Introdução
As religiões afro-brasileiras sempre instigaram a
pesquisa científica e desde os tempos de Ramos (1934) temos a utilização
de teorias psicológicas para explicar os fenômenos que se apresentam nos
cultos de candomblé e umbanda.
Dentre as teorias utilizadas, a psicanálise apresentou
um potencial teórico e metodológico para a formulação de teses a
respeito do comportamento dos praticantes destes cultos, principalmente
pela possibilidade trazida por Freud de se fazerem interpretações de símbolos,
traduzindo os enredos ritualísticos por explicações psicológicas
fundamentadas em teorias científicas, até então atuais sobre a natureza
humana. Com o passar do tempo a pesquisa sobre estas religiões foi
migrando quase totalmente para o campo dos estudos sociais. Sociólogos e
antropólogos abandonaram essas teorias psicológicas, por conta de um
aspecto negativo de seu uso, que é o risco de promoverem explicações
reducionistas: os fenômenos religiosos passarem a ser explicados como
fatos puramente psicológicos, determinados principalmente por uma
“mentalidade” dos afros-descendentes (Ramos, 1934). E de fato as
explicações de Ramos (1934) e de seu predecessor Nina Rodrigues, citado
por Ramos (1934) acabavam por reconhecer os comportamentos ritualísticos
como relacionados a quadros psicopatológicos, sem levar em conta a questão
cultural que está intrinsecamente ligada à estruturação destes
comportamentos, o que gerou críticas por parte de cientistas sociais.
Todavia, a psicanálise é um campo muito heterogêneo
e muitas das críticas dirigidas ao seu uso no campo dos estudos
religiosos são referentes a apropriações feitas de contribuições
freudianas, como as de Ramos (1934), que utilizavam a psicanálise como
uma psicologia geral, capaz de garantir explicações sobre a natureza
mental do ser humano. Este tipo de uso da psicanálise encontra críticas
no próprio movimento psicanalítico, por autores posteriores a Freud,
atentos às necessidades de se reformularem e contextualizarem conceitos
freudianos.
O objetivo deste artigo (1) é analisar e explorar o uso da psicanálise no
âmbito dos estudos das religiões afro-brasileiras, levando em conta as
contribuições teóricas de autores pós-freudianos, cujas teses se
aproximam dos estudos culturais, principalmente as contribuições de
Lacan (1966/1998).
Para tanto faremos uma análise dos estudos
afro-brasileiros de um psicanalista, Ernesto La Porta, que pesquisou as religiões afro-brasileiras e discute a psicanálise como
método de pesquisa social.
La Porta (1979) é um dos poucos psicanalistas que
realmente se entregaram ao estudo do universo religioso afro-brasileiro,
saindo da clínica particular em direção aos terreiros de umbanda e
candomblé. Por isso utilizaremos suas contribuições para explorar o uso
da psicanálise, considerando em que medida pode-se aplicar a psicanálise
a estes estudos, atentando para a forma como os conceitos psicanalíticos
são utilizados e o tipo de conhecimento que se produz interpretando os
fenômenos ritualísticos à luz da psicanálise.
Esperamos assim revitalizar o debate sobre a pesquisa
psicológica no âmbito social e abrir espaço novamente para aquilo que a
psicanálise oferece para os estudos em ciências sociais, que é o estudo
das produções simbólicas do homem, vinculando o subjetivo ao social.
Por que a psicanálise?
Para o início de nosso trabalho é necessário
descrevermos um pouco do modo como La Porta trata a psicanálise e as
características desta disciplina que justifiquem sua aplicação no âmbito
do estudo religioso. Assume-se como um analista freudiano, mas busca também
contribuições de outros autores, psicanalistas posteriores a Freud e
estudiosos das ciências sociais. Grande parte de seu trabalho consiste na
descrição da psicanálise como uma doutrina aplicável aos estudos
culturais e principalmente interculturais, uma vez que a psicanálise não
se envolve “com quaisquer padrões pré-estabelecidos de ação, com
contextos teóricos religiosos ou político-partidários; ao contrário
ela é uma tentativa de observar e pensar os fatos percebidos” (La
Porta, 1979, p. 2).
Para o autor a psicanálise é uma forma de ciência
que não se prende a ideologias e possibilita o conhecimento não
preconceituoso, até mesmo neutro (do ponto de vista científico que
aposta numa “objetividade” do conhecimento).
Este ponto será discutido mais adiante, pois mostra a postura em que o
autor se coloca diante da psicanálise enquanto método de investigação
e de produção de conhecimento.
La Porta inicia seus estudos descrevendo a psicanálise
como um doutrina que não se restringe à prática médica, mas,
sobretudo, se caracteriza como uma teoria da personalidade, cujo alcance
se expande em “todas as investigações das ciências humanas”.
Tendo como referência a IPA (International Psychoanalytical
Association), afirma que “o termo psicanálise refere-se a uma
teoria da estrutura e função da personalidade; à aplicação desta
teoria a outros ramos do conhecimento; e a uma específica técnica
psicanalítica” (La Porta, 1979, p. 32). Assume o conhecimento psicanalítico
como instrumento de pesquisa aplicável às ciências humanas como um
todo, e assim potencialmente útil aos estudos afro-brasileiros e continua:
Esta
definição considera a Psicanálise tanto em sua vertente psicoterápica
quanto em sua vertente sócio-cultural como aplicação da teoria
estrutural e funcional da personalidade que se baseia nos estudos de
Sigmund Freud. E inclui, portanto não só o trabalho psicoterápico do
analista como também o que ele possa desempenhar em outros campos (Idem,
p. 33).
Sendo
assim, a psicanálise teria como traço intrínseco a possibilidade de
expansão da sua área de aplicação para além da prática clínica,
incluindo, a exemplo do seu fundador, a pesquisa social.
Com
este espírito, sua pesquisa constitui uma investigação dos rituais de
origem africana pelo viés da psicanálise, tendo como referência
principal as idéias de Freud e de psicanalistas posteriores. Define o seu
método como dedutivo-científico, o que, nas palavras do autor, significa
“busca compreender o que está mais distante e é mais obscuro a partir
daquilo que está mais próximo e é mais claro” (La Porta, 1979, p.49).
Assim embarca na pesquisa de campo em terreiros de religiões
afro-brasileiras de candomblé e umbanda com o objetivo de, através desse
método e da psicanálise assim concebida, interpretar cientificamente o
ritual.
Para
La Porta o grande trunfo da psicanálise é permitir conhecer aspectos do
comportamento (e da mente) que estão fora do alcance perceptivo de outras
formas de investigação:
A
psicanálise pode ser comparada a um telescópio inventado para se
perceber o que até então não fora captado por outros métodos de
investigação. Ela pode produzir imagens virtuais, mas é por meio destas
mesmas imagens que ela pode chegar a imagens reais. Não se trata de
descobrir o objeto extinto do passado do indivíduo ou da humanidade, mas
de reconhecer os seus efeitos – a sua presença - no momento atual (La
Porta, 1979, p. 49).
Este
tipo de método proporcionaria então reconhecer aspectos fundamentais do
homem que estariam aquém de sua percepção ordinária e seria
fundamental para as interpretações sobre os fenômenos sociais, por essa
possibilidade de investigação de aspectos profundos do ser humano.
Um
ponto fundamental para suas análises é a questão do inconsciente,
tratado, sobretudo pelas suas leituras de Freud, segundo o modelo
funcional (inconsciente, pré-consciente e consciente) e também segundo o
enfoque dos estudos metapsicológicos posteriores, a teoria estrutural do
aparelho mental dividido em id, ego e superego.
Para
La Porta o inconsciente configura-se como um reduto de símbolos e é uma
fonte motivacional de comportamentos, cujo estudo é capaz de investigar
os tais aspectos que passam despercebidos. Na definição do autor, “o
inconsciente é não apenas o antro onde se esconde o inconfessável, o
horrível e o animalesco, mas também a fonte subterrânea dos pensamentos
que ainda não foram pensados, das verdades que ainda não foram vistas”
(La Porta, 1979, p. 5). O psicanalista que lida diretamente com o
inconsciente seria, portanto, aquele que tem acesso a este universo
subliminar, presente no domínio humano, seja no comportamento de indivíduos,
seja na estruturação da cultura; isso pela premissa de que todo o
sintoma e todas as manifestações mentais seriam expressões do
inconsciente e teriam um sentido. Caberia ao analista perceber os
significados da produção inconsciente e revelá-los pela interpretação
de conteúdos emergentes.
É
assim que La Porta ingressa no campo dos seus estudos, os terreiros
afro-brasileiros, e assim concebe e desempenha a sua tarefa de investigação.
Tomando como base o conhecimento acerca da personalidade humana como
marcada pela interação entre aquilo que é proveniente do meio cultural
e aspectos individuais concernentes às pulsões, e aproveitando as
teorias de Freud sobre a cultura e o comportamento religioso, o
psicanalista procederá então a uma livre-associação de idéias dentro
das comunidades afro-brasileiras. Busca a compreensão dos símbolos pelos
significados que eles teriam no nível inconsciente, como faria um
psicanalista que em sua clínica reconhecesse a produção inconsciente
como uma “linguagem cifrada que pode ser decodificada na sessão analítica
ou quando se examina qualquer aspecto inconsciente das interações
humanas” (La Porta, 1979, p.8).
Continua:
“Essa linguagem cifrada é muitas vezes não-verbal. O ritual é um
exemplo de tal linguagem não-verbal e que só pode ser compreendido
quando sua análise não é obstruída por preconceitos” (idem).
Ainda
sobre o inconsciente, La Porta se apóia em textos de Freud como “Totem
e Tabu”, ou em trabalhos de psicanalistas posteriores como Géza Róheim,
citado por La Porta (1979), os quais estabelecem hipóteses sobre o
comportamento do homem, a partir de teorias ontogenéticas, ou seja, que
tratam o mundo mental do homem pelo seu substrato comum, independentemente
da cultura, que depende de uma herança filogenética que se estende por
muitas gerações. Este tipo de teoria permite a análise de símbolos
referentes a culturas não-ocidentais, pressupondo-se que haja no
comportamento humano estruturas psíquicas comuns. Portanto, pelo
conhecimento acerca do homem moderno, poder-se-ia chegar a explicações
universais, como diz o autor: “Os dados que a psicanálise foi
descobrindo mostram a estrutura que a dinâmica da personalidade estão em
certa medida programadas, de um modo que se foi estabelecendo com a
estruturação da espécie humana” (La Porta, 1979, p. 37).
Em
resumo, La Porta encontra na psicanálise uma teoria científica sobre o
ser humano, aplicável a diferentes contextos, tendo como grande mérito a
possibilidade de estudar os sentidos do comportamento humano com base no
conhecimento do inconsciente. Seu trabalho será então procurar esses
significados inconscientes presentes nos cultos afro-brasileiros. O
material por ele analisado é fruto de pesquisa de campo em Porto Alegre, que progressivamente se estendeu ao Rio de Janeiro, a Salvador e a Dacar
(África). Procura em
suas interpretações fazer uma descrição ampla do ritual e se empenha
em aplicar o conhecimento psicanalítico diretamente àquilo que é
observado, como em um sonho ou em uma sessão psicanalítica, por meio de
associações de idéias, buscando significados inconscientes para as ações
ritualísticas que, como o mesmo observou, são permeadas pela comunicação
não-verbal.
Desvendando
os significados religiosos: a pesquisa de campo
Com
suas observações, La Porta desenvolve uma série de interpretações dos
rituais religiosos, que passa por diversos temas, como a função do
ritual, a possessão por espíritos, o simbolismo e a cura espiritual.
Como
psicanalista dispõe-se a observar e desvendar as representações
inconscientes que estariam latentes no ritual.
A
forma com que lida com a cultura é, do seu ponto de vista, a mesma
empregada em uma sessão analítica na qual o analista busca a “percepção
do significado que emerge na própria situação concreta, no aqui-agora
da sessão” (La Porta, 1979, p. 49). É um procedimento que visa
elucidar os sentidos e significados inconscientes “percebidos”
diretamente no contato do analista com o analisando.
Contato este no sentido concreto e temporal entre duas pessoas, uma
vez que a percepção (tal como é tratada pelo autor) se dá na interação
imediata entre observador e observado.
Com
esta postura clínica, La Porta enfatiza a importância do psicanalista
atentar aos fatos presentes e deles tirar sua percepção sobre o estado
mental do paciente. A descoberta dos significados inconscientes se
desenvolve neste momento: “A análise dos significados que emergem na
hora analítica, no aqui-agora da sessão assumiu papel decisivo para o
conhecimento do inconsciente. Tornou-se evidente que qualquer produção
humana deve ser investigada pela análise dos significados expressos
nela” (La Porta, 1979, p.48). E acresce: “Também toda religião e
toda cultura com seus conteúdos ocultos pode estar assim ao alcance da
indagação analítica” (idem, p. 48).
Portanto
ao ingressar nos cultos afro-brasileiros, o psicanalista comporta-se como
em uma sessão de análise e munido de seu treinamento em “perceber” o
inconsciente em fatos atuais, ou seja, no momento em que ocorre o culto.
Exemplificaremos
alguns exemplos de suas análises:
1.
O ritual e suas funções:
Consideramos
o ritual como uma tela sobre a qual se expressam e se projetam impulsos e
fantasias elaborados magicamente. Sobre o significado do ritual em si,
podem se projetar necessidades e emoções significativas para o indivíduo.
O rito é uma ação dramática com a qual se misturam elementos internos
dos atores numa verdadeira “dramatis personae” (La
Porta, 1979, p. 67).
Ainda:
Um
grande contingente de freqüentadores dos terreiros são pessoas em estado
de depressão e de perseguição. São indivíduos que vivem uma situação
de perda e abandono, seja de boa situação econômica, empregos, saúde
etc. Assim estas pessoas procuram no ritual a elaboração de suas situações
depressivas e persecutórias, tais como a busca de recuperação de
objetos, mas expressando sua agressão, o triunfo, a onipotência, e também
a culpa (idem, p. 73).
O
ritual corresponde então para La Porta a um local no qual há uma catarse
de emoções, sentimentos e aspectos psicológicos que vêm à tona como
em uma espécie de teatro ou drama psicológico; e para ele o ritual seria
então uma forma de elaboração deste conteúdo manifesto. O autor não
deixa muito clara a justificativa para classificar os estados emocionais
dos praticantes, se ele teve contato com essas pessoas ou qual foi sua
fonte de informação, mas fica claro que seu olhar se dirige àquilo que
sugere estados emocionais bem conhecidos da medicina, psicologia e psicanálise.
Isso fica mais evidente ao fazer afirmações sobre aspectos internos dos
praticantes, os atores sociais:
Observa-se
a grande freqüência de cultos que significam a expulsão de objetos maus
e a internalização de objetos bons. São cerimoniais comuns de
exorcismo, e as cerimônias chamadas de ‘limpeza’ são atos mágicos
destinados exatamente à expulsão de objetos maus (idem).
O
termo objeto se refere à noção de objeto comumente tratada em psicanálise,
principalmente na escola kleiniana, que concebe o mundo psíquico
estruturado por relações objetais, vindas inicialmente dos primeiros
contatos afetivas com os pais.
Com
este recurso de interpretação o autor investe na compreensão de situações
do culto reconhecendo nos comportamentos sentidos psicológicos, descritos
com esta terminologia especifica. Cria uma linha de raciocínio
identificando os símbolos e sua função para os praticantes
individualmente:
O
chefe de culto em estado de santo e mais outros auxiliares do terreiro,
brandindo um feixe de varas, passavam-no sobre o corpo do paciente, pela
frente, pelas costas, pelos lados de modo a parecer que o estavam
surrando. Em seguida suavemente batiam nele com as varas. O paciente caía
ao solo, contorcendo-se e com forte emoção, chorava copiosamente
rastejando pelo soalho. Neste caso além do sentido comum da expulsão do
objeto mau, percebia-se o significado de um coito sádico ou a fantasia de
destruição da parte feminina considerada como má (possivelmente a
identificação com a mãe na homossexualidade) (La Porta, 1979, p. 74).
Neste
tipo de análise a atenção dirige-se principalmente a aspectos
individuais ou do efeito do ritual sobre os praticantes compreendendo os símbolos
ritualísticos pela psicodinâmica individual dos religiosos.
2-
Símbolos ritualísticos e seus significados:
La
Porta também descreve análises de símbolos do ritual procurando o
significado inconsciente que teriam para o grupo. Os símbolos estariam em
uma dinâmica psíquica coletiva e seu significado seria compartilhado.
Temos como exemplos:
Assim,
o ritual é uma volta simbólica ao passado individual e da comunidade, em
que as situações de ansiedade são repetidas reiteradamente, com a
finalidade de serem elaboradas e controladas por meios mágicos. O
chefe-de-culto representa, em níveis diversos, o pai e a mãe. Nos planos
mais primitivos, restauram-se as situações de maior segurança sentidas
pelo ser humano (de todos os seres da escala animal o mais dependente
biologicamente) (La Porta, 1979, p. 81).
O
aspecto coletivo no caso seria apenas o de uma herança ancestral do
homem, presente e determinante até os dias atuais. É saliente o enfoque,
por parte do psicanalista, no tratamento da personalidade, na qual
reconhece aspectos comuns, genéricos, do ser humano. Estes aspectos
comuns formariam estruturas universais e o culto representaria então
situações psíquicas que remontariam a uma origem mítica do homem.
Os
símbolos teriam então uma função psíquica plausível de ser
compreendida. Vejamos:
Na
casa de Mãe Apolinária Batista presenciamos este ritual de levantação,
que se processava da seguinte forma: Apolinária, com as vestes de Iemanjá,
sacrificava peixes, e logo depois devolvia às águas o rabo, junto com
outras oferendas para Iemanjá. Na interpretação deste cerimonial
levamos em conta, primeiro, o significado fálico do rabo (a cauda das
sereias tendo esse significado também). Seria um ritual de castração
(La Porta, 1979, p. 70).
Se
o psiquismo é composto de estruturas comuns, originais da espécie, o
ritual seria além de uma catarse uma espécie de teatro psíquico, em que
as ações teriam uma função psíquica específica como a castração. A
castração no caso seria um universal do homem, mas o que o autor não
explica é a forma pela qual ele reconhece este aspecto no ritual. Além
de no olhar que a vê, onde mais está a castração? Seria castração de
quem? De um praticante do grupo?
3-Os
mitos afro-brasileiros:
Em
outros momentos La Porta utiliza o mesmo argumento da universalidade dos símbolos
e do psiquismo, interpretando situações do culto como análogas a esses
dramas míticos.
Sobre
uma dança de Oyá (a deusa iorubá dos ventos) lemos a seguinte
interpretação:
Este
mito, dançado no terreiro, quando tocam as rezas para Oyá, tem realmente
um sentido edípico: Ogum é um Édipo Africano que dorme no seio materno,
após o que sua mãe vai ter relações genitais com o pai. Quando acorda,
de espada em punho, tenta realizar o parricídio. Ademais a espada é um símbolo
fálico e a agressão de Ogum a Oyá deve significar um coito sádico com
a mãe e sua destruição (La Porta, 1979, p. 77).
A
espada como símbolo fálico, a agressão e a destrutividade, recebem
significados psíquicos pela sua já conhecida presença nas interpretações
da tragédia grega em questão, tão recorrente no universo psicanalítico.
Porém mais uma vez não se sabe a quem se remete a agressividade e a
destrutividade. Neste sentido, o que parece é que La Porta está
realmente decodificando os símbolos rituais que possuem um significado
aparente, relatado pelos religiosos, em outros termos, utilizando o seu método
dedutivo, que o autoriza a aproximar fatos e a atribuir-lhes significados,
graças a uma concepção de homem especifica (ocidental e moderna) que
lhe permite recuperar em eventos atuais toda a herança filogenética do
homem. Diz La Porta:
“As
expressões emocionais são inatas e imediatamente compreensíveis e em
principio não necessitariam de interpretação” (1979, p. 10). Sendo
assim é possível dizer que alguém está em um estado depressivo ou
persecutório no culto, sem maiores preocupações. Os afetos são
expostos e podem ser imediatamente percebidos. Continuando, “A
interpretação é necessária somente quando a repressão ou outras
modalidades de defesa do ego obscurecem os significados” (Idem). La
Porta, então, pelo seu modo de trabalhar psicanaliticamente com os símbolos,
se dispõe a desvendar os significados que estão além da aparência, o
material reprimido, o conteúdo do inconsciente que não pode ser
verbalizado e assim aparece no culto sob a forma de “acting out”,
comportamentos dotados de significados inconscientes e que não são
verbalizados mas sim expostos em ato. Seriam as descargas motoras, a agitação
dos corpos expulsando os objetos maus, inacessíveis à linguagem. Também
reconhece nos enredos religiosos, na seqüência do ritual, uma forma de
enunciação de aspectos psíquicos já sublimados e elaborados, como por
exemplo, da castração, que em psicanálise seria a marca de acesso da
pessoa ao universo simbólico, ruptura da díade criança mãe, pela
presença do pai.
Estes
símbolos ritualísticos estariam estruturados pela dinâmica psíquica da
comunidade e teriam como efeito comunicar, produzir sentidos dentro de parâmetros
próprios dos praticantes. Os símbolos estariam em função comunicativa,
possível de ser percebida por um psicanalista, pois, como diz, “a
psicanálise mostra que o comportamento não deriva só da necessidade de
satisfazer impulsos instintivos, pelo uso apropriado de objetos, mas também
da necessidade de um contato significativo com objetos. O ser humano também
precisa de comunicação significativa para obter satisfação” (La
Porta, 1979, p. 10).
Então
o conhecimento do inconsciente e da dinâmica psíquica em que os símbolos
interagem com impulsos instintivos se expressam num jogo de expressão e
repressão de conteúdos que de alguma forma são manifestados, seja de
forma primária, na expressão corporal, seja como em uma linguagem
cifrada. O ritual seria então um discurso cujos significados estariam
latentes, e os símbolos a via de acesso a ele.
Fatos
sociais e fatos psíquicos
Ao
descrever o ritual como esse espaço catártico de expressão de emoções
primitivas e buscar explicações referentes a aspectos psicológicos
individuais dos praticantes, como, por exemplo, dizer que a agitação
motora é a expulsão de objetos maus internos, delineia-se um plano
descritivo da realidade do culto e dos seus praticantes. Se os
componentes do ritual têm como fundamento o psiquismo humano entendido
como algo universal e resultado de uma herança filogenética, ao atribuir
significados aos mesmos, e sendo o sujeito psicológico fruto da interação
entre fatores biológicos e sociais, acaba-se por descrever a realidade
dos fatos puramente em termos mentais. Tratando os símbolos do ritual
como representações psíquicas de conteúdos primitivos da mente humana,
definem-se as estruturas do ritual, caracterizando-as por componentes
atemporais e universais do ser humano que, em última instância, seriam
psíquicas e biológicas, e determinantes do comportamento.
Passa-se
do discurso dos religiosos, cujas explicações seriam de cunho mágico ou
espiritualista, para explicações psicológicas, científicas,
descritoras de um plano que sustenta essas produções culturais,
possibilitando o acesso à verdade das mesmas (eis o reducionismo temido e
combatido por críticos do emprego da psicanálise no âmbito de estudo
dos fenômenos sociais e religiosos).
A
pesquisa de La Porta configura-se então como um conjunto de explicações
dos rituais afro-brasileiros em termos psicológicos, tomando como base
duas premissas: a noção de que o psiquismo humano tem fontes biológicas
e é determinante dos comportamentos e a idéia de que a psicanálise como
forma de saber permite acesso a um universo inconsciente que estaria aquém
das explicações ordinárias destes fenômenos. Desta postura teórica e
metodológica derivam conseqüências para a pesquisa social e para o tipo
de saber produzido.
Em
primeiro lugar, é necessário ter-se em vista que a busca por explicações
de fenômenos sociais com base em estudos psicológicos é algo que
demanda modelos teóricos específicos pela complexidade de tais fenômenos.
Em
comentário sobre as explicações psicológicas dos cultos de origem
africana, dizem Brumana e Martinez (1991, p .450): “Embarcar numa
explicação de nível psicológico dá a incômoda sensação de tirar um
coelho da cartola, ou como num romance policial descobrir que o assassino
é um personagem que ainda não tinha sido apresentado”.
Os
autores se referem exatamente a este tipo de magia explicativa, que toma
por base a busca por decifrar os fenômenos culturais em termos de
representações psíquicas, voltando-se para aspectos inaparentes do
culto, o que obviamente apenas pode causar estranheza àqueles que em suas
pesquisas de campo buscam explicações baseados nos fenômenos tais como
se mostram e principalmente levando em conta o saber (os dizeres) do
outro, os praticantes.
Também
há a questão de que trabalhar com modelos de representações mentais e
de teorias objetais que tratam de um mundo psíquico “interno” nada
acrescenta ou causa empecilhos ao estudo de fenômenos que são
socialmente estruturados. Se o comportamento de um indivíduo é
determinado por pulsões e relações objetais intrapsíquicas, todo o
aparato “externo” destes fenômenos seria secundário, como uma espécie
de um revestimento de uma realidade aquém das aparências. Se tomarmos,
por exemplo, a agitação motora exposta em um ritual de cura quando um médium
cai ao chão e se agita em termos apenas da expulsão de objetos internos
causadores de angústia, deixaremos de lado toda uma gama de significados
compartilhados comunitariamente neste tipo de ação.
O
que se passa dentro de um terreiro, qualquer comportamento individual,
recebe significados coletivos que, traduzidos apenas como representações
psíquicas, são reduzidos a um código específico, no caso psicanalítico
e psicológico.
La
Porta trata então os fenômenos religiosos como se fossem a
“externalização” do mundo “interno” de seus praticantes,
determinado por estruturas históricas das origens do psiquismo. Dessa
forma o espaço do ritual é tratado como um espaço psíquico e objetivo,
sendo possível a percepção direta dos aspectos psicológicos dos
praticantes envolvendo suas ações concretas no ritual. Isso por conta de
um distanciamento radical entre o observador e os observados, sem levar
minimamente em conta a perspectiva dos últimos.
Se
o psicanalista munido de suas ferramentas cientificas pode perceber aquilo
que é oculto para o outro e assim dizer a realidade dos fatos,
descrevendo um plano distinto daquele em que corre a performance ritual,
isso se deve à condição dele estar separado e afastado do seu objeto de
estudo, e tratar das estruturas psíquicas como objetos e ocupantes de um
lugar no espaço sob a forma de representações. Aquilo que se vê em
termos mitológicos na verdade teria outro significado, e assim o mundo
subjetivo dos fiéis é tratado dividindo-o em um universo interno e um
externo, sendo o primeiro, relativo ao psiquismo individual, e o segundo
coletivo, que no caso compreende o contexto sócio-cultural.
Considere-se
outro exemplo:
Na
casa da Mãe Apolinária Batista, no decurso do ritual da matança, vimos
que os animais sacrificados eram cobertos por panos da mesma cor
representativa do Orixá e que o fiel para o qual o cerimonial era
praticado tinha também suas vestes na mesma tonalidade. (...)
Possivelmente o uso da cor é utilizado como um vínculo, processo mental
que proporciona a idéia de identidade entre os três seres, o santo, o
fiel e o animal (La Porta, 1979, p. 58).
O
que se tem nesta análise é um movimento de tentar reconhecer um
significado psicológico a algo que já existe na ação ritualística. O
uso da cor como elo entre os três elementos do culto (o santo, o fiel e o
animal) já está dado pela própria religião, a cor, o pano, que tanto
cobre o animal quanto veste o fiel, remetendo à cor do orixá, por si só
já garante uma noção de vinculação entre estes elementos. Interpretar
este tipo de situação em termos psíquicos, somente promove uma mudança
de referenciais de realidade: o que era compreendido em termos religiosos
passa a ser psicológico, mas sem alterar ou acrescentar alguma compreensão
ao fato em si. La Porta exclui a noção de que os fatos percebidos no
ritual já comportam um sentido para os fiéis e empregar uma terminologia
psicológica para estes fatos pode apenas gerar uma dicotomia entre visões
de mundo, sem acrescer novos conhecimentos.
Observando
o mesmo ritual, diz o autor: “Esta tríade poderia representar, também,
o aparelho mental, portanto, a externalização de uma situação interna
em que o superego é substituído pelo santo e o id pelo animal” (idem).
Logo, o ritual seria em um plano exterior a representação das estruturas
psicológicas. Novamente o que temos é a atribuição de significados
psicológicos que acabam delineando um plano de realidade que se sobrepõe
ao campo de experiências e às explicações originais dadas pelos
praticantes, em prol de um conhecimento científico.
Em
conseqüência disto, La Porta sustenta este distanciamento de seus
observados por traçar um plano de realidade distinto e por enfatizar a
realidade psicológica em detrimento da realidade mágica.
Este
tipo de interpretação sempre gerou conflitos entre psicanalistas e
cientistas sociais no campo da pesquisa cultural, e também contribuiu
para gerar aversões ao uso da psicanálise na pesquisa afro-brasileira.
Isso porque ao descrever a realidade dos fatos sociais em termos psicológicos,
excluindo seus significados coletivos, nega-se a estruturação social
destes fenômenos, bem como se reduzem as explicações sobre os fatos
somente a aspectos psicológicos oriundos do conhecimento do funcionamento
mental individual, assim perdendo de vista toda a gama de sentidos que
estes fenômenos possuem para a comunidade. Também se incorre na atitude
de promover abstrações, pois ao supor um modelo universal de homem e de
estrutura mental exclui-se o conhecimento dado pelos informantes, que não
compartilham das mesmas concepções do observador, ficando este
totalmente separado daquele, como se o informante fosse um objeto passivo
a ser conhecido na sua totalidade. Os vivenciantes do culto, os
religiosos, possuem uma compreensão dos fenômenos e tratando os mesmos
por conceitos psicológicos exclui-se a possibilidade de interação.
O
psicanalista seria dotado de uma visão especial, em decorrência de seu
treinamento e de seu conhecimento sobre o inconsciente, que o coloca na
posição de acessar esta realidade psicológica que em última instancia
seria determinante nos fenômenos culturais. A conseqüência disto é
incorrer em uma atitude de reducionismo teórico, explicando o coletivo
por fatores psíquicos individuais. Pensar no mundo interno dos
praticantes como um agente determinante da dinâmica do ritual implica em
um tratamento do sujeito que sobrepõe os aspectos psíquicos individuais
à cultura, o que conseqüentemente faz invalidar as peculiaridades de
cada comunidade. Se o mito africano em essência remete ao pano de fundo
comum presente em todas as mitologias, o que possibilita comparar a dança
de Oyá ao mito edípico, diluem-se as características contextuais originárias
de cada produção cultural, como a mitologia ou a religião, de um modo
geral.
La
Porta trata o sujeito psicológico como se este fosse algo genérico,
independente da cultura, estruturado em um binômio, cultura-indivíduo,
sem pensar que os afetos, comportamentos e expressões corporais estão
relacionados a um contexto cultural. Por conta disso, seu trabalho acaba
por aplicar uma concepção de sujeito ocidental a um contexto cujas
concepções de ser humano não se subordinam estritamente a ela. Acaba
fazendo uma leitura ocidental e psicológica do ritual.
Este
é um ponto crucial. Tomando a psicanálise como uma teoria de psicologia
geral, que descreve o ser humano e a natureza de sua personalidade,
cria-se um método que se limita a aplicar modelos teóricos já dados
diretamente ao fato observado. Isto sempre foi um ponto de atrito com
cientistas sociais, por pressupor a naturalidade e a universalidade de uma
concepção de uma psicologia culturalmente determinada.
Crítica
válida quando se coloca a psicanálise no mesmo plano de outras ciências
que funcionam desta forma – aplicam modelos prontos ao entendimento de
fenômenos supostamente objetivos e atemporais. É precisamente isso o que
faz La Porta, tornando-se suscetível a críticas como as de Silva (1999):
Tal
tipo de produção baseia-se numa posição epistemológica e metodológica
ingênua, que supõe, numa perspectiva nominalista, que os fenômenos
tenham sua existência numa certa objetivação da realidade, em relação
à qual restaria à teoria, ao olhar calçado por esta teoria, iluminar e
esclarecer, fazendo uma associação unívoca entre a coisa e seu
significado “correto”. Obviamente isto traz aos integrantes dos cultos
em questão uma posição de alienação em relação ao acesso às
verdades mais profundas e verdadeiras de sua própria prática (p. 10).
A
grande questão que se impõem como ponto a considerar para um maior
alcance da psicanálise neste tipo de pesquisas, sem incorrer neste tipo
de problema, é justamente desenvolver um procedimento que não seja
reducionista, mas permita sim o que La Porta aponta como artigo particular
da psicanálise, útil para a pesquisa dos rituais: o estudo do
inconsciente nas produções humanas.
Inconsciente
e interpretação
Para
La Porta o inconsciente corresponde aos aspectos da mente que se situam
fora do alcance da consciência, o material recalcado, bem como os
impulsos instintivos do id, os quais variam de individuo para indivíduo e
são heranças biológicas do homem. O inconsciente determina os
significados das ações humanas e a psicanálise é o método que
possibilita que estes significados psíquicos sejam percebidos e
elucidados. Como o psicanalista diz, Freud mostrou que “todo sintoma
tinha um sentido e que todo comportamento possui um significado” (La
Porta, 1979, p. 48). Assim, os comportamentos humanos, sejam em um culto
religioso ou em qualquer outro contexto, são providos de sentido e seu
significado estaria no inconsciente.
O
trabalho do psicanalista é explorar esses significados, com o analisando,
e assim fazer este perceber outros
sentidos inerentes às suas ações. Quando La Porta ingressa nos
terreiros com esta visão e se dispõe a interpretar os fatos ali
manifestados, ele está em busca desses significados inconscientes, mas
sua atitude não é a de um psicanalista dentro de um setting terapêutico.
Freud
(1925) faz alguns comentários sobre a interpretação de sonhos e
ressalta a importância desta se desenvolver no sentido do paciente
associar suas idéias e buscar os significados do sonho. O psicanalista não
ocupa a posição de dizer, de traduzir o sonho, com o propósito de
atribuir-lhe um significado. Cabe ao analisando fazer as associações,
aproveitando sim o que o analista aporta, mas num movimento dialético em
que o conteúdo inconsciente vai sendo expresso à medida que se vencem
resistências.
Neste
procedimento, o tratamento psicanalítico não se configura como uma forma
de aplicar um saber sobre o suposto inconsciente no conteúdo manifesto
expresso pelo analisando, mas sim deixar que este, pela sua fala, promova
associações discursivas nas quais o inconsciente se mostra, na forma de
atos falhos, erros de linguagem, esquecimentos, não como um objeto a ser
percebido e conceituado, mas sim como um sujeito que interpela a fala. É
o estranho que irrompe nas diversas falas, promovidas pelo analisando.
Nas
palavras de Lacan (1966/1998), o inconsciente é “a parte do discurso
concreto, como transindividual, que falta à disposição do sujeito para
restabelecer a continuidade de seu discurso consciente” (p. 260).
Tratar
o inconsciente como uma falta no discurso e pelo discurso, exige do
psicanalista uma posição de escuta, pois será na linguagem que o
inconsciente se mostrará. Isso contrasta um pouco com a forma como La
Porta trata suas interpretações. Freqüentemente este usa o termo ligado
ao ato de percepção, como um observador que testemunha um fato e lhe
atribui um juízo; diz o que ele é. No tratamento psicanalítico o
analista não possui a informação prévia para o conteúdo inconsciente
do discurso do analisando, os sentidos surgem em meio a associações
deste sujeito que, como Lacan (1966/1998) diz, falta à disposição da
fala, constituindo um não-dito. Será neste não-dito que o analista
investirá em sua procura pelos sentidos que estão além da consciência.
O
que está implicado no tratamento de Freud e Lacan sobre o inconsciente é
a necessidade do analista acompanhar o analisando na acepção de que ele
participa da enunciação deste sujeito do inconsciente. Este é um ponto
importante a ser considerado na aplicação da psicanálise nos estudos
sociais. O psicanalista não pode ocupar um lugar de observador distante,
ele está implicado na cena e é na relação com ele que o sujeito do
inconsciente surge.
Outro
item a ser discutido sobre inconsciente e interpretação é o
empreendimento de La Porta em definir hipóteses sobre a causalidade psíquica,
a busca por explicações razoáveis sobre os fenômenos religiosos, sob a
óptica de suas concepções psicanalíticas.
Para
ilustramos e pensarmos em termos de exemplo de interpretações, podemos
tomar um aspecto do culto bastante explorado por La Porta e que tem íntimos
interesses com a psicanálise que é o da cura mágica. Nas religiões
afro-brasileiras, saúde e doença são significadas em termos de suas
concepções cosmológicas. La Porta aponta para um fato comum na
interpretação da doença nestes contextos, principalmente na umbanda,
que é a crença na doença como “ação de espíritos malfazejos sobre
a pessoa causando doenças e distúrbios de comportamento” (La Porta,
1979, p. 151). Sobre a doença o autor continua:
Quando
ocorrem sintomas sérios, toda a coletividade de tipo primitiva se
movimenta para a reconquista do doente e, como temos assinalado, a
enfermidade é vista como rebeldia em face do poder do estatuto cultural e
social vigente numa determinada sociedade, tribo ou grupo (idem).
Esta
é uma interpretação social que La Porta faz, atribuindo ao fenômeno de
cura um significado social, de disputa de poder. Mas também descreve
outras hipóteses de caráter psicológico. A doença causada pelo mal
vindo de outrem poderia ser conseqüência de identificações projetivas
com conteúdos invejosos sobre a mente do invejado” (idem).
Ou
ainda: “Um mal só se processará no inconsciente de uma pessoa se a sua
destrutividade estiver agindo francamente sobre si mesma, agravando-se
mais intensamente quando capta a agressão de outro e comporta-se, então,
masoquística e destrutivamente” (La Porta, 1979, p. 153).
Estas
hipóteses caminham em direção a uma busca incessante pelos mecanismos
psíquicos determinantes do comportamento cuja ação organiza este conteúdo
simbólico que reconhece em um outro a ação maléfica que, em última
instância, seria fruto de relações inter ou intra-psíquicas. A
primeira, no caso das identificações projetivas; a segunda, no caso das
projeções da autodestrutividade.
Procurar
hipóteses afirmativas para as construções e explicações religiosas em
termos psicológicos, como reconhecer o feitiço como fruto de identificações
projetivas, é um método que também corre contra a psicanálise, uma vez
que esta não está à procura da verdade objetiva de fatos, e sim das
verdades subjetivas imanentes às elaborações subjacentes a ele.
Um
sintoma, como um delírio ou uma alucinação, a agitação motora,
qualquer experiência psíquica, é sempre referente a um sujeito e
comporta um sentido. A tarefa do psicanalista é procurar através desses
fatos as associações que revelem os aspectos inconscientes –
enunciadores do sujeito do inconsciente.
Quando
a comunidade atribui a causa de um mal a um feitiço, a ação maléfica
feita por outrem, ela mostra sua forma de compreender o mundo e as relações
interpessoais, disputas e conflitos. Tomando o caminho interpretativo de
La Porta, temos então que esta atitude de atribuir o mal a um outro pode
ser fruto de um encontro concreto entre pessoas que, por identificações
projetivas, gerou a doença. Mas a psicanálise, por não se limitar aos
fatos narrados pelas pessoas concretas, os sujeito empíricos, admite a
possibilidade de escutar os sentidos a partir daquilo que é transmitido
nas entrelinhas do discurso. O feitiço estaria dentro de um discurso
estruturado segundo a lógica da comunidade e a escuta do inconsciente se
daria pelas associações feitas em relação a ele. Diante de uma afirmação
sobre a causa da doença identificada com um feitiço poder-se-ia
perguntar, inquirir, sobre o autor do feitiço, seus motivos, porque se
faz tal ação, etc. Analogamente à prática desenvolvida na clínica, na
qual o analista ocupa um
lugar de escuta, pois “não se cuida de atribuir um significado a
qualquer comportamento, mas de recuperar um dizer ‘feitor’ do
sujeito” (Bairrão, 2004, p. 78).
Isto
levando em conta que a interpretação é esta forma de rastrear o sujeito
nos meandros que ele percorre na cadeia discursiva. Continuando em Bairrão
(2004):
A
(boa) interpretação não é outra coisa. Longe de uma arbitrária
atribuição de sentido, mais ou menos dependente da capacidade ‘mântica’
de um psico-advinho, lacanianamente concebida a interpretação numa
escuta de sentidos implícitos, cujo depoimento mapeia situações de
estar sujeito (p. 78).
Poderia-se
por uma escuta analítica do sintoma usar destes sinais para rastrear o
sujeito dentro de seu campo cultural de origem.
A
agitação motora, os sinais físicos da doença, o feitiço, seriam
elementos simbólicos que enunciariam os sujeitos pelos significados
culturais dados pela própria comunidade. Não é necessário especular
sobre sua suposta natureza psíquica, se eles seriam frutos de identificações
projetivas ou representações de objetos internos expelidos. Eles já
possuem um significado que pode ser compreendido pelas associações simbólicas
que o enunciam. Os atos, como diz Bairrão (2004), em psicanálise são ações
que comportam sentidos e poderíamos então tomar as diversas ações do
ritual como cadeias de linguagem (não exclusivamente verbais) nas quais
teríamos a chance de compreender as diversas formas de expressão
subjetiva presentes no contexto dos rituais afro-brasileiros, sem promover
re-significações tradutoras daquilo que é religioso em termos puramente
psicológicos.
Por
fim, sobre esta questão da interpretação, é necessário ressaltarmos a
concepção de La Porta sobre os atributos do psicanalista que lhe
possibilitam perceber o inconsciente.
A
clínica e o terreiro
Um
outro ponto importante para a discussão sobre a aplicação da psicanálise
se refere às considerações que La Porta faz sobre as atribuições do
psicanalista que lhe permitem a percepção do inconsciente, pois se o
diferencial do psicanalista é justamente a possibilidade de acesso aos
significados latentes, é preciso esclarecer o que o psicanalista
disponibiliza que lhe garante um acesso tão particular da dinâmica psíquica.
Diz
o autor:
O
inconsciente do indivíduo, ou de um grupo, só é perceptível
habitualmente se utilizada a observação e a intuição de um analista
treinado em pesquisar e perceber o inconsciente. Com efeito, uma das
conseqüências de toda formação psicanalítica é aumentar a capacidade
de intuir e perceber o desconhecido, o inconsciente, onde quer que ele se
manifeste (La Porta, 1979, p. 104).
Esta
citação refere-se à formação do psicanalista como ponto fundamental
para este estudo ou contato com o inconsciente, que se desenvolve
inicialmente por um processo de análise pessoal.
Para
La Porta, a análise pessoal promove um “aumento no campo de consciência”,
o que permite “que o indivíduo psicanalisado observe, na vida em geral,
conteúdos, alguns mais óbvios e outros mais complexos, que as demais
pessoas não percebem; descortina-se um mundo diante de seu aparelho de
percepção” (idem).
O
que se transmite é uma noção de que há uma audição do inconsciente
fundamentada em qualidades perceptivas adquiridas pelo psicanalista pelas
quais ele pode ouvir os sentidos ocultos presentes nas várias formas de
produção humana. É como se ele fosse um instrumento óptico (lembrando
a metáfora de La Porta do telescópio) pelo qual pode-se ver além das
“cortinas”. E o psicanalista, esteja ele em um terreiro ou na clínica,
teria condições de perceber aquilo que estaria nas entrelinhas. Seria
algo intrínseco à condição de ser analista. Uma percepção
diferenciada.
Mas
não seria somente esta capacidade perceptiva o crucial no psicanalista,
ter-se-ia também um “saber” referente à natureza humana, aplicável
à escuta dos fenômenos humanos.
Analisando
a forma como La Porta interpreta o ritual, o que temos é justamente um
movimento de interpretação daquilo que ele considera como relevante e
portador de significados inconscientes. Situa-se no lugar que Lacan, como
refere Mannoni (1989) conceitua como “suposto saber”, uma posição de
detentor de conhecimento (sobre o outro). Mas esta condição é um efeito
da situação transferencial, e não um dado de realidade. Sobre a
ilusoriedade de toda e qualquer forma de acesso cognitivo não apenas ao
outro, mas também ao outro que há “dentro” de si mesmo, o seu próprio
inconsciente, o analista deve estar advertido.
Caso
confunda a posição de suposto saber que ocupa com a posse efetiva de um
conhecimento objetivo sobre o outro, são inevitáveis conflitos e violência
(interpretativa). Esse tipo de posicionamento é o que gera os conflitos
de interpretações aos quais nos referimos.
Para
pensarmos em outra forma de atuação do psicanalista na pesquisa em
terreiros, podemos recorrer a outros referenciais sobre a escuta em psicanálise
que se distanciam deste lugar de sujeito efetivamente sabedor que permitem
uma aproximação mais direta entre psicanalista e os sujeitos. Lacan,
como enfatiza Bairrão (2003), realça o inconsciente em sua qualidade de
saber desconhecido, “outro”, que se mostra nas falhas do discurso:
“Sabemos que em alguma parte – nesta parte que chamamos inconsciente
– uma verdade se enuncia que tem a propriedade de nada podermos dela
saber. Isso, entendo este mesmo fato, é aquilo que constitui um saber”
(Lacan, 1969, s/p.).
Os
significados inconscientes que La Porta busca são justamente os saberes
inconscientes, que fazem com que rabos de peixe tenham um significado fálico.
Porém, o que o autor não leva em conta é que estes significados e estes
saberes são referentes a um sujeito do inconsciente, o representante do
enunciado discursivo que emerge na cadeia de associações promovida pelos
agentes do ritual, como um outro ali
presente. Ao atribuir um significado previamente estabelecido, seja
supostamente universal ou não, perde-se de vista este aspecto subjetivo
como intrínseca alteridade e tenta-se transformar o inconsciente em
objeto apreensível, o que acaba descaracterizando-o. Deixa de ser
inconsciente e sujeito e passa a ser coisa e conhecida.
La
Porta carrega o inconsciente consigo, na gama de significados simbólicos
da qual se utiliza. Assim, impede aquilo que ele próprio preconizou, que
a análise deve se dirigir ao aqui e agora da relação
analista-analisando. Ao embutir de significados os símbolos rituais ele
impede este contato direto com o sujeito que se faz presente. Uma conseqüência
disto é que ele se perde dos sentidos que os símbolos têm para os
falantes, ficando impedido de acessar as formações imaginárias que
participam da enunciação destes símbolos e pelas quais se tem acesso ao
inconsciente.
Em
um sonho, um símbolo pode remeter a figuras parentais, mas não
necessariamente corresponde à realidade dos pais de uma pessoa concreta.
É justamente este o campo pelo qual uma análise se desenvolve; as
construções subjetivas da realidade, ou, em termos freudianos, da
realidade psíquica. Mas este universo só é acessível realmente quando
ouvido no ínterim da sessão analítica e pelas livres-associações
feitas pelo próprio analisando.
O
papel do psicanalista é ocupar um lugar em que estas produções
subjetivas se mostrem e observar o posicionamento do sujeito em relação
a elas. Necessita-se que o psicanalista não se confunda com o lugar do
“suposto saber” para dar lugar ao saber do sujeito do inconsciente,
que por fim revela os sentidos profundos do discurso. Por conta desta
marca característica da psicanálise que o casal Ortigues (1989) pôde
realizar seus estudos psicoterápicos na África, pois como dizem: “a
finalidade da análise é chegar a perceber o tipo de problema que o indivíduo
se coloca e a sua maneira de resolvê-lo” (p.16).
A
prática do psicanalista que se ocupa em observar as ações do sujeito e
o entendimento deste frente a suas próprias questões, diverge da prática
psicanalítica entendida como um instrumento de “decodificação psicológica”
e assume uma postura ética interessada em reconhecer o sujeito nos atos
que enunciam o seu dizer. O sujeito comporta um saber e é neste saber que
residem os significados “ocultos”, e não na “cabeça” do
analista.
Como
conseqüência, se levarmos a escuta psicanalítica para os terreiros de
candomblé e umbanda, o que teríamos é um instrumento que permite o
reconhecimento do outro, no caso
os religiosos e seus significados profundos, que vão além das informações
corriqueiras, mas talhadas e relatadas pelos próprios informantes,
tomados como sendo sujeitos além da sua consciência, enunciantes em vários
lugares onde a subjetividade se expressa, como na música, nos gestos, na
dança, nos diálogos interpessoais, etc...
Logo,
o psicanalista pode entrar no terreiro como um pesquisador que possui uma
visão de mundo distinta dos religiosos, mas que no momento de colher seus
dados, retira-se da posição do saber para ouvir as produções culturais
como predicados que remetem a significados comunitários que passam
desapercebidos, mas não são tratados como representações de uma
realidade psíquica, e sim formas discursivas locais, portadoras de
sentidos.
Perde-se
de vista a interpretação do ritual centrada em aspectos psicológicos
dos indivíduos e se parte para a escuta da produção simbólica
coletiva. O psicanalista, em um terreiro, poderia ouvir as produções
discursivas da ação de pessoas concretas atentando para aquilo que
estaria além do discurso individual, construído pelas cadeias simbólicas
referentes a uma cultura específica, sendo que o espaço em que este
sujeito se encontra é o próprio espaço ritual, no qual a linguagem do
culto se expressa.
Conclusões
Augras
(1995) afirma ser necessário para a pesquisa psicológica da cultura que
o pesquisador substitua a explicação do “cientista sabe-tudo” (p.
51), para um diálogo em que o outro (o sujeito da pesquisa), deixe
de ser objeto e passe também a ser sujeito do conhecimento.
A
psicanálise, tal como é concebida por Lacan permite esta posição por
justamente tratar da necessidade de se reconhecer a produção dos
sentidos inconscientes como referentes a um sujeito, sendo que é sempre
pela fala dos sujeitos que vivenciam a experiência (seja na clínica ou
no terreiro) que se pode obter acesso às tais produções inconscientes.
Acreditamos ser possível com essa perspectiva desenvolver um enfoque de
pesquisa que, novamente citando Augras (1995), assegure o “respeito dos
valores alheios e a humildade ao retratá-los” (p. 50), por enfatizar
que os fatos ditos “psicológicos” sempre estão atrelados à experiência
de quem os enuncia.
Com
essa visão é possível re-utilizarmos a psicanálise no âmbito dos
terreiros de candomblé e umbanda como um referencial que preserve a
realidade dos praticantes do culto, e assim renovar uma linha de pesquisa
que se iniciou com Ramos (1934), tomou novos ares com La Porta (1979) e
continua promissora por aproximar os estudos psicológicos dos estudos
sociais, na busca da compreensão dos fenômenos psicológicos
intrinsecamente ligados à cultura.
Para
tanto, como fizeram os predecessores, é fundamental a pesquisa empírica,
nas comunidades de terreiros, onde os fenômenos religiosos remontam a
antigas tradições e guardam parte da cultura brasileira.
Referências
bibliográficas
Augras,
M. (1995). Psicologia e Cultura: alteridade e dominação.
Rio de Janeiro: NAU.
Bairrão,
J.F.M.H. (2003). O Impossível Sujeito: implicações da
irredutibilidade do inconsciente. São Paulo: Rosari.
Bairrão,
J.F.M.H (2004). O Impossível Sujeito: implicações do
tratamento do inconsciente.
São Paulo: Rosari.
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F. G; Martinez, E.G. (1991). Marginália Sagrada. (R. P.
Goldoni & S. Molina, Trad.s). Campinas: Ed. Unicamp.
(Originalmente publicado em 1987).
Lacan,
J. (1969). D`un Autre à L`Autre. (V. Galindez,
Ed.). Mimeo. (seminário inédito, sessão de 5-3-1969).
Lacan,
J. (1998). Escritos. (V. Ribeiro, Trad.). Rio de Janeiro:
Jorge Zahar Editor. (Originalmente publicado em 1966).
La
Porta, E. (1979). Estudo psicanalítico dos rituais
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Manonni,
M. (1989). Um saber que não se sabe: a experiência analítica.
(M.P. Silva, Trad.). Campinas: Papirus. (Originalmente publicado
em 1985).
Ramos,
A. (1934). O negro brasileiro: ethnographia religiosa e
psychanalyse. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
Silva,
M.V.O (1999). A possibilidade e a necessidade da construção de
uma crítica etno-psicológica. Mimeo.
Nota
(1)
Apoio CAPES, CNPq e FAPESP (Processo 04/03463-2). (volta)
Nota
sobre os autores
Alexandre
Mantovani é psicólogo, graduado pela FFCLRP-USP, mestrando
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia do Departamento de
Psicologia e Educação da Faculdade de Filosofia Ciências e
Letras de Ribeirão Preto, USP, Brasil. Bolsista CAPES. Contato:
alexmantova@hotmail.com
José
Francisco Miguel Henriques Bairrão é
graduado em Filosofia (Faculdade de Filosofia, Ciências e
Letras da Universidade de São Paulo) e em Psicologia (Instituto
de Psicologia da Universidade de São Paulo), Doutor em
Filosofia (Universidade de Campinas), Professor de Psicologia
Social (Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão
Preto da Universidade de São Paulo) e pesquisador na mesma área
(FAPESP/CNPq/FFCLRP-USP). Contato:
jfbairrao@ffclrp.usp.br
Data
de recebimento: 01/08/2005
Data de aceite: 09/09/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/mantobairrao01.htm