Manganaro, P. (2005). Edith Stein e o nazismo. Memoranum, 9, 157-159. Retirado em       /         , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/manganaro04.htm

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Resenha
 
Edith Stein e o nazismo

Edith Stein and Nazism

 Patrizia Manganaro
Pontificia Università Lateranense

Itália
 

Ales Bello, A. & Chenaux, Ph. (Org.s). (2005). Edith Stein e il nazismo. Roma: Città Nuova.

Santo Padre! (1) Como filha do povo judeu, que por graça de Deus há onze anos é filha da Igreja Católica, ouso expressar ao Pai da cristandade o que preocupa milhões de alemães. Há semanas somos expectadores, na Alemanha, de advertências que contêm um total desprezo pela justiça e pela humanidade, para não falar pelo amor ao próximo. Há anos os chefes do nacional-socialismo têm pregado o ódio contra os hebreus. Agora que chegaram ao poder e armaram seus seguidores – dentre os quais famosos criminosos – a semente do ódio desabrocha (...). Tudo o que aconteceu e acontece quotidianamente vem de um governo que se define “cristão”. Não somente os hebreus, mas também milhares de fiéis católicos da Alemanha e, considero, de todo o mundo, há semanas esperam e têm esperança de que a Igreja de Cristo faça ouvir a sua voz contra tais abusos do nome de Cristo (...). Todos nós, que vemos a atual situação alemã como filhos fiéis da Igreja, tememos o pior para a imagem da própria Igreja se o silêncio se prolognar ulteriormente (pp. 104-105).

Ao pé da página, a assinatura: “Dr.a Edith Stein – Docente no Instituto Alemão de Pedagogia Científica do do Collegium Marianum de Münster” (p. 106).

Com a abertura parcial dos Arquivos Vaticanos tornou-se pública a carta que a filósofa fenomenóloga escreve ao Papa Pio XI para assinalar os perigos da ideologia nacional-socialista e do anti-semitismo. Escrita em abril de 1933, apenas três meses depois de Hitler no poder, essa carta representa um documento de grande valor não somente para estudiosos do pensamento de Edith Stein mas também para historiadores e particularmente para especialistas de história da Igreja, que incluíram Stein no dossiê sobre “silêncios” em relação à perseguição dos judeus na Alemanha nazista. O apelo lúcido, cônscio, responsável, fundamentado em razões éticas, religiosas, espirituais e políticas, foi objeto de reflexão de uma Jornada de Estudos (em 24 de outubro de 2003) na Pontifícia Universidade Laterarense e recentemente publciado na coletânea de ensaios “Edith Stein e o nazismo”, com contribuições de Philippe Chenaux e Hugo Ott (Parte I: Situação histórica), de Angela Ales Bello e Vincent Aucante (Parte II: Questões filosóficas), com Prefácio e Posfácio dos organizadores (Ales Bello e Cheneaux).

Philippe Chenaux, historiador da Igreja, logo coloca algumas interrogações: Pode-se, historicamente, falar de uma explícita postura de “resitência” por parte de Edith Stein ou sua missiva deveria ser interpretada como um gesto isolado, prelúdio de uma espécie de desempenho quanto à vida pública, como o ingresso no Carmelo de Colônia em outubro daquele mesmo ano pareceria confirmar? Há no pensamento de Stein uma específica reflexão filosófico-política sobre a natureza do nazismo e sobre o evento do Terceiro Reich, desse mal absoluto e radical denominado totalitarismo? E ainda: Há vínculos consideráveis entre esta carta, que denuncia os perigos do nacional-socialismo para a fé cristã e a condenação do “neo-paganismo” racista por parte da encíclica Mit brennender Sorge de março de 1937?

Declarando esta última hipótese como “dificilmente demonstrável” (p. 14) ou documentável de um ponto de vista histórico, Chenaux se detém sobre alguns pontos da encíclica, dignos de nota: o vil desrespeito do acordo por parte das autoridades do Terceiro Reich; a incompatibilidade do nazismo (nunca nomeado explicitamente) com as verdades essenciais do cristianismo; a condenação da divinização do povo (trata-se de degeneração do coneito de Volk, como atestam mais adiante o estudo histórico de Hugo Ott e o filosófico de Vincent Aucante), de raça e de Estado; e finalmente a idolatria e o culto neo-pagão, profanação dos conceitos religiosos cristãos fundamentais. Chenaux oferece preciosas contribuições ao estudo da primeira associação filo-semita da história da Igreja, a Opus sacerdotal “Amigos de Israel” (1926), posteriormente condenada pela Congregação do Santo Ofício (1928); e em particular o dossiê sobre “Syllabus” contra o racismo, de 1938. Quanto a este último, ele faz notar o empenho de Pio XI que, preocupado pela difusão de teorias racistas e anti-semitas na Itália, quis ir além de sua denúncia de heresia, definindo o famoso Manifesto da raça (14 de julho de 1938), publicado por un grupo de cientistas italianos, como uma verdadeira forma de apostasia, sem meios termos. Em novembro de 1938 o pontícife escreveu a Mussolini e ao rei, para vivamente protestar contra um projeto de lei racial que impedia o matrimônio entre “arianos” e “não arianos”.

Devemos ao pontual estudo de Angela Ales Bello a compreensão das noções filosóficas de “Estado”, “sociedade civil”, “comunidade”, “massa”, assim como Edith Stein as elaborou na obra juvenil Psicologia e ciências do espírito (de 1922) (2), em Uma pesquisa sobre o Estado (de 1925) (3) e em A estrutura da pessoa humana (de 1932) (4). Formuladas nos anos Vinte, constituem uma ampliação das análises de Adolf Reinach e buscam identificar a “estrutura ôntica” do Estado, seu fundamento no direito, sua gênese, sua função e sua relação com a esfera dos valores. Ales Bello, definindo como central o papel atribuido por Edith Stein à “comunidade”, o relaciona à vida política, social e cultural alemã, onde é determinante (comparada à tradição latina, mais individualista e contratualista) a importância atribuída ao grupo, à associação humana, e até mesmo à estrutura tribal, na qual o vínculo de sangue e aquele estritamente familiar fornecem proximidade. Com a regressão da noção de Volk, voltando a prevalecer os vínculos de sangue e raça, é de fato impedida a abertura espiritual para outros seres humanos. A superação de tais visões acontece justamente no plano do espírito, na Idade Moderna, graças à abordagem idealista (pense-se no empenho ético apontado por Fichte, ou no desvelamento do espírito na passagem da fase subjetiva à objetiva em Hegel), muito apreciada pela escola fenomenológica clássica, a qual estabelece com maior harmonia a relação entre o momento da comunidade e o da individualidade, atribuindo à pessoa humana os momentos correlatos, constitutivos e incindíveis da corporeidade vivente, da psique e do espírito:

Seguindo uma indicação da sociologia de Tönnies, mas retomada pelos maiores expoentes da escola fenomenológica – Husserl e Scheler – Stein considera central a comunidade, como lugar de formação ético-social da pessoa, lugar de solidariedade e de envolvimento recíproco de responsabilidades (...). É importante notar que é sobre a “comunidade estatal” que se fundamenta o Estado. Ainda que entidade jurídica, este último não vive se não for sutentado por um consenso que nasça de uma visão comunitária; portanto pode-se falar de Estado como uma pessoa jurídica caracterizada pela soberania, a qual corresponde à liberdade em sentido pessoal (p. 69).

A concepção cristã da pessoa humana tem um papel fundamental no pensamento de Edith Stein. Trata-se de uma antropologia cristocêntrica, que apreende a complexidade do ser humano tanto no sentido subjetivo quanto no intersubjetivo. Edith Stein mostra – ou melhor, confirma – uma extraordinária visão de conjunto, capaz de levar em conta o particular sempre orientada ao universal. Ales Bello explica:

Segundo Edith Stein, as formas associativas corrrespondem à absolutização dos aspectos constitutivos humanos: se prevalecer a atividade psíquica, então teremos a massa, arrastada pelos impulsos e pelas tomadas de posição espontâneas puramente reativas; se prevalecer o aspecto intelectual da organização finalizada a um objetivo, delinear-se-á a sociedade; se prevalecer a estrutura jurídica, então haverá o Estado. A comunidade mantém sua centralidade em todas essas formas associativas porque envolve o ser humano na sua complexa articulação, fruto de vínculos psíquicos e espirituais através dos quais se delinea propriamente a vida ética, que desemboca no bem da pessoa e do grupo (p. 110).

Nesta ótica, o momento espiritual-religioso não é um simples apêndice da vida associada, mas seu eixo. Em vão seria a busca uma definição explícita de “Estado totalitário” nas obras de Edith Stein, mas seu aflito apelo a Pio XI pode ser lido como denúncia da perda e da manipulação de autênticos valores cristãos e como luta contra a violação dos direitos humanos – esta devida à distorção da fonte judaico-cristã que historicamente determinou a civilização ocidental. Um tema de grande atualidade, na Europa de hoje, dominada pelo debate, nem sempre lúcido ou intelectualmente honesto, sobre suas raízes e fundamentos.

Notas

(1) Tadução de Miguel Mahfoud do inédito original em italiano. [volta]

(2) Cf. Stein, E. (1999). Psicologia e scienze dello spirito: contributi per una fondazione filosófica. 2a. ed. (A. Ales Bello, Aprersent.; A. M. Pezella, Trad.). Roma: Città Nuova. (Publicação original de 1922). [volta]

(3) Cf. Stein, E. (1999). Una ricerca sullo Stato. 2ª. ed. (A. Ales Bello, Trad.). Roma: Città Nuova. (Publicação original de 1925). [volta]

(4) Cf. Tradução italiana: Stein, E. (2000). La struttura della persona umana. (A. Ales Bello, Aprersent.; M. D´Ambra, Trad.). Roma: Città Nuova. (Original de 1932-33).
Cf. Tradução espanhola: Stein, E. (2003). La estructura de la persona humana. 2 ed. Madrid: BAC. [volta]

Nota sobre a autora

Patrizia Manganaro é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na Pontificia Universirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato: patriziamanganaro@yahoo.it

Data de recebimento: 21/09/2005
Data de aceite: 26/09/2005

Memorandum 9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/manganaro04.htm

 

 

 

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