Mahfoud, M. (2005). Fenomenologia e ciências humanas. Memorandum, 9, 155-157. Retirado em    /   /   , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mahfoud03.htm

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Resenha

 

A experiência da verdade na palavra

 The experience of truth in word

 Miguel Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil
 

Manganaro, P. (2005). L’esperienza della verità nella parola: filosofia, linguaggio, rivelazione. Roma: Lateran University Press.

 

O título do recém-lançado livro de Patrizia Manganaro - A experiência da verdade na palavra - é assumidamente audacioso. E corresponde vivamente ao empenho audaz da autora ao enfrentar temas tão polêmicos quanto urgentes em nosso momento cultural: experiência reduzida a verificação empírica na lógica do cálculo, medida e funcionalidade; verdade desqualificada em seu fundamento epistemológico pelo pensamento fraco, pela postura cética, pela fragmentação do saber; linguagem pragmaticamente substituindo o real. Some-se a tudo isso o problema de tomar posição clara e fundamentada no debate contemporâneo sobre a dizibilidade de Deus.

Consciente desse contexto, a autora se propõe a responder à questão de qual seja o lugar próprio da linguagem e se a mediação por ela operada entre filosofia e revelação possibilita conduzir a uma experiência de verdade que fosse compartilhada por esses dois âmbitos de saber, exibida por cada um em seu próprio campo.

De fato, “há um saber no crer e há um crer em todo saber.” (p. 63). E Manganaro, em sua obra, freqüentemente recorre a Wittgenstien para nos lembrar que a dúvida pressupõe a certeza, o saber repousa no crer, que a crença não necessita de demonstração ou justificação, que aprendemos sobretudo a agir de certo modo, e que nossa linguagem é e permanece inadequada frente à alteridade (mundo tanto quanto Deus).

A famosa a dicotomia do Tractatus de Wittgenstein – segundo a qual é possível dizer somente os “fatos” do mundo, já que o que se mostra permanece inexprimível, intraduzível em linguagem humana – vem a ser resolvida no exercício mesmo da ratio como Lebensform (práxis de experiência vivencial). O que se mostra não pode ser dito, mas pode ser vivido pessoalmente como Lebensform, na experiência de encarnação do pensamento na linguagem. Assim, compreender um “jogo lingüístico” não é diferente de compreender uma “forma de vida”.

Manganaro aponta um caminho preciso para a superação da interpretação neo-positivista do pensamento de Wittgenstein indicando a superação do limite lingüístico na práxis ética: as palavras são ações.

Há também um saber implícito, um conhecimento tácito, silencioso, um fundo não-expresso, inexprimível e no entanto prenhe de sentido. Com as noções filosóficas de “personal knowledge” e “tacit dimension” Michael Polanyi refere-se a um saber pré-logico: todo processo cognitivo se fundamenta nesse elemento inexprimível, primitivo, não-articulado. “Saber que uma afirmação é verdadeira equivale a conhecer mais do que seja possível exprimir com a linguagem” (p. 65).

A autora atenta também para as contribuições de Michel Henry com sua filosofia apegada ao pathos: “o acesso à vida se dá somente nela, para ela e por meio dela” (p. 35).

Sem artificialidades, somos favorecidos pela autora a adentrar a “filosofia do religioso” como fato e/ou fenômeno humano universal, constitutivo, experiencial. Experiência esta examinada em suas interrogações próprias como próprias também da razão: um percurso experiencial que investe a pessoa em sua unidade psicofísica e espiritual. A Ex-per-iri tomada como intencional disposição à alteridade (necessária para a constituição do sujeito gnosiológico e da própria pessoa) supera a fixidade do eu e o fechamento do sujeito entendidos pelos positivistas como identidade monádica.

O pensamento filosófico aberto ao exame da experiência religiosa e à sua instância originariamente/lingüisticamente verídica (a linguagem religiosa não tem a intenção de ser verificada ou demonstrada, mas descreve a experiência do ser humano que se dispõe à dimensão sacro-religiosa, e explicita a livre auto-comunicação do divino que misteriosamente vem ao nosso tempo e à nossa história) pode examinar a vivência  própria de uma experiência de revelação: o encontro autêntico entre finito e infinito é transformador porque significa, a um só tempo, o ativo passar-por e o passivo ser-atravessado-por (conforme Gerardus van der Leeuw).

Quanto à forma de conhecimento, faz-se a experiência do limite: “estar na verdade como misteriosa morada em um território estrangeiro” (p. 48). Quanto à modalidade de uso da razão, esta se apresenta não fraca ou curvada sobre si mesma, mas expandindo-se em círculos concêntricos, “sem esquecer seu ponto de partida” (p. 14). Quanto à linguagem “o sagrado se mostra dizendo-se simbolicamente. É o mostrar que fundamenta o dizer, e não o contrário” (p. 33), conforme P. Ricoeur. E mesmo o silêncio diante do mistério do Outro é um “silêncio falante, que ecoa a palavra pronunciada (...) um silêncio sapiente, experiente de plenitude” (p. 68).

Manganaro examina rigorosamente a Fenomenologia da Linguagem tomando as “formas de vida” na acepção de Erlebnisse. Para Husserl linguagem é “expressão secundária de uma apreensão da realidade sedimentada e articulada mais profundamente (...) porém é sempre e somente através dela que a estratificação que a precede pode ser dita, comunicada, intersubjetivamente compartilhada” (p. 123-124). A busca da fenomenologia é a de reconduzir o conjunto da linguagem às modalidades pré-lingüísticas de apreensão da realidade, que só em um segundo momento encontram expressão congruente no discurso.

Confrontando as contribuições da Fenomenologia e da Filosofia da Linguagem Comum, a autora conclui que esta

lembra à fenomenologia que o imediato está perdido, e que é a partir da função de mediação que a linguagem designa a própria relação com algo que linguagem não é; por sua vez, a Fenomenologia pode se dirigir à Filosofia da Linguagem Comum atentando para o perigo de se perder em abstratos exercícios semânticos: (...) segundo Husserl esse perigo pode ser evitado se a filosofia remeter a linguagem às modalidades de apreensão que na linguagem encontram expressão congruente (p. 126)

e que linguagem não é somente o meio entre ser humano e mundo, mas mais radicalmente entre uma exigência de logicidade, e uma necessidade de fundamento no pré-predicativo. E ainda: “Podemos dizer ‘o que’ a consciência vive com o dizer ‘o que’ ela visa/intenciona. (...) O Erlebnis é possível somente através de um conteúdo de significado que o direcione à objetividade intencionada como tal. (p. 178).

Examinando a Hermenêutica da Linguagem, Manganaro documenta que P. Ricoeur contesta as filosofias da suspeita com a hermenêutica da escuta – intersubjetivamente verídica – conferindo importância decisiva à intenção do texto e de seu autor, voltando-se às condições de interpretação dos textos. A explicação consiste no conjunto de operações e mediações objetivas preparatórias à apropriação de sentido, dissolvendo a separação entre explicação e compreensão.

Na fenomenologia hermenêutica de Heidegger em Ser e Tempo a interpretação se mostra como a fase propriamente lingüística da compreensão. Compreende-se o ente a partir de algumas estruturas de antecipação: afastando-se de uma compreensão empática da consciência alheia, compreensão vem a ser interpretada em termos ontológicos como uma das componentes do Dasein: “um ente que se coloca a questão sobre o ser a partir das situações e dos projetos concretos, sobre um fundo de finitude, temporalidade e mortalidade.” (p. 127). No último Heidegger, em A caminho da linguagem, se superam as abstratas determinações do “falar” (aquela capacidade de dizer que não exprime mais o nosso poder, mas o de ser dito) “a caminho” em direção ao “dizer”.

Com a hermenêutica de Gadamer: o relacionamento com a obra de arte, p. ex., é uma mediação entre o nosso presente de intérprete e os traços do passado transmitido: constitui uma experiência de verdade radicada em um horizonte lingüístico fundamental. A linguagem é tomada como médium dentro do qual se explica toda experiência de sentido.

Relacionando a fenomenologia de Husserl à filosofia analítica, Manganaro chega a afirmar:

O sentido é objetividade que está diante da consciência e é esta objetividade correlativa à vivência que emerge nos enunciados lingüísticos. Desse modo, é absurdo opor uma teoria das vivências a uma teoria dos enunciado. (...) A análise fenomenológica e a análise lingüística se sustentam mutuamente (p. 180).

Patrizia Manganaro não somente apresenta e julga um quadro bastante completo a atual sobre a inter-relação entre experiência, verdade, palavra e fenômeno religioso, mas apresenta-nos, através de seu trabalho de pesquisa filosófica, um belo e maduro exemplo de abertura intelectual e da unidade entre razão e mistério, verdade e indizibilidade, possível de ser atingida quando se aceita, com abertura à totalidade, interrogar-se com a “audácia típica da razão”.

Nota sobre o autor

Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade". Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br

Data de recebimento: 20/09/2005
Data de aceite: 20/10
/2005

Memorandum 9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mahfoud03.htm

 

 

 

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