Ales
Bello, A. & Chenaux, Ph. (Org.s). (2005). Edith Stein e il nazismo. Roma: Città Nuova.
Santo
Padre! (1)
Como filha do povo judeu, que por graça de Deus há onze anos é filha da
Igreja Católica, ouso expressar ao Pai da cristandade o que preocupa milhões
de alemães. Há semanas somos expectadores, na Alemanha, de advertências
que contêm um total desprezo pela justiça e pela humanidade, para não
falar pelo amor ao próximo. Há anos os chefes do nacional-socialismo têm
pregado o ódio contra os hebreus. Agora que chegaram ao poder e armaram
seus seguidores – dentre os quais famosos criminosos – a semente do ódio
desabrocha (...). Tudo o que aconteceu e acontece quotidianamente vem de
um governo que se define “cristão”. Não somente os hebreus, mas também
milhares de fiéis católicos da Alemanha e, considero, de todo o mundo, há
semanas esperam e têm esperança de que a Igreja de Cristo faça ouvir a
sua voz contra tais abusos do nome de Cristo (...). Todos nós, que vemos
a atual situação alemã como filhos fiéis da Igreja, tememos o pior
para a imagem da própria Igreja se o silêncio se prolognar ulteriormente
(pp. 104-105).
Ao
pé da página, a assinatura: “Dr.a Edith Stein – Docente no Instituto
Alemão de Pedagogia Científica do do Collegium Marianum de Münster”
(p. 106).
Com
a abertura parcial dos Arquivos Vaticanos tornou-se pública a carta que a
filósofa fenomenóloga escreve ao Papa Pio XI para assinalar os perigos
da ideologia nacional-socialista e do anti-semitismo. Escrita em abril de
1933, apenas três meses depois de Hitler no poder, essa carta representa
um documento de grande valor não somente para estudiosos do pensamento de
Edith Stein mas também para historiadores e particularmente para
especialistas de história da Igreja, que incluíram Stein no dossiê
sobre “silêncios” em relação à perseguição dos judeus na
Alemanha nazista. O apelo lúcido, cônscio, responsável, fundamentado em
razões éticas, religiosas, espirituais e políticas, foi objeto de
reflexão de uma Jornada de Estudos (em 24 de outubro de 2003) na Pontifícia
Universidade Laterarense e recentemente publciado na coletânea de ensaios
“Edith Stein e o nazismo”, com contribuições de Philippe
Chenaux e Hugo Ott (Parte I: Situação histórica), de Angela Ales Bello
e Vincent Aucante (Parte II: Questões filosóficas), com Prefácio e Posfácio
dos organizadores (Ales Bello e Cheneaux).
Philippe
Chenaux, historiador da Igreja, logo coloca algumas interrogações:
Pode-se, historicamente, falar de uma explícita postura de “resitência”
por parte de Edith Stein ou sua missiva deveria ser interpretada como um
gesto isolado, prelúdio de uma espécie de desempenho quanto à vida pública,
como o ingresso no Carmelo de Colônia em outubro daquele mesmo ano
pareceria confirmar? Há no pensamento de Stein uma específica reflexão
filosófico-política sobre a natureza do nazismo e sobre o evento do
Terceiro Reich, desse mal absoluto e radical denominado
totalitarismo? E ainda: Há vínculos consideráveis entre esta carta, que
denuncia os perigos do nacional-socialismo para a fé cristã e a condenação
do “neo-paganismo” racista por parte da encíclica Mit
brennender Sorge de março de
1937?
Declarando
esta última hipótese como “dificilmente demonstrável” (p. 14) ou
documentável de um ponto de vista histórico, Chenaux se detém sobre
alguns pontos da encíclica, dignos de nota: o vil desrespeito do acordo
por parte das autoridades do Terceiro Reich; a incompatibilidade do
nazismo (nunca nomeado explicitamente) com as verdades essenciais do
cristianismo; a condenação da divinização do povo (trata-se de
degeneração do coneito de Volk, como atestam mais adiante o estudo histórico de Hugo Ott e o
filosófico de Vincent Aucante), de raça e de Estado; e finalmente a
idolatria e o culto neo-pagão, profanação dos conceitos religiosos
cristãos fundamentais. Chenaux oferece preciosas contribuições ao
estudo da primeira associação filo-semita da história da Igreja, a Opus
sacerdotal “Amigos de Israel” (1926), posteriormente condenada pela
Congregação do Santo Ofício (1928); e em particular o dossiê sobre “Syllabus”
contra o racismo, de 1938. Quanto a este último, ele faz notar o empenho
de Pio XI que, preocupado pela difusão de teorias racistas e anti-semitas
na Itália, quis ir além de sua denúncia de heresia, definindo o famoso Manifesto
da raça (14 de julho de 1938), publicado por un grupo de cientistas
italianos, como uma verdadeira forma de apostasia, sem meios termos. Em
novembro de 1938 o pontícife escreveu a Mussolini e ao rei, para
vivamente protestar contra um projeto de lei racial que impedia o matrimônio
entre “arianos” e “não arianos”.
Devemos
ao pontual estudo de Angela Ales Bello a compreensão das noções filosóficas
de “Estado”, “sociedade civil”, “comunidade”, “massa”,
assim como Edith Stein as elaborou na obra juvenil Psicologia e ciências
do espírito (de 1922) (2),
em Uma pesquisa sobre o Estado (de 1925) (3)
e em A estrutura da pessoa humana (de 1932) (4).
Formuladas nos anos Vinte, constituem uma ampliação das análises de
Adolf Reinach e buscam identificar a “estrutura ôntica” do Estado,
seu fundamento no direito, sua gênese, sua função e sua relação com a
esfera dos valores. Ales Bello, definindo como central o papel atribuido
por Edith Stein à “comunidade”, o relaciona à vida política, social
e cultural alemã, onde é determinante (comparada à tradição latina,
mais individualista e contratualista) a importância atribuída ao grupo,
à associação humana, e até mesmo à estrutura tribal, na qual o vínculo
de sangue e aquele estritamente familiar fornecem proximidade. Com a
regressão da noção de Volk,
voltando a prevalecer os vínculos de sangue e raça, é de fato impedida
a abertura espiritual para outros seres humanos. A superação de tais visões
acontece justamente no plano do espírito, na Idade Moderna, graças à
abordagem idealista (pense-se no empenho ético apontado por Fichte,
ou no desvelamento do espírito na passagem da fase subjetiva à objetiva
em Hegel), muito apreciada pela escola fenomenológica clássica, a qual
estabelece com maior harmonia a relação entre o momento da comunidade e
o da individualidade, atribuindo à pessoa humana os momentos correlatos,
constitutivos e incindíveis da corporeidade vivente, da psique e do espírito:
Seguindo
uma indicação da sociologia de Tönnies, mas retomada pelos maiores
expoentes da escola fenomenológica – Husserl e Scheler – Stein
considera central a comunidade, como lugar de formação ético-social da
pessoa, lugar de solidariedade e de envolvimento recíproco de
responsabilidades (...). É importante notar que é sobre a “comunidade
estatal” que se fundamenta o Estado. Ainda que entidade jurídica, este
último não vive se não for sutentado por um consenso que nasça de uma
visão comunitária; portanto pode-se falar de Estado como uma pessoa jurídica
caracterizada pela soberania, a qual corresponde à liberdade em sentido
pessoal (p. 69).
A
concepção cristã da pessoa humana tem um papel fundamental no
pensamento de Edith Stein. Trata-se de uma antropologia cristocêntrica,
que apreende a complexidade do ser humano tanto no sentido subjetivo
quanto no intersubjetivo. Edith Stein mostra – ou melhor, confirma –
uma extraordinária visão de conjunto, capaz de levar em conta o
particular sempre orientada ao universal. Ales Bello explica:
Segundo
Edith Stein, as formas associativas corrrespondem à absolutização dos
aspectos constitutivos humanos: se prevalecer a atividade psíquica, então
teremos a massa, arrastada pelos impulsos e pelas tomadas de posição
espontâneas puramente reativas; se prevalecer o aspecto intelectual da
organização finalizada a um objetivo, delinear-se-á a sociedade; se
prevalecer a estrutura jurídica, então haverá o Estado. A comunidade
mantém sua centralidade em todas essas formas associativas porque envolve
o ser humano na sua complexa articulação, fruto de vínculos psíquicos
e espirituais através dos quais se delinea propriamente a vida ética,
que desemboca no bem da pessoa e do grupo (p. 110).
Nesta
ótica, o momento espiritual-religioso não é um simples apêndice da
vida associada, mas seu eixo. Em vão seria a busca uma definição explícita
de “Estado totalitário” nas obras de Edith Stein, mas seu aflito
apelo a Pio XI pode ser lido como denúncia da perda e da manipulação de
autênticos valores cristãos e como luta contra a violação dos direitos
humanos – esta devida à distorção da fonte judaico-cristã que
historicamente determinou a civilização ocidental. Um tema de grande
atualidade, na Europa de hoje, dominada pelo debate, nem sempre lúcido ou
intelectualmente honesto, sobre suas raízes e fundamentos.
Notas
(1)
Tadução de Miguel Mahfoud do inédito original em italiano. [volta]