Resenha
A
experiência da verdade na palavra
The
experience of truth in word
Miguel
Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Manganaro,
P. (2005). L’esperienza della verità nella parola:
filosofia, linguaggio, rivelazione. Roma: Lateran University
Press.
O
título do recém-lançado livro de Patrizia Manganaro - A experiência
da verdade na palavra - é assumidamente audacioso. E corresponde
vivamente ao empenho audaz da autora ao enfrentar temas tão polêmicos
quanto urgentes em nosso momento cultural: experiência reduzida a
verificação empírica na lógica do cálculo, medida e funcionalidade; verdade
desqualificada em seu fundamento epistemológico pelo pensamento fraco,
pela postura cética, pela fragmentação do saber; linguagem
pragmaticamente substituindo o real. Some-se a tudo isso o problema de
tomar posição clara e fundamentada no debate contemporâneo sobre a
dizibilidade de Deus.
Consciente
desse contexto, a autora se propõe a responder à questão de qual seja o
lugar próprio da linguagem e se a mediação por ela operada entre
filosofia e revelação possibilita conduzir a uma experiência de verdade
que fosse compartilhada por esses dois âmbitos de saber, exibida por cada
um em seu próprio campo.
De fato, “há
um saber no crer e há um crer em todo saber.” (p. 63). E Manganaro, em
sua obra, freqüentemente recorre a Wittgenstien para nos lembrar que a dúvida
pressupõe a certeza, o saber repousa no crer, que a crença não
necessita de demonstração ou justificação, que aprendemos sobretudo a
agir de certo modo, e que nossa linguagem é e permanece inadequada frente
à alteridade (mundo tanto quanto Deus).
A
famosa a dicotomia do Tractatus de Wittgenstein – segundo a qual
é possível dizer somente os “fatos” do mundo, já que o que se
mostra permanece inexprimível, intraduzível em linguagem humana – vem
a ser resolvida no exercício mesmo da ratio como Lebensform
(práxis de experiência vivencial). O que se mostra não pode ser dito,
mas pode ser vivido pessoalmente como Lebensform, na experiência
de encarnação do pensamento na linguagem. Assim, compreender um “jogo
lingüístico” não é diferente de compreender uma “forma de vida”.
Manganaro
aponta um caminho preciso para a superação da interpretação
neo-positivista do pensamento de Wittgenstein indicando a superação do
limite lingüístico na práxis ética: as palavras são ações.
Há também
um saber implícito, um conhecimento tácito, silencioso, um fundo não-expresso,
inexprimível e no entanto prenhe de sentido. Com as noções filosóficas
de “personal knowledge” e “tacit dimension” Michael
Polanyi refere-se a um saber pré-logico: todo processo cognitivo se
fundamenta nesse elemento inexprimível, primitivo, não-articulado.
“Saber que uma afirmação é verdadeira equivale a conhecer mais do que
seja possível exprimir com a linguagem” (p. 65).
A
autora atenta também para as contribuições de Michel Henry com sua
filosofia apegada ao pathos: “o acesso à vida se dá somente
nela, para ela e por meio dela” (p. 35).
Sem
artificialidades, somos favorecidos pela autora a adentrar a “filosofia
do religioso” como fato e/ou fenômeno humano universal, constitutivo,
experiencial. Experiência esta examinada em suas interrogações próprias
como próprias também da razão: um percurso experiencial que investe a
pessoa em sua unidade psicofísica e espiritual. A Ex-per-iri
tomada como intencional disposição à alteridade (necessária para a
constituição do sujeito gnosiológico e da própria pessoa) supera a
fixidade do eu e o fechamento do sujeito entendidos pelos positivistas
como identidade monádica.
O
pensamento filosófico aberto ao exame da experiência religiosa e à sua
instância originariamente/lingüisticamente verídica (a linguagem
religiosa não tem a intenção de ser verificada ou demonstrada, mas
descreve a experiência do ser humano que se dispõe à dimensão
sacro-religiosa, e explicita a livre auto-comunicação do divino que
misteriosamente vem ao nosso tempo e à nossa história) pode examinar a
vivência própria de uma experiência de revelação: o encontro autêntico
entre finito e infinito é transformador porque significa, a um só tempo,
o ativo passar-por e o passivo ser-atravessado-por (conforme
Gerardus van der Leeuw).
Quanto
à forma de conhecimento, faz-se a experiência do limite: “estar na
verdade como misteriosa morada em um território estrangeiro” (p. 48).
Quanto à modalidade de uso da razão, esta se apresenta não fraca ou
curvada sobre si mesma, mas expandindo-se em círculos concêntricos,
“sem esquecer seu ponto de partida” (p. 14). Quanto à linguagem “o
sagrado se mostra dizendo-se simbolicamente. É o mostrar que
fundamenta o dizer, e não o contrário” (p. 33), conforme P.
Ricoeur. E mesmo o silêncio diante do mistério do Outro é um “silêncio
falante, que ecoa a palavra pronunciada (...) um silêncio sapiente,
experiente de plenitude” (p. 68).
Manganaro
examina rigorosamente a Fenomenologia da Linguagem tomando as “formas de
vida” na acepção de Erlebnisse. Para Husserl linguagem é
“expressão secundária de uma apreensão da realidade sedimentada e
articulada mais profundamente (...) porém é sempre e somente através
dela que a estratificação que a precede pode ser dita, comunicada,
intersubjetivamente compartilhada” (p. 123-124). A busca da
fenomenologia é a de reconduzir o conjunto da linguagem às modalidades
pré-lingüísticas de apreensão da realidade, que só em um segundo
momento encontram expressão congruente no discurso.
Confrontando
as contribuições da Fenomenologia e da Filosofia da Linguagem Comum, a
autora conclui que esta
lembra
à fenomenologia que o imediato está perdido, e que é a partir da função
de mediação que a linguagem designa a própria relação com algo que
linguagem não é; por sua vez, a Fenomenologia pode se dirigir à
Filosofia da Linguagem Comum atentando para o perigo de se perder em
abstratos exercícios semânticos: (...) segundo Husserl esse perigo pode
ser evitado se a filosofia remeter a linguagem às modalidades de apreensão
que na linguagem encontram expressão congruente (p. 126)
e
que linguagem não é somente o meio entre ser humano e mundo, mas mais
radicalmente entre uma exigência de logicidade, e uma necessidade de
fundamento no pré-predicativo. E ainda: “Podemos dizer ‘o que’ a
consciência vive com o dizer ‘o que’ ela visa/intenciona. (...) O Erlebnis
é possível somente através de um conteúdo de significado que o
direcione à objetividade intencionada como tal. (p. 178).
Examinando
a Hermenêutica da Linguagem, Manganaro documenta que P. Ricoeur contesta
as filosofias da suspeita com a hermenêutica da escuta –
intersubjetivamente verídica – conferindo importância decisiva à
intenção do texto e de seu autor, voltando-se às condições de
interpretação dos textos. A explicação consiste no conjunto de operações
e mediações objetivas preparatórias à apropriação de sentido,
dissolvendo a separação entre explicação e compreensão.
Na
fenomenologia hermenêutica de Heidegger em Ser e Tempo a
interpretação se mostra como a fase propriamente lingüística da
compreensão. Compreende-se o ente a partir de algumas estruturas de
antecipação: afastando-se de uma compreensão empática da consciência
alheia, compreensão vem a ser interpretada em termos ontológicos como
uma das componentes do Dasein: “um ente que se coloca a questão
sobre o ser a partir das situações e dos projetos concretos, sobre um
fundo de finitude, temporalidade e mortalidade.” (p. 127). No último
Heidegger, em A caminho da linguagem, se superam as abstratas
determinações do “falar” (aquela capacidade de dizer que não
exprime mais o nosso poder, mas o de ser dito) “a caminho” em direção
ao “dizer”.
Com
a hermenêutica de Gadamer: o relacionamento com a obra de arte, p. ex.,
é uma mediação entre o nosso presente de intérprete e os traços do
passado transmitido: constitui uma experiência de verdade radicada em um
horizonte lingüístico fundamental. A linguagem é tomada como médium
dentro do qual se explica toda experiência de sentido.
Relacionando
a fenomenologia de Husserl à filosofia analítica, Manganaro chega a
afirmar:
O
sentido é objetividade que está diante da consciência e é esta
objetividade correlativa à vivência que emerge nos enunciados lingüísticos.
Desse modo, é absurdo opor uma teoria das vivências a uma teoria dos
enunciado. (...) A análise fenomenológica e a análise lingüística se
sustentam mutuamente (p. 180).
Patrizia
Manganaro não somente apresenta e julga um quadro bastante completo a
atual sobre a inter-relação entre experiência, verdade, palavra e fenômeno
religioso, mas apresenta-nos, através de seu trabalho de pesquisa filosófica,
um belo e maduro exemplo de abertura intelectual e da unidade entre razão
e mistério, verdade e indizibilidade, possível de ser atingida quando se
aceita, com abertura à totalidade, interrogar-se com a “audácia típica
da razão”.
Nota sobre o autor
Miguel
Mahfoud é
doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento de
Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de
Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais,
atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade". Contato:
Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG –
Brasil. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br
Data de recebimento:
20/09/2005
Data de aceite:
20/10/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mahfoud03.htm
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