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Édouard Claparède (1873-1940): interesse, afetividade e inteligência na concepção da psicologia funcional
Édouard Claparède (1873-1940): interest, affectivity and intelligence in the conception of Functional Psychology
Lílian Erichsen Nassif
Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
Resumo
Através do método de análise de conteúdo, procedeu-se a uma investigação sobre os conceitos de interesse, afetividade e inteligência em um conjunto de textos de Édouard Claparède, de 1905 a 1938. Os significados e funções desses conceitos foram identificados, assim como as relações entre eles. Percebeu-se a importância do conceito de necessidade, o qual se encontra na base de todos os outros. Explicita-se o papel desses conceitos na educação funcional, bem como a maneira de se atrair o interesse das crianças, nessa perspectiva: através do jogo. Apresenta-se, ainda, a posição de Claparède com relação a alguns autores com quem dialogou acerca desses temas.
Palavras-chave:
interesse; afetividade; inteligência; educação
funcional |
Abstract
Through the method of content analysis, the concepts of interest, affectivity and intelligence are surveyed in a set of writings by Édouard Claparède, published between 1905 and 1938. The meaning and role of these concepts in Claparède’s functional theory are identified, as well as the relations among them. The concept of need is highlighted, as it is conceived as the basis for the understanding of the other two concepts studied. The usefulness of these concepts for a functional perspective in education is evidenced, as well as Claparède’s view on how to captivate children’s interests through playing activities. The dialogue between Claparède and his fellows on these subjects is also surveyed.
Keywords:
interest; affectivity; intelligence; functional education |
Introdução
Mas, nos traços distintivos dos universos as diversidades sensoriais nada são quando comparadas às diversidades afetivas. É que não são as impressões sensoriais, e sim antes nossas necessidades, nossos interesses, nossos sentimentos, que recortam no mundo exterior as peças com que serão construídos nossos universos. O mundo exterior não se reflete em nosso espírito como um espelho. Absolutamente! As nossas próprias percepções são modificadas por nossos interesses e paixões. (Claparède, 1931/1940. p. 311).
Com isso, acreditamos contribuir para
o melhor conhecimento da história da psicologia, especialmente no que diz
respeito à história da Psicologia da Educação, partindo da hipótese
de que o interesse e a afetividade seriam considerados mediadores
indispensáveis para o desenvolvimento cognitivo, já nas obras de
importantes teóricos da Psicologia, como Claparède.
A escolha deste autor deve-se à sua liderança no
desenvolvimento do funcionalismo na Europa e na cultura pedagógica do século
XX. Médico e psicólogo suíço, Claparède é considerado um dos
pioneiros no estudo da psicologia da criança, a partir de um enfoque
interacionista sobre a gênese dos processos cognitivos. Este enfoque é
atualmente considerado uma sólida alternativa aos pontos de vista
puramente inatistas ou ambientalistas. Em 1912, ele fundou o Instituto
Jean-Jacques Rousseau, junto com Pierre Bovet (1878-1965), com a
finalidade de formar educadores, realizar pesquisas nas áreas de
Psicologia e Pedagogia e incentivar as reformas educativas baseadas no
movimento da Escola Nova (Éducation Nouvelle). O trabalho
realizado no Instituto Rousseau desdobrou-se em atividades acadêmicas,
integradas à Universidade de Genebra, e em atividades de proselitismo político
na defesa das reformas na educação e na promoção do pacifismo (Campos,
2003). As obras principais de Claparède foram traduzidas em diversos
idiomas, ampliando sua influência na formação de psicólogos e
educadores, e na elaboração das perspectivas teóricas com claras
implicações na Pedagogia e na Psicologia contemporâneas. Isso se deve não
só à riqueza da sua obra, mas também à sua ativa participação nos
movimentos que delinearam as duas áreas e ao diálogo que estabeleceu com
outros estudiosos e teóricos.
Jean Piaget e Helena Antipoff, entre outros, são exemplos disto, tendo
suas obras se tornado referências na formação de educadores (Campos, no
prelo).
Trata-se
de uma pesquisa conceitual, uma vez que focaliza a lógica interna da
produção intelectual do autor e analisa a dinâmica de interações que
orientam a construção de conceitos relevantes. A análise de conteúdo
de um conjunto de textos de Claparède, de 1905 a 1938, foi o recurso
metodológico utilizado para que isto se realizasse. Adotamos aqui a
definição, funcionamento e objetivo da análise de conteúdo conforme
apresentados por Bardin (1977, p.47) sob os seguintes termos:
Um
conjunto de técnicas de análise das comunicações visando obter, por
procedimentos sistemáticos e objetivos de descrições do conteúdo das
mensagens, indicadores (quantitativos ou não) que permitam a inferência
de conhecimentos relativos às condições de produção / recepção
(variáveis inferidas) destas mensagens.
Estabelecemos, então, categorias de
análise dos termos identificados previamente e procuramos contextualizar
o emprego dos mesmos, situando-os nas discussões de Claparède com outros
autores sobre o tema em questão. Dessa forma, pudemos estabelecer relações
dos termos entre si e identificar alguns teóricos com os quais o autor
dialogou.
Claparède foi um intelectual
extremamente produtivo. A lista de suas obras organizada por Lucy Gonçalves
Fontes em 1973 (Fontes, 1973), por ocasião da edição da tradução
brasileira do livro A invenção dirigida (Claparède, 1938 /1973)
contém 441 referências, publicadas entre 1892 e 1941, assim distribuídas:
tese de doutorado (1), livros (13), pequenas brochuras e capítulos de
livros (42), artigos em periódicos científicos (177) e em revistas de
divulgação científica (72), anais de eventos científicos (36), artigos
em jornais (52) e prefácios (19), além de traduções de suas obras em
outros idiomas (29). As obras listadas tratam dos temas que ocuparam o
autor: o relato de resultados de pesquisa em psicologia, as considerações
sobre as relações entre psicologia e educação, o funcionamento das
instituições de cuja criação participou, o movimento pela paz e pela
solidariedade internacional. Apaixonado pela ciência, Claparède fundou e
dirigiu por cerca de 40 anos (1901-1940) um dos primeiros periódicos
dedicados à divulgação da pesquisa em psicologia editados em língua
francesa, os Archives de Psychologie. Neste periódico, além de
divulgar resultados da pesquisa realizada por ele e seus colaboradores no
laboratório de psicologia da Universidade de Genebra, publicou inúmeras
resenhas da literatura da época na área da psicologia. Conhecia portanto
em profundidade o desenvolvimento da ciência psicológica, cuja produção
teórica e técnica procurava transmitir para educadores, juristas e
outros profissionais interessados através de revistas de divulgação.
Sua contribuição
mais expressiva, em termos de elaboração teórica, encontra-se nos
livros, que sintetizam os resultados de sua pesquisa associados à discussão
de resultados obtidos por outros autores e a longos comentários sobre a
evolução da psicologia científica e suas relações com as ciências da
educação. Para este trabalho, foram utilizados como Fontes os
livros principais: Psicologia
da criança e Psicologia experimental, A educação funcional, A
escola sob medida, Como diagnosticar las aptitudes en los escolares,
Invenção dirigida: o mecanismo
psicológico da invenção, A escola e a psychologia experimental.
O primeiro, Psicologia da Criança e Pedagogia Experimental,
foi publicado pela primeira vez em 1905 e sofreu várias revisões (1909,
1911, 1916, 1926). A edição de 1926 (Claparède, 1926), a 11a.,
traduzida para o português (Claparède, 1934), foi organizada como um
manual de psicologia da criança e de pedagogia experimental, contendo
informações sobre a situação dessas duas áreas de estudos em diversos
países, os problemas que abordam, os métodos que utilizam e o estado da
arte do conhecimento da época sobre o desenvolvimento mental da criança.
Já o volume intitulado Educação
Funcional, editado em Genebra
em 1931 e logo em seguida traduzido no Brasil (Claparède, 1933), contém
uma coletânea de artigos anteriormente publicados em periódicos,
acompanhados de uma introdução crítica sobre as principais correntes teóricas
da psicologia da época e de uma explicação do autor sobre sua opção
pela perspectiva funcional. A
Escola sob medida, cujo
original foi publicado em 1920 e traduzido no Brasil em 1959, defende a idéia
de que a educação escolar deve ser organizada de forma a contemplar as
diferenças individuais entre os alunos. Em Como
diagnosticar las aptitudes em los escolares,
editado originalmente em 1924 e traduzido para o espanhol em 1967, Claparède
expõe os principais métodos de medida das aptidões e do nível mental
de crianças e adolescentes (Claparède, 1925, 1967). O volume Invenção
dirigida: o mecanismo psicológico da invenção (Claparède, 1973) resume os resultados da pesquisa do autor sobre os
processos psicológicos da criatividade, da invenção, inicialmente
publicados nos Archives de
Psychologie, em 1933 (Claparède,
1933). Finalmente, o volume intitulado A
escola e a psychologia experimental,
editado pela primeira vez no Anuário de Instrução Pública na Suíça (Annuaire
d’Instruction Publique en Suisse),
em Lausanne, no ano de 1916, foi traduzido em português por Lourenço
Filho e editado no Brasil pela Editora Melhoramentos, em São Paulo. Contém
discussões sobre a forma como o trabalho escolar deveria ser
desenvolvido, apontando os erros cometidos pela escola tradicional e
oferecendo orientações da Psicologia a serem aplicadas à Pedagogia.
Procura demonstrar como o trabalho escolar deve ser relacionado com um
sistema de interesses naturais da criança, para que ela se entregue às
atividades escolares da mesma forma como se envolve em um jogo.
Nessas obras, investigamos as definições
e/ou significados dos conceitos de interesse, inteligência, afetividade e
educação funcional tal como são entendidos pelo próprio Claparède,
visando explicitar as relações que ele estabelece entre esses conceitos.
Para tanto, será importante explorarmos também o conceito de
necessidade, o qual está presente na base de todos os outros.
O
conceito de necessidade
Para entendermos os conceitos aqui
propostos (interesse, afetividade e inteligência), é preciso
reportarmo-nos ao conceito de necessidade, na forma como ele é abordado
na obra de Claparède, na medida em se apresenta como fundamento para os
primeiros.
Necessidade é definida como a
ruptura do equilíbrio de um organismo. Mas ela mesma tem propriedade de
provocar as reações ideais para satisfazê-la. Em diversas situações o
equilíbrio perturbado se restabelece automaticamente como é o caso da
nossa vida fisiológica, em que os mecanismos reflexos garantem as funções
respiratórias, por exemplo. O mesmo não acontece com a nossa vida
mental, deixando-nos temporariamente desadaptados: “é então que cabe
à inteligência a tarefa de nos readaptar” (Claparède, 1938/1973, p. 16).
Necessidade é também o motor da
nossa conduta, a mola que nos move. Mas, o indivíduo visa sempre um
objeto, um fim objetivo e não o desaparecimento de uma necessidade. Então,
a necessidade aparece-nos como objetos a obter. Isso nos conduz ao
entendimento de que não é a necessidade por si só que orienta, que move
nossa conduta, mas sim a nossa necessidade em
relação ao que pode satisfazê-la. Nem todo objeto externo,
portanto, é um excitante a priori, só vindo a sê-lo quando em relação com as necessidades
gerais ou momentâneas do indivíduo. Ou seja, a excitação está sempre
sob o controle da necessidade e não é senão por intermédio de uma
necessidade que o excitante provoca a reação.
Uma necessidade desaparece quando é
satisfeita e deixa de ser a causa da atividade. Contudo, essa necessidade
é logo substituída por outra, de forma a verificarmos que algumas
necessidades somente são satisfeitas por intermédio do surgimento de
outras.
Dentre as dez grandes Leis da
Conduta, descritas por Claparède (1931/1940), percebemos a presença da
‘necessidade’ em pelo menos seis delas, quais sejam: a lei da
necessidade (“toda necessidade tende a provocar as reações próprias a
satisfazê-la”); a lei da extensão da vida mental (“o desenvolvimento
da vida mental é proporcional à diferença existente entre as
necessidades e os meios de satisfazê-las”); a lei da antecipação
(“toda necessidade que, por sua natureza, corre o risco de não poder
ser imediatamente satisfeita, aparece com antecedência, isto é, antes
que a vida esteja em perigo”); a lei da reprodução do semelhante
(“toda necessidade tende a produzir as reações ou situações que lhe
foram anteriormente favoráveis, a repetir a conduta que, anteriormente,
foi bem sucedida em circunstâncias semelhantes”); a lei do tatear
(“quando uma situação é tão nova que não evoca nenhuma associação
de similitude ou quando a repetição do semelhante é ineficaz, a
necessidade desencadeia uma série de reações de pesquisa, de ensaio, de
tateamento”); a lei da autonomia funcional (“em cada momento do seu
desenvolvimento um ser animal constitui uma unidade funcional, isto é,
suas capacidades de reação são ajustadas às suas necessidades”). Nas
demais leis (lei da tomada de consciência, lei do interesse, lei do
interesse momentâneo e lei da compensação) o papel da necessidade não
é imediato como nas primeiras, mas não deixa de estar presente,
revelando sua importância em toda a extensão da vida mental.
O
interesse
Para Claparède, ‘interesse’
equivale ‘ao que importa’, ao que tem valor de ação. A palavra
interesse, segundo a etimologia (inter-esse = estar entre), expressa o seu
papel intermediário entre as necessidades do organismo (sujeito) e o meio
(objeto), estabelecendo um acordo entre os dois. Portanto, o poder
dinamogênico (1) do interesse não se deve somente à necessidade ou às qualidades
concretas do objeto, mas ao objeto em relação com a necessidade: “é a
essa síntese causal que damos o nome de interesse” (1931/1940, p. 76).
Assim, os objetos que nos importam e que se relacionam com uma
necessidade, parecem ter o poder de suscitar energia, ao contrário dos
que não nos importam, os quais parecem estancar nossas capacidades
energéticas. Ou seja, a ‘reação de interesse’ ou a ‘reação
dinamogênica’ acontece quando o excitante é capaz de satisfazer a
necessidade do momento.
Claparède utiliza-se da metáfora da
torneira para explicar a ‘reação de interesse’, isto é, o registro
de cada torneira somente poderá ser aberto pela chave (o excitante) que
corresponde ao seu dispositivo (a necessidade do momento). O conceito de
reação de interesse equivale, então, ao processo de liberação de
energia, ou seja, ao processo de dinamogênese pelas excitações que são
capazes de provocar a reação.
Entendendo que a atividade é sempre
suscitada por uma necessidade, Claparède transpõe essa lei do plano
biológico para o psicológico, partindo de uma concepção
psicobiológica do interesse, e propõe o esquema “atividade f
(interesse)”. Com isso ele pretende explicar que a atividade é sempre
resultado do interesse, o qual é visto como o aspecto psicológico da
necessidade e responsável pelo restabelecimento do equilíbrio orgânico,
mental ou espiritual. Ele esclarece ainda que um objeto nunca é
interessante a priori, mas
sempre em função da disposição psico-fisiológica do indivíduo que o
considera. Nessa visão, o conceito ‘interesse’ pode se aplicar tanto
ao objeto de interesse quanto ao estado psíquico despertado no sujeito
pelo objeto, sugerindo diversas extensões do vocabulário:
interesse-objeto (a psicologia interessa muito a Maria);
interesse-psicológico (Maria sente grande interesse pela psicologia);
interesse atributo (a psicologia está cheia de interesse) e, por fim, o
interesse-prático ou biológico (Maria tem interesse em estudar
psicologia) que denota um sentido útil do ponto de vista da conservação
do organismo e do desenvolvimento da personalidade.
Como sintoma de uma necessidade, é o
interesse que definirá a ação que se realizará em um momento dado.
Disso surge uma importante lei psicológica, a Lei do Interesse
Momentâneo, segundo a qual “em cada momento, um organismo age segundo a
linha de seu maior interesse” (Claparède,
1931/194, p. 79). Portanto, quando um interesse é satisfeito, desaparece,
para logo ser substituído por outro e, quando dois interesses não
satisfeitos coexistem, o mais importante recalca o outro. O corolário
dessa lei é a Lei da Adaptação Funcional (desdobramento da Lei do
Exercício Genético-Funcional), que diz: “a ação se produz quando é
de natureza a satisfazer a necessidade ou o interesse do momento” (Claparède,
1931/1940, p. 110). Dessa última lei decorre a seguinte regra: para fazer
um indivíduo agir devemos colocá-lo nas condições próprias ao
aparecimento da necessidade, cuja ação que se deseja suscitar tem por
função satisfazer. Esta é a lei que regula as condições de
realização da precedente, e, para o autor, é a mais importante do ponto
de vista pedagógico.
Em cada idade, o indivíduo
encontra-se sensibilizado para objetos diferentes, na medida em que suas
necessidades vão se modificando. Nisso encontra-se o fundamento da
evolução dos interesses no decorrer da infância e da adolescência. Tal
evolução ocorre numa seqüência específica e interesses diferentes se
sucedem na passagem de um estágio para outro. No início da vida, esses
interesses não variam quanto ao sexo, vindo a se diferenciar cada vez
mais com a idade. Da mesma forma, o interesse pelos diferentes ramos de
estudo também se modifica com a evolução de cada estágio. Claparède
distingue três estágios de evolução dos interesses – o estágio de
aquisição ou de experimentação; o estágio de organização ou de
apreciação; e o estágio de produção – e a cada um deles corresponde
um agrupamento de interesses, conforme segue:
I- Estágio de aquisição, de
experimentação:
1- Período dos interesses perceptivos (primeiro ano de vida):
percebemos as coisas como nos convém percebê-las no momento. Nesse
período o interesse volta-se para o objeto na sua totalidade,
considerando suas configurações exteriores, através dos movimentos do
braço e da cabeça.
2- Interesses Glóssicos (segundo ano de vida): diante da
necessidade de aprender a falar o nome das coisas, ocorre o interesse pela
linguagem, pelas palavras.
3- Interesses Intelectuais Gerais (dos três aos sete anos): surgem
os interesses em relação aos objetos que possam por em ação a
ideação, a fantasia imaginativa, que darão origem, logo em seguida aos
interesses intelectuais propriamente ditos. A criança preocupa-se,
então, com a relação das coisas, com suas origens e sua constituição.
É a idade das perguntas.
4- Interesses Especiais e Objetivos (dos sete aos doze anos): o
interesse se especializa, concentrando-se em problemas mais bem definidos,
tornando-se a fonte dos jogos infantis. Tendo a consciência da relação
que liga o meio empregado ao objetivo que se deseja obter, a criança não
age mais somente pelo prazer de agir, mas interessa-se pelo fim concreto
da sua ação, pelo êxito do seu esforço.
II- Estágio de organização, de
apreciação:
5- Interesses Sociais ou Éticos (dos doze aos dezoito anos, ou
mais): com o despertar da consciência social, sabendo-se membro de uma
sociedade e tomando consciência da sua própria personalidade, há uma
mudança de orientação dos interesses do indivíduo, que passa a
apresentar o sentimento de responsabilidade, de dever. Ocorrem os
interesses éticos e sociais, religiosos e sexuais.
III- Estágio de produção:
6- Período do trabalho (idade adulta): os vários interesses
encontram-se subordinados a um interesse superior, seja um ideal ou,
simplesmente, o interesse de conservação pessoal.
Segundo Claparède, a lei geral que
rege a sucessão dos interesses segue as seguintes linhas diretrizes: do
simples para o complexo; do concreto para o abstrato; da receptividade
passiva para a espontaneidade; da indeterminação para a
especialização; da subjetividade para a objetividade; do imediato para o
mediato. E essa ordem de evolução é passível de ser identificada
através de duas vias: a primeira pelo método da extropeccção, pelo
qual observa-se a conduta da criança, suas atividades e jogos,
anotando-se as variações que ocorrem com a evolução; a segunda pelo
método introspectivo, que somente é viável com as crianças mais
velhas, pois utiliza a interrogação sobre aquilo que lhes interessa,
sobre suas preferências.
Claparède faz também uma relação
do interesse com o ‘esforço’ ao dizer que os dois conceitos não se
opõem, mas se complementam, sendo dois aspectos do mesmo impulso,
através do qual se constrói a pessoa. Nesse caso, o interesse seria o
momento psicológico do acontecimento interior e o esforço seria o
momento energético.
A
inteligência, o pensamento e os processos mentais
Para se estudar a inteligência,
Claparède recomenda que se ponha de lado os dois sistemas filosóficos
que sustentaram a psicologia por longo tempo:
o
sistema das faculdades da alma, que considerava a inteligência como
faculdade primordial e inanalisável, e o associacionismo, para o qual a
inteligência se reduz ao simples jogo de associações adquiridas (Claparède,
1931/1940, p. 150).
Claparède considera que a atividade
inteligente, como as demais atividades psíquicas, pode ser explicada
através da concepção biológica, na medida em que ela corresponde a uma
necessidade: “a necessidade que desencadeia a inteligência é a
necessidade que surge quando o indivíduo está desadaptado em face das
circunstâncias ambientais” (Claparède, 1931/1940, p. 137). A necessidade é responsável não
só pelo impulso inicial, mas também pela orientação e direção da atividade intelectual, propondo o problema que
ela terá que resolver. Isto é, a necessidade de readaptação provoca um
movimento interna, o movimento do pensamento, a pesquisa. Nesse sentido,
“a inteligência é um instrumento de adaptação, que entra em jogo
quando falham os outros instrumentos de adaptação, que são o instinto e
o hábito” (Claparède,
1931/1940, p. 137).
Segundo Claparède (1931/1940, pp.
134-136) existem três significados atribuídos, em geral, à palavra
inteligência, quais sejam: 1- “é o nome dado à classe dos fenômenos
que têm por objeto o conhecimento; inteligência se opõe então à
afetividade, à reatividade; o adjetivo de inteligência nessa acepção
é ‘intelectual’”. 2- “Inteligência designa, às vezes, na
linguagem corrente, uma capacidade inteligente acima da média.” 3- “A
inteligência é uma maneira de ser dos processos psíquicos adaptados com
bom êxito a situações novas; seu adjetivo é, então,
‘inteligente’. Se considerarmos essa maneira de ser não como simples
qualidade, mas como uma capacidade, poderemos dizer que a inteligência se
opõe ao automatismo, ao instinto, à imbecilidade”. Desses
significados, Claparède somente compartilha do último.
O ponto de partida da atividade
inteligente é a questão que, para ser resolvida, precisa de uma pesquisa
ou da descoberta da hipótese. Ao final, é necessária a verificação
dessa hipótese imaginária. Não importa dizer ‘para que serve a
inteligência’, mas quais são as circunstâncias que determinam a
intervenção da inteligência, uma vez que ela intervém quando o
automatismo (instintivo ou adquirido) não permite resolver a questão
posta. Este problema da adaptação ao novo, no caso da inteligência, é
resolvido pelo pensamento. Assim, o pensamento se distingue da inteligência
por ser um instrumento dela, não sendo em si mesmo inteligente (assim
Claparède considera o pensamento do alienado, do sonhador, etc). Da mesma
forma, o saber é apenas um meio para o desenvolvimento da inteligência e
não o agente da inteligência. O saber é um capital de conhecimentos
adquiridos que constitui a reserva onde o pensamento irá prover-se para
atingir seus objetivos, ou seja, é o ponto de apoio do pensamento.
Portanto, se “a função da inteligência é resolver por meio do
pensamento um problema novo” (Claparède,
1931/1940, p. 241), atribuir elevada importância ao saber mata a
atividade inteligente.
Afetividade
e suas relações com o interesse e a inteligência
No conjunto de textos de Claparède
aqui pesquisados, de 1905 a 1938, não há
um significado explícito do conceito "afetividade". Este
aparece, às vezes, associado a emoções, sentimentos e desejo. Essa
maneira dele designar a afetividade é bastante próxima ao significado
que encontramos atualmente:
1-
qualidade ou caráter de quem é afetivo; 2- (Psic.) conjunto de fenômenos
psíquicos que são experimentados e vivenciados na forma de emoções e
sentimentos; 3- (Psic.) tendência ou capacidade individual de reagir
facilmente aos sentimentos e emoções, emocionalidade (Houaiss &
Villar, 2001, p. 102).
Em geral, afetividade é um termo quê se
relaciona aos conceitos e funções de necessidade, interesse e inteligência.
Nem por isso, a afetividade se torna menos importante, sendo o próprio
Claparède (1920/1959, p. 33) quem nos diz: “o mesmo ponto de vista
funcional me pareceu projetar também, certa luz sobre o obscuro problema
dos sentimentos e das emoções”. Poderíamos nos arriscar a dizer que a
afetividade tem uma dimensão tão importante quanto a inteligência na
sua obra, talvez pela influência de Jean-Jacques Rousseau, a quem Claparède
muitas vezes se reportou.
Mas para falarmos em afetividade,
mais uma vez, temos que retornar ao conceito de necessidade. Vemos em
algumas passagens dos textos de Claparède que a ‘tensão afetiva’ é
produzida por uma necessidade não satisfeita. Entendida também como o
verdadeiro ‘desejo’ de resolver um problema, a afetividade desperta o
interesse pela técnica a empregar para que a necessidade seja satisfeita.
Em outros momentos, contudo, a afetividade parece se confundir com a
necessidade, por exemplo, quando Claparède
diz que se deve apelar para as “tendências instintivas
adormecidas na alma de cada um, despertando-as, criando um desejo, uma
necessidade” (1931/1940, p. 5); ou “para tornar a criança ativa,
basta colocá-la em circunstâncias próprias a despertar essas
necessidades, esses desejos” (1920/1959, p. 44), etc.
Noutro contexto, Claparède
(1920/1959, p. 114) coloca o desejo, o prazer, como gerador (dinamogênico)
da necessidade: “O prazer assim obtido lhes inspirará o desejo de novos
esforços e, por fim, lhe dará o gosto e a necessidade do esforço. Eis o
fato denominado dinamogênese dos processos adequados à situação
presente”. De qualquer forma, segundo a perspectiva funcional, a
afetividade, as emoções, o desejo, ou como os quisermos denominar, são
criados no indivíduo pela Natureza, de forma a corresponder às
necessidades do seu desenvolvimento: “A Natureza não nos dotou com o
conhecimento inato das cousas e efeitos dos fenômenos, mas deu-nos o
desejo e o meio de os procurarmos, o que é mil vezes mais precioso” (Claparède, 1905/1934, p. 417). Assim, a função das operações
psíquicas é a de servir de união, de ponte, entre o desejo e a ação.
Da mesma forma como ocorre em relação
ao termo ‘necessidade’, às vezes a afetividade se confunde com o
termo ‘interesse’ como nas seguintes passagens: “É mister,
sobretudo, que o anúncio seja de natureza a despertar um desejo, um
interesse, a fazer do transeunte indiferente, um cliente possível ou,
melhor, um cliente provável” (Claparède,1931/1940, p. 5); “Dado um interesse, um desejo que
se tenha de despertar no espírito do aluno, quais serão os melhores
meios, a melhor técnica para alcançá-lo?” (Claparède,1916/1928,
p. 28). Por outro lado, a afetividade é colocada também como a
desencadeadora do interesse: “Embora possa parecer, não é nunca a
massa [aperceptiva] como tal que suscita o interesse: ela não intervém
senão quando o interesse já foi despertado por uma necessidade ou por um
fator afetivo” (Claparède,1920/1959,
p. 284).
Em relação à inteligência, Claparède
(1931/1940) esclarece que os raciocínios, os pensamentos sobre um
determinado objeto servem para sustentar o desejo. Ou seja, em primeiro
lugar estaria o desejo, em segundo, a inteligência. Por isso mesmo que
“é impossível suprimir os elementos afetivos de nosso pensamento” (Claparède,
1931/1940. p. 308). Segundo Jean Piaget (1920/1959), isso nos remete às
questões relacionadas ao fenômeno denominado por Claparède “execução”
das condutas, em oposição ao seu ‘motor’ interno: “A execução da
conduta é ou a regulagem relativa ao ‘como’ (por exemplo, as técnicas
inatas ou adquiridas do instinto, do hábito e da inteligência), ou a
regulagem dos fins e intenções (os sentimentos e a vontade)” (Claparède,
1920/1959, p. 82).
Sendo a inteligência um ato de
pesquisa, as hipóteses (meios de resolver o problema, a questão colocada
pela desadaptação), estão envolvidas com algo da ordem da afetividade,
na medida em que elas podem ser aceitas ou rejeitadas. Esse processo de
rejeição ou aceitação, segundo Claparède (1931/1940, p. 153), dar-se-á
através do ‘sentimento de se...então’: “Às vezes a seleção da
hipótese é imediata; tem-se um sentimento imediato de conveniência (ou de não conveniência), com
uma espécie de certeza íntima de que essa hipótese é justa (ou
falsa)” Talvez, por isso ocorram as deformações da realidade que, para
Claparède (1931/1940, p. 305) são conseqüência, em grande medida, do
sentimento: “Temos uma tendência inata a realizar nossos desejos, e
esses desejos se realizam de dois modos diversos: ou escolhemos na
realidade o que nos possa satisfazer ou então tentamos modificar a
realidade até que ela nos satisfaça”. Inclusive, quando cita os
problemas da psicologia da sua época, Claparède (1920/1959, p. 51)
acentua “o problema das relações entre afetividade e inteligência,
compreendendo o estudo da ação do subconsciente.” Ele se refere às
deformações que a afetividade provoca no pensamento correto (pensamento
leal) e admite que seus estudos sobre a afetividade não esclarecem esses
fenômenos, só desvendam suas sombras. Pierre Bovet confirma esse
interesse de Claparède, afirmando que suas últimas palavras, em julho de
1940, ao final do seu curso sobre a inteligência, “foram para comprovar
os danos causados pelo pensamento afetivo, no campo internacional” (Claparède,
1920/1959, p. 64). Com efeito, nessa época o autor, preocupado com os
conflitos provocados na Europa com a escalada do nazismo e dos
nacionalismos, avalia que essa decadência moral estaria associada a uma
decadência da inteligência. A clareza do pensamento estaria sendo
prejudicada pelas “ideologias da força”, ancoradas em disposições
agressivas da espécie humana, portanto disposições que relevam mais da
afetividade que da inteligência, evidenciando uma espécie de ação
negativa da afetividade sobre a capacidade de compreensão da alteridade.
Em mais uma crítica à educação
tradicional de sua época, Claparède chama a atenção para o prejuízo
que a excessiva ênfase colocada pelas escolas no saber, na aquisição de
conhecimentos, estaria causando ao desejo do aluno de compreender, de
refletir. Para ele, “a preocupação do saber, afasta, pois, do desejo
de pensar” (Claparède,
1931/1940, p. 242). Bloqueia-se o ato de pesquisa que caracteriza a
inteligência. Por isso mesmo, ele se preocupa em diferenciar o que seria
uma verdadeira incapacidade de uma inibição devida a alguma causa
afetiva em alunos inteligentes:
podríamos
reservar el nombre de ‘falsa ineptitude’ a esta incapacidad, que
proviene no de una ausencia de disposición para un trabajo determinado,
sino de um rechazo procedente de causa afectiva (Claparède,1924/1967,
p. 86). (2)
Ainda sobre a relação entre
afetividade e inteligência, Claparède pergunta-se se a desordem
primitiva dos estados melancólicos e das obsessões residiria na esfera
afetiva ou na esfera intelectual. Qual seria a parte relativa à inteligência
ou ao sentimento? Infelizmente, ele mesmo não responde a essa questão tão
presente na atualidade.
Sobre
a Educação Funcional e suas relações com o interesse, a afetividade e
a inteligência
Em seus primeiros trabalhos, Claparède utilizou o termo “Educação
Atraente”, ligando-o a uma concepção biológica do interesse. A partir
de 1911, começa a perceber a inadequação desse termo, pois, se toda
educação funcional tem atrativo, nem tudo que é atraente tem
necessariamente valor educativo. Passa, então, a utilizar a expressão
‘Educação Funcional’ para denominar a educação que pretende
desenvolver os processos mentais, tomando-os não em si mesmos, mas quanto
à sua utilidade para a ação presente ou futura, ou seja, para a vida.
Conforme Claparède (1931/1940, p. 293),
a
educação é o auxílio que damos ao desenvolvimento espontâneo da criança,
para adaptá-la do melhor modo possível ao meio social e para que ela aí
tenha a maior felicidade possível.
O autor esclarece o equívoco de se
afirmar que a educação é uma preparação
para a vida. Deveríamos admitir, ao contrário, que a educação deve
ser uma vida, unindo as obrigações às necessidades da ação e
encorajando o esforço pela recompensa ao se atingir o objetivo. Dizendo
de outra forma: suscitando o interesse da criança. Aí se encontra o
princípio da escola ativa, derivado da lei fundamental da necessidade, ou
do interesse (3):
“um ato que não seja direta ou indiretamente ligado a uma necessidade
é uma coisa contra a natureza” (Claparède,1931/1940,
p. 194). Ele considera a educação como adaptação progressiva dos
processos mentais a ações determinadas por certos desejos. Por essa ótica,
a educação pela vida não exige que as crianças façam tudo que querem,
mas que queiram tudo o que fazem, na formulação consagrada pelas
educadoras da Maison des Petits, escola experimental anexa ao
Instituto Rousseau, cuja organização inspirou-se no pensamento do autor
(Perregaux, Rieben e Magnin, 1996).
Mas como suscitar a necessidade na
escola, se ela se encontra à margem da vida? Criticando as escolas
tradicionais da época, Claparède responde dizendo que se deve relacionar
o que se quer ensinar para a criança, ou o que se quer que ela faça, com
os móveis naturais de atenção ou de ação. Isso seria possível através
do jogo, que é uma das principais necessidades da criança. A tendência
lúdica é essencial à natureza da infância. A necessidade de brincar
permitiria reconciliar a escola com a vida, possibilitando ao aluno o
interesse pelo trabalho escolar. Ou seja, é a partir de uma necessidade
que se cria o interesse, e o jogo é a chave mestra desse processo, sendo
um meio de despertar o interesse: “Captar o interesse. Não está nisso
o nó da arte didática? Captado o interesse, o resto vai ou quase pode ir
por si só” (Claparède,
1931/1940, p. 289).
Existem dois meios para se estimular
o interesse:
1º.
– Os meios extrínsecos que apelam para móveis estranhos ao próprio
trabalho que se tem de executar e que lançam o indivíduo fora de si
mesmo, a bem dizer: tais são os prêmios, os castigos, a emulação, a
necessidade de passar nos exames, etc. 2º. – Os meios intrínsecos, que
consistem em por o aluno numa situação tal que sinta a necessidade, o
desejo de executar a tarefa determinada (Claparède,1905/1934, p. 151).
Na primeira opção, corre-se o risco
de ensinar a criança a detestar o trabalho, criando em torno dos deveres
impostos, associações afetivas desagradáveis.
Fazendo
o aluno trabalhar sem que interiormente sinta o desejo, a necessidade para
isso, habituamo-lo, se assim me posso expressar, a só trabalhar com a
ponta do cérebro, da mesma maneira que não se come senão com a ponta
dos dedos, as cousas que repugnam (Claparède,1905/1934,
p. 453).
Já na segunda opção, a escola não
precisa do seu arsenal de meios de coerção (disciplina, castigos, más
notas, etc.) que servem de substituto do interesse ausente. Nesse caso o
mestre deve ser um estimulador de interesses, um despertador de
necessidades intelectuais e morais, a partir do entendimento de que a
escola deve fazer amar o trabalho, sendo para a criança um ambiente
alegre, em que possa trabalhar com entusiasmo. Como se pode notar, quando
se tem em vista fazer com que a criança goste do trabalho, tornando-o uma
peça da sua vida e associando-o ao prazer de vencer, a educação
necessita de um outro fator importante: “o fator pessoal, o valor do
mestre, o amor que dedica a seus alunos” (Claparède,1905/1934,
p. 218)
Se pensássemos em duas crianças do
mesmo tipo psicológico, cada uma educada sob um dos meios descritos
acima, veremos que uma será levada ao trabalho espontâneo e alegre; a
outra, ao trabalho aborrecido e realizado com o esforço máximo da
vontade. Não hesitaríamos, portanto, em dar primazia ao sistema
educativo que sabe tornar supérflua a vontade, substituindo-a pelo
prazer, na medida em que
habituando
a criança a trabalhar somente sob ordens e sem que se lhe tenha feito
compreender a significação de seu trabalho, sem que se lhe tenha
adquirido o consentimento interior para o esforço que dela se reclama,
sem que se tenha estabelecido em seu espírito um laço racional ou
afetivo entre esse esforço e certo fim que ela deseje atingir,
dissociamos as engrenagens cuja união é indispensável ao bom
funcionamento da máquina humana, fazemos da criança um autômato que
sabe, talvez, obedecer, mas já não sabe querer (Claparède,
1905/1934, p. 186).
A educação funcional, respondendo
às necessidades e interesses da criança, deve ser, portanto, um processo
endógeno e não exógeno.
É possível percebermos que a Educação
Funcional não visa apenas formar ou aprovisionar a inteligência,
desenvolver o pensamento e auxiliar na aquisição do saber, mas também
orientar o caráter, estimular o zelo, desenvolver a vontade e a
personalidade. A educação se ocupa da criança como um ser afetivo e
social, e não somente como um ser intelectual, partindo-se da seguinte idéia:
O
indivíduo é uno e tudo o que atua sobre ele tende a modificá-lo em sua
totalidade. As medidas que se tomarem para assegurar sua instrução irão,
pois, repercutir sobre seus sentimentos, sobre suas tendências; e seu
desenvolvimento moral influirá também em seu trabalho intelectual (Claparède,1905/1934,
p. 186).
Acreditando que a escola deve se
inspirar na concepção funcional da educação e do ensino, Claparède
acentua que se deve tomar a criança como centro dos programas e dos métodos
escolares (revolução copernicana) (4)
e sinaliza as vantagens da Educação Funcional
em relação à antiga concepção, ou seja, à Escola Tradicional:
A
verdade da concepção funcional da educação já tem, desde agora, um
alto grau de probabilidade, pelo fato de ser deduzida, naturalmente, das
leis biológicas, que se têm mostrado fecundas (a lei da evolução, a
lei do interesse e da necessidade, a psicologia das funções opostas à
psicologia das faculdades-entidades), e por levar em conta os fatos
positivos negligenciados pela antiga concepção (fases do desenvolvimento
infantil, evolução dos interesses, diferenças individuais, etc.) (Claparède,
1920/1959, p. 202).
Na
visão de Claparède, todos os demais métodos de ensino baseiam-se em
preocupações lógicas e não psicológicas, sendo apresentados conforme
a lógica do adulto. Assim as disciplinas são apresentadas sem se
considerar os interesses de cada idade. A Educação funcional, ao contrário,
entende que a idade adulta e a infância são dois momentos de um só vir
a ser e que, por isso mesmo, o sucesso da prática educativa reside na sua
organização em função da criança e de seus interesses em cada idade,
transformando os fins futuros visados pelos programas escolares em
interesses presentes para a criança.
Claparède:
a psicologia e a pedagogia de sua época
Ao longo de sua obra, Claparède
dialoga com outros autores que, a seu ver, teriam contribuído para o
estudo das questões relacionadas à perspectiva funcional, construindo
assim uma espécie de genealogia dessa tendência e dos debates que ela
teria suscitado a partir do século XVIII. Apontaremos brevemente alguns
teóricos citados por Claparède a propósito das relações entre
interesse, afetividade e inteligência, naquela perspectiva.
A construção da genealogia da
perspectiva funcional na análise da ação humana começa com a referência
ao filósofo inglês John Locke (1632-1704). Em sua obra, Claparède
destaca o empirismo, a insistência em colocar a criança na presença de
coisas (e não de idéias somente), pois seria através das coisas que se
daria a formação das idéias. Mas, a despeito da doutrina da tabula
rasa, Locke teria afirmado que, uma vez estabelecidas as sensações,
estas seriam objeto de operações ativas do espírito, expressas em
preferências, em escolhas, orientadas pela vontade. Nesse ponto Claparède
se pergunta: mas o que determina a vontade, para Locke? E responde,
citando o filósofo: é “alguma inquietação atual, e, de ordinário, a
que é mais urgente” (Claparède, 1931/1940, p. 9), vendo assim nessa
inquietação, nessa uneaisness, a manifestação da necessidade:
Vemos
pois que, sem fazer caso dos postulados rigorosos do Locke epistemólogo,
o Locke médico, observador da natureza humana, reintroduz em seu sistema
uma concepção biológica que a famosa doutrina da tábua rasa fez
esquecer (Claparède,
1940, p. 10).
Referindo-se ainda à obra de Locke
sobre a educação, editada em 1693 e que contém uma coleção de cartas
trocadas entre Locke e seu amigo Clarke, Claparède comenta que é nela
que o filósofo revela sua percepção de que a curiosidade, as “paixões
dominantes”, o temperamento é que guiariam na verdade o indivíduo em
suas escolhas. Também as observações de Locke sobre o papel do
interesse são sublinhadas pelo autor, que expressa grande admiração
pela perspicácia com que ele teoriza sobre as duas “molas” que
governariam a dinâmica da ação humana: o desejo e a previsão. E assim
Claparède inclui Locke no rol dos precursores da concepção funcional.
No entanto, é Jean-Jacques Rousseau
(1712-1778) a quem Claparède mais se reporta para discutir as questões
relativas ao interesse e às relações entre afetividade e inteligência.
Para Rousseau, o interesse, que possui quatro estágios de evolução,
seria o grande móvel, o condutor das nossas ações. Rousseau teria sido,
do ponto de vista do autor, um dos educadores mais importantes, nessa
perspectiva, ao apontar para a necessidade de se recorrer ao atrativo, à
curiosidade natural do homem, tomando-a como móvel para atrair e manter a
atenção do educando. Nunca a coação, mas sempre o desejo ou o prazer
é que deveriam produzir a atenção: “Amai a infância, favorecei seus
jogos, seus prazeres, seu amável instinto, exclamava nosso Jean
Jacques” (Claparède,
1905/1934, p. 445). Para provocar o movimento necessário a produzir a ação,
Rousseau propõe que se deve colocar o indivíduo em condições que lhe
exijam atividade, ou seja, proporcionar um ensino que dê margem à
atividade espontânea do aluno. Do contrário o ensino aborrece e a criança
não o deseja, forçando o apelo à coerção.
Continuando a construção da
genealogia de sua concepção de interesse, Claparède cita Herbert
Spencer (1820-1903). Também este autor poderia ser considerado um membro
da família funcionalista, pois defende que a educação deve ajustar-se
à marcha natural da evolução mental e que é importante tornar o estudo
agradável, obedecendo-se o que interessa a cada idade. Para Spencer,
quando o indivíduo sente curiosidade por um objeto, é porque ele se
tornou necessário ao seu desenvolvimento. E talvez a maior importância
atribuída a Spencer por Claparède, seja a influência que ele exerceu
sobre William James (1842-1920).
Na área específica da psicologia, Claparède destaca
especialmente as contribuições de William James (1842-1910) e de Sigmund
Freud (1856-1940) na construção da abordagem funcionalista.
Psicólogo e filósofo norte
americano, James é considerado o fundador da psicologia funcional, por
ter aplicado à psicologia tanto o ponto de vista biológico quanto o
pragmático, segundo o qual o que importa é o que é útil e eficaz na
manutenção da vida, enfatizando, como Claparède, as funções
adaptativas da conduta. Este último considera importante o fato de James
apresentar a criança como um organismo que age para se adaptar e a consciência
como destinada a preparar a conduta. James é citado, ainda, pela sua crença
que o educador lucraria em aliar-se ao interesse da criança. O interesse
de Claparède pela proposta pragmatista é compreensível, uma vez que
tanto ele quanto James, à época, buscavam uma alternativa às correntes
empirista e racionalista que então dominavam a nascente psicologia
científica, e pensavam que o funcionalismo poderia fornecer essa
alternativa, por sua abordagem dinâmica da vida mental. Em sua
autobiografia, Claparède relata a visita feita por James em 1885 ao
Laboratório de Psicologia da Universidade de Genebra, onde ele trabalhava
com seu mestre (e primo) Théodore Flournoy (1854-1920). Já nessa época
Flournoy ensinava a seus alunos a teoria das emoções atribuída a James.
Claparède conta que a teoria lhe parecia evidente, a partir de sua própria
experiência emocional (Claparède,
1941). Assim, James passou a fazer parte definitiva de sua genealogia da
perspectiva funcional.
Quanto a Freud, ele é lembrado por ter favorecido essa
abordagem através de suas concepções dinâmicas da vida mental, e ao
propor a noção de recalcamento como reação de defesa contra impressões
ou pensamentos desagradáveis. Além disso Claparède valorizou a noção
da libido freudiana, associando-a a sua própria concepção de
interesse. Assim, as fases do desenvolvimento da libido poderiam
ser relacionadas à evolução do interesse. Para Claparède, ao propor
uma teoria carregada de pansexualismo, Freud teria sido traído por sua
linguagem, ao emprestar um excessivo sentido sexual à libido,
enquanto que a noção de interesse teria um sentido mais amplo, cobrindo
necessidades variadas do organismo em seu processo evolutivo. Assim por
exemplo, “a transformação do auto-erotismo em hétero-erotismo que,
segundo Freud, seria uma das características da puberdade, não passa de
um caso especial dessa lei geral do desenvolvimento segundo a qual as funções
diversas progridem da subjetividade à objetividade, do modo do jogo ao
modo do real” (Claparède,
1926, p. 548). Mas, em resposta à Claparède pela sua introdução à primeira edição da publicação
da tradução francesa de “As cinco Lições”, Freud escreve-lhe uma
carta considerando sua interpretação deformadora. Em 1921, Claparède,
então, acrescenta um apêndice a essa introdução, transcrevendo um
trecho dessa carta (5).
Se William James
não chegou a explorar as aplicações práticas da psicologia, Claparède
argumenta que John Dewey (1859-1952) o fez, marcando uma data no
desenvolvimento da psicologia funcional na América. Dewey mostra que o
que constitui a unidade primordial na conduta de um ser não é nem a
sensação nem a reação, mas a função, a síntese de ambas, ou seja, o
ato adaptado (Claparède, 1931/1940). Claparède cita um artigo de Dewey,
sobre o interesse e o esforço, no qual este último autor lembra ser
psicologicamente impossível provocar uma atividade sem algum interesse.
Para Dewey, quando a escola separa a atividade do interesse, divide-se a
personalidade em duas partes criando uma luta entre dois pólos da
atividade. Formam-se hábitos mecânicos, sem atividade criadora e que de
nada valem do ponto de vista educativo.
Claparède considera, ainda, que uma
das mais fecundas concepções para as aplicações educacionais da
psicologia funcional, veio da Alemanha, com Karl Gross (1861-1946) para
quem o jogo tem uma utilidade funcional e desempenha um papel no
desenvolvimento do indivíduo, não só como satisfação de uma
necessidade do presente, mas tendo em vista o futuro.
Pode-se ver que Claparède define
claramente quais são os teóricos com os quais ele compartilha idéias,
sempre baseadas na perspectiva da psicologia funcional, a qual “não
pretende ser, de modo algum, uma teoria sobre a natureza última da
atividade mental! Limita sua ambição a oferecer um método de acesso e
formular certo número de leis” (Claparède, 1931/1940, p. 42). É através
desse método que os conceitos de interesse, afetividade e inteligência,
como tantos outros, são analisados por CLaparède, investigando-se qual
é o seu papel, a sua significação para o organismo, o seu valor para a
adaptação ao meio físico ou social.
Considerações
finais
Na perspectiva funcional defendida
por Claparède, interesse e afetividade (esta última muitas vezes
definida sob os termos “emoções”, “sentimentos” e “desejos”)
têm grande relevância. Isso ocorre na medida em que para ele o saber
nada mais é que um instrumento de adaptação, o qual deve ser adquirido
através de uma necessidade. Mas para que essa última seja satisfeita,
ela mesma é quem faz surgir o interesse e a afetividade, os quais
conduzirão à ação adequada.
A inteligência também corresponde a
uma necessidade, qual seja a necessidade que surge quando o indivíduo está
desadaptado em face das circunstâncias ambientais. Mas, é o interesse o
motor, o princípio fundamental da atividade mental, que conduz as
escolhas entre os objetos externos que poderão auxiliar o indivíduo na
sua adaptação. E Claparède afirma, ainda, ser impossível suprimir os
elementos afetivos da inteligência.
A partir disso, surge a questão:
como estimular o interesse e fazer do trabalho, do aprendizado, algo
prazeroso? Através da Educação Funcional, e utilizando-nos do jogo, que
é um recurso precioso para este fim, responde-nos Claparède.
A questão das relações entre
afetividade e inteligência é explicitamente colocada por Claparède nas
conclusões de sua autobiografia, respondendo à demanda dos editores (6)
sobre quais seriam, para ele as questões mais importantes a serem
exploradas pela psicologia da sua época. Este seria um problema
fundamental do que ele chama o drama humano, que coloca em conflito os
desejos e ambições egoístas do eu e as exigências imperiosas da
realidade (os princípios do prazer e da realidade, na perspectiva
freudiana) (Claparède,
1941).
Essas construções teóricas foram
possíveis a partir do exercício da medicina em que Claparède se
encontrava envolvido, o que possibilitou seu contato com crianças em período
escolar. Além disso, tais construções decorrem de sua reflexão acerca
do pensamento de alguns teóricos com os quais dialogou. Ao acompanhar os
debates estabelecidos com esses teóricos, as críticas e considerações
sobre suas idéias, especificamente no
que se refere à importância do interesse e da afetividade no
desenvolvimento da atividade mental, pode-se traçar a genealogia do seu
pensamento.
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La Maison des Petits hier et aujourd’hui. Lausanne: Loisirs et Pédagogie.
Notas
Lílian Erichsen Nassif é Psicóloga, especialista em
Gestão Estratégica de RH pela UFMG, mestre em Psicologia Social pela
UFMG, com formação em Psicoterapia Cognitiva pelo Núcleo de
Psicoterapia Cognitiva de São Paulo e doutoranda em Educação pela UFMG.
Contato: Alameda dos Coqueiros, 1144, São José / Pampulha,
31275-170 Belo Horizonte (MG), Brasil. E-mails:
nassif40@hotmail.com e lílian.erichsen@terra.com.br
Regina Helena F. Campos é professora de Psicologia da Educação e História
da Psicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, bolsista de pesquisa do CNPq, presidente do Centro de Documentação
e Pesquisa Helena Antipoff. Contato: Rua
Professor Saul Macedo 111, Belvedere, 30320-490 Belo Horizonte (MG),
Brasil. E-mail: regihfc@terra.com.br
Data de recebimento:
25/01/2005
Data de aceite:
30/09/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/nassifcampos01.htm
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