pessoa, identificamos que existe um condicionamento recíproco entre as vivências das dimensões psíquicas, corpóreas e espirituais. Por exemplo, diante de algo que provoca um sentimento de medo, a pessoa identifica em si reações corpóreas – por exemplo, aceleração do ritmo cardíaco, aumento de sudorese – e através de uma elaboração destas reações e do sentimento identificado, pode emitir um juízo que servirá de motivação para uma tomada de decisão – por exemplo, sair correndo (Stein, 1917/1998, 1922/1999n). Identificamos uma conexão dinâmica entre as vivências, onde uma prescreve as possibilidades definidas de surgimento de uma vivência seguinte.

A unidade da pessoa também pode ser identificada pela maneira como a força vital condiciona a tensão própria das vivências (Stein, 1922/1999n, 1932-33/2000). A força vital sensível e a força vital espiritual são apreendidas na vivência pessoal como interdependentes, embora não determinem mecanicamente as decisões – mesmo cansado, o eu pode se propor de fazer um esforço maior para ler um texto que seja importante naquele momento, retomando o exemplo anterior. Um aumento seja da força vital sensível, seja da força vital espiritual, pode provocar um estímulo e um revigoramento da pessoa e contribuir, através do mesmo processo de condicionamento recíproco, a uma maior disposição ou empenho em relação às atividades ou vivências (1922/1999n).

Identificamos ainda a unidade da pessoa através dos seus traços de caráter, onde podemos perceber uma maneira pessoal e singular de se expressar, de acolher e reagir espontaneamente a certos estímulos, de criar obras culturais, que apontam para uma estabilidade das características e uma unidade entre as vivências. Através da observação de diversas vivências, mesmo em diferentes momentos biográficos, podemos reconhecer traços que são permanentes e estáveis e que é considerado como a “essência da pessoa” ou “núcleo pessoal” (Stein, 1932/2001).

A unidade da pessoa, apreendida através de suas vivências e do condicionamento recíproco das dimensões, constitui uma característica essencial do ser humano.

3) A formação da pessoa: o processo de tornar-se si mesma

Quando falamos em formação, pensamos sempre em formar algo a partir de uma imagem ou projeto a priori. Na pessoa, a matéria a ser formada não consiste em uma matéria inerte que está exposta à modelação e formatação a partir do exterior (como a argila), mas constitui-se como uma matéria viva que já está em processo de formação desde o início de seu desenvolvimento (Stein, 1930/1999o). Na pessoa, a alma humana carrega em si uma força para o desenvolvimento numa determinada direção, na direção de uma certa estrutura que é a personalidade madura com suas características claramente definidas (Stein, 1930/1999o, 1930/1999c, 1932/1999m; Mahfoud, 2005b). A corporeidade, a psique e o espírito estão submetidas a este processo e a pessoa não pode se tornar qualquer coisa, senão aquilo que de alguma forma já se encontre inscrito em seu ser pessoal. No seu processo de formação, a pessoa não é considerada apenas na sua dimensão passiva de acolher aquilo que lhe é oferecido exteriormente, nem tem sua atividade reduzida apenas a uma reatividade, mas elabora os materiais que acolhe em si do mundo externo, pode escolher o horizonte cultural do ambiente que a forma e até mesmo agir na direção de mudar este ambiente que para ela é formador (Mahfoud, 2005b). Tratando-se da pessoa, as múltiplas forças que agem no seu processo formativo são constituídas daquela interior, referente à sua alma intelectiva, e daquelas exteriores, referente ao seu mundo cultural onde acolhe obras e valores – criados também pela ação construtiva da pessoa mesma (Stein, 1930/1999o, 1930/1999c, 1932/1999m, 1932-33/2000).

O material a ser moldado é constituído de um lado pelas aptidões físicas e psíquicas com que o ser humano nasce, pelo material que lhe é constantemente acrescentado de fora e que deve ser assimilado pelo organismo. O corpo retira este material do mundo físico, a alma do ambiente espiritual, do mundo das pessoas e dos bens que deve alimentar-se (Stein, 1930/1999c, p.137).

A pessoa necessita ser nutrida em seu desenvolvimento de materiais que alimentem seu corpo e sua alma. Este processo tanto pode ocorrer de forma espontânea, pelo simples contato com o ambiente, ou de uma forma planejada, através de pessoas que disponibilizem voluntariamente os materiais à outra que está sendo formada. A recepção deste material pode acontecer de forma passiva ou ativa, de acordo com o grau em que a pessoa que recebe estes materiais processa ou elabora intelectualmente os elementos que lhe são oferecidos pelo ambiente cultural e se empenha na construção do ambiente sócio-cultural que ela deseja que a forme (Stein, 1930/1999c; Mahfoud, 2005b). No processo de formação da pessoa, a liberdade pode ainda possibilitar um trabalho pessoal no sentido de que a pessoa pode acionar os materiais externos necessários para sua formação, incentivar ou inibir impulsos e traços de caráter pessoais, abrir-se ou recusar as influências formadoras oferecidas pelas outras pessoas (Stein, 1930/1999c). A presença da liberdade e da possibilidade da auto-formação não significa que toda a formação seja uma auto-educação, isto porque apesar da presença da liberdade possibilitar uma elaboração pessoal de conteúdos e propósitos, estes conteúdos são acolhidos a partir do exterior, do relacionamento com o mundo cultural.

A liberdade e a razão são fatores centrais no processo de formação. Na alma humana estão presentes uma potencialidade, uma habitualidade e uma atualidade (Stein, 1932-33/2000). Potencialmente, a pessoa é capaz de desenvolver uma série de aptidões que carrega em si adormecidas. O exercício destas aptidões vai moldando a pessoa, de forma que cada decisão tomada, cria uma disposição a decidir novamente no mesmo sentido. Este círculo virtuoso desenvolve na pessoa um determinado caráter que pode ser mais ou menos adequado às potencialidades originais. Contudo, é diante da realidade que estas decisões surgem, diante das provocações advindas da realidade e do posicionamento dos outros em relação a mim, que surgem os motivos pelos quais eu tomo minhas decisões pessoais.

O ser humano, na sua totalidade, vem plasmado mediante a vida atual do eu e constitui “matéria” para a formação através da atividade do eu. Propriamente aqui estamos diante do si, que pode e deve ser formado pelo eu. Isto pelo qual me decido em cada momento, define não só a estrutura da vida atual presente, mas é importante para isto que eu, ser humano na minha própria inteireza, torno-me (Stein, 1932-33/2000, pp.128-129).

A comunidade participa desde o início do processo de formação da pessoa (Stein, 1930/1999c). Inicialmente, através da comunidade da família, as primeiras necessidades físicas e espirituais são respondidas e as condições de desenvolvimento são garantidas. Gradativamente, a pessoa vai se introduzindo em outras comunidades e vendo despertar em si uma série de aptidões que ainda poderiam permanecer adormecidas (Stein, 1922/1999n). As vivências propriamente comunitárias agem na direção de possibilitar a apreensão de significados e valores compartilhados, suscitar propósitos que motivarão as ações concretas da pessoa e de seu posicionamento diante dos outros, até mesmo criando obras culturais fortalecendo a vida da comunidade que por sua vez influenciará de modo mais efetivo seu processo de formação pessoal. Existem certas características que só podem ser desenvolvidas na pessoa através de uma convivência comunitária, como a humildade ou orgulho, altruísmo ou ambição.

A formação humana não se dá de maneira aleatória, nasce de uma forma interior que carrega em si disposições originárias e se dirige para uma forma ideal ou um modelo a ser seguido, que tanto pode ser adotado livremente e perseguido como um ideal ou proposto exteriormente (Stein, 1932-33/2000). Adotar um modelo externo e se dedicar à sua simples imitação implica riscos, sobretudo, de uma existência impessoal e de reproduzir uma personalidade que não lhe é própria, mas anexada de forma alienante. O ideal educativo deve considerar a natureza própria da pessoa, harmonicamente desenvolver as potencialidades positivas e inibir aquelas que podem ser desfavoráveis ao tornar-se si mesmo.

4) A estrutura ôntica da comunidade

A comunidade pode ser identificada objetivamente como uma forma de agrupamento social como são as famílias, os povos, as comunidades científicas, religiosas, etc. Entretanto, Stein (1922/1999n, 1930-32/2000) realiza suas pesquisas acerca da comunidade partindo da experiência da pessoa, identificando aquelas vivências consideradas como propriamente comunitárias. Assim, a definição do tipo de agrupamento social que está sendo observado, somente pode ser identificado através da análise do tipo de vivências do indivíduo em relação aos outros. Portanto, a forma como as vivências são compartilhadas, acolhidas, manipuladas, definirá um caráter típico do agrupamento social identificado como comunidade, sociedade ou massa (Stein, 1922/1999n, 1925/1993, 1932-33/2000).

 

Ao iniciar suas pesquisas a partir da análise das suas vivências pessoais, Stein (1917/1998, 1922/1999n) apreende que a dimensão social, a dimensão intersubjetiva, é constitutiva da estrutura da pessoa humana. Contudo, a pessoa não é absorvida na vida da comunidade, sua particularidade não só é preservada na vida da comunidade, mas é necessária para a configuração da personalidade e do caráter próprio desta última (Ales Bello, 2000a). Mesmo identificados traços tipicamente comunitários na pessoa, traços de caráter semelhantes aos demais membros, ainda assim ela pode preservar sua peculiaridade individual (Stein, 1922/1999n, 1932-33/2000).

A experiência de uma pessoa, enquanto membro de uma comunidade, é o objeto de estudo através do qual Stein (1922/1999n) inicia sua pesquisa sobre a estrutura da vida comunitária. A comunidade não é observada no seu aspecto objetivo como forma social, mas é olhada por dentro a partir daqueles aspectos constitutivos formados pelas experiências de seus membros. Realizando uma análise das vivências de uma pessoa, verificamos que existem algumas vivências que são consideradas como “individuais”, que se referem apenas a um significado pessoal e que não entram na constituição das vivências comunitárias; e outras vivências consideradas como “supraindividuais” que se referem àqueles tipos de vivências que entram na constituição das vivências propriamente comunitárias. 

Façamos o seguinte exemplo: a tropa da qual faço parte é afligida pela perda do seu comandante. Se confrontarmos esta dor com aquela que sinto pela perda de uma pessoa amiga, vemos que os dois casos se distinguem por muitos aspectos: 1) o sujeito do viver é diferente; 2) a estrutura da vivência é diferente; 3) o fluxo na qual a vivência se insere é de gênero diverso (Stein, 1922/1999n, p.163).

a) O sujeito da vivência comunitária

Podemos considerar a especificidade das vivências propriamente comunitárias analisando quem é o sujeito destas vivências. Tratando-se de uma vivência comunitária, o sujeito desta vivência é um “nós”, ou seja, “nós sentimos a tristeza da perda do comandante”. A tristeza que sinto é sentida por mim, contudo, não é apenas minha a tristeza, mas nossa a tristeza compartilhada de perder o comandante (Stein, 1922/1999n). Eu – enquanto sujeito desta vivência – participo como membro da comunidade, desta tristeza da comunidade dos soldados; eu sinto em nome do grupo e posso identificar nos outros membros uma “mesma” vivência de perda. O sujeito da vivência comunitária vive através de nós, atualiza-se em minhas vivências. No entanto, este nós que é sujeito da vivência comunitária não é constituído apenas por aqueles membros da comunidade que sentem a tristeza num mesmo momento e da mesma maneira, mas todos aqueles que estão incluídos na unidade do grupo e que vivenciaram antes de mim, estão vivenciando ou vivenciarão a tristeza referida ao mesmo significado comum (Stein, 1922/1999n). A vivência comunitária implica um reconhecimento de uma experiência de “nós”, uma experiência de pertença.

b) A estrutura da vivência comunitária

Continuando no exemplo de Stein, podemos analisar a estrutura típica da vivência comunitária. Stein (1922/1999n) discute que toda vivência apresenta alguns elementos que são estruturais: a) o conteúdo da vivência, que pode ser considerado como egológico ou não-egológico; b) o vivenciar o conteúdo, que se refere à captação do conteúdo pelo sujeito; c) a consciência deste vivenciar que acompanha a intensidade da vivência.

 

O conteúdo da vivência comunitária é um núcleo de sentido comum que as diversas pessoas da comunidade visarão como objeto de suas vivências (Stein, 1922/1999n). Podemos falar de uma “mesma” tristeza da comunidade dos soldados porque todos estão voltados para o mesmo correlato de sentido, ou seja, à perda de uma pessoa importante para a tropa.

 

Cada membro pode vivenciar o conteúdo de modo específico quanto à continuidade, profundidade ou intensidade (Stein, 1922/1999n). Apesar de identificarmos as variações na forma como as pessoas vivenciam o núcleo comum, estas vivências remetem sempre a um núcleo de significado comum resguardando sempre sua tipicidade comunitária embora haja diferença na forma de vivenciar. É isto que nos permite afirmar que alguns tipos específicos de vivências podem ser consideradas simultaneamente como individual e comunitária. Individual porque é um Eu quem vivencia segundo sua coloração específica, e comunitária devido ao correlato significativo comum.

Considerando o terceiro aspecto característico das vivências puramente comunitárias, a consciência do vivenciar, não identificamos na comunidade uma consciência própria. Se por um lado, conseguimos identificar um conteúdo supraindividual e um vivenciar supraindividual, por outro lado, não podemos falar de uma consciência supraindividual (Stein, 1922/1999n). A vida consciente da comunidade só pode nascer de um eu individual e é apenas na medida em que as pessoas membros da comunidade tomam consciência das suas vivências comunitárias é que a comunidade torna-se consciente da sua vida. A comunidade não vive, sente e age por si, mas o faz de forma pessoal através dos seus membros.

c) O fluxo de vivências comunitárias

Retomando o terceiro aspecto assinalado por Stein, no exemplo citado anteriormente, identificamos uma especificidade no que se refere ao gênero do fluxo de vivências propriamente comunitárias.

A tal fluxo pertencem todas as vivências constituídas através das vivências individuais, dos quais correlatos são objetos supraindividuais – coisas ou valores, objetos empíricos ou ideais -, todas as tomadas de posição da comunidade referentes ao seu mundo de objetos e todas as vivências apenas interiores – isto é, não referidas a um objeto externo – comuns a uma multiplicidade de sujeitos (Stein, 1922/1999n, p.191).

Retomando o terceiro aspecto assinalado por Stein (1922/1999n), no exemplo citado anteriormente, identificamos uma especificidade no que se refere ao gênero do fluxo de vivências propriamente comunitárias: (a) o fluxo é constituído por todas vivências individuais que possuem um correlato supraindividual, isto é, o fluxo é constituído pelas vivências das pessoas membros da comunidade na medida em que visam o núcleo de significado comum, ao mesmo tempo em que inserem sua singularidade; (b) no fluxo de vivência da comunidade estão “todas” as tomadas de posição da comunidade referentes ao seu mundo, de forma que este fluxo congrega não só a diversidade do posicionamento dos seus membros, como também uma diversidade que é acumulada no tempo através da tradição que ultrapassa a temporalidade da vida individual; (c) o fluxo de vivências comunitárias abarca as “vivências interiores comuns”, ou seja, além de implicar um voltar-se para o externo – objetos supraindividuais e uma tomada de posição em relação a estes objetos – ocorre  um voltar-se dos membros uns para os outros, uma tomada de posição espontânea e voluntária entre as pessoas que constituem a unidade da comunidade.

A vivência comunitária é constituída pelo posicionamento pessoal dos membros que compõe a comunidade. O tipo posicionamento pessoal que constitui as vivências comunitárias pode variar de acordo com o modo em que a pessoa disponibiliza e compartilha suas vivências individuais, influenciando não só a especificidade das vivências comunitárias, mas a própria característica da comunidade (Stein, 1922/1999n). A pessoa pode tanto compartilhar o significado de seus posicionamentos espontâneos, isto é, o núcleo de sentido apreendido nos sentimentos que nela são despertados ao encontrar com a realidade, mas também seu posicionamento voluntário, onde toma decisões a partir de motivos comuns ou pela maneira como se posiciona em relação aos outros membros.

5) Comunidade, sociedade e massa: elementos essenciais para definição

Stein (1922/1999n; 1932-33/2000) discute um tipo de vivência que está na base da constituição das relações sociais denominada atos sociais. A comunidade é considerada como uma estrutura orgânica onde seus membros vivem uma interdependência e são afetados pela tomada de posição que cada pessoa adota na comunidade através dos ‘atos sociais’ (Stein, 1922/1999n). Esta tomada de posição das pessoas diante dos outros, membros da comunidade, pode ser considerada como positiva (amor, amizade, reconhecimento) ou negativa (ódio, inimizade, antipatia), de acordo com os efeitos que produzem para a construção ou degradação dos relacionamentos interpessoais concretos. Existe um reconhecimento mútuo e uma abertura recíproca, uma postura dialógica no sentido buberiano de Eu-Tu (Buber, 1923/2004). As pessoas vivem uma totalidade, uma vida comum e alimentando-se de motivos comuns, podem também se posicionar comunitariamente agindo e criando uma cultura compartilhada. Stein identifica no ato de solidariedade, um posicionamento de abertura diante do outro que é considerado como fundamental para a comunidade, por solicitar uma responsabilidade comum. A solidariedade se efetua 

...onde os indivíduos estão abertos uns aos outros, onde as tomadas de posição de um não ficam sem efeito sobre o outro, mas estimulam e desenvolvem a própria eficácia: nisso consiste a vida comunitária; assim sendo, ambos os membros são uma totalidade e sem este relacionamento recíproco a comunidade não é possível (Stein, 1922/1999n, p.232).

 

Stein (1922/1999n, 1925/1993) identifica que é próprio da estrutura da sociedade que as pessoas se relacionem em função de objetivos previamente definidos. Neste tipo de relação, a pessoa considera a outra como um objeto devido ao caráter mecânico e puramente racional da sociedade, cada um considera a si mesmo e ao outro como um meio para se atingir um objetivo no qual a sociedade inteira se submete. Cada pessoa é avaliada por sua capacidade de contribuir para realização dos fins que a sociedade propõe, fins que podem ser nobres ou vulgares. Identificar qual a função que uma pessoa poderia melhor desempenhar numa sociedade, pressupõe uma vida vivida em conjunto. Contudo, para que o sujeito possa ser considerado e tomado como objeto, a sociedade deve considerá-lo, pelo menos inicialmente, como sujeito. Dessa forma, Stein (1922/1999n) afirma que a sociedade não poderia existir sem ser, até um certo ponto, uma comunidade.

 

A massa, enquanto agrupamento social, apresenta através de seus membros uma atitude diferente a respeito das pessoas que constituem uma comunidade ou uma sociedade. Os indivíduos que estão juntos no interior da massa não se colocam um frente ao outro tratando-se como sujeitos, nem observam-se mutuamente como objetos a serem utilizados para um fim comum, não sacrificam-se um pelo outro, nem buscam uma unidade de compreensão (Stein, 1922/1999n). “A massa é uma conexão de indivíduos que se comportam com uniformidade” (Stein, 1922/1999n, p.259). A massa é fundada sobre a excitabilidade da psique individual e dessa excitabilidade surgirá diferentes formas de contágio psíquico. O relacionamento das pessoas na massa não implica liberdade de posicionamento pessoal, mas uma postura reativa pautada na excitabilidade comum e no entusiasmo. Prescindindo de um posicionamento pessoal e do uso de atividades espirituais superiores, como a reflexão, o indivíduo que vive na massa necessita de um guia que lhe aponte o que fazer e lhe transmita as idéias dominantes. Na massa os indivíduos podem cumprir ações construtivas ou destrutivas, amigáveis ou baseadas na rivalidade e na agressividade, contudo, nenhuma destas nasce de uma unidade interior mas de um entusiasmo comum despertado pelas idéias dominantes.

Vale ressaltar que seria muito difícil encontrar uma comunidade pura ou uma sociedade pura, senão até mesmo impossível (Stein, 1922/1999n). No geral, encontramos “formas mistas” de associação, o que significa que em uma associação social empírica podemos encontrar tanto elementos típicos da comunidade quanto elementos típicos de uma vida de sociedade, coexistindo simultaneamente. Por exemplo, podemos analisar uma classe escolar e identificar elementos próprios de uma relação de comunidade e, simultaneamente, identificar os traços essenciais de uma relação de sociedade.

6) Comunidade como analogia da personalidade individual

Na sua principal obra onde é discutida a estrutura ôntica da comunidade, Psicologia e ciências do espírito: contribuições para uma fundamentação filosófica, Stein (1922/1999n) apreende na comunidade os mesmos elementos constitutivos da estrutura da pessoa humana – força vital sensível e espiritual, psique, caráter, personalidade, alma – para discutir os elementos constitutivos da estrutura da comunidade. Dessa forma, podemos identificar elementos estruturais que são identificados na vida de qualquer comunidade, o que possibilita uma apreensão não apenas dos elementos universais constitutivos da comunidade, mas também critérios para explicitar as diferenças culturais e históricas de cada comunidade apreendida empiricamente.

a) Força vital da comunidade

A força vital da comunidade pode ser reconhecida no percurso histórico que uma dada comunidade faz no decorrer de sua existência. Considerando que existem períodos de crescimento da comunidade, de ápice da vida comunitária identificada nas produções culturais, de declínio da comunidade e até da morte da comunidade, verificamos que se trata de um aumento ou diminuição da força vital que produz efeitos na formação de suas capacidades de ação e de definição de seu caráter próprio (Stein, 1922/1999n, 1932-33/2000). No percurso histórico da vida de uma comunidade, a força vital não se desenvolve de forma linear, mas através de oscilações decorrentes do esgotamento de suas forças e da renovação destas através de fontes subjetivas e objetivas.

 

A força vital da comunidade também pode ser diferenciada entre força sensível – física ou psíquica – e força espiritual (Stein, 1922/1999n). Na vida da comunidade acontece um aumento de forças que podem não ser necessariamente considerada como uma manifestação espiritual da comunidade, como acontece quando se dá um crescimento do número de membros da comunidade, podendo ser considerado como um fenômeno físico. A força vital pode ser identificada também em expressões psíquicas seja através de impulsos sensíveis, como por exemplo uma tendência expansionista, seja através de aumento da receptividade para impressões sensíveis, como um estado de alerta devido a um sentimento de ameaça vivido comunitariamente. Finalmente, a força vital espiritual pode ser identificada através de um aumento ou diminuição da produção cultural (científica, artística ou religiosa) dos seus membros que em certos períodos podem estar em pleno desenvolvimento e expressão e, em outros períodos, como que “adormecidos”.

 

Apesar de identificarmos uma força vital da comunidade, esta força não é independente da força vital dos seus membros, pelo contrário, esta força vital é constituída pela força vital individual dos membros. A força vital da comunidade depende da quantidade e da qualidade da força vital que é disponibilizada pelos seus membros, através da forma como eles se envolvem, se dedicam e se empenham com a vida da comunidade. Temos aqui a fonte subjetiva da força vital comunitária que pode ser fortalecida através do aumento do número de membros da comunidade ou de um maior empenho daqueles que já são membros, mas também pode ser enfraquecida com a perda de membros ou com a redução do empenho e das prestações de ações voltadas à comunidade (Stein, 1922/1999n).

 

As fontes objetivas da força vital podem ser identificadas nos valores compartilhados e nas características territoriais, ambas exercendo sua expressão através das obras culturais da comunidade (Stein, 1922/1999n; Ales Bello, 1998a, 2000a). Em cada comunidade podemos identificar os valores estéticos do seu ambiente, os valores éticos incorporados na sua moral, os valores religiosos englobados na sua religião, os valores pessoais que podem provir do passado ou mesmo do presente (Stein, 1922/1999n). Estes valores não são considerados aqui apenas na sua dimensão de prescrição de comportamentos, mas como fatores intervenientes para o fortalecimento da força vital da comunidade, na medida em que despertam uma tomada de posição espontânea dos seus membros que são afetados e respondem a estes valores. As características territoriais também exercem uma influência sobre a força vital dos membros de uma comunidade, na medida em que influi nas possibilidades de convivência mais assídua ou no próprio ritmo vital. O tipo de paisagem, de fertilidade das terras, do relevo do território onde se localiza a comunidade, são elementos que são disponibilizados para a produção cultural e que podem, em certa medida, facilitar ou dificultar a interação dos membros (Stein, 1922/1999n).

As obras culturais produzidas pela comunidade, ou disponibilizadas para ela por outros povos, também exercem um efeito sobre a força vital, podendo constituir-se como fonte de energia para um posicionamento dos membros da comunidade em relação ao seu mundo compartilhado ou em relação à qualidade de interação entre eles (Stein, 1922/1999n). Através das obras culturais, uma bagagem cultural comum é disponibilizada para os membros da comunidade e influi na forma como cada pessoa é ajudada a apreender os elementos nucleares de sentido da realidade que está diante de si. Desta forma, apreendendo os elementos focalizados pela cultura, as pessoas podem reconhecer certos valores estéticos, éticos ou religiosos e se posicionar, individual e/ou comunitariamente, a partir desta apreensão.

b) Dimensões estruturais da comunidade

Na busca da compreensão da estrutura da pessoa humana, Stein (1917/1998, 1922/1999n, 1932-33/2000) identificou diferentes dimensões da experiência – corpórea, psíquica e espiritual – bem como as maneiras em que estas estão conectadas e se relacionam. A análise realizada da estrutura da comunidade também identifica estas dimensões em analogia às dimensões da pessoa.

 

À dimensão corpórea apreendida na estrutura pessoal, corresponde a característica física da comunidade, identificada através do número de membros da comunidade, ou até mesmo as características biológicas típicas dos seus membros, nos casos de uma comunidade de povo que é formada a partir de vínculo racial. A dimensão psíquica da comunidade pode ser apreendida através das vivências comunitárias constituídas através das vivências de seus membros. Stein (1922/1999n) reconhece que não é possível falar de capacidades psíquicas inferiores, como as impressões sensíveis ou a função da memória, na psique da comunidade pelo fato destas serem fundadas sobre a sensibilidade que, por sua vez, é apoiada na corporeidade. As vivências sensíveis podem constituir-se como vivências comunitárias apenas na medida em que os conteúdos desta vivência são compartilhados entre seus membros. De qualquer forma, temos ainda as tomadas de posição espontâneas da comunidade, ou vivência de sentimento, em relação aos valores e significados comuns apreendidos pelos seus membros que constituem a psique da comunidade, expressando um estado específico de força vital. Finalmente, podemos identificar uma dimensão espiritual própria da comunidade não só pelo fato da comunidade conduzir sua vida espiritual abrindo-se para um mundo objetivo e apreendendo seu sentido, mas sobretudo porque a vida da comunidade “mostra uma unidade qualitativa que configura-se movendo a partir de um centro para uma totalidade em si completa” (Stein, 1922/1999n, p.290). Atribuir uma dimensão espiritual à comunidade significa reconhecer uma unidade qualitativa exercida através das expressões vitais da pessoa, representando de forma típica a personalidade coletiva. Quando estas expressões e formas de ação nascem da própria pessoa, podemos ainda dizer que a comunidade possui uma alma. “Possuir uma alma significa portar em si mesmo o centro de gravidade do próprio ser” (Stein, 1922/1999n, p.290). Dessa forma, a comunidade pode agir a partir do seu centro vital, adotando critérios internos aos seus valores para julgar e se posicionar diante da realidade, ou seguir critérios externos pertencentes a outras comunidades ou grupos mais amplos que exerçam algum tipo de influência sobre suas ações. Desta forma, podemos falar de uma comunidade que vive como uma personalidade autônoma ou de uma comunidade que vive de maneira impessoal.

 

Stein (1932-33/2000), discutindo o exemplo da comunidade de povo, identifica que a vida da comunidade possui uma dimensão exterior e uma dimensão interior. A dimensão exterior da vida da comunidade implica no seu modo de agir diante das outras comunidades, ou dos outros povos, englobando tanto as tomadas de posição voluntárias (ações de cooperação, ajuda, agressão, etc), quanto as tomadas de posição espontâneas (estima, admiração, indiferença, etc). Por vida interior da comunidade, pode-se indicar tudo isto que é autoconfiguração (movimento que a comunidade realiza na direção de formar seu estilo de vida), autoconservação (atitude da comunidade criar instrumentos para responder suas próprias necessidades), auto-expressão (formas que a comunidade utiliza para expressar seu estilo e manter sua bagagem comum e que podem ser identificadas através da língua, da atividade industrial, artística, científica) (Stein, 1932-33/2000).

O crescimento da comunidade pode chegar a definir um estilo próprio, no sentido de desenvolver seu caráter comunitário na direção de ser si mesma. Podemos identificar diferentes tipos de comunidade, tomando como critério a forma como se dá a inserção das pessoas na comunidade e a profundidade do relacionamento entre elas mantido (Stein, 1922/1999n). 

A forma mais alta de comunidade pode ser considerada a união de pessoas totalmente livres, ligadas entre elas pela sua vida “pessoal mais íntima” ou pela vida da alma, cada uma delas se sente responsável por si mesma e pela comunidade (Stein, 1922/1999n, pp.293-294).

 

Este seria um primeiro tipo de comunidade onde estaria presente os elementos necessários para a constituição do caráter específico da comunidade e da qualidade de um relacionamento compartilhado de forma íntima, que envolve todo o ser da pessoa. A liberdade e a responsabilidade possibilita aos membros deste tipo de comunidade agirem a partir do seu centro pessoal, gerando atitudes e ações genuínas e não a partir de critérios que são externos aos valores da própria comunidade.

 

Além deste tipo de comunidade, podemos identificar pelo menos mais quatro tipos segundo Stein (1922/1999n): (a) uma comunidade onde apenas alguns dos seus membros são livres e autônomos, o que acaba por acontecer destes poucos membros assumirem a responsabilidade da comunidade e exercerem a sua marca pessoal sobre o caráter da comunidade; (b) uma comunidade que se constitui a partir de um “espírito comunitário” ou ideais genéricos adotados como referência, embora seus membros não exerçam a sua liberdade pessoal e não ajam a partir do seu centro, ou seja, apesar de haver uma unidade entre seus membros, estes não se posicionam a partir de critérios pessoais – neste tipo de comunidade pode haver indivíduos que têm a função de guia, entretanto, seu relacionamento com os demais membros não possui uma comunhão recíproca ou uma apropriação dos demais membros daquilo que é proposto pelos guias; (c) uma comunidade constituída a partir de um “espírito comunitário”, mas que é privada da presença de um guia e que acaba girando em torno de critérios, idéias ou sentimentos que não são próprios, mas absorvidos de comunidades mais amplas e das quais estão inseridas; (d) um último tipo comunidade seria aquele constituído por “agrupamentos nos quais os membros são induzidos a um comportamento comunitário por uma comunhão de circunstâncias de vida externa, sem que seja inserido neste um espírito unitário” (Stein, 1922/1999n, p.294).

Apesar de reconhecermos profundas diferenças nos tipos de relacionamento e de vida da comunidade, todos os tipos identificados por Stein mantêm os elementos essenciais da estrutura da comunidade, ainda que em termos de profundidade diferentes. Cada tipo pode desenvolver-se em outro, embora não o farão necessariamente devido ao estilo da própria comunidade. Um relacionamento de um grupo de pessoas que se reconhecem enquanto sujeitos e compartilham motivos e valores comuns, pode chegar a compartilhar não apenas alguns elementos de sua vida, mas toda a vida e de forma cada vez mais íntima. Contudo, existe um limite próprio dado pelas condições subjetivas e objetivas que influirão na constituição da força vital comunitária e no destino que a própria comunidade terá em termos de desenvolvimento.

7) Conclusão

A relação pessoa-comunidade discutida por Edith Stein oferece à psicologia uma fundamentação filosófica rigorosa, explicitando os aspectos dinâmicos e orgânicos, bem como a essência interdependente e interconstitutiva da pessoa e da comunidade. Não é possível falar de pessoa e de seu processo de formação excluindo a relação propriamente comunitária como via de construção e expressão, como também não podemos falar de uma comunidade desconsiderando a pessoa que se posiciona a partir de sua razão e liberdade.

A pessoa é apreendida em termos de unidade em suas dimensões corpórea, psíquica e espiritual, sendo constitutiva sua abertura para o mundo natural e cultural, o que enfatiza a relacionalidade como fator essencial na formação pessoal. O conceito de pessoa aprofundado na análise fenomenológica de Stein explicita simultaneamente os aspecto passivo onde a pessoa recebe e apropria os dados culturais que lhe são oferecidos nas relações propriamente comunitárias, mas também o aspecto criativo e ativo onde a pessoa se posiciona na comunidade, construindo novas obras culturais, expressando-se na dinâmica da relação e da vida comunitária. Assim, a comunidade não é apenas um agrupamento humano, mas se apresenta como uma modalidade típica de posicionamento pessoal de seus membros e de uma abertura para acolher o posicionamento dos demais membros.

Na obra de Stein, percebemos que o aspecto essencial da relação pessoa-comunidade não é a adoção de uma postura de defesa frente à comunidade por parte do indivíduo, encarando-a como uma ameaça ao desenvolvimento pessoal, nem da adoção de estratégias de controle dos seus membros por parte da comunidade para que estes não ameacem seus aspectos originais, antes, significa reconhecer que elas são interdependentes em seu processo de tornarem-se si mesmas e que este processo só pode acontecer a partir de uma abertura recíproca. Desta forma, a dicotomia na relação pessoa-comunidade é superada na descrição do fenômeno comunitário, identificando a interdependência ontológica como fator essencial.

A comunidade oferecerá os meios e instrumentos culturais para o desenvolvimento pessoal, mas quais aptidões podem se desenvolver e atualizar, estas são dadas e reconhecidas no núcleo pessoal. Não se trata apenas de aspectos genéticos, embora a genética ofereça sua contribuição na compreensão de elementos constitutivos pessoais, mas de um núcleo formativo que dá uma direção e aponta limites aos determinismos sociais. A possibilidade de se opor ao que é oferecido culturalmente, de mudar o ambiente cultural, de buscar novos ambientes formativos, de reconhecer um critério que permita dizer se a pessoa está sendo si mesma ou não, são identificados na estrutura da pessoa como constitutivos de seu centro pessoal. Ao mesmo tempo, a possibilidade de uma expressão cultural autêntica da comunidade, a possibilidade de mudanças sem deixar de ser si mesma, de acolher em si novos membros com suas contribuições, podem ser identificadas na personalidade da comunidade. A identidade da pessoa e da comunidade é um processo dinâmico onde identificamos um núcleo de referência para as possibilidades e limites de transformação, um critério pessoal e comunitário que permite reconhecer a dinâmica da autenticidade.

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Notas

(1) Este artigo é baseado na dissertação de mestrado: Coelho Júnior, A. G. (2006). As especificidades da comunidade religiosa: pessoa e comunidade na obra de Edith Stein. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-graduação em Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG. Belo Horizonte, MG; orientada pelo Prof. Dr. Miguel Mahfoud. [volta]

(2) Edith Stein utiliza o conceito de alma adotando dois sentidos diferentes no decorrer de sua obra, uma vez que considera que a alma humana pode ser considerada a partir de dois aspectos: (a) referindo-se propriamente à alma enquanto psique, estritamente ligada à corporeidade e ao reino da natureza; (b) referindo-se à alma enquanto espírito, vinculada à liberdade e, portanto, ao reino do espírito (Ales Bello, 1998b). [volta]

(3) Apesar da palavra hyle já ter sido utilizada por filósofos gregos que discutiam a matéria (hyle) como origem de todas as coisas, Husserl buscou discutir a hyle no sentido de materiais que são disponibilizados na vivência da pessoa e podem ser submetidos à valoração e a um posterior trabalho reflexivo (Ales Bello, 2004a). Com o termo hilética, podemos nos referir tanto aos dados do mundo exterior – ex. dados de cor apresentados pelos objetos – quanto os dados de sensibilidade interior – ex. prazer ou bem-estar vivenciados pela pessoa ao apreender os objetos. Desta forma os elementos hiléticos marcam a corporeidade e a psiquicidade de forma específica, oferecendo os materiais a serem significados pela dimensão noética. A análise noética, por sua vez, implica no trabalho da dimensão espiritual sobre os dados percebidos, reconhecendo e elaborando seu sentido. Pode-se também realizar uma análise hilética na medida em que esta se dedica à descrição e análise da sensibilidade. Considerar a dimensão hilética da vivência configura uma unidade não apenas entre a pessoa e seu mundo material, mas também a própria unidade da pessoa–corporeidade, psique e espírito – no processo de conhecimento da realidade (Ales Bello, 1998a, 2002, 2004; Ghigi, 2003) [volta]

Nota sobre os autores

Achilles Gonçalves Coelho Júnior é mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: achillescoelho@yahoo.com.br

Miguel Mahfoud é doutor em psicologia social, professor associado do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade". Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br

 

Data de recebimento: 21/06/2006
Data de aceite: 30/10/2006

 
Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/coelhomahfoud01.htm

 

 

 

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