Cinema brasileiro da Retomada: da pobreza à violência na tela

Fernanda Salvo


Esse artigo abordará as narrativas cinematográficas realizadas no Brasil a partir dos anos 1990, bem como seus possíveis diálogos e ressonâncias em relação ao Cinema Novo. Os anos 90 podem ser considerados um marco na história do cinema brasileiro, pois no início dessa década o cinema realizado no País foi dado como morto, mas, a despeito de todas as dificuldades, conseguiu se reerguer e sobreviver, estabelecendo as bases de uma indústria de produção nacional.

Há muito o cinema brasileiro enfrentava problemas, e sua produção agonizava desde décadas anteriores. Como afirma Machado Jr. sobre aquele momento (1999: 43):
 

A redemocratização do País, no processo de “abertura lenta, gradual e segura” entre as décadas de 70 e 80 propiciou um impulso insuficiente no maquinário de produção nacional, que fez com que no longo declive subseqüente cada vez mais as rodas patinassem nos trilhos, girando em falso.
Para aprofundar ainda mais o cenário desanimador em que o cinema se encontrava, no início de seu governo, o Presidente Fernando Collor de Melo rebaixou o Ministério da Cultura a Secretaria e extinguiu alguns órgãos fomentadores e reguladores da atividade cinematográfica no País, como a Embrafilme, o Concine e a Fundação do Cinema Brasileiro. É desnecessário dizer que tais medidas levaram a produção de filmes ao declínio quase total. Porém, a partir de 1993, com a promulgação da Lei do Audiovisual e o advento de leis de incentivos estaduais e municipais, a produção brasileira recuperou seu fôlego. Segundo o então titular da Secretaria de Audiovisual, José Álvaro Moisés (Oricchio, 2003: 27), entre 1995 e 2001 o País produziu 167 longas-metragens, contra menos de 30 nos primeiros anos da década anterior.

Esse boom do cinema brasileiro ficou conhecido como Retomada,  período em que os filmes, em sua quase totalidade, falaram das questões nacionais e das contradições do País. Não por acaso, pois o Brasil ainda guardava na lembrança os horrores da ditadura, do lento e doloroso processo de abertura, do sonho das diretas e das incertezas do governo Collor. Todo esse cenário parecia um convite à temática social, que retornou com força ao centro da discussão. Como afirma Oricchio (2003: 32):

Boa parte do cinema produzido no Brasil durante esses anos levou em conta as condições do País. Bem ou mal, debruçou-se sobre temas como o abismo de classes que compõe o perfil da sociedade brasileira, tentou compreender a história do País e examinou os impasses da modernidade na estrutura das grandes cidades. Foi ao sertão e às favelas e reinterpretou esses espaços privilegiados de reflexão do cinema nacional, outrora cenário de obras como Vidas Secas, Os fuzis, Deus e o diabo na Terra do Sol, Cinco vezes favela, Rio 40 graus e Rio Zona Norte.
Seguindo por essa trilha, o cinema da Retomada privilegiou o perfil dramático da experiência social. A imagem da miséria, o cotidiano de marginalizados, de desempregados, de drogados, a realidade do sertão, da favela e das periferias que cercam as grandes cidades tomou conta das telas. O cinema da Retomada pôs a nu a tragédia social brasileira a partir do seu derivado mais visível: a violência urbana. Cenas altamente violentas foram exibidas em sua crueza. A violência firmou-se como uma marca do cinema nacional contemporâneo. Como nota Rubim, ao comentar o cinema da Retomada (2003:217):
A expressão dos segmentos populares, em especial os urbanos, carrega em todos esses filmes uma limitação imanente. A via de acesso a tais setores populares urbanos é a violência. Só pela violência, em especial urbana e criminal, os segmentos populares ganham existência social na telas e na cena pública possibilitada por esses filmes.
É importante destacar que ao recuperar a tradição de falar sobre as questões sociais brasileiras - de forma menos ou mais violenta - os filmes da Retomada promoveram, inevitavelmente, um diálogo com o Cinema Novo realizado no País na década de 1960, quando uma geração de cineastas criou uma nova linguagem e uma nova estética para traduzir as questões nacionais. Com sua proposta de ruptura com o cinema comercial, os cinemanovistas articularam uma imagem do Brasil, escancarando-a para o mundo e trazendo para o debate as desigualdades sociais brasileiras. Por meio do Cinema Novo o sertão nordestino, as favelas, os subúrbios e sua gente pobre e faminta ganharam as telas.

Fato revelador é que o Cinema Novo também carregou um forte traço de violência. À medida em que seu enfoque social e político privilegiou temáticas como a fome, a dor, a falta, a morte, a seca e a miséria, os cinemanovistas alcançaram um universo simbólico potencialmente árido e violento, entregue ao público por meio de uma fala emocionada, cortante e virulenta.

Fazia parte da proposta estética e ética do Cinema Novo tornar o filme não somente arte, mas também um manifesto. Para tanto, os cinemanovistas utilizaram uma linguagem carregada de alegorias, metáforas, símbolos, numa recusa à análise racional da realidade brasileira, deformada pelos processos de colonização cultural.

Diálogo com o passado

É patente que o debate comparativo entre a produção cinematográfica recente do País e aquela realizada pelos idealizadores do Cinema Novo tornou-se inevitável, à medida em que retornaram às telas as temáticas sociais e os espaços de ambientação centrais do cinema brasileiro dos anos 60, bem como a representação de traços identitários da cultura - carnaval, futebol, candomblé e folclore nordestino.

No entanto, é imperioso ressaltar que, para além dos traços comuns, é na proposta estética desses dois cinemas que serão identificados seus antagonismos. Por meio de seu projeto estético e ético, os filmes emblemáticos do Cinema Novo apresentaram uma concepção revolucionária em sua linguagem: proposição do corte seco, não linearidade da narrativa, ênfase aos aspectos prosaicos da vida cotidiana, numa recusa total aos padrões impostos pelos grandes estúdios.  Como explica Ivana Bentes (1999: 87):

Nesses filmes, clássicos, criou-se uma estética da crueza e do sertão, trabalhada na montagem, no corte seco, no interior da imagem e do quadro, na luz estourada, na fotografia contrastada, no uso da câmera na mão, em todos os níveis da narrativa. Estética cinemanovista que tinha como objetivo evitar a folclorização da miséria e que colocava uma questão fundamental: como criar uma ética e uma estética para essas imagens de dor e revolta?
Em contrapartida, depreende-se da produção contemporânea, que os cineastas da Retomada retratam o sertão e a favela sob um novo olhar, retomando o padrão das narrativas clássicas dos tempos da Vera Cruz. O requinte proposto ao público no tratamento da imagem ou na confecção do roteiro faz com que o cinema da Retomada se reconciliasse com a tradição do filme de mercado, caracterizada pelo bom acabamento técnico, quase publicitário, e pelos filmes de gênero da indústria - que correspondem ao modelo americano de entretenimento.

Nota-se, portanto, que o cinema da Retomada segue uma tendência mundial de trazer as margens para o centro da discussão, dando ênfase ao multiculturalismo. Ângela Prysthon chama a atenção para o fenômeno (2003: 3):

Esse processo cosmopolita vai ter influência na constituição dos mercados culturais mundiais contemporâneos que se abrem, então, ao multiculturalismo e aos efeitos de uma cada vez maior presença de bens simbólicos periféricos (produzidos por camadas subalternas da sociedade) junto à cultura de massa internacional e que se fazem sentir em todos os cantos do planeta, especialmente desde o início da década de 80.
Tela bruta

No que tange à inscrição da violência nos filmes, os cineastas da Retomada também se distanciarão dos cinemanovistas. Se para o Cinema Novo a violência teve um sentido existencial, numa tentativa de legitimação das causas populares diante da opressão, e foi marcadamente mais simbólica do que explícita, o cinema contemporâneo parece instalar um olhar menos reflexivo sobre a representação do violento, tendo produzido até agora bom número de títulos com alto teor de brutalidade.

Dessa maneira, a maioria das recentes produções dialogam com as do diretor americano Quentin Tarantino, que em “filmes como Cães de Aluguel (1992) e Pulp Fiction (1994) levou ao limite da perfeição alguns elementos e técnicas de linguagem que proporcionaram grande prazer ao espectador, ao mesmo tempo em que o colocaram diante de doses consideráveis de violência” (ORICCHIO, 2003: 157).
Para Ivana Bentes, essa violência encontrada nos filmes da Retomada poderia ser definida como (Ramos, 2003:384):

Um brutalismo que teria como base “altas descargas de adrenalina, reações por segundo criadas pela montagem... as bases do prazer e da eficácia do filme norte-americano de ação onde a violência e seus estímulos sensoriais são quase da ordem do alucinatório, um gozo imperativo e soberano em ver, infligir e sofrer a violência”, a qual é transformada, portanto, em “teleshow” da realidade, que pode ser consumido com extremo prazer, mostrando-se randômica, destituída de sentido [chegando] à pura espetacularidade.


Quatro filmes – um só mal-estar

Para aprofundar a discussão realizada até aqui, foram selecionados quatro filmes realizados pelo cinema da Retomada: Como nascem os Anjos (1996), de Murilo Salles, Central do Brasil (1998), de Walter Salles, Cidade de Deus (2002), de Fernando Meirelles e Amarelo Manga (2003), de Cláudio Assis. Nas quatro películas buscou-se observar as cenas mais violentas – a partir da linguagem e da narrativa – na tentativa de identificar-se a representação da violência que acionam.

No caso dos filmes Cidade de Deus e Como nascem os anjos, o traço comum é a violência urbana e criminal. Os personagens se inscrevem na narrativa por sua ligação com o mundo do crime e ganham relevância a partir de seus atos desviantes. Coincidência ou não, as cenas de maior brutalidade em ambos os filmes envolvem crianças, como se pode observar nas seguintes seqüências:

   * Cidade de Deus: O traficante mais poderoso do morro, Zé Pequeno, quer dar uma lição nas crianças da favela, acuando
       um grupo delas num dos becos da Cidade de Deus. Ele escolhe o menor dos garotos – com cerca de 4 anos - e pergunta
       se o menino quer receber um tiro no pé ou na mão. Chorando, a criança estende a mão, mas Zé Pequeno atira no pé. A
       criança grita e chora desesperada. Não satisfeito, Zé Pequeno oferece a arma a um outro garoto – com cerca de 6 anos -
       e ordena-lhe que escolha um dos amigos para matar. O menino titubeia; mas, apavorado, aceita a arma, escolhe um
       amigo e atira.

   * Como nascem os anjos: Branquinha e Japa, crianças moradoras do morro Dona Marta, no Rio de Janeiro, discutem
       sobre uma maneira de fugir da mansão na Barra da Tijuca, onde se tornaram seqüestradores de uma família americana,
       por acidente. Nessa seqüência, última do filme, os meninos estão acuados, pois mídia e polícia cercaram a mansão. Sem
       saída, e ao perder totalmente o controle da situação, Branquinha e Japa matam-se um ao outro, diante do olhar
       estupefato do espectador.

Nas duas seqüências descritas, a violência se inscreve de forma incontestável. Em Como Nascem os Anjos uma câmera frontal e fria não dá conta do impacto causado pela morte de Branquinha e Japa no último quadro. Os meninos, amigos de infância, tornam-se rivais na mansão em que viram seqüestradores. A cena de Japa dançando funk em frente à janela torna-se espetáculo mediatizado, e ao reconhecer o amigo na TV, Branquinha dá mostras de intenso ciúme. Num bate-boca sobre como fugir dali, Branquinha dispara a arma contra o amigo, como reflexo, Japa dispara também. Está feita a carnificina. Antes de conter algum virtuosismo cinematográfico a cena é densa e difícil de digerir. A opção do diretor foi pela construção de um clima tenso e sufocante, a estilo Hitchcock, que vai crescendo por toda a narrativa e explode com a morte das crianças – curiosamente apresentada por uma câmera alta que parece não querer se envolver, mostrando de cima, com certo distanciamento, os corpos mortos de duas crianças faveladas.

Já em Cidade de Deus o diferencial é o tratamento aprimorado da linguagem.  Na cena em que as crianças são torturadas por Zé Pequeno tudo é impactante, desde a interpretação dos atores até o tempo da duração. A estética da cena (e de toda a narrativa) dialoga com a imagem publicitária e do clipe. Uma câmera que se mexe o tempo todo, filtros coloridos, trilha sonora envolvente, figurinos da moda e humor típico da narrativa cinematográfica contemporânea transformam a história da favela em história pop - permeada por uma onda de violência tão constante que termina por embrutecer o olhar do espectador. No filme, porém, o microcosmo Cidade de Deus surge em cena isolado de toda a sociedade, e, talvez, esse seja um dos pecados capitais da narrativa, pois “falta-lhe a grandeza ética de ligar a violência que retrata ao ambiente social de onde ela nasce. Para fazer isso, seria preciso contextualizar. Produzir um efeito de distanciamento, que, quando expõe a ação, também a critica e disseca” (ORICCHIO, 2003: 160).

Portanto, cabe aqui, novamente, uma reflexão sobre o Cinema Novo, que a partir de sua proposta ética e estética problematizou as questões sociais numa linguagem que suscitava a implicação do espectador e oferecia uma visão contextualizada de suas temáticas. Um bom exemplo dessa afirmação é o filme Terra em Transe (1967), de Glauber Rocha, no qual veremos uma câmera que dispara as imagens de forma quase arbitrária, não permitindo que o olhar se liberte. Essa arbitrariedade da câmera-personagem já contém, em si, um potencial impactante que causará o deslocamento do espectador. Numa das cenas mais instigantes do filme, o trabalhador Gerônimo tenta explicar a uma multidão o que é o “povo”, e tem a boca tapada por Paulo Martins, um intelectual de esquerda ligado ao governo. Irado com o que julga ser uma enorme ignorância do trabalhador, o intelectual indaga: “Estão vendo o que é o povo? Um imbecil, um analfabeto, um despolitizado. Vocês já pensaram Gerônimo no poder?”. A violência simbólica da cena é absurda. A câmera é inquieta, o silêncio causa tensão; no enquadramento, a população está sempre num plano mais baixo do que os integrantes do governo. Quando um segundo trabalhador sai do meio da massa e pede licença para falar, a tensão torna-se ainda maior; então, ele começa: “O povo sou eu, que tenho sete filhos pra criar e não tenho onde morar”. Esse trabalhador anônimo é subjugado pelos seguranças do governador, passam-lhe uma corda no pescoço, um cano de revólver é introjetado em sua boca. Rendido, ele se cala, é morto. Mas a cena do assassinato não é mostrada. Fica o incômodo. Essa não-imagem choca e revolta. Não é uma violência explícita, não é uma brutalidade espetacularizada, contudo, essa morte não filmada incomoda profundamente pelo que revela de invisibilidade. Em outras palavras, o que Terra em Transe faz é posicionar-se frente ao golpe militar de 64, discutindo a ilusão da proximidade dos intelectuais em relação às classes populares, por meio de uma invenção formal, que pretende violentar o olhar, não permitindo que ele se mantenha passivo diante da realidade política do País.

Buscando refletir um pouco mais sobre a violência encontrada no cinema da Retomada, pode-se pensar em Central do Brasil. Em síntese, a trama do filme se inicia na cidade e evolui pelo sertão, numa viagem ao coração do Brasil. Porém, logo no início da película, o espectador se deparará com um centro urbano violento, como pode-se observar:

   * Central do Brasil: Um jovem comete um pequeno furto numa banca de bugigangas da Central do Brasil e foge em
       disparada na direção dos trilhos, sendo perseguido às carreiras por dois seguranças da Central. Ao alcançá-lo, um dos
       homens é impiedoso, atira à queima-roupa na cabeça do rapaz, matando-o na hora.

Em Central do Brasil, o curioso é que, à medida em que a trama avança, os personagens Dora e Josué vão deixando para trás o centro urbano sinistro e nefasto rumo ao campo idealizado e conciliador. Para a personagem Dora essa trajetória marcará a expurgação da maldade, pois ela possui índole má e cafajeste (é interessante notar que Dora é uma mulher urbana), mas à medida em que pratica a ação de levar Josué ao sertão, para o encontro do pai, Dora vai adquirindo uma aura quase santa, de mulher redimida. O ponto alto dessa mudança é o transe da personagem numa sala de milagres, já no sertão brasileiro. Entre velas, santos e rezas, Dora desmaia, e, quando acorda, está deitada no colo de Josué - mas agora pronta para uma nova postura diante da vida. O acontecimento da religiosidade, porém, não tem qualquer amarra mais aprofundada com a narrativa. Parece, portanto, ser de uma relação maniqueísta que trata Central do Brasil, pois a personagem tem duas opções: ser boa e consciente ou má e trapaceira. O filme não permite a contradição em Dora, fora das escolhas morais. Um outro dado importante é que, se em Central do Brasil o sertanejo é apresentado como solidário e cordial, nada é discutido sobre a situação de pobreza em que ele vive ou sobre a miséria do sertão que ele habita.

A relação que propõe Central do Brasil entre a metrópole e o que se posiciona em seu entorno social (o periférico) pode ser de grande valia para se pensar um outro importante filme da Retomada: Amarelo Manga, que terá como cenário a periferia da cidade de Recife. Esse filme abordará a violência de uma maneira diferente da que se tratou até aqui, pois o diretor Cláudio Assis optará pela estética de choque, conseguindo um dos efeitos mais violentos entre os evidenciados pelos filmes da Retomada. É interessante notar que no contexto de Amarelo Manga, a violência que assalta os olhos está diretamente ligada ao espaço urbano representado.  Nesse sentido, Angélica Coutinho ressalta (2003: 390):
 

A cidade moderna é delimitadora de uma fronteira a partir da qual reconhecemos o rural, separamos o centro da periferia, o público do privado, a cena da obscena. Nela reconhecemos o cidadão, aquele que tem história e faz história, ou seja, quem realmente importa se tomarmos a perspectiva da modernidade excludente. Fora do centro, importa narrar a fim de mostrar o exotismo do excluído ou assumir a defesa política dos figurantes da ficção moderna. Ou seja, a cidade é uma fronteira que define a identidade e a alteridade.


E parece ser justamente essa a opção em Amarelo Manga, onde o exótico, o esdrúxulo e o grotesco são explorados em sua potencialidade máxima. Fato curioso é que, nesse filme, nenhum personagem apresenta ligação direta com o mundo criminal, mas a violência urbana (ou suburbana) é gritante: o cenário é imundo, decaído e quase fétido. Os personagens centrais são um açougueiro adúltero, sua mulher crente e pudica, uma bicha afetada, um malandro necrófilo, uma gorda asmática, um padre canastrão e uma exasperada dona de bar, que oferecem um mosaico de imagens inusitadas - numa quase aberração que chega ao limite do grotesco. Quase tudo é falta de esperança em Amarelo Manga. Como ressalta Rubim (2004: 218):
 

No filme temos sim outra violência, uma violência de outro tipo. A violência da vida dos excluídos: o mundo prejudicado (na forte expressão de Adorno), o mundo decaído, o mundo sórdido da absoluta ausência de opções, possibilidades e liberdade de escolha – um mundo quase apenas animal – um lixo humano com suas condições societárias depreciadas e depreciativas.


Não por acaso a imagem visceral do sangue percorrerá toda a narrativa - na morte brutal do boi, na carne tratada no frigorífico, na orelha arrancada da amante. Uma das cenas mais violentas do filme:

* Amarelo Manga: A evangélica Kika Canibal, descobre que o marido (o açougueiro Wellington Canibal) tem uma amante.
    Ao flagrar os dois num encontro amoroso, Kika avança com ira sobre a mulher, arrancando-lhe a orelha com uma
    mordida. O sangue ainda escorre pela boca de Kika, quando ela diz: “brinco de bijouteria, puta...” e cospe sangue, orelha
    e brinco contra sua vítima.

Portanto, é de um universo explodido que trata Amarelo Manga, que talvez esteja fazendo um questionamento sobre a arbitrariedade da vida. No filme, a violência está contida na repetição do cotidiano, sendo acentuada pelas cenas duras da “vida real” no subúrbio.

A primeira imagem de Amarelo Manga traz Lígia, a proprietária do bar Avenida, vista por uma câmera alta. Em seu quarto, Lígia filosofa: “Às vezes eu fico imaginando de que forma as coisas acontecem. Primeiro vem o dia, tudo acontece naquele dia, até chegar a noite, que é a melhor parte, mas logo depois vem o dia outra vez e vai e vai e vai, e é sem parar”. Curiosamente, na última cena de Amarelo Manga (depois que já se passou um dia na vida dos personagens), Lígia encara a câmera, e, indignada, repete a mesma frase...  Mas tudo parece continuar igual na periferia de Recife.

Conclusão

As quatro cenas descritas dialogam, de fato, num ponto fundamental: a construção dos personagens centrais oferecida nas narrativas. São pessoas pobres, mal-vestidas, periféricas, subalternas, sem estudo, sem recursos e violentas.

Essas cenas constituem pequenas mostras de como a violência se associa à pobreza na tela do cinema brasileiro contemporâneo. Os fatos narrados são verdadeiros fait divers jornalísticos, com suas coincidências aberrantes e incômodas. É importante frisar que essas histórias são entregues ao espectador de forma naturalista, com materiais reais e baseados nas regras da verossimilhança para a composição da imagem - o que pode apresentar efeito pernicioso sobre a representação, pois é como se cenas carregadas de brutalismo e violência ocorressem a todo instante, em toda esquina das cidades brasileiras. Como se os habitantes de periferias e favelas fossem naturalmente violentos e como se o olhar do espectador suportasse (ainda) tanta violência.

Na linguagem utilizada pelos diretores nas cenas narradas, pode-se destacar traços comuns ligados a essa representação. A câmera frenética de Cidade de Deus, na cena da tortura às crianças, tem o mesmo ritmo da montagem adotado por Walter Salles, na cena do assassinato na Central. As seqüências são bastante rápidas, numa clara utilização de técnicas dos filmes de ação policial americanos. Em Central do Brasil há, inclusive, a clássica perseguição entre mocinho e bandido, que culmina com a morte do bandido (negro e pobre) nos trilhos da Central. Como nota Kulechov sobre o cinema americano (Xavier, 1977, 36), “a câmera é colocada em tal perspectiva que o tema de uma passagem atinge ao espectador e é entendido por este da maneira mais rápida, simples e compreensível”.

Nesse momento, pode-se buscar novamente um contraponto a partir das reflexões sobre o Cinema Novo. Nas longas seqüências elaboradas pelos cinemanovistas, tudo o que se pretendia era negar o naturalismo. O Cinema Novo foi justamente a antítese desse recurso - por meio de suas alegorias que, se expunham as contradições brasileiras, negavam a folclorização da pobreza, da fome, da miséria e, sobretudo, da violência.

Naquele cinema, a violência existia para fazer o espectador vê-la e pensar sobre aquilo que via. Cenas clássicas - como a de um nordestino desenterrando uma raiz pra comer ou a do soldado displicente que arma um fuzil de olhos vendados, e mata; por reflexo condicionado, um trabalhador do campo, no filme Os fuzis (1963), de Ruy Guerra - não poderiam deixar imune o olhar. São duas seqüências longas e lentas para que o espectador nelas permaneça, questionando e indo mais fundo. Na verdade, o filme de Ruy Guerra quer que o espectador veja o problema da fome no nordeste e questione as escusas relações de poder existentes na região, onde soldados matam trabalhadores rurais “em nome da lei”.

Conclui-se, portanto, que o cinema nacional contemporâneo, tematicamente, vem se debruçando sobre as questões sociais do País (a exemplo do que ocorreu no Cinema Novo), mas dá mostras de não ter definido precisamente o foco para o tratamento ético dessas questões. Estilisticamente, o cinema da Retomada dialoga com diretores estrangeiros como Tarantino, Scorsese e Coppola, e com as linguagens publicitária e do clipe.

Ambas as tendências – ética e estética - aparecem na filmografia recente ora com força, ora sem muita consistência, num movimento que demonstra a busca pela inserção do cinema num processo de interrogação da experiência brasileira em suas marcas específicas, próprias de seu tempo.

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