Mantovani, A. & Bairrão, J.F.M.H. (2005). Psicanálise e religião: pensando os estudos afro-brasileiros com Ernesto La Porta. Memorandum, 9, 42-56. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mantobairrao01.htm

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Psicanálise e religião: pensando os estudos afro-brasileiros com Ernesto La Porta

Psychoanalysis and religion: reflecting about afro-Brazilian studies with Ernesto La Porta

Alexandre Mantovani
José Francisco Miguel Henriques Bairrão
Universidade de São Paulo
Brasil

 

Resumo
O presente artigo analisa e discute a aplicação da psicanálise na pesquisa sobre as religiões afro-brasileiras, a partir do trabalho do psicanalista Ernesto La Porta, que parte do princípio de que a psicanálise possui um conhecimento aplicável ao estudo da religião e assim utiliza os conceitos psicanalíticos para descobrir significados simbólicos latentes nos rituais do candomblé e da umbanda. Suas teses configuram-se como traduções psicológicas do ritual, o que historicamente sempre gerou conflitos no campo dos estudos sociais, pois pode ser considerado um reducionismo, que dificulta a investigação psicológica da religião. O ponto central para um contraponto a este uso da psicanálise está na forma de conceber a interpretação. Numa perspectiva lacaniana e mais contemporânea, não se trata de um ato de atribuição de significados por parte do analista, mas sim de uma operação que facilita o desvendamento de sentidos implícitos aos acontecimentos do campo, nos termos dos próprios participantes
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Palavras-chave: psicanálise; religião; estudos afro-brasileiros

Abstract
The present article analyzes the application of psychoanalysis in the research on afro-Brazilian religions, taking the contributions of the psychoanalyst Ernesto La Porta, who recognized in psychoanalysis an applicable knowledge for religion’s studies and uses psychoanalytical concepts to discover symbolic occult meanings of candomblé and umbanda rites. His ideas may be considered as psychological translation of the rites, which, in a historical perspective, has always caused considerable controversies in social research. A central point of debate of this psychoanalytical approach is the form of understanding interpretation. According to Lacan’s and other contemporary perspectives, the analyst’s interpretation should not be an act of attributing a meaning, but an operation that makes easy the discovery of implicit senses to the field events, in the participants´own terms
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 Keywords: psychoanalysis; religion; afro-Brazilian studies

 

Introdução

As religiões afro-brasileiras sempre instigaram a pesquisa científica e desde os tempos de Ramos (1934) temos a utilização de teorias psicológicas para explicar os fenômenos que se apresentam nos cultos de candomblé e umbanda.

Dentre as teorias utilizadas, a psicanálise apresentou um potencial teórico e metodológico para a formulação de teses a respeito do comportamento dos praticantes destes cultos, principalmente pela possibilidade trazida por Freud de se fazerem interpretações de símbolos, traduzindo os enredos ritualísticos por explicações psicológicas fundamentadas em teorias científicas, até então atuais sobre a natureza humana. Com o passar do tempo a pesquisa sobre estas religiões foi migrando quase totalmente para o campo dos estudos sociais. Sociólogos e antropólogos abandonaram essas teorias psicológicas, por conta de um aspecto negativo de seu uso, que é o risco de promoverem explicações reducionistas: os fenômenos religiosos passarem a ser explicados como fatos puramente psicológicos, determinados principalmente por uma “mentalidade” dos afros-descendentes (Ramos, 1934). E de fato as explicações de Ramos (1934) e de seu predecessor Nina Rodrigues, citado por Ramos (1934) acabavam por reconhecer os comportamentos ritualísticos como relacionados a quadros psicopatológicos, sem levar em conta a questão cultural que está intrinsecamente ligada à estruturação destes comportamentos, o que gerou críticas por parte de cientistas sociais.

Todavia, a psicanálise é um campo muito heterogêneo e muitas das críticas dirigidas ao seu uso no campo dos estudos religiosos são referentes a apropriações feitas de contribuições freudianas, como as de Ramos (1934), que utilizavam a psicanálise como uma psicologia geral, capaz de garantir explicações sobre a natureza mental do ser humano. Este tipo de uso da psicanálise encontra críticas no próprio movimento psicanalítico, por autores posteriores a Freud, atentos às necessidades de se reformularem e contextualizarem conceitos freudianos.

O objetivo deste artigo (1) é analisar e explorar o uso da psicanálise no âmbito dos estudos das religiões afro-brasileiras, levando em conta as contribuições teóricas de autores pós-freudianos, cujas teses se aproximam dos estudos culturais, principalmente as contribuições de Lacan (1966/1998).

Para tanto faremos uma análise dos estudos afro-brasileiros de um psicanalista, Ernesto La Porta, que pesquisou as religiões afro-brasileiras e discute a psicanálise como método de pesquisa social.

La Porta (1979) é um dos poucos psicanalistas que realmente se entregaram ao estudo do universo religioso afro-brasileiro, saindo da clínica particular em direção aos terreiros de umbanda e candomblé. Por isso utilizaremos suas contribuições para explorar o uso da psicanálise, considerando em que medida pode-se aplicar a psicanálise a estes estudos, atentando para a forma como os conceitos psicanalíticos são utilizados e o tipo de conhecimento que se produz interpretando os fenômenos ritualísticos à luz da psicanálise.

Esperamos assim revitalizar o debate sobre a pesquisa psicológica no âmbito social e abrir espaço novamente para aquilo que a psicanálise oferece para os estudos em ciências sociais, que é o estudo das produções simbólicas do homem, vinculando o subjetivo ao social.

Por que a psicanálise?

Para o início de nosso trabalho é necessário descrevermos um pouco do modo como La Porta trata a psicanálise e as características desta disciplina que justifiquem sua aplicação no âmbito do estudo religioso. Assume-se como um analista freudiano, mas busca também contribuições de outros autores, psicanalistas posteriores a Freud e estudiosos das ciências sociais. Grande parte de seu trabalho consiste na descrição da psicanálise como uma doutrina aplicável aos estudos culturais e principalmente interculturais, uma vez que a psicanálise não se envolve “com quaisquer padrões pré-estabelecidos de ação, com contextos teóricos religiosos ou político-partidários; ao contrário ela é uma tentativa de observar e pensar os fatos percebidos” (La Porta, 1979, p. 2).

Para o autor a psicanálise é uma forma de ciência que não se prende a ideologias e possibilita o conhecimento não preconceituoso, até mesmo neutro (do ponto de vista científico que aposta numa “objetividade” do conhecimento). Este ponto será discutido mais adiante, pois mostra a postura em que o autor se coloca diante da psicanálise enquanto método de investigação e de produção de conhecimento.

La Porta inicia seus estudos descrevendo a psicanálise como um doutrina que não se restringe à prática médica, mas, sobretudo, se caracteriza como uma teoria da personalidade, cujo alcance se expande em “todas as investigações das ciências humanas”.  Tendo como referência a IPA (International Psychoanalytical Association), afirma que “o termo psicanálise refere-se a uma teoria da estrutura e função da personalidade; à aplicação desta teoria a outros ramos do conhecimento; e a uma específica técnica psicanalítica” (La Porta, 1979, p. 32). Assume o conhecimento psicanalítico como instrumento de pesquisa aplicável às ciências humanas como um todo, e assim potencialmente útil aos estudos afro-brasileiros e continua:

Esta definição considera a Psicanálise tanto em sua vertente psicoterápica quanto em sua vertente sócio-cultural como aplicação da teoria estrutural e funcional da personalidade que se baseia nos estudos de Sigmund Freud. E inclui, portanto não só o trabalho psicoterápico do analista como também o que ele possa desempenhar em outros campos (Idem, p. 33).

Sendo assim, a psicanálise teria como traço intrínseco a possibilidade de expansão da sua área de aplicação para além da prática clínica, incluindo, a exemplo do seu fundador, a pesquisa social.

Com este espírito, sua pesquisa constitui uma investigação dos rituais de origem africana pelo viés da psicanálise, tendo como referência principal as idéias de Freud e de psicanalistas posteriores. Define o seu método como dedutivo-científico, o que, nas palavras do autor, significa “busca compreender o que está mais distante e é mais obscuro a partir daquilo que está mais próximo e é mais claro” (La Porta, 1979, p.49). Assim embarca na pesquisa de campo em terreiros de religiões afro-brasileiras de candomblé e umbanda com o objetivo de, através desse método e da psicanálise assim concebida, interpretar cientificamente o ritual.

Para La Porta o grande trunfo da psicanálise é permitir conhecer aspectos do comportamento (e da mente) que estão fora do alcance perceptivo de outras formas de investigação:

A psicanálise pode ser comparada a um telescópio inventado para se perceber o que até então não fora captado por outros métodos de investigação. Ela pode produzir imagens virtuais, mas é por meio destas mesmas imagens que ela pode chegar a imagens reais. Não se trata de descobrir o objeto extinto do passado do indivíduo ou da humanidade, mas de reconhecer os seus efeitos – a sua presença - no momento atual (La Porta, 1979, p. 49).

Este tipo de método proporcionaria então reconhecer aspectos fundamentais do homem que estariam aquém de sua percepção ordinária e seria fundamental para as interpretações sobre os fenômenos sociais, por essa possibilidade de investigação de aspectos profundos do ser humano.

Um ponto fundamental para suas análises é a questão do inconsciente, tratado, sobretudo pelas suas leituras de Freud, segundo o modelo funcional (inconsciente, pré-consciente e consciente) e também segundo o enfoque dos estudos metapsicológicos posteriores, a teoria estrutural do aparelho mental dividido em id, ego e superego.

Para La Porta o inconsciente configura-se como um reduto de símbolos e é uma fonte motivacional de comportamentos, cujo estudo é capaz de investigar os tais aspectos que passam despercebidos. Na definição do autor, “o inconsciente é não apenas o antro onde se esconde o inconfessável, o horrível e o animalesco, mas também a fonte subterrânea dos pensamentos que ainda não foram pensados, das verdades que ainda não foram vistas” (La Porta, 1979, p. 5). O psicanalista que lida diretamente com o inconsciente seria, portanto, aquele que tem acesso a este universo subliminar, presente no domínio humano, seja no comportamento de indivíduos, seja na estruturação da cultura; isso pela premissa de que todo o sintoma e todas as manifestações mentais seriam expressões do inconsciente e teriam um sentido. Caberia ao analista perceber os significados da produção inconsciente e revelá-los pela interpretação de conteúdos emergentes.

É assim que La Porta ingressa no campo dos seus estudos, os terreiros afro-brasileiros, e assim concebe e desempenha a sua tarefa de investigação. Tomando como base o conhecimento acerca da personalidade humana como marcada pela interação entre aquilo que é proveniente do meio cultural e aspectos individuais concernentes às pulsões, e aproveitando as teorias de Freud sobre a cultura e o comportamento religioso, o psicanalista procederá então a uma livre-associação de idéias dentro das comunidades afro-brasileiras. Busca a compreensão dos símbolos pelos significados que eles teriam no nível inconsciente, como faria um psicanalista que em sua clínica reconhecesse a produção inconsciente como uma “linguagem cifrada que pode ser decodificada na sessão analítica ou quando se examina qualquer aspecto inconsciente das interações humanas” (La Porta, 1979, p.8).

Continua: “Essa linguagem cifrada é muitas vezes não-verbal. O ritual é um exemplo de tal linguagem não-verbal e que só pode ser compreendido quando sua análise não é obstruída por preconceitos” (idem).

Ainda sobre o inconsciente, La Porta se apóia em textos de Freud como “Totem e Tabu”, ou em trabalhos de psicanalistas posteriores como Géza Róheim, citado por La Porta (1979), os quais estabelecem hipóteses sobre o comportamento do homem, a partir de teorias ontogenéticas, ou seja, que tratam o mundo mental do homem pelo seu substrato comum, independentemente da cultura, que depende de uma herança filogenética que se estende por muitas gerações. Este tipo de teoria permite a análise de símbolos referentes a culturas não-ocidentais, pressupondo-se que haja no comportamento humano estruturas psíquicas comuns. Portanto, pelo conhecimento acerca do homem moderno, poder-se-ia chegar a explicações universais, como diz o autor: “Os dados que a psicanálise foi descobrindo mostram a estrutura que a dinâmica da personalidade estão em certa medida programadas, de um modo que se foi estabelecendo com a estruturação da espécie humana” (La Porta, 1979, p. 37).

Em resumo, La Porta encontra na psicanálise uma teoria científica sobre o ser humano, aplicável a diferentes contextos, tendo como grande mérito a possibilidade de estudar os sentidos do comportamento humano com base no conhecimento do inconsciente. Seu trabalho será então procurar esses significados inconscientes presentes nos cultos afro-brasileiros. O material por ele analisado é fruto de pesquisa de campo em Porto Alegre, que progressivamente se estendeu ao Rio de Janeiro, a Salvador e a Dacar (África). Procura em suas interpretações fazer uma descrição ampla do ritual e se empenha em aplicar o conhecimento psicanalítico diretamente àquilo que é observado, como em um sonho ou em uma sessão psicanalítica, por meio de associações de idéias, buscando significados inconscientes para as ações ritualísticas que, como o mesmo observou, são permeadas pela comunicação não-verbal.

Desvendando os significados religiosos: a pesquisa de campo

Com suas observações, La Porta desenvolve uma série de interpretações dos rituais religiosos, que passa por diversos temas, como a função do ritual, a possessão por espíritos, o simbolismo e a cura espiritual.

Como psicanalista dispõe-se a observar e desvendar as representações inconscientes que estariam latentes no ritual.

A forma com que lida com a cultura é, do seu ponto de vista, a mesma empregada em uma sessão analítica na qual o analista busca a “percepção do significado que emerge na própria situação concreta, no aqui-agora da sessão” (La Porta, 1979, p. 49). É um procedimento que visa elucidar os sentidos e significados inconscientes “percebidos” diretamente no contato do analista com o analisando.  Contato este no sentido concreto e temporal entre duas pessoas, uma vez que a percepção (tal como é tratada pelo autor) se dá na interação imediata entre observador e observado.

Com esta postura clínica, La Porta enfatiza a importância do psicanalista atentar aos fatos presentes e deles tirar sua percepção sobre o estado mental do paciente. A descoberta dos significados inconscientes se desenvolve neste momento: “A análise dos significados que emergem na hora analítica, no aqui-agora da sessão assumiu papel decisivo para o conhecimento do inconsciente. Tornou-se evidente que qualquer produção humana deve ser investigada pela análise dos significados expressos nela” (La Porta, 1979, p.48). E acresce: “Também toda religião e toda cultura com seus conteúdos ocultos pode estar assim ao alcance da indagação analítica” (idem, p. 48).

Portanto ao ingressar nos cultos afro-brasileiros, o psicanalista comporta-se como em uma sessão de análise e munido de seu treinamento em “perceber” o inconsciente em fatos atuais, ou seja, no momento em que ocorre o culto.

Exemplificaremos alguns exemplos de suas análises:

1. O ritual e suas funções:

Consideramos o ritual como uma tela sobre a qual se expressam e se projetam impulsos e fantasias elaborados magicamente. Sobre o significado do ritual em si, podem se projetar necessidades e emoções significativas para o indivíduo. O rito é uma ação dramática com a qual se misturam elementos internos dos atores numa verdadeira “dramatis personae” (La Porta, 1979, p. 67).

Ainda:

Um grande contingente de freqüentadores dos terreiros são pessoas em estado de depressão e de perseguição. São indivíduos que vivem uma situação de perda e abandono, seja de boa situação econômica, empregos, saúde etc. Assim estas pessoas procuram no ritual a elaboração de suas situações depressivas e persecutórias, tais como a busca de recuperação de objetos, mas expressando sua agressão, o triunfo, a onipotência, e também a culpa (idem, p. 73).

O ritual corresponde então para La Porta a um local no qual há uma catarse de emoções, sentimentos e aspectos psicológicos que vêm à tona como em uma espécie de teatro ou drama psicológico; e para ele o ritual seria então uma forma de elaboração deste conteúdo manifesto. O autor não deixa muito clara a justificativa para classificar os estados emocionais dos praticantes, se ele teve contato com essas pessoas ou qual foi sua fonte de informação, mas fica claro que seu olhar se dirige àquilo que sugere estados emocionais bem conhecidos da medicina, psicologia e psicanálise. Isso fica mais evidente ao fazer afirmações sobre aspectos internos dos praticantes, os atores sociais:

Observa-se a grande freqüência de cultos que significam a expulsão de objetos maus e a internalização de objetos bons. São cerimoniais comuns de exorcismo, e as cerimônias chamadas de ‘limpeza’ são atos mágicos destinados exatamente à expulsão de objetos maus (idem).

O termo objeto se refere à noção de objeto comumente tratada em psicanálise, principalmente na escola kleiniana, que concebe o mundo psíquico estruturado por relações objetais, vindas inicialmente dos primeiros contatos afetivas com os pais.

Com este recurso de interpretação o autor investe na compreensão de situações do culto reconhecendo nos comportamentos sentidos psicológicos, descritos com esta terminologia especifica. Cria uma linha de raciocínio identificando os símbolos e sua função para os praticantes individualmente:

O chefe de culto em estado de santo e mais outros auxiliares do terreiro, brandindo um feixe de varas, passavam-no sobre o corpo do paciente, pela frente, pelas costas, pelos lados de modo a parecer que o estavam surrando. Em seguida suavemente batiam nele com as varas. O paciente caía ao solo, contorcendo-se e com forte emoção, chorava copiosamente rastejando pelo soalho. Neste caso além do sentido comum da expulsão do objeto mau, percebia-se o significado de um coito sádico ou a fantasia de destruição da parte feminina considerada como má (possivelmente a identificação com a mãe na homossexualidade) (La Porta, 1979, p. 74).

Neste tipo de análise a atenção dirige-se principalmente a aspectos individuais ou do efeito do ritual sobre os praticantes compreendendo os símbolos ritualísticos pela psicodinâmica individual dos religiosos.

2- Símbolos ritualísticos e seus significados:

La Porta também descreve análises de símbolos do ritual procurando o significado inconsciente que teriam para o grupo. Os símbolos estariam em uma dinâmica psíquica coletiva e seu significado seria compartilhado. Temos como exemplos:

Assim, o ritual é uma volta simbólica ao passado individual e da comunidade, em que as situações de ansiedade são repetidas reiteradamente, com a finalidade de serem elaboradas e controladas por meios mágicos. O chefe-de-culto representa, em níveis diversos, o pai e a mãe. Nos planos mais primitivos, restauram-se as situações de maior segurança sentidas pelo ser humano (de todos os seres da escala animal o mais dependente biologicamente) (La Porta, 1979, p. 81).

O aspecto coletivo no caso seria apenas o de uma herança ancestral do homem, presente e determinante até os dias atuais. É saliente o enfoque, por parte do psicanalista, no tratamento da personalidade, na qual reconhece aspectos comuns, genéricos, do ser humano. Estes aspectos comuns formariam estruturas universais e o culto representaria então situações psíquicas que remontariam a uma origem mítica do homem.

Os símbolos teriam então uma função psíquica plausível de ser compreendida. Vejamos:

Na casa de Mãe Apolinária Batista presenciamos este ritual de levantação, que se processava da seguinte forma: Apolinária, com as vestes de Iemanjá, sacrificava peixes, e logo depois devolvia às águas o rabo, junto com outras oferendas para Iemanjá. Na interpretação deste cerimonial levamos em conta, primeiro, o significado fálico do rabo (a cauda das sereias tendo esse significado também). Seria um ritual de castração (La Porta, 1979, p. 70).

Se o psiquismo é composto de estruturas comuns, originais da espécie, o ritual seria além de uma catarse uma espécie de teatro psíquico, em que as ações teriam uma função psíquica específica como a castração. A castração no caso seria um universal do homem, mas o que o autor não explica é a forma pela qual ele reconhece este aspecto no ritual. Além de no olhar que a vê, onde mais está a castração? Seria castração de quem? De um praticante do grupo?

3-Os mitos afro-brasileiros:

Em outros momentos La Porta utiliza o mesmo argumento da universalidade dos símbolos e do psiquismo, interpretando situações do culto como análogas a esses dramas míticos.

Sobre uma dança de Oyá (a deusa iorubá dos ventos) lemos a seguinte interpretação:

Este mito, dançado no terreiro, quando tocam as rezas para Oyá, tem realmente um sentido edípico: Ogum é um Édipo Africano que dorme no seio materno, após o que sua mãe vai ter relações genitais com o pai. Quando acorda, de espada em punho, tenta realizar o parricídio. Ademais a espada é um símbolo fálico e a agressão de Ogum a Oyá deve significar um coito sádico com a mãe e sua destruição (La Porta, 1979, p. 77).

A espada como símbolo fálico, a agressão e a destrutividade, recebem significados psíquicos pela sua já conhecida presença nas interpretações da tragédia grega em questão, tão recorrente no universo psicanalítico. Porém mais uma vez não se sabe a quem se remete a agressividade e a destrutividade. Neste sentido, o que parece é que La Porta está realmente decodificando os símbolos rituais que possuem um significado aparente, relatado pelos religiosos, em outros termos, utilizando o seu método dedutivo, que o autoriza a aproximar fatos e a atribuir-lhes significados, graças a uma concepção de homem especifica (ocidental e moderna) que lhe permite recuperar em eventos atuais toda a herança filogenética do homem. Diz La Porta:

“As expressões emocionais são inatas e imediatamente compreensíveis e em principio não necessitariam de interpretação” (1979, p. 10). Sendo assim é possível dizer que alguém está em um estado depressivo ou persecutório no culto, sem maiores preocupações. Os afetos são expostos e podem ser imediatamente percebidos. Continuando, “A interpretação é necessária somente quando a repressão ou outras modalidades de defesa do ego obscurecem os significados” (Idem). La Porta, então, pelo seu modo de trabalhar psicanaliticamente com os símbolos, se dispõe a desvendar os significados que estão além da aparência, o material reprimido, o conteúdo do inconsciente que não pode ser verbalizado e assim aparece no culto sob a forma de “acting out”, comportamentos dotados de significados inconscientes e que não são verbalizados mas sim expostos em ato. Seriam as descargas motoras, a agitação dos corpos expulsando os objetos maus, inacessíveis à linguagem. Também reconhece nos enredos religiosos, na seqüência do ritual, uma forma de enunciação de aspectos psíquicos já sublimados e elaborados, como por exemplo, da castração, que em psicanálise seria a marca de acesso da pessoa ao universo simbólico, ruptura da díade criança mãe, pela presença do pai.

Estes símbolos ritualísticos estariam estruturados pela dinâmica psíquica da comunidade e teriam como efeito comunicar, produzir sentidos dentro de parâmetros próprios dos praticantes. Os símbolos estariam em função comunicativa, possível de ser percebida por um psicanalista, pois, como diz, “a psicanálise mostra que o comportamento não deriva só da necessidade de satisfazer impulsos instintivos, pelo uso apropriado de objetos, mas também da necessidade de um contato significativo com objetos. O ser humano também precisa de comunicação significativa para obter satisfação” (La Porta, 1979, p. 10).

Então o conhecimento do inconsciente e da dinâmica psíquica em que os símbolos interagem com impulsos instintivos se expressam num jogo de expressão e repressão de conteúdos que de alguma forma são manifestados, seja de forma primária, na expressão corporal, seja como em uma linguagem cifrada. O ritual seria então um discurso cujos significados estariam latentes, e os símbolos a via de acesso a ele.

Fatos sociais e fatos psíquicos

Ao descrever o ritual como esse espaço catártico de expressão de emoções primitivas e buscar explicações referentes a aspectos psicológicos individuais dos praticantes, como, por exemplo, dizer que a agitação motora é a expulsão de objetos maus internos, delineia-se um plano descritivo da realidade do culto e dos seus praticantes. Se os componentes do ritual têm como fundamento o psiquismo humano entendido como algo universal e resultado de uma herança filogenética, ao atribuir significados aos mesmos, e sendo o sujeito psicológico fruto da interação entre fatores biológicos e sociais, acaba-se por descrever a realidade dos fatos puramente em termos mentais. Tratando os símbolos do ritual como representações psíquicas de conteúdos primitivos da mente humana, definem-se as estruturas do ritual, caracterizando-as por componentes atemporais e universais do ser humano que, em última instância, seriam psíquicas e biológicas, e determinantes do comportamento.

Passa-se do discurso dos religiosos, cujas explicações seriam de cunho mágico ou espiritualista, para explicações psicológicas, científicas, descritoras de um plano que sustenta essas produções culturais, possibilitando o acesso à verdade das mesmas (eis o reducionismo temido e combatido por críticos do emprego da psicanálise no âmbito de estudo dos fenômenos sociais e religiosos).

A pesquisa de La Porta configura-se então como um conjunto de explicações dos rituais afro-brasileiros em termos psicológicos, tomando como base duas premissas: a noção de que o psiquismo humano tem fontes biológicas e é determinante dos comportamentos e a idéia de que a psicanálise como forma de saber permite acesso a um universo inconsciente que estaria aquém das explicações ordinárias destes fenômenos. Desta postura teórica e metodológica derivam conseqüências para a pesquisa social e para o tipo de saber produzido.

Em primeiro lugar, é necessário ter-se em vista que a busca por explicações de fenômenos sociais com base em estudos psicológicos é algo que demanda modelos teóricos específicos pela complexidade de tais fenômenos.

Em comentário sobre as explicações psicológicas dos cultos de origem africana, dizem Brumana e Martinez (1991, p .450): “Embarcar numa explicação de nível psicológico dá a incômoda sensação de tirar um coelho da cartola, ou como num romance policial descobrir que o assassino é um personagem que ainda não tinha sido apresentado”.

Os autores se referem exatamente a este tipo de magia explicativa, que toma por base a busca por decifrar os fenômenos culturais em termos de representações psíquicas, voltando-se para aspectos inaparentes do culto, o que obviamente apenas pode causar estranheza àqueles que em suas pesquisas de campo buscam explicações baseados nos fenômenos tais como se mostram e principalmente levando em conta o saber (os dizeres) do outro, os praticantes.

Também há a questão de que trabalhar com modelos de representações mentais e de teorias objetais que tratam de um mundo psíquico “interno” nada acrescenta ou causa empecilhos ao estudo de fenômenos que são socialmente estruturados. Se o comportamento de um indivíduo é determinado por pulsões e relações objetais intrapsíquicas, todo o aparato “externo” destes fenômenos seria secundário, como uma espécie de um revestimento de uma realidade aquém das aparências. Se tomarmos, por exemplo, a agitação motora exposta em um ritual de cura quando um médium cai ao chão e se agita em termos apenas da expulsão de objetos internos causadores de angústia, deixaremos de lado toda uma gama de significados compartilhados comunitariamente neste tipo de ação.

O que se passa dentro de um terreiro, qualquer comportamento individual, recebe significados coletivos que, traduzidos apenas como representações psíquicas, são reduzidos a um código específico, no caso psicanalítico e psicológico.

La Porta trata então os fenômenos religiosos como se fossem a “externalização” do mundo “interno” de seus praticantes, determinado por estruturas históricas das origens do psiquismo. Dessa forma o espaço do ritual é tratado como um espaço psíquico e objetivo, sendo possível a percepção direta dos aspectos psicológicos dos praticantes envolvendo suas ações concretas no ritual. Isso por conta de um distanciamento radical entre o observador e os observados, sem levar minimamente em conta a perspectiva dos últimos.

Se o psicanalista munido de suas ferramentas cientificas pode perceber aquilo que é oculto para o outro e assim dizer a realidade dos fatos, descrevendo um plano distinto daquele em que corre a performance ritual, isso se deve à condição dele estar separado e afastado do seu objeto de estudo, e tratar das estruturas psíquicas como objetos e ocupantes de um lugar no espaço sob a forma de representações. Aquilo que se vê em termos mitológicos na verdade teria outro significado, e assim o mundo subjetivo dos fiéis é tratado dividindo-o em um universo interno e um externo, sendo o primeiro, relativo ao psiquismo individual, e o segundo coletivo, que no caso compreende o contexto sócio-cultural.

Considere-se outro exemplo:

Na casa da Mãe Apolinária Batista, no decurso do ritual da matança, vimos que os animais sacrificados eram cobertos por panos da mesma cor representativa do Orixá e que o fiel para o qual o cerimonial era praticado tinha também suas vestes na mesma tonalidade. (...) Possivelmente o uso da cor é utilizado como um vínculo, processo mental que proporciona a idéia de identidade entre os três seres, o santo, o fiel e o animal (La Porta, 1979, p. 58).

O que se tem nesta análise é um movimento de tentar reconhecer um significado psicológico a algo que já existe na ação ritualística. O uso da cor como elo entre os três elementos do culto (o santo, o fiel e o animal) já está dado pela própria religião, a cor, o pano, que tanto cobre o animal quanto veste o fiel, remetendo à cor do orixá, por si só já garante uma noção de vinculação entre estes elementos. Interpretar este tipo de situação em termos psíquicos, somente promove uma mudança de referenciais de realidade: o que era compreendido em termos religiosos passa a ser psicológico, mas sem alterar ou acrescentar alguma compreensão ao fato em si. La Porta exclui a noção de que os fatos percebidos no ritual já comportam um sentido para os fiéis e empregar uma terminologia psicológica para estes fatos pode apenas gerar uma dicotomia entre visões de mundo, sem acrescer novos conhecimentos.

Observando o mesmo ritual, diz o autor: “Esta tríade poderia representar, também, o aparelho mental, portanto, a externalização de uma situação interna em que o superego é substituído pelo santo e o id pelo animal” (idem). Logo, o ritual seria em um plano exterior a representação das estruturas psicológicas. Novamente o que temos é a atribuição de significados psicológicos que acabam delineando um plano de realidade que se sobrepõe ao campo de experiências e às explicações originais dadas pelos praticantes, em prol de um conhecimento científico.

Em conseqüência disto, La Porta sustenta este distanciamento de seus observados por traçar um plano de realidade distinto e por enfatizar a realidade psicológica em detrimento da realidade mágica.

Este tipo de interpretação sempre gerou conflitos entre psicanalistas e cientistas sociais no campo da pesquisa cultural, e também contribuiu para gerar aversões ao uso da psicanálise na pesquisa afro-brasileira. Isso porque ao descrever a realidade dos fatos sociais em termos psicológicos, excluindo seus significados coletivos, nega-se a estruturação social destes fenômenos, bem como se reduzem as explicações sobre os fatos somente a aspectos psicológicos oriundos do conhecimento do funcionamento mental individual, assim perdendo de vista toda a gama de sentidos que estes fenômenos possuem para a comunidade. Também se incorre na atitude de promover abstrações, pois ao supor um modelo universal de homem e de estrutura mental exclui-se o conhecimento dado pelos informantes, que não compartilham das mesmas concepções do observador, ficando este totalmente separado daquele, como se o informante fosse um objeto passivo a ser conhecido na sua totalidade. Os vivenciantes do culto, os religiosos, possuem uma compreensão dos fenômenos e tratando os mesmos por conceitos psicológicos exclui-se a possibilidade de interação.

O psicanalista seria dotado de uma visão especial, em decorrência de seu treinamento e de seu conhecimento sobre o inconsciente, que o coloca na posição de acessar esta realidade psicológica que em última instancia seria determinante nos fenômenos culturais. A conseqüência disto é incorrer em uma atitude de reducionismo teórico, explicando o coletivo por fatores psíquicos individuais. Pensar no mundo interno dos praticantes como um agente determinante da dinâmica do ritual implica em um tratamento do sujeito que sobrepõe os aspectos psíquicos individuais à cultura, o que conseqüentemente faz invalidar as peculiaridades de cada comunidade. Se o mito africano em essência remete ao pano de fundo comum presente em todas as mitologias, o que possibilita comparar a dança de Oyá ao mito edípico, diluem-se as características contextuais originárias de cada produção cultural, como a mitologia ou a religião, de um modo geral.

La Porta trata o sujeito psicológico como se este fosse algo genérico, independente da cultura, estruturado em um binômio, cultura-indivíduo, sem pensar que os afetos, comportamentos e expressões corporais estão relacionados a um contexto cultural. Por conta disso, seu trabalho acaba por aplicar uma concepção de sujeito ocidental a um contexto cujas concepções de ser humano não se subordinam estritamente a ela. Acaba fazendo uma leitura ocidental e psicológica do ritual.

Este é um ponto crucial. Tomando a psicanálise como uma teoria de psicologia geral, que descreve o ser humano e a natureza de sua personalidade, cria-se um método que se limita a aplicar modelos teóricos já dados diretamente ao fato observado. Isto sempre foi um ponto de atrito com cientistas sociais, por pressupor a naturalidade e a universalidade de uma concepção de uma psicologia culturalmente determinada.

Crítica válida quando se coloca a psicanálise no mesmo plano de outras ciências que funcionam desta forma – aplicam modelos prontos ao entendimento de fenômenos supostamente objetivos e atemporais. É precisamente isso o que faz La Porta, tornando-se suscetível a críticas como as de Silva (1999):

Tal tipo de produção baseia-se numa posição epistemológica e metodológica ingênua, que supõe, numa perspectiva nominalista, que os fenômenos tenham sua existência numa certa objetivação da realidade, em relação à qual restaria à teoria, ao olhar calçado por esta teoria, iluminar e esclarecer, fazendo uma associação unívoca entre a coisa e seu significado “correto”. Obviamente isto traz aos integrantes dos cultos em questão uma posição de alienação em relação ao acesso às verdades mais profundas e verdadeiras de sua própria prática (p. 10).

A grande questão que se impõem como ponto a considerar para um maior alcance da psicanálise neste tipo de pesquisas, sem incorrer neste tipo de problema, é justamente desenvolver um procedimento que não seja reducionista, mas permita sim o que La Porta aponta como artigo particular da psicanálise, útil para a pesquisa dos rituais: o estudo do inconsciente nas produções humanas.

Inconsciente e interpretação

Para La Porta o inconsciente corresponde aos aspectos da mente que se situam fora do alcance da consciência, o material recalcado, bem como os impulsos instintivos do id, os quais variam de individuo para indivíduo e são heranças biológicas do homem. O inconsciente determina os significados das ações humanas e a psicanálise é o método que possibilita que estes significados psíquicos sejam percebidos e elucidados. Como o psicanalista diz, Freud mostrou que “todo sintoma tinha um sentido e que todo comportamento possui um significado” (La Porta, 1979, p. 48). Assim, os comportamentos humanos, sejam em um culto religioso ou em qualquer outro contexto, são providos de sentido e seu significado estaria no inconsciente.

O trabalho do psicanalista é explorar esses significados, com o analisando, e assim fazer este perceber  outros sentidos inerentes às suas ações. Quando La Porta ingressa nos terreiros com esta visão e se dispõe a interpretar os fatos ali manifestados, ele está em busca desses significados inconscientes, mas sua atitude não é a de um psicanalista dentro de um setting terapêutico.

Freud (1925) faz alguns comentários sobre a interpretação de sonhos e ressalta a importância desta se desenvolver no sentido do paciente associar suas idéias e buscar os significados do sonho. O psicanalista não ocupa a posição de dizer, de traduzir o sonho, com o propósito de atribuir-lhe um significado. Cabe ao analisando fazer as associações, aproveitando sim o que o analista aporta, mas num movimento dialético em que o conteúdo inconsciente vai sendo expresso à medida que se vencem resistências.

Neste procedimento, o tratamento psicanalítico não se configura como uma forma de aplicar um saber sobre o suposto inconsciente no conteúdo manifesto expresso pelo analisando, mas sim deixar que este, pela sua fala, promova associações discursivas nas quais o inconsciente se mostra, na forma de atos falhos, erros de linguagem, esquecimentos, não como um objeto a ser percebido e conceituado, mas sim como um sujeito que interpela a fala. É o estranho que irrompe nas diversas falas, promovidas pelo analisando.

Nas palavras de Lacan (1966/1998), o inconsciente é “a parte do discurso concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p. 260).

Tratar o inconsciente como uma falta no discurso e pelo discurso, exige do psicanalista uma posição de escuta, pois será na linguagem que o inconsciente se mostrará. Isso contrasta um pouco com a forma como La Porta trata suas interpretações. Freqüentemente este usa o termo ligado ao ato de percepção, como um observador que testemunha um fato e lhe atribui um juízo; diz o que ele é. No tratamento psicanalítico o analista não possui a informação prévia para o conteúdo inconsciente do discurso do analisando, os sentidos surgem em meio a associações deste sujeito que, como Lacan (1966/1998) diz, falta à disposição da fala, constituindo um não-dito. Será neste não-dito que o analista investirá em sua procura pelos sentidos que estão além da consciência.

O que está implicado no tratamento de Freud e Lacan sobre o inconsciente é a necessidade do analista acompanhar o analisando na acepção de que ele participa da enunciação deste sujeito do inconsciente. Este é um ponto importante a ser considerado na aplicação da psicanálise nos estudos sociais. O psicanalista não pode ocupar um lugar de observador distante, ele está implicado na cena e é na relação com ele que o sujeito do inconsciente surge.

Outro item a ser discutido sobre inconsciente e interpretação é o empreendimento de La Porta em definir hipóteses sobre a causalidade psíquica, a busca por explicações razoáveis sobre os fenômenos religiosos, sob a óptica de suas concepções psicanalíticas.

Para ilustramos e pensarmos em termos de exemplo de interpretações, podemos tomar um aspecto do culto bastante explorado por La Porta e que tem íntimos interesses com a psicanálise que é o da cura mágica. Nas religiões afro-brasileiras, saúde e doença são significadas em termos de suas concepções cosmológicas. La Porta aponta para um fato comum na interpretação da doença nestes contextos, principalmente na umbanda, que é a crença na doença como “ação de espíritos malfazejos sobre a pessoa causando doenças e distúrbios de comportamento” (La Porta, 1979, p. 151). Sobre a doença o autor continua:

Quando ocorrem sintomas sérios, toda a coletividade de tipo primitiva se movimenta para a reconquista do doente e, como temos assinalado, a enfermidade é vista como rebeldia em face do poder do estatuto cultural e social vigente numa determinada sociedade, tribo ou grupo (idem).

Esta é uma interpretação social que La Porta faz, atribuindo ao fenômeno de cura um significado social, de disputa de poder. Mas também descreve outras hipóteses de caráter psicológico. A doença causada pelo mal vindo de outrem poderia ser conseqüência de identificações projetivas com conteúdos invejosos sobre a mente do invejado” (idem).

Ou ainda: “Um mal só se processará no inconsciente de uma pessoa se a sua destrutividade estiver agindo francamente sobre si mesma, agravando-se mais intensamente quando capta a agressão de outro e comporta-se, então, masoquística e destrutivamente” (La Porta, 1979, p. 153).

Estas hipóteses caminham em direção a uma busca incessante pelos mecanismos psíquicos determinantes do comportamento cuja ação organiza este conteúdo simbólico que reconhece em um outro a ação maléfica que, em última instância, seria fruto de relações inter ou intra-psíquicas. A primeira, no caso das identificações projetivas; a segunda, no caso das projeções da autodestrutividade.

Procurar hipóteses afirmativas para as construções e explicações religiosas em termos psicológicos, como reconhecer o feitiço como fruto de identificações projetivas, é um método que também corre contra a psicanálise, uma vez que esta não está à procura da verdade objetiva de fatos, e sim das verdades subjetivas imanentes às elaborações subjacentes a ele.

Um sintoma, como um delírio ou uma alucinação, a agitação motora, qualquer experiência psíquica, é sempre referente a um sujeito e comporta um sentido. A tarefa do psicanalista é procurar através desses fatos as associações que revelem os aspectos inconscientes – enunciadores do sujeito do inconsciente.

Quando a comunidade atribui a causa de um mal a um feitiço, a ação maléfica feita por outrem, ela mostra sua forma de compreender o mundo e as relações interpessoais, disputas e conflitos. Tomando o caminho interpretativo de La Porta, temos então que esta atitude de atribuir o mal a um outro pode ser fruto de um encontro concreto entre pessoas que, por identificações projetivas, gerou a doença. Mas a psicanálise, por não se limitar aos fatos narrados pelas pessoas concretas, os sujeito empíricos, admite a possibilidade de escutar os sentidos a partir daquilo que é transmitido nas entrelinhas do discurso. O feitiço estaria dentro de um discurso estruturado segundo a lógica da comunidade e a escuta do inconsciente se daria pelas associações feitas em relação a ele. Diante de uma afirmação sobre a causa da doença identificada com um feitiço poder-se-ia perguntar, inquirir, sobre o autor do feitiço, seus motivos, porque se faz tal ação, etc. Analogamente à prática desenvolvida na clínica, na qual  o analista ocupa um lugar de escuta, pois “não se cuida de atribuir um significado a qualquer comportamento, mas de recuperar um dizer ‘feitor’ do sujeito” (Bairrão, 2004, p. 78).

Isto levando em conta que a interpretação é esta forma de rastrear o sujeito nos meandros que ele percorre na cadeia discursiva. Continuando em Bairrão (2004):

A (boa) interpretação não é outra coisa. Longe de uma arbitrária atribuição de sentido, mais ou menos dependente da capacidade ‘mântica’ de um psico-advinho, lacanianamente concebida a interpretação numa escuta de sentidos implícitos, cujo depoimento mapeia situações de estar sujeito (p. 78).

Poderia-se por uma escuta analítica do sintoma usar destes sinais para rastrear o sujeito dentro de seu campo cultural de origem.

A agitação motora, os sinais físicos da doença, o feitiço, seriam elementos simbólicos que enunciariam os sujeitos pelos significados culturais dados pela própria comunidade. Não é necessário especular sobre sua suposta natureza psíquica, se eles seriam frutos de identificações projetivas ou representações de objetos internos expelidos. Eles já possuem um significado que pode ser compreendido pelas associações simbólicas que o enunciam. Os atos, como diz Bairrão (2004), em psicanálise são ações que comportam sentidos e poderíamos então tomar as diversas ações do ritual como cadeias de linguagem (não exclusivamente verbais) nas quais teríamos a chance de compreender as diversas formas de expressão subjetiva presentes no contexto dos rituais afro-brasileiros, sem promover re-significações tradutoras daquilo que é religioso em termos puramente psicológicos.

Por fim, sobre esta questão da interpretação, é necessário ressaltarmos a concepção de La Porta sobre os atributos do psicanalista que lhe possibilitam perceber o inconsciente.

A clínica e o terreiro

Um outro ponto importante para a discussão sobre a aplicação da psicanálise se refere às considerações que La Porta faz sobre as atribuições do psicanalista que lhe permitem a percepção do inconsciente, pois se o diferencial do psicanalista é justamente a possibilidade de acesso aos significados latentes, é preciso esclarecer o que o psicanalista disponibiliza que lhe garante um acesso tão particular da dinâmica psíquica.

Diz o autor:

O inconsciente do indivíduo, ou de um grupo, só é perceptível habitualmente se utilizada a observação e a intuição de um analista treinado em pesquisar e perceber o inconsciente. Com efeito, uma das conseqüências de toda formação psicanalítica é aumentar a capacidade de intuir e perceber o desconhecido, o inconsciente, onde quer que ele se manifeste (La Porta, 1979, p. 104).

Esta citação refere-se à formação do psicanalista como ponto fundamental para este estudo ou contato com o inconsciente, que se desenvolve inicialmente por um processo de análise pessoal.

Para La Porta, a análise pessoal promove um “aumento no campo de consciência”, o que permite “que o indivíduo psicanalisado observe, na vida em geral, conteúdos, alguns mais óbvios e outros mais complexos, que as demais pessoas não percebem; descortina-se um mundo diante de seu aparelho de percepção” (idem).

O que se transmite é uma noção de que há uma audição do inconsciente fundamentada em qualidades perceptivas adquiridas pelo psicanalista pelas quais ele pode ouvir os sentidos ocultos presentes nas várias formas de produção humana. É como se ele fosse um instrumento óptico (lembrando a metáfora de La Porta do telescópio) pelo qual pode-se ver além das “cortinas”. E o psicanalista, esteja ele em um terreiro ou na clínica, teria condições de perceber aquilo que estaria nas entrelinhas. Seria algo intrínseco à condição de ser analista. Uma percepção diferenciada.

Mas não seria somente esta capacidade perceptiva o crucial no psicanalista, ter-se-ia também um “saber” referente à natureza humana, aplicável à escuta dos fenômenos humanos.

Analisando a forma como La Porta interpreta o ritual, o que temos é justamente um movimento de interpretação daquilo que ele considera como relevante e portador de significados inconscientes. Situa-se no lugar que Lacan, como refere Mannoni (1989) conceitua como “suposto saber”, uma posição de detentor de conhecimento (sobre o outro). Mas esta condição é um efeito da situação transferencial, e não um dado de realidade. Sobre a ilusoriedade de toda e qualquer forma de acesso cognitivo não apenas ao outro, mas também ao outro que há “dentro” de si mesmo, o seu próprio inconsciente, o analista deve estar advertido.

Caso confunda a posição de suposto saber que ocupa com a posse efetiva de um conhecimento objetivo sobre o outro, são inevitáveis conflitos e violência (interpretativa). Esse tipo de posicionamento é o que gera os conflitos de interpretações aos quais nos referimos.

Para pensarmos em outra forma de atuação do psicanalista na pesquisa em terreiros, podemos recorrer a outros referenciais sobre a escuta em psicanálise que se distanciam deste lugar de sujeito efetivamente sabedor que permitem uma aproximação mais direta entre psicanalista e os sujeitos. Lacan, como enfatiza Bairrão (2003), realça o inconsciente em sua qualidade de saber desconhecido, “outro”, que se mostra nas falhas do discurso: “Sabemos que em alguma parte – nesta parte que chamamos inconsciente – uma verdade se enuncia que tem a propriedade de nada podermos dela saber. Isso, entendo este mesmo fato, é aquilo que constitui um saber” (Lacan, 1969, s/p.).

Os significados inconscientes que La Porta busca são justamente os saberes inconscientes, que fazem com que rabos de peixe tenham um significado fálico. Porém, o que o autor não leva em conta é que estes significados e estes saberes são referentes a um sujeito do inconsciente, o representante do enunciado discursivo que emerge na cadeia de associações promovida pelos agentes do ritual, como um outro ali presente. Ao atribuir um significado previamente estabelecido, seja supostamente universal ou não, perde-se de vista este aspecto subjetivo como intrínseca alteridade e tenta-se transformar o inconsciente em objeto apreensível, o que acaba descaracterizando-o. Deixa de ser inconsciente e sujeito e passa a ser coisa e conhecida.

La Porta carrega o inconsciente consigo, na gama de significados simbólicos da qual se utiliza. Assim, impede aquilo que ele próprio preconizou, que a análise deve se dirigir ao aqui e agora da relação analista-analisando. Ao embutir de significados os símbolos rituais ele impede este contato direto com o sujeito que se faz presente. Uma conseqüência disto é que ele se perde dos sentidos que os símbolos têm para os falantes, ficando impedido de acessar as formações imaginárias que participam da enunciação destes símbolos e pelas quais se tem acesso ao inconsciente.

Em um sonho, um símbolo pode remeter a figuras parentais, mas não necessariamente corresponde à realidade dos pais de uma pessoa concreta. É justamente este o campo pelo qual uma análise se desenvolve; as construções subjetivas da realidade, ou, em termos freudianos, da realidade psíquica. Mas este universo só é acessível realmente quando ouvido no ínterim da sessão analítica e pelas livres-associações feitas pelo próprio analisando.

O papel do psicanalista é ocupar um lugar em que estas produções subjetivas se mostrem e observar o posicionamento do sujeito em relação a elas. Necessita-se que o psicanalista não se confunda com o lugar do “suposto saber” para dar lugar ao saber do sujeito do inconsciente, que por fim revela os sentidos profundos do discurso. Por conta desta marca característica da psicanálise que o casal Ortigues (1989) pôde realizar seus estudos psicoterápicos na África, pois como dizem: “a finalidade da análise é chegar a perceber o tipo de problema que o indivíduo se coloca e a sua maneira de resolvê-lo” (p.16).

A prática do psicanalista que se ocupa em observar as ações do sujeito e o entendimento deste frente a suas próprias questões, diverge da prática psicanalítica entendida como um instrumento de “decodificação psicológica” e assume uma postura ética interessada em reconhecer o sujeito nos atos que enunciam o seu dizer. O sujeito comporta um saber e é neste saber que residem os significados “ocultos”, e não na “cabeça” do analista.

Como conseqüência, se levarmos a escuta psicanalítica para os terreiros de candomblé e umbanda, o que teríamos é um instrumento que permite o reconhecimento do outro, no caso os religiosos e seus significados profundos, que vão além das informações corriqueiras, mas talhadas e relatadas pelos próprios informantes, tomados como sendo sujeitos além da sua consciência, enunciantes em vários lugares onde a subjetividade se expressa, como na música, nos gestos, na dança, nos diálogos interpessoais, etc...

Logo, o psicanalista pode entrar no terreiro como um pesquisador que possui uma visão de mundo distinta dos religiosos, mas que no momento de colher seus dados, retira-se da posição do saber para ouvir as produções culturais como predicados que remetem a significados comunitários que passam desapercebidos, mas não são tratados como representações de uma realidade psíquica, e sim formas discursivas locais, portadoras de sentidos.

Perde-se de vista a interpretação do ritual centrada em aspectos psicológicos dos indivíduos e se parte para a escuta da produção simbólica coletiva. O psicanalista, em um terreiro, poderia ouvir as produções discursivas da ação de pessoas concretas atentando para aquilo que estaria além do discurso individual, construído pelas cadeias simbólicas referentes a uma cultura específica, sendo que o espaço em que este sujeito se encontra é o próprio espaço ritual, no qual a linguagem do culto se expressa.

Conclusões

Augras (1995) afirma ser necessário para a pesquisa psicológica da cultura que o pesquisador substitua a explicação do “cientista sabe-tudo” (p. 51), para um diálogo em que o outro (o sujeito da pesquisa), deixe de ser objeto e passe também a ser sujeito do conhecimento.

A psicanálise, tal como é concebida por Lacan permite esta posição por justamente tratar da necessidade de se reconhecer a produção dos sentidos inconscientes como referentes a um sujeito, sendo que é sempre pela fala dos sujeitos que vivenciam a experiência (seja na clínica ou no terreiro) que se pode obter acesso às tais produções inconscientes. Acreditamos ser possível com essa perspectiva desenvolver um enfoque de pesquisa que, novamente citando Augras (1995), assegure o “respeito dos valores alheios e a humildade ao retratá-los” (p. 50), por enfatizar que os fatos ditos “psicológicos” sempre estão atrelados à experiência de quem os enuncia.

Com essa visão é possível re-utilizarmos a psicanálise no âmbito dos terreiros de candomblé e umbanda como um referencial que preserve a realidade dos praticantes do culto, e assim renovar uma linha de pesquisa que se iniciou com Ramos (1934), tomou novos ares com La Porta (1979) e continua promissora por aproximar os estudos psicológicos dos estudos sociais, na busca da compreensão dos fenômenos psicológicos intrinsecamente ligados à cultura.

Para tanto, como fizeram os predecessores, é fundamental a pesquisa empírica, nas comunidades de terreiros, onde os fenômenos religiosos remontam a antigas tradições e guardam parte da cultura brasileira.

Referências bibliográficas

Augras, M. (1995). Psicologia e Cultura: alteridade e dominação. Rio de Janeiro: NAU.

Bairrão, J.F.M.H. (2003). O Impossível Sujeito: implicações da irredutibilidade do inconsciente. São Paulo: Rosari.

Bairrão, J.F.M.H (2004). O Impossível Sujeito: implicações do tratamento do inconsciente. São Paulo: Rosari.

Brumana, F. G; Martinez, E.G. (1991). Marginália Sagrada. (R. P. Goldoni & S. Molina, Trad.s). Campinas: Ed. Unicamp. (Originalmente publicado em 1987).

Lacan, J. (1969). D`un Autre à L`Autre. (V. Galindez, Ed.). Mimeo. (seminário inédito, sessão de 5-3-1969).

Lacan, J. (1998). Escritos. (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1966).

La Porta, E. (1979). Estudo psicanalítico dos rituais afro-brasileiros. Rio de Janeiro: Atheneu.

Manonni, M. (1989). Um saber que não se sabe: a experiência analítica. (M.P. Silva, Trad.). Campinas: Papirus. (Originalmente publicado em 1985).

Ramos, A. (1934). O negro brasileiro: ethnographia religiosa e psychanalyse. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

Silva, M.V.O (1999). A possibilidade e a necessidade da construção de uma crítica etno-psicológica. Mimeo.

Nota

(1) Apoio CAPES, CNPq e FAPESP (Processo 04/03463-2). (volta)

Nota sobre os autores

Alexandre Mantovani é psicólogo, graduado pela FFCLRP-USP, mestrando do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto, USP, Brasil. Bolsista CAPES. Contato: alexmantova@hotmail.com

José Francisco Miguel Henriques Bairrão é graduado em Filosofia (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras da Universidade de São Paulo) e em Psicologia (Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo), Doutor em Filosofia (Universidade de Campinas), Professor de Psicologia Social (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo) e pesquisador na mesma área (FAPESP/CNPq/FFCLRP-USP). Contato: jfbairrao@ffclrp.usp.br

Data de recebimento: 01/08/2005
Data de aceite: 09/09/2005

Memorandum 9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mantobairrao01.htm

 

 

 

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