Este
trabalho faz parte de um projeto maior que pretende recuperar para a
psicologia textos antigos, anteriores à sua constituição como ciência
no sentido moderno do termo. (Amatuzzi, 2003 e 2004). O texto escolhido
aqui é do teólogo medieval Santo Tomás de Aquino. Trata-se da Questão
Disputada Sobre a Alma, composta de 21 longos artigos. Traduzimos e
comentamos aqui o artigo primeiro e já estamos trabalhando sobre os
demais. Não encontramos em nossas buscas bibliográficas nenhuma tradução
portuguesa desse texto (mas duas em espanhol: Tomás de Aquino, 2001a e
2001b). A tradução foi feita a partir do original latino tal como consta
no sítio eletrônico Corpus Thomisticum da Universidade de Navarra
(Tomás de Aquino, 1953).
O
gênero “Questão Disputada”, na obra de nosso autor, refere-se em
geral à redação final de uma atividade acadêmica comum no meio
universitário da época: o debate. Ele corresponde a uma das três funções
do Mestre em Teologia, que eram ler, debater e persuadir (o que não deixa
de ter uma correspondência com as nossas funções universitárias de
ensino, pesquisa e extensão). Originalmente o ensino se dava através da
leitura de um texto autorizado seguida de comentários. Contudo, dessa
leitura foram surgindo questões que ultrapassavam o contexto imediato
daquilo que estava sendo lido. O modo de tratamento dessas questões era o
debate. Anunciava-se a questão, formulava-se uma tese hipotética,
levantavam-se os argumentos a favor e contra a tese. Tudo isso era feito
na discussão do mestre com seus auxiliares e alunos, ou mesmo com o público
presente à disputa. Em seguida o professor devia concluir propondo o modo
mais adequado de se pensar a questão e, em função disso, comentar os
argumentos levantados. Finalmente, um resumo completo de toda a discussão
era redigido. Se a questão em pauta era muito complexa, ela era
subdividida em artigos. Originou-se dessa atividade acadêmica um gênero
literário e algumas obras podiam ser escritas seguindo esse modelo
(Torrell, 1999; Lauand & Sproviero, 1999; Bazan, 1985a e 1985b).
Nossa
“Questão Disputada Sobre a Alma” pertence a esse modelo. Segundo
Torrell (1999) ela teria sido escrita no ano escolar 1265-1266, durante a
estadia de Tomás de Aquino em Roma. É uma obra da maturidade de nosso
autor, e prepara a parte da Suma Teológica (Ip, q75-89) que trata do
mesmo assunto de modo mais sistematizado. Corresponde provavelmente a uma
reflexão pessoal preparatória. Analisa os problemas relativos à alma
humana, tais como se colocavam então. É uma questão única, dividida em
21 artigos. O título geral é “Sobre a Alma” (De Anima), e
cada artigo aborda um problema específico.
O
problema abordado neste artigo primeiro é se a alma humana pode ser algo
subsistente em si mesmo e, ao mesmo tempo, estrutura ou forma do corpo
humano vivo. Em palavras mais nossas, o que Tomás de Aquino pretende aqui
é esclarecer como é possível conciliar a consciência que temos de
nossa subjetividade como um princípio de operações que não são
estritamente vinculadas a um órgão corporal específico e o fato não
menos claro de que somos nosso corpo, ou seja, de que a nossa alma é a
estrutura deste corpo.
Nossa
tradução é feita sobre o texto original latino disponível no sítio
eletrônico da Universidade de Navarra (Tomás de Aquino, 2003).
Traduzimos o texto integral deste artigo 1, e não apenas trechos
selecionados. O original não tem subtítulos e nem há divisão em parágrafos
no interior de cada parte. Para facilitar a leitura, optamos por fazer
algumas divisões e colocamos alguns subtítulos. Não reproduzimos aqui o
texto original em latim para não alongar demais o artigo, mas ele se
encontra disponível a qualquer um no sítio eletrônico anunciado. Após
a tradução encontram-se comentários que têm a finalidade de esclarecer
a difícil linguagem de Tomás de Aquino e, ao mesmo tempo, ajudar a
repensar o assunto em termos mais contemporâneos.
A
TRADUÇÃO
Questão
Disputada sobre a Alma
Em
primeiro lugar pergunta-se se a alma humana pode ser ao mesmo tempo forma
e algo em si mesmo. E parece que não.
Argumentos
a favor da tese
Arg.1.
Se a alma humana é algo em si, ela é subsistente e tem por si o
existir completo. Mas o que advém a algo depois do existir completo, lhe
advém acidentalmente, como, por exemplo, a cor branca do homem ou sua
vestimenta. Portanto o corpo unido à alma lhe advém acidentalmente. Se,
portanto, a alma é algo em si, não pode ser forma substancial do corpo.
Arg.2.
Além disso, se a alma é algo em si, deve ser algo concreto
individualizado, pois nenhum universal abstrato é algo em si. Mas ela se
individualiza ou por si mesma ou por algo diferente de si mesma. Se for
algo diferente de si mesma, sendo ela forma do corpo, é necessário que
se individualize pelo corpo (pois as formas se individualizam pela própria
matéria); mas daí se segue que uma vez removido o corpo não haveria
mais a individualização da alma, e assim ela não poderia ser
subsistente por si e, portanto, nem algo em si. Se, porém, ela se
individualiza por si mesma, ou é uma forma simples ou é algo composto de
matéria e forma. Se for uma forma simples, ela não pode se diferenciar
de outra a não ser pela própria forma. Mas a diferença segundo a forma
resulta numa diversidade de espécie. Segue-se daí que as almas de
diversos homens são de espécies diferentes; e mesmo que a alma fosse
forma do corpo, os homens seriam de espécies diferentes uma vez que cada
um tira sua espécie de sua forma. Se, porém, a alma for composta de matéria
e forma, é impossível que na sua inteireza ela seja forma do corpo, pois
a matéria não pode ser forma de alguma coisa. Resulta, portanto, impossível
que a alma seja ao mesmo tempo algo em si e forma.
Arg.3.
Além disso, se a alma é algo em si daí se segue que ela é um
indivíduo. Mas todo indivíduo pertence a algum gênero e a alguma espécie.
Resulta, portanto, que a alma tem seu próprio gênero e sua própria espécie.
Mas é impossível que algo que tenha sua própria espécie receba um acréscimo
externo para a constituição dessa espécie, pois, como está dito no
VIII livro da Metafísica, as formas ou as espécies das coisas são como
números: qualquer coisa que se acrescente ou se subtraia faz variar a espécie.
Mas a matéria e a forma se unem para a constituição da espécie. Se,
pois, a alma é algo em si não pode se unir ao corpo como forma da matéria.
Arg.4.
Além disso, como Deus fez as coisas por bondade, e isso se
manifesta nos diversos graus de coisas, ele fez tantos graus de seres
quanto a natureza o permite. Se, portanto, a alma humana pode subsistir
por si, como de fato se deve afirmar se ela for algo em si, daí se
seguiria que ela, existindo por si, seria um dos graus dos seres. Mas as
formas não são um dos graus dos seres sem a matéria. Se, portanto, a
alma é algo em si não pode ser forma de matéria.
Arg.5.
Além disso, se a alma é algo em si, e por si subsistente, é
necessário que seja incorruptível uma vez que não tem contrário e nem
inclui contrários em sua composição. Mas se é incorruptível não pode
ser proporcionada a um corpo corruptível como é o humano. Ora, toda
forma é proporcionada à sua matéria. Portanto, se a alma é algo em si,
não será forma de corpo humano.
Arg.6.
Além disso, nenhum subsistente é puro ato a não ser Deus. Se
portanto a alma humana é algo em si, pois que é subsistente por si,
haverá nela uma composição de ato e potência; e assim não poderia ser
forma porque a potência não pode ser ato de algo. Se, portanto, a alma
for algo em si, não poderá ser forma.
Arg.7.
Além disso, se a alma é algo em si podendo subsistir por si, não
convém que se una ao corpo a não ser tendo em vista algum bem dela
mesma: algum bem essencial, ou algum bem acidental. Não pode ser por
algum bem essencial porque ela pode subsistir sem corpo. Também não pode
ser por algum bem acidental, como seria principalmente o conhecimento da
verdade adquirido pela alma através dos sentidos os quais pressupõem a
existência dos órgãos do corpo. E isso porque a alma das crianças que
morrem antes de nascer, conforme dizem alguns, têm um conhecimento
perfeito das coisas, que supostamente não foi adquirido através dos
sentidos. Se, portanto, a alma é algo em si, não há nenhuma razão pela
qual ela se una ao corpo como forma.
Arg.8.
Além disso, forma e algo em si correspondem a uma divisão por
oposição. De fato o filósofo diz, no II livro Sobre a Alma, que a substância
se divide em três opostos dos quais um é a forma, outro a matéria e o
terceiro é algo em si. Mas não podemos atribuir opostos à mesma coisa.
Portanto, a alma humana não pode ser forma e algo em si.
Arg.9.
Além disso, o que é algo em si, por si subsiste. Mas o que é próprio
da forma é que exista em outro, sendo ambos opostos. Portanto, se a alma
é algo em si, parece que não pode ser forma.
Arg.10.
Mas poderíamos dizer respondendo a isso que quando o corpo se
corrompe a alma permanece algo em si e por si subsistente, mas então
termina sua razão de forma. Mas contra isso temos que tudo aquilo que
pode ser tirado de algo mantendo-se sua substância, está nele
acidentalmente. Se, portanto, cessasse a razão de ser forma depois da
corrupção do corpo com a permanência da alma, se seguiria que a razão
de ser forma conviria à alma só acidentalmente. Mas é enquanto forma
que a alma se une ao corpo para constituir o homem. Portanto essa união
ao corpo seria acidental, e conseqüentemente o homem seria um ente só
por acidente, o que não é certo.
Arg.11.
Além disso, se a alma humana é algo existente por si, ela deve
ter alguma operação própria, uma vez que qualquer coisa existente por
si tem sempre alguma operação própria. Mas a alma humana não tem
nenhuma operação própria. A própria intelecção que em grau máximo
parece ser o que lhe é próprio, não é da alma e sim do homem pela
alma, como está dito no livro I Sobre a Alma. Portanto, a alma humana não
é algo em si.
Arg.12.
Além disso, se a alma humana é forma do corpo, é necessário que
tenha alguma dependência em relação ao corpo, pois forma e matéria são
mutuamente dependentes. Mas aquilo que depende de algo outro, não pode
ser algo em si. Se, portanto, a alma é forma do corpo, não poderá ser
algo em si.
Arg.
13. Além disso, se a alma é
forma do corpo, é necessário que o existir da alma e o do corpo sejam um
único existir, uma vez que da matéria e da forma se constitui uma
realidade una segundo o existir. Mas o existir da alma e do corpo não
pode ser um só existir, porque alma e corpo pertencem a gêneros
diferentes: a alma está no gênero das substâncias incorpóreas e o
corpo no das substâncias corporais. Portanto a alma não pode ser forma
do corpo.
Arg.14.
Além disso, o existir do corpo é um existir corruptível e
resultante de partes quantitativas; já o existir da alma é incorruptível
e simples. Portanto, o existir da alma e do corpo não podem ser um só.
Arg.15.
Mas se poderia dizer, respondendo a isso, que o corpo humano tem
seu existir de corpo pela alma. Mas contra isso diz o filósofo, no II
livro Sobre a Alma, que a alma é ato de corpo físico orgânico. Mas o
que se compara à alma, aqui, como matéria ao ato, já é um corpo físico
organicamente constituído, e que, portanto, não pode existir a não ser
por alguma forma pela qual venha a se constituir no gênero dos corpos. O
corpo humano tem, portanto, seu existir à parte do existir da alma.
Arg.16.
Além disso, princípios essenciais, como matéria e forma,
ordenam-se ao existir. Mas, na natureza, para aquilo que pode acontecer a
partir de uma coisa só, não se requerem duas. Se, portanto, a alma tem
seu próprio existir por ser algo em si, por natureza não se
acrescentaria a ela um corpo, a não ser como matéria à forma.
Arg.17.
Além disso, o existir está para a substância da alma como o ato
dela, por isso ele deve ser o que há de mais elevado na alma. Mas o
inferior não se encontra com o superior no que este tem de mais elevado,
e sim no que tem de menos elevado. Com efeito, diz Dionísio que a
sabedoria divina une os fins dos primeiros princípios aos princípios dos
segundos. Portanto, o corpo, que é menos elevado que a alma, não atinge
o existir, que é o mais elevado da alma.
Arg.18.
Além disso, aquelas coisas que têm um existir uno, terão uma
operação una. Se, portanto, o existir da alma humana unida ao corpo
fosse comum com o corpo, também a operação dela, que é o entendimento,
seria comum à alma e ao corpo. Mas isso é impossível, como se prova no
III livro Sobre a Alma. Não há, portanto, um único existir para a alma
e o corpo. Daí se segue que a alma não pode ser forma do corpo e ao
mesmo tempo algo em si.
Argumentos
em sentido contrário
S.c.1.
Em sentido contrário argumenta-se que a espécie de cada coisa
depende da própria forma daquela coisa. Mas o homem é homem enquanto é
racional. Portanto a alma racional é a própria forma do homem. Ela é,
porém, algo em si e subsistente por si mesma, pois por si mesma opera. De
fato, o entendimento não se dá por um órgão corporal, como se prova no
III livro Sobre a Alma. Portanto, a alma humana é algo em si e, ao mesmo
tempo, forma.
S.c.2.
Além disso, a realização máxima da alma humana consiste no
conhecimento da verdade, que se dá pelo intelecto. Mas para que se cumpra
na alma o conhecimento da verdade, ela necessita estar unida a um corpo
porque a intelecção se dá por imagens, e estas não existem sem o
corpo. Portanto, é necessário que a alma se una ao corpo como forma e
também que seja algo em si.
Conclusão
Eis
minha resposta.
A
expressão “algo em si” em sentido próprio se diz de um indivíduo no
gênero da substância. Com efeito, o filósofo (Aristóteles) afirma a
propósito dos predicamentos que as substâncias primeiras sem dúvida
significam algo em si, mas as substâncias segundas, mesmo que pareçam
significar algo em si, no entanto significam muito mais “tal coisa”.
Ora, o indivíduo no gênero da substância não somente tem como característica
poder subsistir por si como também ser completo em alguma espécie e gênero
de substância. Daí porque o filósofo, também a propósito dos
predicamentos, chama a mão e o pé, ou coisas parecidas, de partes da
substância, e não de substâncias primeiras ou segundas. De fato, embora
não tenham outra coisa como sujeito (como é próprio da substância não
ter), no entanto não participam completamente da natureza de alguma espécie,
e, portanto, não estão em alguma espécie ou gênero a não ser por redução.
Considerando
essas duas características da noção de “algo em si”, podemos dizer
que alguns (pensadores) retiraram a ambas da alma humana. Disseram, por
exemplo, que ela é apenas uma harmonia, como Empédocles, ou um conjunto,
como Galeno. Assim pois a alma nem poderia subsistir por si, nem ser algo
completo em alguma espécie ou gênero de substância. Seria somente uma
forma, semelhante a outras formas materiais.
Mas
esta posição não se sustenta nem mesmo para a alma vegetal uma vez que
suas operações requerem algum princípio que ultrapasse as qualidades
ativas e passivas as quais nas operações de nutrição e crescimento se
fazem presentes apenas instrumentalmente, como fica provado no II livro
Sobre a Alma. De fato, conjunto e harmonia não transcendem as qualidades
elementares.
De
modo semelhante isso também não se sustenta quanto à alma sensível
cujas operações consistem na recepção de imagens sem a matéria, como
se prova no II livro Sobre a Alma, uma vez que as qualidades ativas e
passivas, sendo disposições da matéria, não se estendem além dela.
Muito
menos ainda se pode sustentar essa posição para a alma racional. Com
efeito, suas operações, requeridas para o conhecimento do universal, são
a intelecção e a abstração de imagens não só da matéria, mas de
todas as condições materiais individualizantes. E, além disso, outra
coisa deve ser considerada ainda na alma racional: ela não só recebe as
imagens inteligíveis sem matéria e sem as condições materiais, mas
também não é possível que sua operação própria seja também a operação
de algum órgão corporal, de modo que assim algo corporal seja o órgão
do entendimento propriamente dito, da mesma forma que os olhos são o órgão
da visão, como fica provado no III livro Sobre a Alma. É necessário,
portanto, que a alma intelectiva tenha por si uma ação, uma operação
própria da qual não participa nenhum corpo. E como cada coisa age na
medida em que é ato, é necessário que a alma intelectiva tenha o
existir por si de modo absoluto, não dependendo do corpo. As formas que têm
o existir dependente da matéria ou do sujeito, não operam por si: com
efeito, não podemos dizer que é o calor que age, mas o corpo quente.
Por
causa disso os filósofos posteriores pensaram que a parte intelectiva da
alma era algo subsistente por si. De fato, o filósofo (Aristóteles)
disse, no III livro Sobre a Alma, que o intelecto é uma certa substância
e não se corrompe. A essa mesma posição chega Platão quando afirma que
a alma é imortal e subsistente por si uma vez que ela se move a si mesma.
Com efeito, ele entende movimento no sentido amplo de qualquer tipo de
operação podendo assim pensar que o intelecto se move a si mesmo, pois
opera por si.
Contudo,
indo mais longe, Platão afirmou que a alma humana não apenas subsistia
por si mesma, mas também que ela tinha em si mesma a natureza completa da
espécie humana. Ele afirmava, pois, que toda natureza da espécie estava
na alma, e dizia que o ser humano não era algo composto de alma e corpo,
mas que era uma alma que vinha a um corpo, de modo que a alma estivesse
para o corpo assim como o navegante está para a embarcação, ou como
alguém vestido está para a roupa.
Mas
essa opinião é insustentável. É evidente que aquilo pelo que vive um
corpo, é a alma; mas como para os seres vivos viver é existir, a alma
será aquilo pelo que o corpo humano tem o seu existir em ato. Mas ser
isso é ser forma. Portanto a alma humana é a forma do corpo. Assim
sendo, se ela estivesse no corpo como o navegante na embarcação, ela não
daria ao corpo a espécie humana, como também não às partes dele. Mas
é o contrário que fica evidente, a partir do seguinte: afastando-se a
alma, cada parte do corpo não mantém seu nome anterior a não ser em um
sentido equívoco. De fato, o olho de um morto só é chamado olho em
sentido equívoco, assim como são chamados de olhos os olhos de uma
pintura ou de uma escultura. E coisa semelhante acontece com as outras
partes do corpo. Além disso, se a alma estivesse no corpo como o
navegante na embarcação, daí se seguiria que a união da alma e do
corpo seria uma união acidental. A morte, que induz a separação deles,
não seria uma corrupção substancial, o que é evidentemente falso.
Resta,
portanto, que a alma é algo em si enquanto podendo subsistir por si; não
enquanto tendo em si a natureza completa da espécie humana, mas enquanto
leva ao seu termo a natureza humana pelo fato de ser forma do corpo. Assim
sendo, ela é forma e algo em si.
Isso
pode ser compreendido considerando-se a seqüência ordenada das formas
naturais. As formas dos corpos inferiores (sublunares) incluem aquelas que
são tão mais elevadas quanto mais se assemelham aos princípios
superiores e se aproximam deles. Isso pode ser examinado a partir das próprias
operações das formas.
As
formas dos elementos, que são as mais inferiores de todas e mais próximas
da matéria, não têm uma operação que vá além das qualidades ativas
e passivas como ser diluído ou denso ou outras qualidades semelhantes,
que parecem ser disposições da matéria.
Acima
dessas formas, porém, existem aquelas dos corpos compostos que, além das
operações mencionadas, têm uma operação conforme sua natureza, em
dependência dos corpos celestes. Assim, por exemplo, o imã atrai o ferro
não por causa do calor ou do frio ou algo semelhante, mas a partir de uma
certa participação da energia celeste.
Acima
dessas formas, porém, existem, em seguida, as almas das plantas, as quais
têm uma semelhança não só com os próprios corpos celestes, mas com
aquelas coisas que movem os corpos celestes, na medida em que são princípios
de seu próprio movimento pois se movem a si mesmas.
Acima
dessas, além disso, existem as formas dos animais que já têm uma
semelhança com a substância que move os corpos celestes, não só na
operação pela qual essas substâncias movem os corpos, mas também nisto
que em si mesmas elas são capazes de conhecimento; e isso mesmo
levando-se em conta que o conhecimento dos animais seja somente material e
de coisas materiais decorrendo daí sua estrita dependência de órgãos
corporais.
Acima
dessas formas, porém, em último lugar, estão as almas humanas, que têm
semelhança com as substâncias superiores também no gênero do
conhecimento, uma vez que podem conhecer o que é imaterial pelo
entendimento. Diferem, porém, das substâncias superiores nisso que os
intelectos das almas humanas são de natureza a adquirir o conhecimento do
que é imaterial a partir do conhecimento do que é material, o que
acontece pelos sentidos. Assim portanto, pela operação da alma humana, o
modo de seu próprio existir pode ser conhecido. Enquanto tem uma operação
que transcende o material, seu existir está elevado acima do corpo, não
dependendo dele; mas enquanto o conhecimento imaterial por sua natureza
ela o obtém a partir do material, é claro que a completude da sua
natureza não pode existir sem a união do corpo. Com efeito, nada é
completo em sua natureza a não ser que tenha aquilo que é requerido para
sua operação própria. Se portanto a alma humana, enquanto se une ao
corpo como forma, tem o existir elevado acima do corpo e não dependente
dele, é claro que ela própria está no limite das realidades corporais e
das substâncias separadas, estando aí constituída.
Respostas
aos argumentos
Resp.1.
Em relação ao primeiro argumento, portanto, deve-se dizer que
embora a alma tenha o existir completo, no entanto não se segue que o
corpo se una a ele acidentalmente; seja porque aquele mesmo existir que é
da alma se comunica ao corpo de modo que o existir do composto todo seja
único; seja também porque, mesmo que possa subsistir por si, no entanto
não tem a natureza completa da espécie, mas o corpo lhe advém
justamente para a completude da natureza da espécie.
Resp.2.
Em relação ao segundo argumento deve-se dizer que cada coisa tem
o existir e a concretude individual a partir do mesmo princípio. Os
universais abstratos não têm o existir na realidade natural enquanto são
universais, mas só enquanto são concretamente individualizados.
Portanto, assim como o existir da alma tem origem em Deus como princípio
ativo e se realiza materialmente no corpo sem que por isso ela pereça com
o perecimento do corpo, assim também a concretude individual da alma,
mesmo tendo alguma relação com o corpo, não perece pelo fato de o corpo
perecer.
Resp.3.
Em relação ao terceiro argumento deve-se dizer que a alma humana
não é algo em si como substância que tem a natureza completa da espécie,
mas como parte do que tem a natureza completa da espécie, como se
evidencia a partir do que já foi dito. Por isso o argumento não vale.
Resp.4.
Em relação ao quarto argumento deve-se dizer que, embora a alma
humana possa subsistir por si, contudo não tem por si a natureza completa
da espécie. Portanto não podemos dizer que almas separadas do corpo
constituam um dos graus dos seres.
Resp.5.
Em relação ao quinto argumento deve-se dizer que o corpo humano
é matéria proporcionada à alma humana, pois se compara a ela como a potência
ao ato. Nem por isso, no entanto, é necessário que como potência seja
adequado ao ato no poder de ser, pois a alma humana não é uma forma
totalmente envolvida pela matéria. E isso é evidente a partir do fato de
que uma de suas operações supera a matéria. Pode-se contudo falar de
outra maneira, de acordo com a sentença da fé, isto é, que o corpo
humano no princípio foi constituído de algum modo incorruptível, e pelo
pecado incorreu na necessidade de morrer, mas na ressurreição novamente
será liberado dessa necessidade. Portanto é por acidente (e não
essencialmente) que ele não atinge a imortalidade da alma.
Resp.6.
Em relação ao sexto argumento deve ser dito que a alma humana
mesmo sendo subsistente é composta de potência e ato. De fato, a própria
substância da alma não é seu existir mas compara-se a ele como potência
ao ato. Não se segue daí, no entanto, que a alma não possa ser forma do
corpo, porque mesmo em outras formas aquilo que é forma e ato por comparação
ao todo unificado, é potência em comparação a outra coisa. Assim, por
exemplo, a transparência advém ao ar como forma, mas em relação à luz
ela é potência.
Resp.7.
Em relação ao sétimo argumento deve-se dizer que a alma se une
ao corpo tanto por causa do bem que é seu acabamento substancial de modo
que unida ela complete a natureza humana, quanto por causa do bem
acidental de modo que atinja sua realização quanto ao conhecimento
intelectual que na alma humana é adquirido mediante os sentidos como modo
humano natural de entendimento. Se as almas separadas das crianças e de
outros homens usam outro modo de entendimento, isso não é objeção,
pois tal coisa cabe a essas almas mais em razão de sua separação do que
em razão da natureza humana.
Resp.8.
Em relação ao oitavo argumento deve-se dizer que não pertence à
noção de algo em si que seja composto de matéria e forma, mas somente
que possa subsistir por si. Então, embora ser algo em si seja uma
característica do composto, isso não significa que outra coisa não
possa ser também algo em si.
Resp.9.
Em relação ao nono argumento deve-se dizer que existir em outro,
como um acidente existe no sujeito, impede que alguma coisa seja algo em
si. Mas existir em outro como parte (como a alma está no homem) não
exclui absolutamente que aquilo que assim existe em outro possa ser dito
também algo em si.
Resp.10.
Em relação ao décimo argumento deve-se dizer que com a corrupção
do corpo a alma não perde a natureza pela qual a ela compete ser forma,
embora neste caso ela não estruture a matéria em ato de modo que assim
seja forma.
Resp.11.
Em relação ao décimo primeiro argumento deve-se dizer que, considerando
o princípio a partir do qual se processa uma operação, o entendimento
intelectual é uma operação própria da alma. De fato, ele não se
processa mediante um órgão corporal, como acontece com a visão que
ocorre mediante os olhos. Contudo, o corpo participa dessa operação por
parte do seu objeto, pois as imagens, que são objeto do entendimento, não
podem existir sem órgãos corporais.
Resp.12.
Em relação ao décimo segundo argumento deve ser dito que mesmo
que haja alguma dependência da alma em relação ao corpo, pois sem o
corpo não se completa a natureza de sua espécie, no entanto essa dependência
não é tal que ela não possa existir sem o corpo.
Resp.13.
Em relação ao décimo terceiro argumento deve-se dizer que, sendo
a alma forma do corpo, eles devem ter em comum um existir uno. E este é o
existir do composto. O fato de alma e corpo serem de gêneros diversos não
impede isso, pois nem um nem outro estão numa espécie ou num gênero a não
ser por redução, assim como as partes só por redução pertencem à espécie
ou ao gênero do todo.
Resp.14.
Em relação ao décimo quarto argumento deve-se dizer que nem
forma nem matéria se corrompem em sentido próprio, e nem tampouco o seu
próprio existir, pois o que se corrompe é o composto. Dizemos que o
existir do corpo é corruptível na medida em que o corpo, pela corrupção
(do composto), fica sem aquele existir que era seu e da alma em comum, e
que permanece na alma subsistente. É por isso também que se diz que o
existir do corpo provém da junção de partes, porque de suas partes o
corpo é constituído de uma determinada maneira, de tal modo que possa
receber o existir da alma.
Resp.15.
Em relação ao décimo quinto argumento deve-se dizer que nas
definições das formas às vezes se coloca o sujeito como informe, como
quando se diz que o movimento é ato do que está em potência. Mas às
vezes se coloca o sujeito como formado, como quando se diz que o movimento
é ato do móvel, ou a luz é ato do que é luminoso. É deste modo que se
diz que a alma é ato de corpo físico orgânico, porque a alma faz o próprio
existir do corpo orgânico, assim como a luz faz algo ser luminoso.
Resp.16.
Em relação ao décimo sexto argumento deve-se dizer que princípios
essenciais de uma espécie não se ordenam ao existir somente, mas ao
existir desta espécie. Portanto, embora a alma possa existir por si, ela
não pode, na completude de sua espécie, existir sem corpo.
Resp.17.
Em relação ao décimo sétimo argumento deve-se dizer que embora
o existir seja o que há de mais formal em tudo, no entanto é também o
que há de mais comunicável, embora não seja do mesmo modo que se
comunica aos inferiores e aos superiores. Assim, portanto, o corpo
participa do existir da alma, mas não tão nobremente como a própria
alma.
Resp.18.
Em relação ao décimo oitavo argumento deve-se dizer que apesar
de o existir da alma ser de certo modo o existir do corpo, o corpo não
alcança o existir da alma participando dele em toda sua nobreza e potência.
E então pode haver uma operação da alma da qual o corpo não participa.
COMENTÁRIOS
1)
Já no título (na pergunta inicial), como em todo artigo, a palavra forma
em latim está sendo traduzida por “forma” em português. Isso é
usual sempre que o contexto remete à teoria hilemórfica segundo a qual
todas as coisas de nosso mundo são constituídas de matéria e de forma,
em composição. Só que, neste contexto, nem matéria nem forma são
entendidos como entidades elementares, mas sim como princípios metafísicos
necessários para compreendermos as transformações que vemos no mundo
material. Embora “forma” em português seja a tradução usual para forma
em latim, ela pode não ser a melhor. Matéria é o aspecto indeterminado
(mas determinável) das coisas, e forma é seu aspecto determinado,
definido, estruturado. Numa transformação a forma muda e a matéria
permanece. Poderíamos então traduzir forma por “estrutura”
(determinante e dinamizadora): aquilo que faz uma coisa ser tal coisa e
funcionar, ou operar, conforme seu dinamismo próprio (tanto na linha de
sua própria realização, como na da evolução do mundo, diríamos nós).
Complementarmente deveríamos traduzir matéria por uma expressão
como “base determinável” (a base determinável de nosso mundo
material), ou algo parecido. A forma não deve pois ser entendida, aqui
neste contexto, como a disposição externa das partes, ou a configuração
aparente; e a matéria não deve ser entendida como elemento material
constituinte. Para se aproximar do sentido original o leitor poderá
substituir sempre “forma” por “estrutura”, e “matéria” por
“base determinável” (ou “base passível de determinação”).
2)
O que traduzimos por “algo em si mesmo” corresponde ao latim hoc
aliquid. Esta expressão latina significa algo concreto, algo para o
que poderíamos apontar com o dedo e dizer “isso aí” ou “essa coisa
que está aí”. Na conclusão do artigo Tomás de Aquino vai se referir
a algo em si como algo subsistente, quer dizer, que tem existência própria.
Assim sendo a pergunta inicial desse artigo poderia ser traduzida mais
livremente da seguinte forma: “se a alma humana pode ser ao mesmo tempo
estrutura de alguma coisa e alguma coisa em si mesma subsistente”.
Fazendo essa oposição como questão inicial ele aborda o cerne da questão
da alma humana. Por um lado nós temos a afirmação da tradição aristotélica
de que a alma é “forma”, ou seja, estrutura constituinte, aspecto
determinado e determinante do organismo humano, aquele aspecto pelo qual
ele se manifesta e pode ser conhecido como um tal organismo. E por outro
lado temos a afirmação não menos respeitável, de tradição platônica
e agostiniana, de que a alma humana tem manifestações tão independentes
da matéria que nos fazem pensar nela como algo em si, com uma consistência
ontológica própria e independente. Se essas duas afirmações fossem
radicalizadas poderíamos dizer, de um lado, que a alma não é nenhuma
entidade independente mas tão somente o aspecto definido deste corpo tal
como ele é, e, de outro lado, que ela é uma entidade independente do
corpo, em si mesma consistente. Toda a questão deste artigo primeiro
consiste em saber como conciliar as intuições que estão por trás
dessas duas afirmações. Atualmente diríamos: como conciliar a consciência
que temos de nossa subjetividade intencional (que parece não ter nada a
ver com a matéria enquanto massa inerte) com a consciência de que somos
nosso corpo (e identificamo-nos com nossa massa corporal).
3)
O caminho da resposta do mestre aquinense passa por uma reflexão que se
enraíza na linguagem corrente. Seu projeto nesse texto (como em outros
aliás) não é de responder
àquela outra pergunta que se referiria a como funciona o organismo humano
(como é a pergunta da ciência moderna que deve ser respondida com a
verificação das relações entre as partes materiais desse organismo,
partes que se exteriorizam uma em relação à outra). Ele visa, sim,
responder à pergunta hermenêutica sobre como podemos pensar a realidade
humana coerentemente com nossa experiência aparentemente contraditória,
isto é, de tal forma que possamos conciliar tudo que está presente em
nossa consciência pessoal. Ocorre que nosso falar e a montagem de nosso
idioma já enfrenta esse desafio. Podemos, então, começar por um exame
mais aprofundado de nossos modos de linguagem: em que sentidos usamos os
conceitos? Este é o teor do projeto do texto medieval que aqui estudamos.
4)
A expressão “algo em si” se aplica normalmente a coisas subsistentes
e não a atributos de coisas subsistentes. Este homem, esta planta, esta
pedra são algo em si. A cor cinza desta pedra não é algo que subsista
por si, mas sim uma qualidade que atribuímos à pedra: algo que existe
nela como em seu sujeito. Assim organizamos a linguagem. A cor não é
sujeito, mas existe num sujeito. Ela não é uma substância, mas um
acidente que existe numa substância. O que Aristóteles chamava de substância
primeira corresponde àquilo que em primeiro lugar merece o nome de substância:
o concreto individual subsistente (esta pedra), e não a idéia abstrata
que nos diz o que é a coisa (pedra em geral). A idéia abstrata, ou a essência,
corresponde ao que em segundo lugar (e não de modo tão próprio) podemos
chamar de substância: é a substância segunda. Só aquilo que
primeiramente é designado como substância (a substância primeira) é
algo em si; o que derivadamente é designado como substância (a substância
segunda) é a essência abstrata ou idéia de alguma coisa que, somente
quando realizada concreta e individualmente, poderá ser propriamente
chamada de algo em si. José, João ou Sócrates são substâncias
primeiras. Homem é substância segunda. Por outro lado, conforme o
aquinense pôde ler, Aristóteles ainda dizia que partes materiais da
substância, como as mãos ou os pés do homem, também não são substância
nem primeira nem segunda. São justamente partes da substância. E nem são
propriamente atributos, pois não estão no sujeito como se fosse uma
qualidade do todo. A qualidade do todo não é parte, é aspecto. A mão
é parte. Mas a mão, de modo semelhante com uma qualidade do todo,
enquanto humana e viva, não subsiste em si. Ela é parte, e é só
enquanto tal que pode ser dita humana. Em si mesma ela não é o ser
humano completo. Partindo dessas reflexões Tomás assume como possíveis
características da noção de “algo em si” o fato de ser subsistente,
ser sujeito (e não ser
atributo ou parte de outra substância), e também o fato de esse algo ter
em si mesmo a natureza completa de uma espécie (não sendo suficiente ser
parte ou aspecto de alguma natureza). Com essas noções em mente ele fará
uma leitura da história do pensamento sobre a questão da alma humana.
5)
Dizer que a alma humana seria apenas a harmonia do todo (como dizia Empédocles)
ou nada mais que o conjunto das partes (como dizia Galeno) remete a uma
concepção atomista da realidade: as coisas de nosso mundo não seriam
mais do que arranjos de elementos materiais preexistentes. São esses
elementos preexistentes que seriam as verdadeiras substâncias. O ser
humano, como um todo substancial unificado, seria uma ilusão. Empédocles
e Galeno retiram da alma o ser sujeito e o corresponder à natureza
completa da espécie humana. Tomás considera que essa é uma visão por
demais simplificada da realidade. Já ao nível das plantas, as operações
que as caracterizam (nutrição e crescimento) ultrapassam as qualidades
isoladas dos elementos, mesmo quando usam instrumentalmente essas
qualidades. Diríamos: o todo tem uma consistência que não se reduz à
soma das partes. Diríamos também: as plantas têm uma “alma” que não
é simplesmente como as formas, ou estruturas materiais, das coisas não
vivas. Isso fica mais claro ainda nos animais e particularmente no ser
humano. As operações do animal pressupõem a captação sensorial de
objetos através de representações que se separam deles em sua
materialidade, e que correspondem intencionalmente a eles. E no ser humano
essa relação imaterial é maior ainda. A imagem ou representação,
quando se trata do conhecimento intelectual (o entendimento propriamente
dito), é universal, não se prende nem mesmo à realização individual
dos objetos. Tal imaterialidade, típica do entendimento, não pode ser do
nível de uma operação de órgão corporal (nos moldes como o ver é uma
operação do olho). Ora, pensa Tomás de Aquino, se uma tal operação
existe, se de fato entendemos a natureza de alguma coisa ou de um problema
qualquer, como um ato que em si mesmo não pode se identificar com nenhuma
função corporal (embora possa se apoiar instrumentalmente em atos
corporais ou operações de órgãos), então o princípio dessa operação
deve ser algo em si, com uma certa independência. A alma humana deve ser
algo em si, pois opera por si.
6)
Baseando-se nisso tanto Platão como Aristóteles afirmavam que a alma
humana, princípio da operação do entendimento, tinha que ser
subsistente por si. Mas Platão foi mais longe, conforme entendeu Tomás
de Aquino, e disse que o ser humano é basicamente a alma, ou seja, que
toda natureza humana se cumpre essencialmente nela. E a alma, completa em
si mesma, habita em um corpo estando nele como um navegante está na
embarcação. Daí porque aliás, posteriormente, muitas conclusões práticas
puderam ser inferidas: o que o ser humano busca em vista de sua realização
plena é livrar-se do corpo. Mas o aquinense não acompanha Platão neste
ponto. Para ele a natureza humana não está completa sem o corpo: a opinião
de Platão não se pode sustentar. É preciso entender bem o que significa
alma. Trata-se da estrutura material de um ser vivo, ou seja, de um ser
capaz de mover-se a si mesmo como um todo, em vista de sua preservação e
desenvolvimento. A estrutura que dá conta dessa originalidade, que dá
conta dessa unidade e autonomia, é forma sim, contudo uma forma diferente
das outras que não precisam garantir tal grau de coesão. Por isso essa
forma se chama alma. Mas ela não deixa de ser forma do corpo; determinação,
definição, dinamismo dessa porção reunida de matéria. A alma é
aquilo pelo que um ser de nosso mundo é dito vivo (autônomo, que se move
a si mesmo visando sua própria preservação e crescimento), e no caso da
alma humana, é aquilo pelo que este ser (material) é um ser humano
(capaz de operações como o entendimento). A alma é, pois, forma, e como
tal ela não pode ter a natureza completa da espécie humana. O ser humano
é um corpo humano vivo, é uma alma estruturando uma porção reunida de
matéria e não uma alma que habita num corpo. A conclusão de Tomás de
Aquino é que a alma humana é algo em si (pois é princípio de uma operação
que em si mesma transcende a materialidade embora se apóie nela), mas não
enquanto contendo a natureza completa da espécie humana (pois essa
natureza inclui um corpo material). Como compreender isso? É o que ele
vai mostrar contemplando os graus de emergência das formas em relação
à materialidade pura.
7)
A hierarquia das formas se manifesta a partir das suas operações, isto
é, das operações que decorrem das estruturas dinâmicas constituintes
das coisas. Em primeiro lugar temos os elementos simples, que existem
independentemente, mas que também estão na origem das coisas de nosso
mundo. As operações desses elementos são intimamente ligadas à matéria
pois dependem de qualidades materiais simples. No tempo de Tomás de
Aquino os elementos eram terra, água, fogo e ar, mas ele não entrava
muito no mérito de saber se eram estes mesmos, ou só estes; ele aceitava
o que diziam os físicos naturalistas da época. E as qualidades desses
elementos eram a densidade ou concentração maior ou menor, a temperatura
maior ou menor, o grau de umidade; mas aqui também ele parecia saber que
essas descrições poderiam ser melhoradas, pois não entrava na discussão
de seu mérito, aceitando simplesmente o que diziam os cientistas. Cada
elemento age de acordo com a natureza e as propriedades que lhe são
inerentes. - Um pouco acima dos elementos estão os corpos mais complexos,
compostos a partir deles em diversas quantidades e proporções. Estes
corpos mais complexos já mostram uma operação que decorre de uma
energia que não depende simplesmente dos elementos. Para o aquinense a
fonte dessa energia outra, que diferencia o comportamento do composto do
comportamento dos seus elementos constituintes, estava nos astros (corpos
celestes) sob o influxo dos quais os elementos se fundiam num ser novo.
Essa diferença quanto à origem das energias está mostrando a diferença
de nível entre os elementos simples (e os
aglomerados de elementos simples) e os corpos compostos: as
propriedades de um composto não são simplesmente as mesmas que as dos
elementos somadas (se é que se trata de verdadeiro composto, e não um
simples aglomerado). Diríamos: o composto apóia-se nos elementos mas os
transcende. - Um outro passo, que inaugura uma nova ordem de coisas, é a
vida. Nas plantas, seres vivos mais simples, a energia nova atua no
sentido de constituir uma unidade autônoma, que busca sua preservação e
crescimento. Para Tomás essa autonomia traz uma semelhança com a origem
da energia que permite primeiro a formação do composto e depois a
constituição do ser vivo. Para ele essa origem estava nos espíritos
superiores que moviam os corpos celestes (e que eram seres vivos). Ou
seja, ele identificava uma nova diferença de grau nos seres vivos (em
relação aos compostos e aos elementos simples). As operações do ser
vivo, que é um ser mais complexo que o simples corpo composto, embora
também se apóiem nos elementos, transcendem ainda mais suas qualidades.
É por causa dessa complexidade que a forma do ser vivo chama-se alma, mas
ela não deixa de ser uma forma (ou seja, uma estrutura). E nos animais a
complexidade e a transcendência das estruturas é ainda maior que nas
plantas, pois neles se manifesta a operação do conhecimento. Embora
neles o conhecimento ocorra em estrita dependência de órgãos corporais,
em si mesmo esse conhecimento representa uma interioridade maior, ou seja,
uma abertura maior do ser para o mundo concreto, num tipo totalmente
original de relação (se comparado com as operações da planta e dos
simples corpos compostos). O animal pode ver (ouvir ou farejar), e sua
vida transcorre em dependência disso. Aqui a forma (alma), começa a se
desprender mais da materialidade embora dependendo dela ainda.
8)
No ápice dessa hierarquia encontra-se o ser humano. A operação que o
caracteriza supõe uma transcendência máxima em relação às
propriedades elementares e aos órgãos corporais. O conhecimento da
natureza das coisas, o raciocinar assim a partir de noções abstratas, o
tipo de afeição que se torna possível quando se conhece a essência, a
interioridade, representam um emergir ainda maior da forma, a ponto dela
se tornar algo em si mesma. A intencionalidade das operações
propriamente humanas (principalmente o conhecimento intelectual e a decisão),
por mais que se apóie em operações de órgãos corporais, não é um
ato imediato deles.
9)
Qual é a visão que está em jogo nessa conceituação do aquinense? Não
mais a visão da forma como uma espécie de estrutura fechada e de mesmo nível
que a matéria (variando apenas quantitativamente), mas sim uma visão
mais dinâmica de um princípio constituído a partir da origem dos
movimentos do universo e que no interior das coisas se manifesta por operações
que vão transcendendo progressivamente a pura materialidade. Para o
aquinense a forma não está fechada na matéria, mas é uma estruturação
dinâmica que, explorando as potencialidades inerentes dessa própria matéria
elementar, tira proveito dela e emerge cada vez mais acima dela. Só assim
poderemos entender que a alma humana, no ápice dessa hierarquia, ao mesmo
tempo que estrutura do corpo (ou forma), é também algo em si, tendo uma
vida própria que já não se compreende totalmente por redução às
propriedades dos elementos e nem mesmo dos órgãos corporais.
10)
A solução de Tomás de Aquino implica numa mudança na concepção usual
de forma. Se ela for concebida como fechada na matéria, não haverá como
acolhermos a experiência da subjetividade intencional sem apelarmos para
o dualismo: o corpo é uma coisa e a alma é outra. Ou então eliminaríamos
a alma, e com isso reduziríamos nossa experiência subjetiva a um epifenômeno
totalmente irrelevante. Se a forma for concebida como uma espécie de
propriedade embutida nas possibilidades da matéria (como a rigor poderíamos
dizer que são as formas dos corpos inertes) teremos que ficar com o
materialismo monista (homem sem alma) ou ficar com o dualismo cartesiano
(o homem é uma alma prisioneira num corpo). Na linha do pensamento do
aquinense nenhuma dessas duas posições é necessária. As formas não
devem ser concebidas sob o modelo dos corpos sem vida, sem abertura para
uma complexidade maior. Diríamos nós: além de elas serem princípios do
dinamismo caracterizado pelas operações da vida (que visam a preservação
e expansão do organismo), elas são princípios da própria auto-superação
do organismo. Tomás de Aquino não via isso nas transformações
evolutivas que ocorrem ao longo do tempo como nós vemos hoje (ele
restringia a evolução apenas aos primeiros momentos do universo), mas na
consideração cuidadosa da hierarquia de complexidades atuais das formas.
E uma vez afirmada essa variação nos níveis de complexidade das formas,
ele podia dizer que o princípio dessa transcendência em relação à matéria
já se manifesta inclusive nos compostos cujas operações ultrapassam as
simples propriedades dos elementos originalmente componentes. Nossa
interpretação, então, é que, na linha de seu pensamento, a energia
transformadora das coisas é um aspecto das formas (estruturas) de nosso
mundo, e não da matéria inerte. Esta, a matéria, não é senão um
receptáculo passivo e limitado dessa energia. Nos termos de uma
psicologia atual diríamos que a consciência de nossa subjetividade
intencional não se opõe à consciência de sermos nosso próprio corpo.
E isso é assim porque por nós (por nosso corpo) passa essa energia que
anima o universo conduzindo-o para seu acabamento ou plenitude.
11)
Ampliaremos a visão que Tomás de Aquino nos sugere sobre a alma humana
traduzindo e comentando em próximas publicações os demais artigos dessa
Questão Disputada.
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Nota
sobre o autor
Mauro
Martins Amatuzzi,
Psicólogo, doutor em Educação, é professor titular no Programa de Pós-Graduação
em Psicologia, Mestrado e Doutorado, da PUC-Campinas. É membro do Grupo
de Pesquisa “Psicologia e Religião” da Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-Graduação em Psicologia. Contato: amatuzzi2m@yahoo.com.br
Data
de recebimento: 27/06/2005
Data de aceite: 25/09/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/amatuzzi03.htm