Silva, M.V.; Paiva, D.L.O. & Miranda, S.F. (2005). Memória e identidade afrodescendente: considerações a partir de um projeto de extensão universitária. Memorandum, 9, 28-41. Retirado em    /   /   , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/silva01.htm

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Memória e identidade afrodescendente: considerações a partir de um projeto de extensão universitária

 Memory and identity in afro-descendants: considerations based on a university extra-mural project

 Marcos Vieira Silva
Danielle Laísa Oliveira Paiva
Sheila Ferreira Miranda
Universidade Federal de São João del-Rei
Brasil
 

Resumo
O texto apresenta questionamentos e considerações produzidos a partir de um trabalho de extensão desenvolvido ao longo de oito anos, com o Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, na cidade de São João del-Rei, MG. As reflexões e análises são resultados construídos a partir de diários de campos dos estagiários, uma entrevista semi-estruturada realizada com a Coordenadora do Grupo e dados da ata de registro civil do Grupo. Articulam-se elementos teóricos ligados aos conceitos de produção da identidade afrodescendente e memória coletiva, bem como às vicissitudes sofridas pelo Grupo, principalmente no que se refere às manifestações de preconceito, atuando como entraves ao desenvolvimento do processo grupal e, como conseqüência direta, influenciando no trabalho de transmissão da memória coletiva, processo este que fornece o alicerce cultural, a base para a produção da identidade grupal.

Palavras-chave: memória coletiva; psicologia comunitária; afrodescedência; identidade grupal

Abstract
This work presents considerations and questionings which resulted from an extra-mural project developed along eight years by the Laboratory of Research and Psychosocial Intervention at the Federal University of São João del Rei (LAPIP/UFSJ) with the Group of Afro-descendant Inter-acculturation Raízes da Terra in São João del Rei (Minas Gerais). The reflections and analyses presented result from the field journals of trainees, on a semi-structured interview made with the Coordinator of the Group and on data taken from the legal registration minutes of the Group. Theoretical elements are articulated with concepts of creation of Afro-descendant identity and collective memory, as well as the predicaments the Group had to face, mainly in reference to manifestations of  racial prejudice, which hindered the development of the grouping process and influenced the transmission of collective memory, the process which yields the cultural support that is the basis for the production of group identity.

 Keywords: collective memory; community psychology; afro-descendant; group identity

Introdução
 
Através dos estágios e projetos de extensão da Área de Psicologia Social Comunitária, o LAPIP - UFSJ (1) vem desenvolvendo práticas em comunidades, com perspectivas de construção de autonomia dos grupos atendidos/investigados, procurando fazer com que eles sintam-se capazes de exercer suas potencialidades através da problematização e da conscientização de seus limites, anseios e do desenvolvimento do seu processo grupal. Procura-se criar possibilidades de questionamentos que levem os próprios grupos ao encontro de alternativas, que os auxiliem na busca de soluções para seus problemas e lutas cotidianas.
 
Neste contexto de exercício de práticas comunitárias, existem grupos que atuam através da militância e/ou de um trabalho social de conscientização acerca de suas origens, o que inclui a realização de festas temáticas e estudos sobre a afrodescendência no Brasil, em contraposição à marginalização histórica exercida pelo contexto social vigente. Grupos que têm por objetivo a reconstrução da memória das culturas de origem africana e, conseqüentemente, a produção de uma identidade afrodescendente: os também chamados grupos de consciência negra.
 
As intervenções com o Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, da cidade de São João del-Rei, MG, vêm sendo desenvolvidas desde 1997, com o apoio de métodos de intervenção próprios da pesquisa-ação, pesquisa-participante, análise institucional e grupos operativos. Metodologias que proporcionam dispositivos facilitadores para a elucidação das contradições da realidade vivenciada e possibilitam agir de modo mais eficiente. São utilizados, também, recursos de imagem, dinâmicas de grupo e oficinas fundamentadas nos métodos de intervenção já citados, dando-se um maior enfoque, atualmente, às oficinas de grupo.
 
É com base no material de campo coletado durante estas intervenções, no período de 1997 a 2005, referente à história do Grupo, que as reflexões e análises decorrentes se articularam. Utilizou-se, para isto, uma entrevista semi-estruturada realizada com a Coordenadora do Grupo, dados da ata de registro civil do Raízes e diários de campo produzidos pelos estagiários.
 
As práticas desenvolvidas no Grupo possibilitaram um trabalho de levantamento de suas principais características, no que concerne ao modo de organização e funcionamento do mesmo, além de um breve levantamento histórico, que possibilitou a concretização das análises efetuadas.
 
Memória, identidade e preconceito: considerações acerca da afrodescendência no Brasil
 
Ao longo da história vem se constituindo uma vasta literatura sobre afrodescendência, bem como sobre os movimentos de resistência das culturas africanas que migraram para o Brasil. Alguns trabalhos ressaltam a questão do impacto psicossocial causado pela presença do colonizador que, inicialmente, tentava impor suas tradições através de uma ideologia baseada na incorporação de seus valores e na conseqüente submissão do negro. Evidentemente, houve um fracasso do ideal de branqueamento físico, mas a ideologia proveniente desse processo histórico foi mantida no imaginário coletivo brasileiro, tanto daqueles considerados negros quanto dos brancos e mestiços, de maneira que todos compartilham dos mesmos estereótipos; prejudicando o ideal dos movimentos sociais na busca pela produção crítica de uma identidade afrodescendente (Munanga, 2004).
 
Essa ideologia é disfarçada por mecanismos “...subliminares de encobertamento permeados por um aparente tratamento cordial” (Ferreira, 2002, p. 2), uma farsa sobre o preconceito, o que o torna mais difícil ainda de ser localizado e compreendido. Todavia, em contraponto a qualquer tipo de cristalização e inércia das forças ideológicas e das tradições, esses movimentos sobrevivem, na tentativa de produzir uma identidade individual e coletiva através da reconstrução da própria história, origens e peculiaridades de cada grupo. E para uma percepção mais apurada desse processo, faz-se necessária uma reconstrução histórica. (Munanga, 2004).
 
Em torno do século XVI, iniciaram-se as grandes navegações, que proporcionaram ao homem europeu um impacto no contato com tanta diversidade. Diante desta nova realidade, houve um conseqüente espanto, pois as novas concepções de realidade oferecidas demandavam uma reconstrução de valores. As tradições já não eram suficientes para ordenar e oferecer segurança e o pensamento moderno não era capaz de suportar tanta ambivalência (Ferreira, 2002).
 
A colonização brasileira foi marcada pelo pensamento moderno, imbuído por concepções “enraizadas na busca da ordem e na eliminação da ambivalência”. (Ferreira, 2002, p. 05). Foram utilizadas estratégias violentas e excludentes, visando o controle e constituição de um padrão humano considerado desejável. Como conseqüência desse processo escravista houve, no início do século XX, a disseminação de uma ideologia de assimilação, defendida pelos intelectuais brasileiros e herdada do pensamento moderno. Essa ideologia difundiu a idéia de que os negros e os índios só poderiam ascender socialmente na condição de se apropriarem dos valores dominantes, isto é, incorporando elementos da tradição européia, em detrimento da própria cultura, numa busca pelo embranquecimento (Munanga, 1988, 2004).
 
Assim, os colonizadores influenciados pela idéia da expansão do cristianismo, difundiram uma ideologia calcada na incompreensão, depreciando a cultura e os valores do negro, sem procurar entender sua organização e, portanto, acreditando num caos e ausência de religiosidade desses povos (Pereira, 2000).
 
A primeira justificativa surge através da missão colonizadora, esse peso e essa responsabilidade que a sociedade colonial deveria assumir a fim de tirar os negros da condição de selvagens, poupando-os do longo caminho percorrido pelos ocidentais. Uma vez civilizados, os negros seriam assimilados aos povos europeus considerados superiores, ou seja, tornar-se-iam iguais aos brancos (Munanga, 1988, p. 13).
 
A direção do processo histórico, inevitavelmente, conjugou fatos que levaram esta ideologia a um impasse. Admitir a assimilação seria igualar o negro ao colonizador, extinguindo, portanto, sua condição privilegiada. Dessa maneira, a ideologia do embranquecimento tornou-se incompatível com tal situação, criando apenas desestabilidade cultural, moral e psíquica para o negro. A desumanização praticada pelo branco não poderia em nenhuma circunstância, atuar como meio de integração do colonizado (Munanga, 1988).
 
A assimilação torna-se, então, um mito. O negro passa a buscar outros caminhos; a princípio através de revoltas, onde quilombos e guetos surgem como movimento contrário à ideologia do embranquecimento. Neste momento, as revoluções localizadas ainda possuíam caráter discriminatório, na medida que disseminavam a produção do preconceito, não havendo reflexões que compreendessem esta dimensão (Munanga, 1988).
 
No início do século XX, alguns escritores negros iniciam, nos Estados Unidos, um movimento de conscientização conhecido como Renascimento Negro, que se estende, “...cobrindo toda a África negra e os negros em diáspora, isto é, as Américas.” (Munanga, 1988, p. 35). Neste momento histórico, o negro inicia uma luta pelo processo de reconstrução da sua identidade, criticando os preceitos europeus. A ideologia do embranquecimento é abandonada, havendo rejeições intensas a qualquer atitude que aponte para um compromisso com os valores culturais do colonizador.
 
Por volta de 1930, começa a tomar corpo no Brasil, a aceitação, processo no qual o negro assume sua cor, seus valores e sua cultura negada, em um “...desejo urgente de contestar a marginalidade e descobrir uma identidade.” (Munanga, 1988, p. 34). Posteriormente, os grupos de consciência negra e outros movimentos relacionados à Igreja católica, como CEBS, pastorais do negro, passam a representar a expressão deste fenômeno e toda a luta pela emancipação dos povos historicamente oprimidos; luta contra o preconceito e pela assunção de uma identidade afrodescendente. Nos anos 70, principalmente a partir de Abdias do Nascimento, militante  e intelectual negro, os movimentos afrobrasileiros defendem a idéia de consolidação de uma sociedade pluriracial, ou seja, a sociedade brasileira só será efetivamente democrática e pluriracial se houver igualdade econômica, social e cultural para todas as etnias. (Munanga, 1998, 2004).
 
São os movimentos dentro e fora do universo das instituições religiosas que primam pela busca da identidade étnica e cultural, para que os indivíduos, homens e mulheres, nesta sociedade, possam, a partir daí, buscar resgatar a sua cidadania, seu valor de pessoa humana (Pereira, 2000, p. 6).
 
É através dos grupos, ou seja, das relações sociais que cada indivíduo configura uma identidade pessoal, em toda sua complexidade. Uma busca de identidade é sempre um fenômeno social, uma constante transformação, uma metamorfose. Portanto, as identidades se relacionam dialeticamente com a sociedade, na medida em que se constituem a partir dela e são constituídas por ela. “Para entendermos a identidade, precisamos entender o próprio processo de produção da identidade” (Ciampa, 1990, p. 159).
 
E como parte desse processo de produção da identidade, mais especificamente de uma identidade afrodescendente, o processo de transmissão da memória coletiva irá atuar de forma decisiva, na medida que esta envolve não só uma realidade individual, mas também uma incorporação de elementos construídos coletivamente. Então, a memória individual é reiterada pelas lembranças coletivas, como ponto de referência fixado pelo âmbito social (Halbwachs, 1990; Munanga, 1988).
 
“O tempo da memória é social, não só porque é o calendário do trabalho e da festa, do evento político e do fato insólito, mas também porque repercute no modo de lembrar” (Chauí, 1987, p. 30).
 
Tendo em vista a dimensão social da memória, Bosi (1987), chama a atenção para o fato de o grupo social adquirir o status de suporte desta, quando há uma identificação e conseqüente movimento de busca pelo passado compartilhado. Dessa forma, para Halbwachs (1990), a memória individual está compreendida na memória coletiva, na qual a identificação e conseqüente pertença ao grupo atuam como fatores determinantes em sua fundamentação.
 
A relação de pertença ao grupo produz o que se pode denominar vínculo. O vínculo compreende a maneira específica pela qual o indíviduo se relaciona com a coletividade. Então, todas as relações sociais são permeadas pela maneira como os indivíduos percebem e atuam, dialeticamente, num interjogo de assunção e  atribuição de papéis (Pichon-Rivière, 1982).
 
Se tais relações de identificação e pertença ao grupo encontram-se alteradas, significa que a produtividade grupal também se alterou. Um grupo de baixa produtividade tende a ser efêmero e logo se dispersa; conseqüentemente, as lembranças grupais serão inconsistentes. A função eminentemente histórica dos grupos, neste sentido, refere-se à sua capacidade de conservação e transformação das relações sociais vigentes, que são efeito das relações de produção adquiridas. (Bosi, 1987; Lane, 1989b).
 
Outro fator que interfere na transmissão da memória coletiva, diz respeito à constante elaboração e reelaboração de conteúdos. Para Bosi (1987), torna-se necessária uma constante comunicação e é através do confronto e recepção de conteúdos individuais e grupais que a memória ganha consistência.
 
Dessa forma, a inconsistência dos conteúdos transmitidos através da memória coletiva opera como elemento deflagrador do processo de desenraizamento. Este pode ser definido como uma condição desagregadora da memória, na qual indivíduo e grupo perdem suas referências. Quando o trabalho de transmissão da memória coletiva não ocorre, o significado das recordações é esvaziado de sentido, ocasionando a espoliação das lembranças (Bosi, 1987).
 
O vazio no sentido das lembranças, ou a sua espoliação, acontece também quando a memória encontra obstáculos concretos. A memória coletiva sofre as vicissitudes da evolução do processo grupal, dependendo da interação entre os membros, dos movimentos de mobilização e desmobilização, dos preconceitos gerados pelos estigmas existentes no interior do grupo e sofridos por ele; principalmente quando se quer falar de grupos minoritários, como grupos de consciência negra (Bosi, 1987; Silva, 2000).
 
Retomando a questão histórica do impacto psicossocial causado pelo branco, um grupo de consciência negra é sempre um grupo historicamente estigmatizado. A teoria do estigma surge como uma ideologia para explicar a inferioridade do negro, buscando justificar o perigo que esta classe representa, através de uma racionalização que encobre o real significado da diferença (Goffman, 1988).
 
Goffman (1988), atentando para os estigmas tribais de raça, defende sua transmissão através da ação cultural e da linhagem, que podem estender-se a toda uma comunidade, que como tal pode praticar (utilizando este atributo para obter ganhos secundários) e sofrer diversas configurações de uma atitude preconceituosa.
 
O termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo profundamente depreciativo... na realidade, um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo... em parte porque há importantes atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito (Goffman, 1988, p. 13).
 
Tendo em vista o modo como a sociedade concebe indivíduos estigmatizados, o encontro entre estes grupos e o meio social abrangente, coloca em evidência o efeito do estigma, fator que provoca uma situação angustiante para todos os envolvidos. O estigmatizado, ao entrar numa situação social mista, pode passar a responder de maneira defensiva, tentando aproximar-se com retraimento ou através de uma atitude hostil, incômoda aos outros, temendo a rejeição. O indivíduo normal, diante da sua impotência vista no estigmatizado, por não conseguir lidar com as diferenças, acaba assumindo uma postura excessivamente benevolente ou de distanciamento, o que caracteriza uma atitude, mesmo não intencional, de preconceito (Goffman, 1988).
 
O preconceito pode se manifestar de duas formas. A primeira denota uma ausência de reflexão, manifesta por uma falsa onipotência. O preconceituoso opera num rompimento, numa tentativa de afastar aquilo que percebe como ameaça, o que corresponde à sua própria impotência. A outra configuração assumida é a da rejeição, onde o indivíduo enrijecido despreza aquilo que julga impróprio, inferior, encontrando respaldo em algum valor preestabelecido pelo âmbito social (Crochick, 1995).
 
Então, o estigma pode funcionar como referência à formação de grupos. Dentre estes, estão os de consciência negra, na medida em que constituem uma forma na qual tais indivíduos podem se apoiar e fortalecer sua identidade, na igualdade e diante das diferenças e também contestar a situação de marginalidade, na luta por uma emancipação e pela assunção de valores que historicamente foram depreciados (Goffman, 1988).
 
Todavia, esta constituição grupal também pode designar uma fuga, na medida em que o grupo pode ser utilizado como amparo, escudo contra uma discriminação já prevista. Quando tais indivíduos apresentam dificuldades de elaboração, eles passam a se apoiar na situação grupal como mecanismo de defesa. Neste contexto, pode-se atestar a hipótese de Goffman (1988), com relação aos ganhos secundários que o estigma pode proporcionar. O autor elucida o momento em que o indivíduo tende a uma vitimização e utiliza seu fracasso como desculpa para evitar o contato com as adversidades decorrentes de sua condição.
 
Quando o grupo perde seus referenciais e prende-se aos obstáculos psicossociais acarretados pela situação estigmatizante, o desenvolvimento do processo grupal é prejudicado, acarretando uma perda dos objetivos que constituem sua formação inicial. E se a memória coletiva sofre as vicissitudes de tal desenvolvimento, os conteúdos transmitidos serão inconsistentes, ocorrendo o processo de desenraizamento (Bosi, 1987; Lane, 1989b; Goffman, 1988).
 
Um grupo que apresenta inconsistência na transmissão de sua história e, portanto, da memória coletiva, provavelmente terá dificuldades em fortalecer o processo de produção de uma identidade, visto que esta é a união dialética de fatos biográficos e sociais (Bosi, 1987; Goffman, 1988).
 
Segundo Ciampa (1990), atividade, consciência e identidade são três categorias fundamentais para a Psicologia Social, na medida em que permitem revelar aspectos essenciais ao entendimento da relação dialética indivíduo/sociedade.
 
A atividade é um processo de produção constante, no qual indivíduo e grupo transformam o meio social e são transformados por ele. A percepção de tais modificações irá gerar a consciência, que pode ser considerada um dos fatores decisivos para que o grupo seja produtivo e, portanto, engajado na tarefa. Dessa maneira, este processo pode se referir à forma como os grupos transmitem sua memória histórica, na medida em que as relações de produção e o nível de consciência grupal influenciam diretamente na transmissão da memória coletiva. (Bosi, 1987; Ciampa, 1990; Lane, 1989a).
 
O processo de transmissão da memória coletiva aponta para um direito humano esquecido, denominado enraizamento, no qual o indivíduo e grupo constroem seu alicerce cultural, sua identidade através de uma revitalização deste patrimônio imaterial. O conceito de identidade irá se calcar por meio da atividade e consciência, tendo em vista que o indivíduo é o que realiza e só irá se distinguir dos outros através do reconhecimento que tem de si. Esta consciência também se adquire a partir das relações sociais estabelecidas; logo identidade “é a articulação entre diferença e igualdade” (Ciampa, 1990, p.138) (Bosi, 1983; Unesco, 2003).
 
O enraizamento, visto como direito humano, aponta para a importância de se compartilhar lembranças e do sentido de trabalho deste processo, onde lembrar é trabalhar, pois não se revive uma lembrança, ela é reconstruída, ampliada com imagens e idéias de hoje a partir das experiências do passado. A revitalização da memória histórica de um grupo ganha, neste contexto, status de trabalho (Chauí, 1987).
 
Em se tratando de grupos de consciência negra, este convite ao reavivamento da memória coletiva adquire um sentido de valorização de culturas africanas que, ao longo de séculos, no Brasil, foram varridas para o esquecimento. A transmissão de valores próprios a essas culturas gera a conscientização da importância de pertencimento a uma etnia e convidam à assunção de uma identidade afrodescendente (Munanga, 1988).
 
Histórico e funcionamento do Grupo Raízes da Terra: implicações com o trabalho da memória coletiva e identidade grupal
 
O Grupo Raízes da Terra é constituído por moradores do bairro São Geraldo, na cidade de São João del-Rei, Minas Gerais. A comunidade localiza-se na periferia da cidade, numa das regiões menos privilegiadas, do ponto de vista econômico e social.
Tal Grupo realiza um trabalho de reconstrução e transmissão de elementos de culturas africanas, através de encontros quinzenais, que geralmente incluem estudos sobre a presença e participação africana no Brasil e suas raízes históricas. Destacam-se, entre as reflexões realizadas, aquelas que abordam a influência das religiões de origem africana no estabelecimento dos centros de candomblé e umbanda no Brasil.
 
As reuniões são utilizadas, também, para organização de festas que já se tornaram tradicionais, como o Dia Nacional da Consciência Negra (Festa do Zumbi), Festa do Rosário, Abolição da Escravatura, Festa de São Sebastião e Festa do Divino. Estes momentos se revestem de grande importância para o Grupo, tanto por seu significado histórico, quanto pelo fato de propiciarem um espaço de intensa participação e envolvimento da comunidade local, o que para eles significa também, a visibilidade e reconhecimento do trabalho grupal realizado.
 
O Raízes mantém um grupo de dança composto por crianças e adolescentes, que se apresenta regularmente durante as festividades que promove: o Grupo de Dança das Meninas. As roupas e penteados característicos exibidos nestes eventos constituem uma produção do próprio grupo. Também é importante ressaltar a forte presença e a importância da música, elemento indispensável na realização das reuniões e festas cotidianas. As composições ou adaptações de cantos religiosos são de autoria dos seus membros. Cabe salientar que nos últimos anos é cada vez maior o número de convites que recebem para se apresentar em eventos municipais e regionais, como o Inverno Cultural, festival promovido pela UFSJ que integra a programação do Circuito de Festivais de Inverno da Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais.
 
Dentre os membros com maior tempo de participação no Grupo, alguns possuem um desempenho de forte impacto sobre os demais, no sentido de funcionarem como referência, organizadores das atividades, incentivadores. Estes são, também, considerados os membros mais antigos, coordenadores e fundadores, os que de alguma forma atuam no incentivo à manutenção do processo grupal e de suas tradições.
 
De acordo com dados coletados, através da Coordenadora e de outros integrantes, o Raízes vinha se organizando em reuniões intermitentes desde 1995, todavia, sua primeira ata de registro formal foi instituída em 26 de fevereiro de 1996, já considerando o Grupo com um ano de existência. “Nós consideramos que o Grupo tem 10 anos, porque antes da primeira ata, já movimentávamos as reuniões” (Entrevista gravada em 27/05/05).
 
No momento em que tal declaração a respeito da trajetória do Grupo é feita, torna-se possível perceber a implicação de outros membros nesta afirmativa, de forma que a memória individual é reiterada pelas afirmações de outros membros do grupo, transformando-se em memória coletiva.
 
Certamente, se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança, mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada, não somente pela mesma pessoa, mas por várias, (Halbwachs, 1990, p.25).
 
O contato e a identificação com os propósitos coletivos proporcionam um sentimento de fusão, onde o passado de cada um transforma-se num passado comum. Assim, o Grupo, através da identificação e pertença que permeiam suas relações, busca a reconstrução de uma memória que se torna coletiva neste momento. O depoimento da Coordenadora confirma-se na declaração dos demais membros (Halbwachs, 1990).
 
Esta identificação com os propósitos da coletividade pode indicar a existência do vínculo, visto que a Coordenadora assume o papel de porta-voz de uma história, mas sempre buscando respaldo nas lembranças coletivas (Halbwachs,1990; Pichon-Rivière, 1982).
 
Retomando o histórico, a idéia de fundação do Raízes da Terra, surgiu a partir do momento em que a Coordenadora começou a freqüentar reuniões do único grupo de consciência negra existente na cidade, o extinto Moscab (2). As reflexões tinham como temas centrais a história do negro em São João del-Rei, seu trabalho, valor e beleza, bem como a arte realizada por eles. Existia uma ênfase no valor do patrimônio imaterial, visto que nas reuniões do Moscab, era pedido que os integrantes levassem fotografias antigas e procurassem reconstruir sua história pessoal através do relato dos mais velhos.
 
Segundo Chauí (1987), os velhos representam a fonte da memória, lugar de origem de uma cultura a ser preservada; onde o trabalho de reflexão e a localização são essenciais para que as lembranças ganhem consistência. Neste momento inicial, os relatos dos mais velhos eram concebidos como elementos centrais no trabalho da memória do grupo e é através dos valores defendidos pelo Moscab, que o Grupo Raízes da Terra irá se fundamentar.
 
Em uma das reuniões do Moscab, foi pedido aos participantes, que procurassem organizar pequenos núcleos de discussão, nos bairros, como forma de difundir a proposta. Segundo a Coordenadora
 
...fizeram aqui a primeira reunião... puseram nossas meninas no salão do São Geraldo pra dançar... viram que as nossas meninas tinham um molejo... Viram então, que era um trabalho que tinha futuro e pediram que eu freqüentasse as reuniões do Moscab, mas que continuasse o trabalho com o Grupo aqui no bairro. (Entrevista gravada em 27/05/05).
 
A sugestão foi prontamente aceita no bairro São Geraldo, de modo que o Grupo foi tomando maiores proporções.
 
O Grupo, que até então era apenas um pequeno núcleo de discussões, torna-se independente e começa a evidenciar traços de uma identidade própria, na medida em que há valorização e prestígio externo de peculiaridades referentes à maneira de dançar das adolescentes. Fortalecidos pelo reconhecimento, os integrantes passam a encontrar motivação para concretizar seu projeto.
 
Logo de início, com o auxílio do Moscab e do pároco local, houve a realização de uma missa inculturada (3). O evento foi extremamente criticado, alvo de vários ataques da comunidade, sendo entendido como manifestação contrária às regras da Igreja Católica e classificado como “macumba”:
 
De fato, ainda é muito forte na sociedade os sentimentos de preconceito - levando as pessoas a elaborarem juízos acerca do outro, sem nem mesmo conhecer o mínimo que seja da sua cultura, organização social e prática religiosa, promovendo a discriminação social, econômica, cultural e religiosa. Nesta realidade, nega-se profundamente o valor do outro até mesmo enquanto pessoa humana, haja vista os diversos casos de discriminação racial que acontecem diariamente na sociedade e os de caráter religioso, onde se considera a religião do outro como diabólica e tantas outras afirmações (Pereira, 2000, p. 6).
 
Pode-se perceber, neste contexto, uma atitude preconceituosa da comunidade local para com o Raízes, tendo em vista resquícios de uma ideologia da superioridade cultural, presente no processo de consolidação da cultura religiosa, estabelecida no Brasil colonial. Neste momento, pode-se considerar que houve um movimento de recusa, visto que a comunidade não procurou conhecer os valores do Grupo (Munanga, 1988).
 
“Assim, na transmissão da cultura para as gerações mais jovens, já são transmitidos preconceitos: idéias que devem ser assumidas como próprias sem que se possa pensar na sua racionalidade e conseqüente adesão ou não a elas” (Crochick,1995, p.18).
 
Todavia, o Raízes insistiu na promoção das missas inculturadas, de forma gradual, por influência do pároco local. Durante as missas tradicionais, eram intercalados momentos de rituais afro, de modo que a comunidade foi, aos poucos, assimilando a idéia. A partir disso, foi criado um espaço para a realização dessas missas, que passaram a ser esporádicas.
 
Diante dessa circunstância, procuraram organizar um trabalho de desenvolvimento social no bairro, que funcionou também como estratégia de inserção: “... e a gente sempre se infiltrando na comunidade, desenvolvendo trabalhos sociais, mas com a idéia de que o grupo fosse reconhecido; acontecesse!” (Entrevista gravada em 27/05/05).
 
Uma das parcerias estabelecidas pelo Raízes da Terra, com o objetivo de ampliar sua inserção na comunidade e nas atividades desenvolvidas pela Igreja Católica foi constituída com um grupo de jovens do bairro São Geraldo, o JULIC - Jovens Unidos pela Libertação em Cristo – que funcionava na paróquia do bairro São Geraldo e se reunia regularmente, discutindo questões voltadas para realização de tarefas de cunho social e participando das atividades paroquiais. Os membros deste grupo também eram participantes do Grupo Raízes.
 
Em 06 de janeiro de 2001 foi pela primeira vez apresentada a possibilidade de término do JULIC, frente a uma ameaça de desistência da coordenação, que possuía ímpeto centralizador. As reuniões mudaram sua dinâmica, no período em que o coordenador do grupo passou a organizá-las, valorizando momentos de oração em detrimento de um trabalho mais dinâmico que despertasse o interesse de seus integrantes. Isto fez com que o grupo, aos poucos fosse se extinguindo.
 
Entretanto, mesmo com o fim do grupo, os membros do JULIC não deixaram de participar das reuniões organizadas pelo Raízes, atestando a identificação destes jovens com os objetivos de resgate de elementos das culturas africanas que migraram para o Brasil. Além disso, o Raízes da Terra passava a apresentar encontros mais dinâmicos e atrativos para os jovens, visto que o Grupo de Dança das Meninas realizava ensaios regulares, portanto, a participação do subgrupo adolescente era mais expressiva, diante da constante promoção de festas e eventos na comunidade.
 
A utilização de uma tática de inserção demonstra a preocupação permanente do Raízes em se afirmar diante da sociedade; ao mesmo tempo em que estabelece estratégias de resistência às adversidades impostas. Tal característica se concretiza numa luta pacífica, objetivando retificar a marginalidade histórica imposta pelo meio social. Ao mesmo tempo, o Grupo busca emancipar-se e fortalecer sua identidade, ganhando forças na aceitação da comunidade local.
 
Outro fato marcante na história do Grupo foi a escolha do primeiro nome: Grupo de Consciência Negra Raízes da Terra. A especificidade deste momento deve-se a uma intensa participação, incluindo todos os 52 integrantes do grupo, quando este iniciou suas reuniões, no ano de 1995. O nome Raízes da Terra foi escolhido a partir de uma votação. Significa, para o grupo, a sua origem, relacionada ao próprio bairro. Consciência negra é consciência de pertencimento ao grande grupo composto de africanos e seus descendentes, (4) fundada através da memória da escravidão e de sua herança ideológica racista, disseminada nos países africanos e nos da diáspora (Gilroy, 2002).
 
No mês de novembro de 2000, após um período de participação de elementos da direção do grupo em encontros do Movimento Negro Unificado e de Comunidades Eclesiais de Base, houve uma mudança do nome anterior, ocasionada por discussões acerca do processo de inculturação.
 
Neste contexto, o até então Grupo de Consciência Negra Raízes da Terra percebeu-se numa atitude excludente tanto quanto a própria Igreja Católica e pessoas que praticavam diversas formas de racismo. Essa reflexão gerou uma atitude de mudança no grupo, culminando com o estabelecimento de um novo nome: Grupo de Inculturação Afrodescendentes Raízes da Terra. A alteração da nomenclatura, simultaneamente, provocou uma mudança de posição, tendo como conseqüência imediata uma revisão crítica de suas relações com a Igreja Católica.
 
Uma das expressões mais significativas desse processo é a realização mensal (e não mais esporádica) de uma missa inculturada. O evento possibilitou um intercâmbio de valores, estabelecendo vínculos e parcerias satisfatórios tanto para o Raízes quanto para a Igreja Católica local. A participação nas missas foi se tornando cada vez mais intensa, assinalando uma maior aceitação dos seus valores e de sua história, bem como uma conquista mais efetiva de seu espaço social.
 
A possibilidade de refletir criticamente sobre sua condição de grupo estigmatizado, gerou uma nova concepção de valores no Raízes, uma vez que o Grupo passou a não buscar mais em sua condição, elementos que pudessem justificar uma inferioridade para a consecução de ganhos secundários. Este momento foi essencial no desenvolvimento do processo de conscientização do Grupo, pois a percepção do próprio preconceito gerou uma postura de maturidade, de modo a não sustentar mais nenhuma forma de preconceito, interno ou externo. (Goffman, 1988).
 
Todo esse processo foi fundamental, também, para o fortalecimento da identidade afrodescendente, de modo que os propósitos grupais foram reiterados a partir de uma busca mais efetiva de parceiros eventuais, que até então eram vistos como oponentes. Conseqüentemente, houve uma mobilização mais efetiva da comunidade local e da igreja,  para que fossem ao encontro dos valores do Grupo, até então depreciados. Com o apoio da comunidade, tornou-se viável ao Raízes assumir, de maneira mais contundente, sua condição de afrodescendência. Então, através da re-significação dos propósitos grupais, também foram re-significados os valores da negritude, tendo sido excluídos todos os elementos negativos carregados ao longo da história (Munanga, 1988).
 
Um dos fatores que evidenciam o reconhecimento social conquistado pelo Raízes da Terra é a parceria com o grupo de Maracatu Mucambo. Esta ocorre em eventos culturais e datas comemorativas específicas, proporcionando junção dos ritmos do Maracatu com cantigas já existentes no cotidiano do Grupo. Outro fator que demonstrou a expansão do Raízes foi a aliança com o Quilombo de São Benedito, no ano de 2003. Tal grupo, também conhecido como Quilombo II, surgiu como um grupo de congado, e acabou se tornando um grupo de reflexão acerca das questões da afrodescendência, quando começou a se unir ao Raízes da Terra. O grupo passou a organizar, em conjunto com o Raízes as tradicionais festas e alternar reuniões de reflexão e planejamento de atividades comuns, como as participações no Projeto de Extensão Populações Afrodescendentes e Cidadania: Ações Interdisciplinares, financiado pelo Programa de Fomento à Extensão Universitária do MEC – 2003, também desenvolvido pela UFSJ, através do LAPIP e do Núcleo Malungo de Pesquisa e Extensão, compreendendo a realização de oficinas de música, memória e história, contação de histórias e fotografia.
 
Durante todo esse processo de reestruturação, pode-se afirmar que o Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, passou por uma fase de fortalecimento da sua identidade. O reconhecimento externo obtido atuou como elemento deflagrador de um crescimento no nível de conscientização do Grupo, que, utilizando-se da situação estigmatizante como referência para sua constituição, articulou parcerias e reuniu forças para enfrentar as condições adversas.
Nesta dinâmica, tornam-se evidentes as constantes transformações que o Grupo processa, quer seja na militância, na luta por estabelecer seu lugar através das missas inculturadas, ou através da mudança de nome, que culminou numa reavaliação de suas relações com a comunidade e com a própria igreja católica. Ciampa (1990), defende a hipótese de que identidade é metamorfose, em função de um contínuo movimento de constituição e reconstituição, o qual pode ser confirmado na trajetória do Raízes da Terra.
 
Todavia, a partir do ano de 2003, percebeu-se que os vínculos do Grupo com a igreja católica vinham se tornando cada vez mais carregados de contradições. Isso porque, com a mudança de direção na paróquia, o atual padre vem questionando a atuação do Grupo na comunidade e chegou a solicitar a desocupação do salão comunitário. Além disso, chegou a proibir a realização das missas inculturadas, entrando em contradição com o ideal ecumênico difundido pela própria Igreja Católica.
 
Diante da dificuldade de se estabelecer o ecumenismo com as religiões não cristãs, propõe-se o diálogo inter-religioso como uma alternativa. O interessante é que, mesmo tendo como horizonte o diálogo, para alguns setores das Igrejas cristãs esta relação é quase impossível ou mesmo inexistente (Pereira, 2000, p. 2).
 
Mais uma vez o Grupo encontra adversidades na vivência cotidiana das condições sociais vigentes; pode-se perceber claramente, através da atitude do pároco local, uma influência do processo histórico, resquícios de uma ideologia do embranquecimento, em que a cultura e os valores do Grupo são depreciados e incompreendidos. Constata-se, portanto, a presença de uma atitude preconceituosa manifesta pela rejeição.
 
Este episódio desencadeou no Grupo um processo de desmobilização, de forma que as reuniões e as festas diminuíram sua freqüência, pelo fato de não contarem mais com o apoio da Paróquia e pelos questionamentos à utilização do salão comunitário.
Mesmo com todas essas dificuldades, o Grupo vivencia momentos de afirmação de sua cultura e amplia espaços de articulação com parceiros que respeitam sua condição afrodescendente.
 
Talvez a maior prova disso tenha sido a realização da festa do Divino Espírito Santo em 2005. Trata-se de um evento tradicionalmente promovido com a participação do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos. Dessa vez houve uma mobilização intensa de ambos os grupos envolvidos diretamente, Quilombo de São Benedito e Raízes da Terra que, mesmo com relações estremecidas, se organizaram com grande antecedência e procuraram atrair parceiros para todas as atividades, mostrando aos representantes da Igreja Católica, principalmente ao pároco do bairro São Geraldo, sua força de organização e mobilização popular. O Imperador do Divino, Sr. Nivaldo, um dos mais atuantes coordenadores do Grupo Raízes da Terra, sucedeu no trono a Tadeu, um dos líderes do Quilombo de São Benedito. Diversos setores das comunidades envolvidas foram mobilizados. Vale destacar que a entrega da Coroa foi feita, pela primeira vez em muitos anos de realização da festa, pelo Bispo Diocesano de São João del-Rei, no altar principal do santuário. A entrada do Imperador foi precedida de um cortejo com trajes afro, tendo como principais participantes as meninas do Grupo de Danças do Raízes da Terra. Todos os Membros do Grupo estiveram presentes e envolvidos com a realização das festividades. Entre os participantes, grupos de congado de São João e região, grupos de capoeira, grupos de maculelê, o Maracatu Mucambo, representantes do candomblé e da comunidade católica local, a Secretária Municipal de Cultura e o Prefeito Municipal.
 
O evento se revestiu de grande importância para o Grupo, tendo em vista as dificuldades e os preconceitos enfrentados. Contar com a participação do Bispo foi uma vitória, um tapa de luvas no pároco que vinha se mostrando tão intransigente. Entretanto, após a intensa mobilização, a apatia volta a se fazer presente e o Raízes continua a conviver com a pouca participação cotidiana, característica dos períodos entre festas.
 
Estando as relações de vinculação cotidiana comprometidas, como conseqüência, as relações de vínculos intragrupais também são afetadas. Dessa maneira, a produtividade grupal altera-se, havendo uma certa dispersão por parte dos integrantes do Grupo.
 
Outro fator que pode estar influenciando negativamente o desenvolvimento do processo grupal e dificultando a transmissão da memória coletiva é a característica de alta rotatividade na participação dos membros do Grupo. A princípio, a ênfase no valor do patrimônio imaterial, era um dos objetivos primordiais do Raízes. Observou-se que a transmissão da memória coletiva não é mais um processo tão valorizado pelo Grupo, visto que a maioria absoluta dos seus integrantes desconhece sua trajetória e os objetivos. Este fator também tem contribuído para a evasão sistemática de membros do Grupo.
 
Inicialmente, devido ao movimento organizado como estratégia de inserção na comunidade local, o Grupo atuava de maneira mais efetiva, realizando festas, desfiles, momentos de comemorações nas missas católicas e trabalhos sociais em parceria com a igreja local. Pode-se perceber que, nos últimos dois anos o número de festas promovidas pelo Raízes vem decrescendo e os trabalhos sociais diminuíram muito.
 
Portanto, torna-se necessário que se façam reflexões acerca do processo ocorrido, buscando a reestruturação do Grupo e, principalmente, de seu processo grupal. Dessa forma, a cada período de trabalho, há uma alternância de movimentos de mobilização e desmobilização da tarefa, sendo possível relacionar diretamente este movimento com a época festiva, visto que estes eventos regem sua dinâmica (Silva, 2000).
 
Conclusões
 
Diante deste processo, pode-se perceber que a alta rotatividade do Raízes, o comprometimento do vínculo com a igreja católica e a conseqüente alteração nas relações intragrupais atuam como fatores de interferência na transmissão da memória coletiva, e esta passa a não ser um fator tão valorizado pelo Grupo. Naturalmente, ocorre a evasão de seus membros, tendo em vista que estes desconhecem sua trajetória e os principais objetivos, inicialmente relacionados à reconstrução e transmissão de elementos da cultura afrodescendente.
 
Se a identidade grupal é constituída a partir de identificações com os objetivos do grupo e com o líder, na medida em que os membros do Raízes ignoram tais preceitos, esta fica comprometida, prejudicando o processo grupal. Todavia, o papel da Coordenadora consiste em ser uma espécie de liga que cimenta o alicerce para o Grupo, facilitando o processo de identificação de alguns membros, o que permite que os objetivos e a memória coletiva não sejam totalmente esquecidos, ainda que transmitidos de maneira precária (Pichon-Rivière, 1991).
 
Observa-se que o Grupo se encontra entre os estágios de grupo aglutinado e possessivo, onde algumas decisões são tomadas e executadas pelas lideranças e determinadas tarefas são distribuídas por estas, entre os membros. Dessa forma, as idéias e ações da Coordenadora representam um modelo para o Grupo (Lane, 1997b).
A permanência nesse estágio prejudica o processo de transmissão da memória coletiva, levando-se em consideração que esta acompanha os movimentos de idas e vindas, mobilização e desmobilização do processo grupal. Como exemplo, o Grupo enfrentou e enfrenta adversidades, principalmente no que se refere às manifestações de preconceito.
 
O preconceito sofrido no momento de busca da instituição das missas inculturadas representou para o Raízes o primeiro obstáculo, já que os objetivos grupais colidiam com a tradição local. A solução encontrada foi a introdução gradativa de elementos afro nas missas tradicionais, não esquecendo que neste período o Grupo contava com o apoio do pároco local.
 
Inicialmente, o estigma operou como fator de identificação na formação do Grupo, um apoio para a contestação do estado marginal em que esta minoria pôde encontrar referências para se fortalecer. Mais adiante, o próprio Grupo percebeu-se numa atitude preconceituosa, re-significando seus propósitos, na busca por parcerias. Este momento reflexivo foi fundamental, tendo em vista que houve uma conscientização e a partir disso, os elementos estigmatizantes também foram re-significados, a ponto de não representarem mais a justificativa para ganhos secundários.
 
Em outra ocasião, as atitudes inflexíveis do pároco local levaram ao comprometimento do vínculo com a igreja e reflexos nas relações internas do Raízes, já enfraquecidas pela própria configuração em que se encontra o Grupo, no que se refere aos estágios do processo grupal.
 
Tais obstáculos se apresentaram como fator prejudicial, uma vez que acarretaram oscilações ao movimento do Grupo. O Raízes passou por dificuldades objetivas que funcionaram como entraves ao desenvolvimento do processo grupal, mesmo que em algumas ocasiões, o fato de entrar em contato com os próprios limites, pudesse gerar, posteriormente, uma possibilidade de progresso. Como conseqüência direta, este processo influenciou no trabalho de transmissão da memória coletiva.
 
A elaboração e re-elaboração dos conteúdos tornaram-se precárias, principalmente diante das dificuldades de vínculo com a Igreja Católica. Dessa forma, a memória se desagrega e o grupo perde suas referências, que são essenciais para a manutenção do processo grupal. Além disso, a transmissão da memória coletiva fornece o alicerce cultural, que é a base para produção da identidade.
 
Se a base, a referência deste Grupo encontra-se abalada, existe uma dificuldade iminente no processo de transmissão da memória coletiva. E quando este não pode, por algum motivo ser concretizado, seus objetivos vão se perdendo através dos tempos, não ocorrendo o fortalecimento da identidade de negritude, essencial para o desenvolvimento do processo grupal, quando nos referimos a grupos de consciência negra como o Raízes da Terra.
 
Referências bibligráficas
 
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Notas
 
(1) O LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial é um laboratório constituído por pesquisadores de várias áreas do Departamento de Psicologia da UFSJ, a saber, Psicologia Social, Psicologia da Educação, Psicologia do Trabalho e Psicologia Clínica; pesquisadores do Departamento de ciências Sociais e do Departamento de ciências Naturais. Conta, ainda, com o trabalho de membros associados, profissionais não pertencentes aos quadros da UFSJ e pesquisadores de outras universidades. Nossos projetos de trabalho propõem o desenvolvimento de ações articuladas de ensino, pesquisa e extensão. [volta]
 
(2) O MOSCAB - Movimento Sãojoanense de Cultura Afro-Brasileira, foi criado em 17 de abril de 1987, sob estímulo do Movimento Cultural Feminino e incentivo da Universidade Federal de São João Del Rei, objetivando trabalhar com movimentos afrodescendentes da região, com vistas à produção de identidades coletivas. O Grupo Raízes da Terra se originou destes trabalhos.  [volta]
 
(3) O termo inculturação denota uma re-elaboração cultural da história e das tradições do povo de origem, bem como de conteúdos religiosos de outras Igrejas. A inculturação religiosa proporciona uma releitura da própria religião, partindo-se de uma re-interpretação crítica de conteúdos religiosos diferentes. As contradições e avanços referentes às trocas de informações entre as culturas, emergem na forma de uma configuração única de vivência religiosa, funcionando como veículo de construção social. Dessa forma, surge uma nova vivência, não desprezando nenhum dos elementos fundantes de cada religião. A inculturação pode significar a manutenção de uma identidade social, cultural e religiosa de todas as instituições envolvidas (Pereira, 2000).  [volta]
 
(4) Essa identidade afrodescendente, segundo Gilroy (2002), é assinalada pelas trocas culturais realizadas através do Atlântico, mais influenciada por uma relação identitária com as próprias raízes, do que com um processo de transformação e mediação. Para Munanga (1988), assumir uma identidade afrodescendente significa transformar o histórico sentido pejorativo do termo numa fonte de orgulho, momento em que o afrodescendente se afirma pela valorização dos vários elementos das culturas africanas.  [volta]
 
Nota sobre os autores
 
Marcos Vieira Silva, Psicólogo, Mestre em Educação pela UFMG e Doutor em Psicologia Social pela PUC-SP, é professor da Universidade Federal de São João del-Rei. Trabalha com pesquisa e extensão em Psicologia Social Comunitária. Atualmente é o Coordenador do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial da UFSJ. Contato: mvsilva@ufsj.edu.br
 
Danielle Laísa Oliveira Paiva, estudante do 13º período do Curso de Psicologia da UFSJ, estagiária do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial da UFSJ, junto ao Grupo de Inculturação Afrodescente Raízes da Terra. Contato:  danielle@psicologia.ufsj.edu.br
 
Sheila Ferreira Miranda, estudante do 11º período do Curso de Psicologia da UFSJ. É bolsista de Iniciação Científica PIBIC-CNPq/UFSJ e estagiária do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial da UFSJ, junto ao Grupo de Inculturação Afrodescente Raízes da Terra. Contato: sheila@psicologia.ufsj.edu.br
     
Data de aceite: 30/09/2005
Data de recebimento: 29/07/2005

Memorandum 9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/silva01.htm

 

 

 

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