O
príncipe católico
Como
bem pontuou o crítico italiano Alberto Asor Rosa (1989), a dissimulação
é um capítulo importante da moral européia do século XVII [1].
Em um período no qual a idéia de teatro do mundo difunde-se entre os
letrados, a dissimulação é vista como meio de ação político-civil válido
e necessário. Assim vemos nos tratados político-morais, que buscam
circunscrever esta estratégia em meio às ações de governo, e ainda nas
obras poéticas, que a recolocam em termos de exemplo vivo, de imitatio
das relações de corte. Trata-se de levar ao leitor ou ao espectador o
jogo provido pelas aparências (com as quais se equacionam as relações
entre afetos, forjados ou não, e efeitos, esperados ou não), e deste
modo desenganar o inexperiente ou deleitar o experiente.
A
corte é concebida em termos de palco onde se desenrolam as intrigas
fomentadas pelas paixões das personagens que atuam na cena de governo, e
onde ‘retratistas’ (tratadistas e/ou poetas) tinham não só uma posição
de espectadores, mas também de atores e mesmo de ‘diretores’; neste
caso, ao proporem métodos de governo que ensinassem os príncipes a atuar
e, por sua vez, dirigir efetivamente o Estado.
Interessam
aqui os tratados sobre “razão de Estado” e espelhos de príncipe
formulados pelos jesuítas da contra-reforma, os quais passam a incorporar
as artes do engano, a dissimulação e a simulação (condenadas em
Maquiavel por seu fim não católico) entre as ações de governo,
estendendo-se a fundamento da civilidade.
A
dissimulação e a simulação preconizadas pelos jesuítas estavam
compreendidas entre os dispositivos previstos na razão de Estado, termo
referente às ações extraordinárias avalizadas pela necessidade
governativa. Tratava-se de recorrer aos chamados “remédios fortes” [2],
a fraude e a violência, quando não houvesse outro remédio. O
contraponto estabelecido com Maquiavel não impediria assim certa
proximidade das formulações. De modo geral, não diferiam tanto os
meios, que dependendo da ocasião pediriam do governante paciência ou ímpeto,
ainda que sempre devesse atentar para a sua reputação; importava
sobremaneira reafirmar uma submissão do governo secular à diretriz católica,
retomando-se para isso antigas concepções teocráticas de governo, cujos
duplos, providos tanto no âmbito do governo secular quanto do eclesiástico,
serviam para ajustar as jurisdições, as esferas de atuação e legislação
de papas, imperadores e reis, bem como distinguir e separar a pessoa do ofício
[3].
Ainda
que reafirmem o valor do ser frente ao parecer, os tratados escritos por
jesuítas atentam, tal como em Maquiavel, para os efeitos da atuação do
príncipe junto aos súditos. Fixada a finalidade católica, permite-se a
duplicidade e a artificiosidade condenadas anteriormente.
Iremos
exemplificar brevemente aqui este argumento, o qual foi resumido por Alcir
Pécora (1998) quando fala da inversão que os jesuítas operaram no
conceito de razão de Estado, “que, em linhas gerais, passa a designar a
posição daqueles que a combatiam e, ao mesmo tempo, a incorporavam à
moralidade cristã” (p. 128).
Dentre
os escritos que deram destaque ao uso das artes do engano está o Tratado de la Religión y Virtudes que deve tener el Príncipe
Christiano, para gobernar y conservar sus estados. Contra lo que Nicolás
Maquiavelo y los Políticos deste tiempo enseñan (1595), de Pedro de
Rivadeneira. Este jesuíta parte de uma distinção entre uma má razão
de Estado, de inspiração maquiavélica e tacitista, apoiada na prudência
e meios humanos, própria dos Políticos,
“qui accomode la Religion à l’estat”, e outra boa “qui
accomode l’estat à la Religion”, ensinada por Deus e que “se apóia
sobre o próprio Deus, e sobre os meios que por sua santa e paternal
providência ele revela aos Príncipes, dando-lhes igualmente a força
para bem usá-las, como aquele que é Senhor de todo estado e reino” [4]
(Rivadeneira 1595/1996, pp. 17-18).
Esta
sobreposição da Providência divina à Prudência aceita plenamente o
valor de uso da dissimulação como método de ação aos “verdadeiros
cristãos”, os católicos (Idem, pp. 194-196), em acordo com uma “prudence
Chrestienne” (Idem, pp. 215-216). A simulação, por sua vez, é
expressamente condenada, tendo em vista que
“Dieu hayt et abhorre l’hypocrisie, et le simulé” (Idem,
p.322). Recorre-se aqui à formulação do coração duplo, colhida do
Eclesiastes II e desenvolvida por Agostinho, a fim de condenar os hipócritas
que “marchent par deux chemins, et
par voyes diverses [...] du tout
contraires au bien mesme” (Idem), opostos dos que são muito
simples.
Simulação,
hipocrisia e mentira estão em relação sinonímica; o primeiro termo
dizendo respeito à atuação, e os demais, à “dicção”. Ainda no
livro II, quando trata das virtudes do príncipe -
especialmente nos capítulos III e IV -,
Rivadeneira atém-se sobremaneira à questão da mentira e da dissimulação.
Inicialmente, sublinha que todo homem, mas especialmente os reis, estão
cercados de inimigos. Daí a necessidade da dissimulação como arma dos
reis frente aos simuladores, sem contudo ultrapassar certo limite que os
tornaria discípulos de Maquiavel [5].
Fixa-se à dissimulação um papel defensivo que a justifica.
A
dissimulação é diferenciada da mentira e tomada como meio honesto e
necessário ao governo para ocultar seus segredos seja por meio do silêncio,
seja por meio do equívoco [6].
Já, a simulação, antes veementemente condenada, é dissimuladamente
preconizada, e aceita em uma função igualmente defensiva junto ao Príncipe:
Muito
menos é ser mentiroso quando o Príncipe tem grande atenção, e
considera cuidadosamente aquilo que crê, e em quem crê, por ter pouca
gente em quem possa confiar, embora no exterior pareça satisfeito e dê a
entender que confia em todos: pois se mostrasse alguma desconfiança, isto
lhe tornaria em grande prejuízo para o estado; e mostrar confiança
obriga com freqüência os vergonhosos a servir fielmente, de modo que
certamente se possa confiar neles. E há muitos Príncipes que mostrando
temer ser enganados dão aula a seus ministros de como devam ser
enganados, e é um grande erro não crer em ninguém tanto quanto crer em
todos, como testemunha Sêneca (Rivadeneira 1595/1996, p. 322). [7]
Cerca
de quarenta anos depois do tratado de Rivadeneira, aparecem as Empresas
políticas, idea de un príncipe politico-cristiano, de Saavedra
Fajardo (1640/1976). Note-se no título a união entre os termos “político”,
denominação atribuída, como vimos, aos seguidores de Maquiavel, e
“cristão”. Esta dupla condição do príncipe definiria sua ação
regrada e comprometida enquanto governante em relação ao
“particular”. Há como que uma moral mais elástica para a ação
governativa, ainda que mais restrita para a conduta pessoal do governante,
e outra dos governados, na qual, ao primeiro, a dissimulação é ação
obrigatória, ao segundo, é erro:
O
príncipe é mais uma idéia de governante que de homem. Mais de todos que
seu. Não há de obrar por inclinação, mas por razão de governo. Não
por gênio próprio, mas por arte. Seus costumes hão de ser mais políticos
que naturais. Seus desejos hão de nascer mais do coração da república
que do seu. Os particulares governam-se ao próprio modo. Os príncipes,
segundo a conveniência comum. Nos particulares é duplicidade dissimular
suas paixões. Nos príncipes, razão de Estado (Rivadeneira 1595/1996, p.
121).
[8]
A
razão de Estado é aqui regra moral disciplinadora dos afetos do príncipe,
mas não de um modo pelo qual sua vontade seja cortada ou amortecida,
reduzindo-o à inércia. A duplicidade imposta pelo recurso à dissimulação
é proibitiva ao simples católico, e permitido ao governante, ao político-cristão,
por razão de Estado, isto é, por “conveniência comum”. Retomando-se
Tácito, a arte de fingir do príncipe visa a guarda dos segredos de
governo, entendidos como o conjunto das intenções do governante.
Caracteriza-se, pois, como virtude de autodomínio que serve de escudo
frente à adulação dos ministros assim impedidos de perscrutar a vontade
do príncipe. Cabe a este disfarçar suas inclinações naturais,
impedindo-se de manter uma uniformidade de conduta, a fim de manter
ocultas suas próprias vontades ao dificultar a adulação:
Todos
os príncipes perigam porque lhes penetram a natureza, e por ela lhes
ganham a vontade, a qual tanto convém manter livre para saber governar.
Quando os ministros reconhecem a inclinação do príncipe, lisonjeiam-no,
dando a entender que são do mesmo humor (Saavedra Fajardo, 1640/1976, pp.
121-122).
[9]
A
mesma adulação, contudo, será recurso do próprio príncipe frente ao
povo, sendo fingimento por necessidade a fim de “ganar
los ánimos y el aplauso común” (Idem, p.122).
A sinceridade, nesses termos, é praticamente um desregramento e só
convém ao povo. Contudo, apesar de restringir o uso da duplicidade apenas
ao governante, Fajardo não deixa de preconizar a contenção dos humores
junto aos servidores, no caso, os ministros, que devem “apresentar
delicadamente ao príncipe [...] as coisas que podem provocar a ira ou
causar-lhe desgosto [...] que não somente devem procurar com grande
destreza temperar suas iras, mas ocultá-las” (Idem, p. 134).
[10]
Mesmo
a boa fama, a virtude e o valor, oferecem perigos, pois o “zelo de um
ministro ao bem público acusa o desamor dos demais; sua inteligência
descobre a ignorância alheia. Daí nasce o perigo das finezas no serviço
do príncipe, e o ser a virtude e o valor perseguidos como delitos”
(Idem, p. 146)
[11]. O mesmo ocorre aos valorosos
frente ao príncipe pouco capacitado e pouco zeloso de suas obrigações,
o qual “sente que o desvelo de seu
ministro interrompa-lhe o sonho, e o quisera dormindo como ele”
(Idem, p. 147)
[12]. Do que Fajardo conclui a necessária
hipocrisia das relações, hipocrisia aqui no sentido de atuação
(representação) que contempla tanto a virtude quanto o vício. [13]
Apesar
de ter assinalado que as próprias virtudes devem ficar ocultas para não
serem motivo de dano, Fajardo nota que o “virtuoso” praticamente não
teria meios para se furtar ao próprio valor e, conseqüentemente, desviar
da cobiça (inveja) alheia. Esta reação seria amplificada nas repúblicas,
pela eleição de governantes, uma vez que a “autoridade e o aplauso que
está em todos é suspeitoso e invejado quando se vê apenas em um cidadão”
(Saavedra Fajardo, 1640/1976, p. 149)
[14]. Ou seja, quanto mais ampla a
possibilidade de atingir o poder, maior seria a emulação e
proporcionalmente o estímulo à inveja.
O
decoro aqui está em acordo com a “hipocrisia honesta”. A obrigação
de sinceridade – já delimitada pelos preceitos católicos de âmbito
moral – passa agora, em meio às relações diretamente políticas, por
outro ajuste. Compõe-se a máscara da sinceridade, recalculando-se o que
se deve ou não dizer ou fazer, e até que ponto, em termos de ação cujo
efeito é amplificado pela finalidade governativa.
Na
empresa 43, a união entre meios “viciosos” e “virtuosos”, cujo
caráter contraditório é superado pela teleologia católica, segue padrão
semelhante ao de Rivadeneira, de negação inicial do procedimento (por
seu pressuposto maquiavélico) e posterior incorporação à ação
governativa. Assim, Fajardo parte de uma sentença de condenação geral
que proíbe o meio ilícito, mesmo que o fim seja honesto, para, em
seguida, aduzir a possibilidade da dissimulação que não engana,
entenda-se, que não provoca danos.
Isto
ocorre quando a prudência, advertida em sua conservação, vale-se da astúcia
para ocultar as coisas segundo as circunstâncias do tempo, do lugar e das
pessoas, conservando uma consonância entre o coração e a língua, entre
o entendimento e as palavras (Idem, p. 405).
[15]
Por
fim, aceita-se plenamente a dissimulação de fins lícitos,
contrapondo-se esta ao engano, tomado como sinônimo de mentira:
Deve-se
evitar aquela dissimulação que com fins enganosos mente com as próprias
coisas: a que visa que o outro entenda o que não é, não a que somente
pretende que não entenda o que é. E assim, bem se pode usar palavras
indiferentes e equívocas, e pôr uma coisa em lugar de outra com diversa
significação, não para enganar, mas para acautelar-se ou prevenir o
engano, ou para outros fins lícitos (Idem). [16]
Tal
como a razão de Estado, a dissimulação passa a ter como que duas
naturezas devidas a dois fins, uma enganosa e mentirosa, que se atrela à
simulação, outra honesta que se diz pela cautela e pelo equívoco.
Na
empresa 45, um fundamento divino do príncipe pede a dissimulação do
recurso à dissimulação, visto que esta seria comumente filha do temor e
da ambição, portanto, mais apropriada a ministros [17].
Além
da fundamentação divina do uso dos recursos da aparência, este uso válido
baseia-se ainda em uma teoria do conhecimento que aponta as incertezas do
entendimento humano por sua dependência dos sentidos, cujo resultado é a
diversidade de opiniões entre os homens:
Quem
conhece é o entendimento, o qual se vale dos sentidos externos e
internos, instrumentos pelos quais se formam as fantasias. Os externos
alteram e mudam por diversos afetos, importunando mais ou menos os
humores. Os internos padecem também variações, ou pela mesma causa ou
por suas diversas organizações; donde nascem tão discordantes opiniões
e pareceres como há nos homens, cada um compreendendo diversamente as
coisas (Saavedra Fajardo, 1640/1976, p. 422). [18]
A
incerteza do entendimento, por sua vez, é ampliada pela variação das próprias
coisas, cujo deslocamento altera suas
cores
e formas [...] ou porque nenhuma é perfeitamente simples, ou pelas
misturas naturais e espécies que se oferecem entre os sentidos e as
coisas sensíveis. E assim delas não podemos afirmar que são, senão
dizer somente que parecem, formando opinião e não ciência (Idem).
[19]
Saavedra
Fajardo adverte sobre o risco da incerteza junto ao príncipe, que é o de
levá-lo ao ceticismo e à indeterminação no governar. A incerteza deve
ter como efeito antes mantê-lo atento aos enganos [20].
O jogo de aparências requer do príncipe o conhecimento da natureza específica
dos homens, diversa da natureza dos animais que não partilham do mesmo
regime de “dano comum” que se dá entre os primeiros: “A águia não
ataca a águia, nem uma víbora a outra víbora, e o homem sempre maquina
contra sua própria espécie”
(Idem, p. 423). [21]
Ainda
que contrário a Maquiavel, Fajardo repete uma das premissas tão
combatidas naquele, a do uso da religião como disfarce dos desígnios do
homem: “Com a religião disfarça seus desígnios, com o juramento lhes
dá credibilidade e com a mentira os oculta” (Idem). [22]
Destaque-se
por fim, desta empresa, o estabelecimento do cortesão como enganador de
príncipes e contraponto ao dissimulador defensivo. Atento ao uso das paixões,
o cortesão pode usar do elogio para “levar os invejosos a perseguir o
elogiado. Estranho modo de ferir com os vícios alheios!” [23]
(Idem, p. 427).
A
questão da adulação retorna na empresa 48, fundamentada inteiramente em
Tácito, quando então se sentencia: “A lisonja destruiu mais príncipes
do que a força” [24]
(Idem, p. 427). A discrição é proposta como via média entre a “servil
lisonja” e o “contumaz da
verdad” (Idem, p. 453).
O discreto
É
em Baltazar Gracián (1958, 1995, 1997, 1998) que vemos desenvolvidas as
implicações do conceito de discrição, com maior tratamento da questão
entre ser e parecer, e a proposição aguda de uma dissimulação por meio
da ostentação fundamentada no exemplo divino:
É
o sol - ponderou Crítilo - a criatura que mais ostentosamente
retrata a majestosa grandeza do Criador. [...] ele é, ao fim, criatura de
ostentação, o mais reluzente espelho em quem as divinas grandezas se
representam. (El
criticón, parte I, crisi
II, pp. 80-81). [25]
No El
Discreto, o sol corresponderá ao engenho humano: “O que é o sol no
maior, é no mundo menor o engenho” (Gracián, 1646/1997, p. 166). Pelo
jogo de analogias entende-se, em acordo com Jean Rousset, que a ostentação
de Gracián não deve ser vista como vaidade, “decor
à vide”. Tratar-se-ia antes de recorrer à via da amplificação
das virtudes em detrimento de sua atenuação.
Gracián
atenta para um efeito contrário ao esperado com o silêncio e a dissimulação,
o de exposição, e não o de ocultamento pressuposto na falsa modéstia,
que promoveria a amplificação dos méritos justamente pelo mistério
levantado em torno de quem recorre a estes expedientes:
Às
vezes a ostentação consiste mais em uma eloqüência muda, em um mostrar
as eminências ao descuido; e talvez uma prudente dissimulação seja
plausível alarde do valor, pois aquele esconder os méritos é um
verdadeiro apregoá-los, porque aquela mesma privação pica com mais
viveza a curiosidade (Idem, p. 270). [26]
A
formulação de Gracián, ao retomar a tópica da falsa modéstia como
aparente diminuição de um mérito evidente, desenvolve as implicações
do conceito de discrição detendo-se nas capacidades intelectivas que o
compõem. A discrição é virtude mais específica dos cultos, supõe gênio,
engenho, agudeza, cordura, condimento não paradoxal, gratidão,
conhecimento de si e gentileza. Juntamente com a discrição, heroísmo,
cordura (audácia discreta) e entendimento, compartilham o conhecimento de
si, a generosidade, a magnanimidade, a misericórdia, a dissimulação, o
‘despejo’ e o galanteio.
Segundo
Gracián (1646/1997), o discreto, também chamado de entendido, é
composto de gênio e engenho, sabedoria e ‘valentia no entender’,
capacidades providas pela natureza e realçadas pela arte; ele é apto a
conceber e discorrer, pressupõe o conhecimento de si e da variedade do
mundo, age com cordura e de modo senhorial e galante, isto é, não
afetado, decoroso; sabe ser sério ou “humano” conforme a ocasião, e
adequado mesmo no uso de “burlas”, que feitas repetidas vezes
evidenciam um homem mentiroso, mais do que judicioso. A variedade nos
ditos e feitos espelha assim o próprio mundo, misto de tragédia e comédia;
contudo, como varão cordato, é sempre igual em sua discrição, tem
“substância”, não sendo leviano.
Discrição
e dissimulação, de forma diversa ou não, prevêem um espaço interno de
resguardo de idéias e intenções. A dissimulação do discreto de Gracián,
segundo o breve estudo de Rousset, torna-se uma das principais virtudes
civis, articulando-se em Gracián com a ostentação e a honestidade a fim
de tornar as próprias intenções impenetráveis ao mesmo tempo em que se
procura perscrutar as alheias.
A
ostentação teria este papel, podendo ser vista como meio capaz de
ocultar as virtudes do honesto, isto é, uma aparente vaidade seria a ação
mais apta a desviar ainda mais a atenção do que o eventual mistério
levantado pelo silêncio, expediente
propriamente vinculado à idéia corrente de discreto.
O
silêncio em Gracián parece ser o espaço privado das próprias intenções
e segredos a serem ocultados; pressuporia um silêncio do que não deve
ser dito e não necessariamente o silêncio evidente de nada dizer.
Pode-se ainda pensar em uma aplicação engenhosa da divisão tripartite
de virtudes e vícios estabelecida por Aristóteles na Ética
a Nicômaco. A ostentação seria amplificação da verdade até o
limite do não ser. Estaríamos na categoria retórica do mais e do menos,
nas flutuações da virtude em suas aproximações dos extremos, cabendo
talvez apenas às ações extremas a relação binária entre ser e não
ser.
O
discreto em Gracián pode coadunar-se assim com outro tipo, o “homem de
ostentação”, retratado no aforismo 250 de seu Oráculo Manual, que de todo modo pode valer-se da dissimulação a
fim de evitar a pecha da vaidade:
É
necessário arte no ostentar [...] Nenhum realce pede ser menos afetado, e
perece sempre deste desaire, porque está muito próximo da vaidade, e
esta do menosprezo. Há de ser muito temperada para que não dê no
vulgar, e com os cordatos é algo desacreditada sua demasia. Consiste às
vezes no descuido; que a sábia dissimulação é o mais plausível
alarde, porque aquela mesma privação pica no mais vivo a curiosidade.
Grande destreza sua não descobrir toda a perfeição de uma vez, mas ir
pintando-a por estimativa, e sempre antecipando (Gracián, 1647/1995, pp.
250-251). [27]
Na
base da defesa deste recurso está a “fragilidade” da verdade, “legítima
esposa del entendimiento”, e os “estragados” tempos.
No
Arte de Ingenio, Gracián trata a relação entre verdade,
entendimento, mentira e agudeza, em termos alegóricos. A ‘frágil
verdade’ vale-se da agudeza para defender-se, instaurando o equívoco (Gracián, 1642/1998, p. 395), o qual pode ser obtido por meio do
silêncio efetivo considerado como recurso eficaz que instaura o incerto:
Engana
comumente a aparente formosura, dourando a feia necessidade; e se calar, o
mais simples dos animais poderá enganar ao mais astuto deles, conservando
a pele de sua aparência. Que sempre cuidarão de néscios os calados; não
se contenta o silêncio com desdizer o falto, mas o equivoca em misterioso
(Gracián, 1646/1997, p. 167). [28]
O
equívoco tem por princípio o jogo com as aparências, e deve seu valor
ao fato de que “são raros
os que vêem por dentro, e muitos os que se pagam do aparente” [29],
segundo afirma no aforismo 99, do Oráculo
manual (Gracián, 1647/1995, p. 156).
Partindo
da premissa da manifestação das vontades e da capacidade de observação
e dedução de gestos, palavras e silêncios, Gracián preceitua uma
estratégia de ação civil que consiste em confundir o ‘atento’
ostentando-se, porém, sem se dar a conhecer, fomentando “à
expectativa, sem contudo desenganá-la totalmente” (Gracián, 1637/1958,
p. 9). [30]
Trata-se de
compor um comportamento adequado à própria característica senhorial do
herói, tipo próprio aos príncipes e altos funcionários de governo.
Nesse sentido ainda concorrem, além da ostentação, do ar senhorial e da
dissimulação, a cortesia, a desenvoltura, a simpatia, o conhecer a si
mesmo e até
algum
deslize venial que roa a inveja e extraia o veneno da emulação. [...] E
passe por triaca política, por contraveneno de prudência, pois nascendo
de um achaque tem por efeito a saúde. Resgate o coração expondo-se à
murmuração, atraindo para si o veneno (Idem, p. 42). [31]
É
discreto, segundo o aforismo 77, antes aquele que se acomoda às circunstâncias,
de forma efetivamente mimética como Proteu, “con
el docto, docto, y con el santo, santo. Gran arte de ganar a todos, porque
la semejança concilia benevolencia” (Gracián, 1647/1995, p. 145).
A
faculdade a ser utilizada aqui é a sindérese – fundamento da solércia,
ou sagacidade, que caracteriza o tipo do discreto, segundo precisa João
Adolfo Hansen (1992) [32]
–, a qual, segundo Gracián (1958), está para o juízo assim como a
agudeza para o engenho [33].
O
homem honesto, justo e sincero, que faz uso da dissimulação, enquanto
homem equânime, está apto a corrigir as leis escritas, sujeitas ao
tempo. Na Retórica, livro I, 15, 1375a27-32, lê-se que a equanimidade (aequitas,
epiqueía) é correlativa da lei comum baseada na ‘natureza’; daí
a sua perenidade, ao contrário das leis escritas submetidas a constante
mudança. Ser equânime, por sua vez, é encarecido por uma série de
predicados:
é
ser indulgente para com as fraquezas humanas; é considerar não a lei,
mas o legislador; não a letra da lei, mas o espírito daquele que a fez;
não a ação, mas a intenção; não a parte, mas o todo; não o que o
acusado é de fato, mas o que sempre foi ou a maior parte do tempo. É
também lembrar o bem que nos foi feito mais que o mal; os benefícios que
recebemos mais que os serviços que prestamos. É saber suportar a injustiça.
É consentir que uma diferença seja resolvida mais pela palavra que pela
ação, preferir se remeter nisso a uma arbitragem mais que a um
julgamento dos tribunais; pois o árbitro vê a equidade; o juiz vê
apenas a lei; o árbitro, aliás, foi inventado apenas para dar força à
equidade (Aristóteles séc. IV
a.C/1932, pp. 133-134). [34]
A
sindérese, ou “lei da consciência”, aduzida por Gracián, reporia a
correlação entre equanimidade e lei natural, em termos de discrição e
lei natural. Contudo, a benevolência da equanimidade aristotélica parece
reduzir-se então a adequação às circunstâncias, e não se reger mais
pela reposição do caso à regra mas pela interação direta entre caso e
caso.
A
equanimidade própria do prudente derivaria assim em uma engenhosidade, em
artifício eficiente em seus efeitos. Daí talvez a dissimulação e a
ostentação em Gracián aliarem-se tão facilmente na composição do
tipo do discreto, algo improvável em termos estritamente aristotélicos.
Sua sutil concepção difere ainda das formulações dos demais jesuítas
aqui expostos. Ainda que próximas, a atuação do discreto em meio à
corte parece assim algo mais restrita que a do governante, baseando-se
antes numa dissimulação pela ostentação, via amplificação e próxima
da vaidade, do que na dissimulação atrelada à simulação,
confundindo-se com a mentira.
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2
v. (Q. Aldea Vaquero, Ed.). Madrid:
Ed. Nacional. (Publicação
original em 1640).
Ullmann,
W. (1968) A History of political
thought: the Middle Ages. 2 ed. Baltimore: Penguin Books.
Notas
[1]
Cf. especialmente o §11: Un teorico della dissimulazione onesta: Torquato Accetto. [volta]
[2]
Os remédios fortes, compreendidos no uso da fraude e da violência,
passaram a ser vinculados diretamente ao termo razão de Estado a partir
de Francesco Guicciardini e Giovanni della Casa; o primeiro, em sua obra Del
reggimento di Firenze (1521-23), o segundo, em sua Orazione
a Carlo V (1547) contraposta à ragion
civile. [volta]
[3]
cf. Kantorowicz, E.H. (1998). Ullmann (1968), por sua vez, destaca na própria
fundamentação da Igreja romana como poder monárquico, elaborada no
pontificado de Leão I, na metade do séc. V, a transmissão de poderes
petrinos que continuavam no papa através da herança, sem que contudo os
méritos de Pedro pudessem ser transmitidos. Assim, o poder do papa seria
o mesmo do de São Pedro, mas haveria uma separação entre o ofício e a
pessoa encarregada do ofício. As qualificações pessoais do cargo não
importavam, “whether the pope was
a saintly individual or a malicious scoundrel or a nonentity was of no
moment. [...]
Few themes relative to government have had before them such a useful
career as this distinction between office and person” (pp. 25-26).
[volta]
[4]
“s’appuie
sur Dieu mesme, et sur les moyens, que par sa sainte, et paternelle
providence il descouvre aux Princes, leur donnant quant et quant la force,
pour en bien user, comme celuy qui est Seigneur de tout estat, et
royaume”.
[volta]
[5]
Cf. Rivadeneira 1595/1996, p. 329.
[volta]
[6]
Cf. Rivadeneira 1595/1996, p. 332.
[volta]
[7]
“Beaucoup
moins est-ce estre menteur, quand le Prince a grand esgard, et considere
soigneusement ce qu’il croit, et à qui il croit, pour avoir peu de gens
à qui il se puisse fier, quoy qu’à l’exterieur il face bonne mine,
et donne à entendre qu’il se fie à tous: car s’il monstroit quelque
deffianc, cela luy tourneroit à grand prejudice pour l’estat; et
monstrer confiance oblige souvent les honteux à servir fidelement, et en
sorte qu’à bon droit on se puisse fier d’eux. Et il y a force
Princes, lesquels monstrants craindre d’estre trompez, font la leçon à
leurs ministres, comment ils les doivent tromper, et c’est une aussi
grand’faute ne croire à personne, que croire à tous, comme le
tesmoigne Seneque”. [volta]
[8]
“Entonces
más es el príncipe una idea de gobernador que hombre. Más de todos que
suyo. No ha de obrar por inclinación, sino por razón. No por genio
proprio, sino por arte. Sus costumbres más han de ser políticas que
naturales. Sus deseos más han de nacer del corazón de la república que
del suyo. Los particulares se gobiernan a su modo. Los príncipes, según
la conveniencia común. En los particulares es doblez disimular sus
passiones. En los príncipes, razón de Estado”. [volta]
[9]
“Todos
los príncipes peligran porque les penetran el natural, y por él les
ganan la voluntad, que tanto conviene mantener libre para saber gobernar.
En reconociendo los ministros la inclinación del príncipe, le lisonjean,
dando a entender que son del mismo humor”. [volta]
[10]
“representar
blandamente al príncipe [...] las
cosas que pueden encendelle la ira o causalle disgusto [...e...]
que no solamente deben procurar con gran destreza templar sus iras, sino
ocultallas”. [volta]
[11]
“celo
de un ministro al bien público acusa el desamor de los demás; su
inteligencia descubre la ignorancia ajena. De aquí nace el peligro de las
finezas en el servicio del príncipe, y el ser la virtud y el valor
perseguidos como delitos”. [volta]
[12]
“siente
que le quiebre el sueño el desvelo de su ministro, y le quisiera dormido
como él".
[volta]
[13]
O termo presta-se a equívocos. O
contemporâneo Pio Rossi vincularia o hipócrita à “concepção
agostiniana” de “tipo nefasto de duplo”, de modo que “può
l’ipocrita chiamarsi lupo sotto pelle di pecora: poichè, vago [sequioso]
d’apparire con quell’innocente
sembiante, si fa divoratore delle proprie sostanze”. (Rossi,
1657/1992, pp. 133-134). [volta]
[15]
“Esto
sucede cuando la prudencia, advertida en su conservación, se vale de la
astucia para ocultar las cosas según las circunstancias del tiempo, del
lugar y de las personas, conservando una consonancia entre el corazón y
la lengua, entre el entendimiento y las palabras”. [volta]
[25]
“Es
el sol - ponderó Critilo - la criatura que más ostentosamente retrata la
majestuosa grandeza del Criador. [...] él es, al fin, criatura de
ostentatión, el más luciente espejo en quien las divinas grandezas se
representan”. [volta]
[26]
“A
veces consiste más la ostentación en una elocuencia muda, en un mostrar
las eminencias al descuido; y tal vez un prudente disimulo es plausible
alarde del valor, que aquel esconder los méritos es un verdadero
pregonarlos, porque aquella misma privación pica más en lo vivo a la
curiosidad”.
[volta]
[29]
“Son raros los que miran por dentro, y muchos los que se pagan de lo
aparente”.
[volta]
Nota
sobre o autor
Edmir
Míssio é doutor em Teoria e História Literária pelo Instituto de
Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, UNICAMP. Contato:
edmissio@yahoo.com.br
Data
de recebimento: 31/01/2005
Data de aceite: 09/05/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/missio01.htm