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Memória e identidade afrodescendente: considerações a partir de um projeto de extensão universitária
Memory and identity in afro-descendants: considerations based on a university extra-mural project
Marcos Vieira Silva
Danielle Laísa Oliveira Paiva
Sheila Ferreira Miranda
Universidade Federal de São João del-Rei
Brasil
Resumo
O texto apresenta questionamentos e considerações produzidos a partir de um trabalho de extensão desenvolvido ao longo de oito anos, com o Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, na cidade de São João del-Rei, MG. As reflexões e análises são resultados construídos a partir de diários de campos dos estagiários, uma entrevista semi-estruturada realizada com a Coordenadora do Grupo e dados da ata de registro civil do Grupo. Articulam-se elementos teóricos ligados aos conceitos de produção da identidade afrodescendente e memória coletiva, bem como às vicissitudes sofridas pelo Grupo, principalmente no que se refere às manifestações de preconceito, atuando como entraves ao desenvolvimento do processo grupal e, como conseqüência direta, influenciando no trabalho de transmissão da memória coletiva, processo este que fornece o alicerce cultural, a base para a produção da identidade grupal.
Palavras-chave:
memória coletiva; psicologia comunitária; afrodescedência; identidade grupal |
Abstract
This
work presents considerations and questionings which
resulted from an extra-mural project developed along
eight years by the Laboratory of Research and
Psychosocial Intervention at the Federal University of
São João del Rei (LAPIP/UFSJ) with the Group of
Afro-descendant Inter-acculturation Raízes da Terra
in São João del Rei (Minas Gerais). The reflections
and analyses presented result from the field journals
of trainees, on a semi-structured interview made with
the Coordinator of the Group and on data taken from
the legal registration minutes of the Group.
Theoretical elements are articulated with concepts of
creation of Afro-descendant identity and collective
memory, as well as the predicaments the Group had to
face, mainly in reference to manifestations of
racial prejudice, which hindered the
development of the grouping process and influenced the
transmission of collective memory, the process which
yields the cultural support that is the basis for the
production of group identity.
Keywords:
collective
memory; community psychology; afro-descendant; group
identity
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- Introdução
-
- Através dos estágios
e projetos de extensão da Área de Psicologia Social Comunitária,
o LAPIP - UFSJ (1)
vem desenvolvendo práticas em comunidades, com perspectivas de
construção de autonomia dos grupos atendidos/investigados,
procurando fazer com que eles sintam-se capazes de exercer suas
potencialidades através da problematização e da conscientização
de seus limites, anseios e do desenvolvimento do seu processo
grupal. Procura-se criar possibilidades de questionamentos que levem
os próprios grupos ao encontro de alternativas, que os auxiliem na
busca de soluções para seus problemas e lutas cotidianas.
-
- Neste contexto de exercício de práticas
comunitárias, existem grupos que atuam através da militância e/ou
de um trabalho social de conscientização acerca de suas origens, o
que inclui a realização de festas temáticas e estudos sobre a
afrodescendência no Brasil, em contraposição à marginalização
histórica exercida pelo contexto social vigente. Grupos que têm
por objetivo a reconstrução da memória das culturas de origem
africana e, conseqüentemente, a produção de uma identidade
afrodescendente: os também chamados grupos de consciência negra.
-
- As
intervenções com o Grupo de Inculturação Afrodescendente Raízes
da Terra, da cidade de São João del-Rei, MG, vêm sendo
desenvolvidas desde 1997, com o apoio de métodos de intervenção
próprios da pesquisa-ação, pesquisa-participante, análise
institucional e grupos operativos. Metodologias que proporcionam
dispositivos facilitadores para a elucidação das contradições da
realidade vivenciada e possibilitam agir de modo mais eficiente. São
utilizados, também, recursos de imagem, dinâmicas de grupo e
oficinas fundamentadas nos métodos de intervenção já citados,
dando-se um maior enfoque, atualmente, às oficinas de grupo.
-
- É
com base no material de campo coletado durante estas intervenções,
no período de 1997 a 2005, referente à história do Grupo, que as
reflexões e análises decorrentes se articularam. Utilizou-se, para
isto, uma entrevista semi-estruturada realizada com a Coordenadora
do Grupo, dados da ata de registro civil do Raízes e diários de
campo produzidos pelos estagiários.
-
- As práticas desenvolvidas no Grupo
possibilitaram um trabalho de levantamento de suas principais
características, no que concerne ao modo de organização e
funcionamento do mesmo, além de um breve levantamento histórico,
que possibilitou a concretização das análises efetuadas.
-
- Memória,
identidade e preconceito: considerações acerca da
afrodescendência no Brasil
-
- Ao
longo da história vem se constituindo uma vasta literatura sobre
afrodescendência,
bem como sobre os movimentos de resistência das culturas
africanas que migraram para o Brasil. Alguns trabalhos ressaltam a
questão do impacto psicossocial causado pela presença do
colonizador que, inicialmente, tentava impor suas tradições
através de uma ideologia baseada na incorporação de seus
valores e na conseqüente submissão do negro. Evidentemente,
houve um fracasso do ideal de branqueamento físico, mas a
ideologia proveniente desse processo histórico foi mantida no
imaginário coletivo brasileiro, tanto daqueles considerados
negros quanto dos brancos e mestiços, de maneira que todos
compartilham dos mesmos estereótipos; prejudicando o ideal dos
movimentos sociais na busca pela produção crítica de uma
identidade afrodescendente (Munanga, 2004).
-
- Essa
ideologia é disfarçada por mecanismos “...subliminares de
encobertamento permeados por um aparente tratamento cordial”
(Ferreira, 2002, p. 2), uma farsa sobre o preconceito, o que o torna
mais difícil ainda de ser localizado e compreendido.
Todavia,
em contraponto a qualquer tipo de cristalização e inércia das forças
ideológicas e das tradições, esses movimentos sobrevivem, na
tentativa de produzir uma identidade individual e coletiva através da
reconstrução da própria história, origens e peculiaridades de cada
grupo. E para uma percepção mais apurada desse processo, faz-se necessária
uma reconstrução histórica. (Munanga, 2004).
-
- Em
torno do século XVI, iniciaram-se as grandes navegações, que proporcionaram ao homem europeu
um impacto no contato com tanta diversidade. Diante desta nova
realidade, houve um conseqüente espanto, pois as novas concepções de
realidade oferecidas demandavam uma reconstrução de valores. As tradições
já não eram suficientes para ordenar e oferecer segurança e o
pensamento moderno não era capaz de suportar tanta ambivalência (Ferreira,
2002).
-
- A
colonização brasileira foi marcada pelo pensamento moderno, imbuído
por concepções “enraizadas na busca da ordem e na eliminação da
ambivalência”. (Ferreira, 2002, p. 05). Foram utilizadas estratégias
violentas e excludentes, visando o controle e constituição de um padrão
humano considerado desejável. Como
conseqüência desse processo escravista houve, no
início do século XX, a disseminação
de uma ideologia de assimilação, defendida pelos intelectuais
brasileiros e herdada do pensamento moderno. Essa ideologia difundiu a
idéia de que os negros e os índios só poderiam ascender socialmente
na condição de se apropriarem dos valores dominantes, isto é,
incorporando elementos da tradição européia, em detrimento da própria
cultura, numa busca pelo embranquecimento (Munanga,
1988, 2004).
-
- Assim, os
colonizadores influenciados pela idéia da expansão do cristianismo,
difundiram uma ideologia calcada na incompreensão, depreciando a
cultura e os valores do negro, sem procurar entender sua organização
e, portanto, acreditando num caos e ausência de religiosidade desses
povos (Pereira, 2000).
-
- A
primeira justificativa surge através da missão colonizadora, esse peso
e essa responsabilidade que a sociedade colonial deveria assumir a fim
de tirar os negros da condição de selvagens, poupando-os do longo
caminho percorrido pelos ocidentais. Uma vez civilizados, os negros
seriam assimilados aos povos europeus considerados superiores, ou seja,
tornar-se-iam iguais aos brancos (Munanga, 1988, p. 13).
-
- A direção
do processo histórico, inevitavelmente, conjugou fatos que levaram esta
ideologia a um impasse. Admitir a assimilação seria igualar o negro ao
colonizador, extinguindo, portanto, sua condição privilegiada. Dessa
maneira, a ideologia do embranquecimento tornou-se incompatível com tal
situação, criando apenas desestabilidade cultural, moral e psíquica
para o negro. A desumanização praticada pelo branco não poderia em
nenhuma circunstância, atuar como meio de integração do colonizado
(Munanga, 1988).
-
- A assimilação
torna-se, então, um mito. O negro passa a buscar outros caminhos; a
princípio através de revoltas, onde quilombos e guetos surgem como
movimento contrário à ideologia do embranquecimento. Neste momento, as
revoluções localizadas ainda possuíam caráter discriminatório, na
medida que disseminavam a produção do preconceito, não havendo reflexões
que compreendessem esta dimensão (Munanga, 1988).
-
- No
início do século XX, alguns escritores negros iniciam, nos Estados
Unidos, um movimento de conscientização conhecido como Renascimento
Negro, que se estende, “...cobrindo toda a África negra e os
negros em diáspora, isto é, as Américas.” (Munanga, 1988, p. 35).
Neste momento histórico, o negro inicia uma luta pelo processo de
reconstrução da sua identidade, criticando os preceitos europeus. A
ideologia do embranquecimento é abandonada, havendo rejeições
intensas a qualquer atitude que aponte para um compromisso com os
valores culturais do colonizador.
-
- Por
volta de 1930, começa a tomar corpo no Brasil, a aceitação, processo
no qual o negro assume sua cor, seus valores e sua cultura negada, em um
“...desejo urgente de contestar a marginalidade e descobrir uma
identidade.” (Munanga, 1988, p. 34). Posteriormente, os grupos de
consciência negra e outros movimentos relacionados à Igreja católica,
como CEBS, pastorais do negro, passam a representar a expressão deste
fenômeno e toda a luta pela emancipação dos povos historicamente
oprimidos; luta contra o preconceito e pela assunção de uma identidade
afrodescendente. Nos anos 70, principalmente a partir de Abdias do
Nascimento, militante e
intelectual negro, os movimentos afrobrasileiros defendem a idéia de
consolidação de uma sociedade pluriracial, ou seja, a
sociedade brasileira só será efetivamente democrática e pluriracial
se houver igualdade econômica, social e cultural para todas as etnias.
(Munanga, 1998, 2004).
-
- São
os movimentos dentro e fora do universo das instituições religiosas
que primam pela busca da identidade étnica e cultural, para que os
indivíduos, homens e mulheres, nesta sociedade, possam, a partir daí,
buscar resgatar a sua cidadania, seu valor de pessoa humana (Pereira,
2000, p. 6).
-
- É
através dos grupos, ou seja, das relações sociais que cada indivíduo
configura uma identidade pessoal, em toda sua complexidade. Uma busca de
identidade é sempre um fenômeno social, uma constante transformação,
uma metamorfose. Portanto, as
identidades se relacionam dialeticamente com a sociedade, na medida em
que se constituem a partir dela e são constituídas por ela. “Para
entendermos a identidade, precisamos entender o próprio processo de
produção da identidade” (Ciampa, 1990, p. 159).
-
- E como parte desse processo de produção da
identidade, mais especificamente de uma identidade afrodescendente, o
processo de transmissão da memória coletiva irá atuar de forma
decisiva, na medida que esta envolve não só uma realidade individual,
mas também uma incorporação de elementos construídos coletivamente.
Então, a memória individual é reiterada pelas lembranças coletivas,
como ponto de referência fixado pelo âmbito social (Halbwachs, 1990;
Munanga, 1988).
-
- “O
tempo da memória é social, não só porque é o calendário do
trabalho e da festa, do evento político e do fato insólito, mas também
porque repercute no modo de lembrar” (Chauí, 1987, p. 30).
-
- Tendo
em vista a dimensão social da memória, Bosi (1987), chama a atenção
para o fato de o grupo social adquirir o status de suporte desta, quando
há uma identificação e conseqüente movimento de busca pelo passado
compartilhado. Dessa forma, para Halbwachs (1990), a memória individual
está compreendida na memória coletiva, na qual a identificação e
conseqüente pertença ao grupo atuam como fatores determinantes em sua
fundamentação.
-
- A
relação de pertença ao grupo produz o que se pode denominar vínculo.
O vínculo compreende a maneira específica pela qual o indíviduo se
relaciona com a coletividade. Então, todas as relações sociais são
permeadas pela maneira como os indivíduos percebem e atuam,
dialeticamente, num interjogo de assunção e
atribuição de papéis (Pichon-Rivière, 1982).
-
- Se
tais relações de identificação e pertença ao grupo encontram-se
alteradas, significa que a produtividade grupal também se alterou. Um
grupo de baixa produtividade tende a ser efêmero e logo se dispersa;
conseqüentemente, as lembranças grupais serão inconsistentes. A função
eminentemente histórica dos grupos, neste sentido, refere-se à sua
capacidade de conservação e transformação das relações sociais
vigentes, que são efeito das relações de produção adquiridas.
(Bosi, 1987; Lane, 1989b).
-
- Outro
fator que interfere na transmissão da memória coletiva, diz respeito
à constante elaboração e reelaboração de conteúdos. Para Bosi
(1987), torna-se necessária uma constante comunicação e é através
do confronto e recepção de conteúdos individuais e grupais que a memória
ganha consistência.
-
- Dessa
forma, a inconsistência dos conteúdos transmitidos através da memória
coletiva opera como elemento deflagrador do processo de desenraizamento.
Este pode ser definido como uma condição desagregadora da memória, na qual indivíduo e grupo perdem suas referências. Quando o
trabalho de transmissão da memória coletiva não ocorre, o significado
das recordações é esvaziado de sentido, ocasionando a espoliação das lembranças (Bosi, 1987).
-
- O vazio no sentido das lembranças, ou
a sua espoliação, acontece
também quando a memória encontra obstáculos concretos. A memória
coletiva sofre as vicissitudes da evolução do processo grupal,
dependendo da interação entre os membros, dos movimentos de mobilização
e desmobilização, dos preconceitos gerados pelos estigmas existentes
no interior do grupo e sofridos por ele; principalmente quando se quer
falar de grupos minoritários, como grupos de consciência negra (Bosi, 1987; Silva, 2000).
-
- Retomando a
questão histórica do impacto psicossocial causado pelo branco, um
grupo de consciência negra é sempre um grupo historicamente
estigmatizado. A teoria do estigma surge como uma ideologia para
explicar a inferioridade do negro, buscando justificar o perigo que esta
classe representa, através de uma racionalização que encobre o real
significado da diferença (Goffman, 1988).
Goffman (1988),
atentando para os estigmas tribais de raça, defende sua transmissão
através da ação cultural e da linhagem, que podem estender-se a toda
uma comunidade, que como tal pode praticar (utilizando este atributo
para obter ganhos secundários) e sofrer diversas configurações de uma
atitude preconceituosa.
O
termo estigma, portanto, será usado em referência a um atributo
profundamente depreciativo... na realidade, um tipo especial de relação
entre atributo e estereótipo... em parte porque há importantes
atributos que em quase toda a nossa sociedade levam ao descrédito
(Goffman, 1988,
p. 13).
Tendo em vista o modo como a sociedade concebe indivíduos estigmatizados, o encontro entre estes grupos e o meio social abrangente, coloca em evidência o efeito do estigma, fator que provoca uma situação angustiante para todos os envolvidos. O estigmatizado, ao entrar numa situação social mista, pode passar a responder de maneira defensiva, tentando aproximar-se com retraimento ou através de uma atitude hostil, incômoda aos outros, temendo a rejeição. O indivíduo
normal, diante da sua impotência vista no estigmatizado, por não conseguir lidar com as diferenças, acaba assumindo uma postura excessivamente benevolente ou de distanciamento, o que caracteriza uma atitude, mesmo não intencional, de preconceito (Goffman, 1988).
O preconceito
pode se manifestar de duas formas. A primeira denota uma ausência de
reflexão, manifesta por uma falsa onipotência. O preconceituoso opera
num rompimento, numa tentativa de afastar aquilo que percebe como ameaça,
o que corresponde à sua própria impotência. A outra configuração
assumida é a da rejeição, onde o indivíduo enrijecido despreza
aquilo que julga impróprio, inferior, encontrando respaldo em algum
valor preestabelecido pelo âmbito social (Crochick, 1995).
Então, o
estigma pode funcionar como referência à formação de grupos. Dentre
estes, estão os de consciência negra, na medida em que constituem uma
forma na qual tais indivíduos podem se apoiar e fortalecer sua
identidade, na igualdade e diante das diferenças e também contestar a
situação de marginalidade, na luta por uma emancipação e pela assunção
de valores que historicamente foram depreciados (Goffman, 1988).
Todavia, esta
constituição grupal também pode designar uma fuga, na medida em que o
grupo pode ser utilizado como amparo, escudo contra uma discriminação
já prevista. Quando tais indivíduos apresentam dificuldades de elaboração,
eles passam a se apoiar na situação grupal como mecanismo de defesa.
Neste contexto, pode-se atestar a hipótese de Goffman (1988), com relação
aos ganhos secundários que o estigma pode proporcionar. O autor elucida
o momento em que o indivíduo tende a uma vitimização
e utiliza seu fracasso como desculpa para evitar o contato com as
adversidades decorrentes de sua condição.
Quando o grupo
perde seus referenciais e prende-se aos obstáculos psicossociais
acarretados pela situação estigmatizante, o desenvolvimento do
processo grupal é prejudicado, acarretando uma perda dos objetivos que
constituem sua formação inicial. E se a memória coletiva sofre as
vicissitudes de tal desenvolvimento, os conteúdos transmitidos serão
inconsistentes, ocorrendo o processo de desenraizamento (Bosi, 1987;
Lane, 1989b; Goffman, 1988).
Um grupo que apresenta inconsistência
na transmissão de sua história e, portanto, da memória coletiva,
provavelmente terá dificuldades em fortalecer o processo de produção
de uma identidade, visto que esta é a união dialética de fatos biográficos
e sociais (Bosi, 1987; Goffman, 1988).
Segundo
Ciampa (1990), atividade, consciência e identidade são três
categorias fundamentais para a Psicologia Social, na medida em que
permitem revelar aspectos essenciais ao entendimento da relação dialética
indivíduo/sociedade.
A
atividade é um processo de produção constante, no qual indivíduo e
grupo transformam o meio social e são transformados por ele. A percepção
de tais modificações irá gerar a consciência, que pode ser
considerada um dos fatores decisivos para que o grupo seja produtivo e,
portanto, engajado na tarefa. Dessa maneira, este processo pode se
referir à forma como os grupos transmitem sua memória histórica, na
medida em que as relações de produção e o nível de consciência
grupal influenciam diretamente na transmissão da memória coletiva.
(Bosi, 1987; Ciampa, 1990; Lane, 1989a).
O
processo de transmissão da memória coletiva aponta para um direito
humano esquecido, denominado enraizamento,
no qual o indivíduo e grupo constroem seu alicerce cultural, sua
identidade através de uma revitalização deste patrimônio imaterial.
O conceito de identidade irá se calcar por meio da atividade e consciência,
tendo em vista que o indivíduo é o que realiza e só irá se
distinguir dos outros através do reconhecimento que tem de si. Esta
consciência também se adquire a partir das relações sociais
estabelecidas; logo identidade “é a articulação entre diferença e
igualdade” (Ciampa, 1990, p.138) (Bosi, 1983; Unesco, 2003).
O
enraizamento, visto como direito humano, aponta para a importância de
se compartilhar lembranças e do sentido de trabalho deste processo,
onde lembrar é trabalhar, pois não se revive uma lembrança, ela é
reconstruída, ampliada com imagens e idéias de hoje a partir das
experiências do passado. A revitalização da memória histórica de um
grupo ganha, neste contexto, status de trabalho
(Chauí, 1987).
Em
se tratando de grupos de consciência negra, este convite ao
reavivamento da memória coletiva adquire um sentido de valorização de
culturas africanas que, ao longo de séculos, no Brasil, foram varridas
para o esquecimento. A transmissão de valores próprios a essas
culturas gera a conscientização da importância de pertencimento a uma
etnia e convidam à assunção de uma identidade
afrodescendente (Munanga,
1988).
Histórico
e funcionamento do Grupo Raízes da Terra: implicações com o trabalho
da memória coletiva e identidade grupal
O
Grupo Raízes da Terra é constituído por moradores do bairro São
Geraldo, na cidade de São João del-Rei, Minas Gerais. A comunidade
localiza-se na periferia da cidade, numa das regiões
menos privilegiadas, do ponto de vista econômico e social.
Tal
Grupo realiza um trabalho de reconstrução e transmissão de elementos
de culturas africanas, através de
encontros quinzenais, que geralmente incluem estudos sobre a presença e
participação africana no Brasil e suas raízes históricas.
Destacam-se, entre as reflexões realizadas, aquelas que abordam a influência
das religiões de origem africana no estabelecimento dos centros de
candomblé e umbanda no Brasil.
As
reuniões são utilizadas, também, para organização de festas que já
se tornaram tradicionais, como o Dia
Nacional da Consciência Negra (Festa do Zumbi), Festa do Rosário,
Abolição da Escravatura, Festa de São Sebastião e Festa do Divino.
Estes momentos se revestem de grande importância para o Grupo, tanto
por seu significado histórico, quanto pelo fato de propiciarem um espaço
de intensa participação e envolvimento da comunidade local, o que para
eles significa também, a visibilidade e reconhecimento do trabalho
grupal realizado.
O
Raízes mantém um grupo de dança composto por crianças e
adolescentes, que se apresenta regularmente durante as festividades que
promove: o Grupo de Dança das Meninas. As roupas e penteados característicos
exibidos nestes eventos constituem uma produção do próprio grupo.
Também é importante ressaltar a forte presença e a importância da música,
elemento indispensável na realização das reuniões e festas
cotidianas. As composições ou adaptações
de cantos religiosos são de autoria dos seus membros.
Cabe salientar que nos últimos anos é cada vez maior o número de
convites que recebem para se apresentar em eventos municipais e
regionais, como o Inverno Cultural, festival promovido pela UFSJ que
integra a programação do Circuito de Festivais de Inverno da
Secretaria de Cultura do Estado de Minas Gerais.
Dentre
os membros com maior tempo de participação no Grupo, alguns possuem um
desempenho de forte impacto sobre os demais, no sentido de funcionarem
como referência, organizadores das atividades, incentivadores. Estes são,
também, considerados os membros mais antigos, coordenadores e
fundadores, os que de alguma forma atuam no incentivo à manutenção do
processo grupal e de suas tradições.
De
acordo com dados coletados, através da Coordenadora e de outros
integrantes, o Raízes vinha se organizando em reuniões intermitentes
desde 1995, todavia, sua primeira ata de registro formal foi instituída
em 26 de fevereiro de 1996, já considerando o Grupo com um ano de existência.
“Nós consideramos que o Grupo tem 10 anos, porque antes da primeira
ata, já movimentávamos as reuniões” (Entrevista gravada em
27/05/05).
No
momento em que tal declaração a respeito da trajetória do Grupo é
feita, torna-se possível perceber a implicação de outros membros
nesta afirmativa, de forma que a memória individual
é reiterada pelas afirmações de outros membros do grupo,
transformando-se em memória coletiva.
Certamente,
se nossa impressão pode apoiar-se não somente sobre nossa lembrança,
mas também sobre a dos outros, nossa confiança na exatidão de nossa
evocação será maior, como se uma mesma experiência fosse recomeçada,
não somente pela mesma pessoa, mas por várias, (Halbwachs, 1990,
p.25).
O
contato e a identificação com os propósitos coletivos proporcionam um
sentimento de fusão, onde o passado de cada um transforma-se num
passado comum. Assim, o Grupo, através da identificação e pertença
que permeiam suas relações, busca a reconstrução de uma memória que
se torna coletiva neste momento. O depoimento da Coordenadora
confirma-se na declaração dos demais membros (Halbwachs, 1990).
Esta
identificação com os propósitos da coletividade pode indicar a existência
do vínculo, visto que a Coordenadora assume o papel de porta-voz de uma
história, mas sempre buscando respaldo nas lembranças coletivas (Halbwachs,1990;
Pichon-Rivière, 1982).
Retomando
o histórico, a idéia de fundação do Raízes da Terra, surgiu a
partir do momento em que a Coordenadora começou a freqüentar reuniões
do único grupo de consciência negra existente na cidade, o extinto
Moscab (2). As reflexões tinham como temas centrais a
história do negro em São João del-Rei, seu trabalho, valor e beleza,
bem como a arte realizada por eles. Existia uma ênfase no valor do
patrimônio imaterial, visto que nas reuniões do Moscab, era pedido que
os integrantes levassem fotografias antigas e procurassem reconstruir
sua história pessoal através do relato dos mais velhos.
Segundo
Chauí (1987), os velhos representam a fonte da memória, lugar de
origem de uma cultura a ser preservada; onde o trabalho de reflexão e a
localização são essenciais para que as lembranças ganhem consistência.
Neste momento inicial, os relatos dos mais velhos eram concebidos como
elementos centrais no trabalho da memória do grupo e é através dos
valores defendidos pelo Moscab, que o Grupo Raízes da Terra irá se
fundamentar.
Em
uma das reuniões do Moscab, foi pedido aos participantes, que
procurassem organizar pequenos núcleos de discussão, nos bairros, como
forma de difundir a proposta. Segundo a Coordenadora
...fizeram aqui a primeira
reunião... puseram
nossas meninas no salão do São Geraldo pra dançar... viram que as
nossas meninas tinham um molejo... Viram então, que era um trabalho que
tinha futuro e pediram que eu freqüentasse as reuniões do Moscab, mas
que continuasse o trabalho com o Grupo aqui no bairro. (Entrevista
gravada em 27/05/05).
A
sugestão foi prontamente aceita no bairro São Geraldo, de modo que o
Grupo foi tomando maiores proporções.
O
Grupo, que até então era apenas um pequeno núcleo de discussões,
torna-se independente e começa a evidenciar traços de uma identidade
própria, na medida em que há valorização e prestígio externo de
peculiaridades referentes à maneira de dançar das adolescentes.
Fortalecidos pelo reconhecimento, os integrantes passam a encontrar
motivação para concretizar seu projeto.
Logo
de início, com o auxílio do Moscab e do pároco local, houve a realização
de uma missa inculturada (3).
O evento foi extremamente criticado, alvo de vários ataques da
comunidade, sendo entendido como manifestação contrária às regras da
Igreja Católica e classificado como “macumba”:
De fato, ainda é muito forte na
sociedade os sentimentos de preconceito - levando as pessoas a
elaborarem juízos acerca do outro, sem nem mesmo conhecer o mínimo que
seja da sua cultura, organização social e prática religiosa,
promovendo a discriminação social, econômica, cultural e religiosa.
Nesta realidade, nega-se profundamente o valor do outro até mesmo
enquanto pessoa humana, haja vista os diversos casos de discriminação
racial que acontecem diariamente na sociedade e os de caráter
religioso, onde se considera a religião do outro como diabólica e
tantas outras afirmações (Pereira, 2000, p. 6).
Pode-se
perceber, neste contexto, uma atitude preconceituosa da comunidade local
para com o Raízes, tendo em vista resquícios de uma ideologia da
superioridade cultural, presente no processo de consolidação da
cultura religiosa, estabelecida no Brasil colonial. Neste momento,
pode-se considerar que houve um movimento de recusa, visto que a
comunidade não procurou conhecer os valores do Grupo (Munanga, 1988).
“Assim, na
transmissão da cultura para as gerações mais jovens, já são
transmitidos preconceitos: idéias que devem ser assumidas como próprias
sem que se possa pensar na sua racionalidade e conseqüente adesão ou não
a elas” (Crochick,1995, p.18).
Todavia,
o Raízes insistiu na promoção das missas inculturadas, de forma
gradual, por influência do pároco local. Durante as missas
tradicionais, eram intercalados momentos de rituais afro, de modo que a
comunidade foi, aos poucos, assimilando a idéia. A partir disso, foi
criado um espaço para a realização dessas missas, que passaram a ser
esporádicas.
Diante
dessa circunstância, procuraram organizar um trabalho de
desenvolvimento social no bairro, que funcionou também como estratégia
de inserção: “...
e a gente sempre se infiltrando na comunidade, desenvolvendo trabalhos
sociais, mas com a idéia de que o grupo fosse reconhecido;
acontecesse!” (Entrevista gravada em 27/05/05).
Uma
das parcerias estabelecidas pelo Raízes da Terra, com o objetivo de
ampliar sua inserção na comunidade e nas atividades desenvolvidas pela
Igreja Católica foi constituída com um grupo de jovens do bairro São
Geraldo, o JULIC - Jovens Unidos pela Libertação em Cristo – que
funcionava na paróquia do bairro São Geraldo e se reunia regularmente,
discutindo questões voltadas para realização de tarefas de cunho
social e participando das atividades paroquiais. Os membros deste grupo
também eram participantes do Grupo Raízes.
Em
06 de janeiro de 2001 foi pela primeira vez apresentada a possibilidade
de término do JULIC, frente a uma ameaça de desistência da coordenação,
que possuía ímpeto centralizador. As reuniões mudaram sua dinâmica,
no período em que o coordenador do grupo passou a organizá-las,
valorizando momentos de oração em detrimento de um trabalho mais dinâmico
que despertasse o interesse de seus integrantes. Isto fez com que o
grupo, aos poucos fosse se extinguindo.
Entretanto,
mesmo com o fim do grupo, os membros do JULIC não deixaram de
participar das reuniões organizadas pelo Raízes, atestando a
identificação destes jovens com os objetivos de resgate de elementos
das culturas africanas que migraram para o Brasil. Além disso, o Raízes
da Terra passava a apresentar encontros mais dinâmicos e atrativos para
os jovens, visto que o Grupo de Dança das Meninas realizava ensaios
regulares, portanto, a participação do subgrupo adolescente era mais
expressiva, diante da constante promoção de festas e eventos na
comunidade.
A
utilização de uma tática de inserção demonstra a preocupação
permanente do Raízes em se afirmar diante da sociedade; ao mesmo tempo
em que estabelece estratégias de resistência às adversidades
impostas. Tal característica se concretiza numa luta pacífica,
objetivando retificar a marginalidade histórica imposta pelo meio
social. Ao mesmo tempo, o Grupo busca emancipar-se e fortalecer sua
identidade, ganhando forças na aceitação da comunidade local.
Outro
fato marcante na história do Grupo foi a escolha do primeiro nome:
Grupo de Consciência Negra Raízes da Terra. A especificidade deste
momento deve-se a uma intensa participação, incluindo todos os 52
integrantes do grupo, quando este iniciou suas reuniões, no ano de
1995. O nome Raízes da Terra foi escolhido a partir de uma votação.
Significa, para o grupo, a sua origem, relacionada ao próprio bairro.
Consciência negra é consciência de pertencimento ao grande grupo
composto de africanos e seus descendentes, (4)
fundada através da memória da escravidão e de sua herança ideológica
racista, disseminada nos países africanos e nos da diáspora (Gilroy,
2002).
No
mês de novembro de 2000, após um período de participação de
elementos da direção do grupo em encontros do Movimento Negro
Unificado e de Comunidades Eclesiais de Base, houve uma mudança do nome
anterior, ocasionada por discussões acerca do processo de inculturação.
Neste contexto, o até então
Grupo de Consciência Negra Raízes da Terra percebeu-se numa atitude
excludente tanto quanto a própria Igreja Católica e pessoas que
praticavam diversas formas de racismo. Essa reflexão gerou uma atitude
de mudança
no grupo,
culminando com o estabelecimento de um novo nome: Grupo de Inculturação
Afrodescendentes Raízes da Terra. A alteração da nomenclatura,
simultaneamente, provocou uma mudança de posição, tendo como conseqüência
imediata uma revisão crítica de suas relações com a Igreja Católica.
Uma
das expressões mais significativas desse processo é a realização
mensal (e não mais esporádica) de uma missa inculturada. O evento
possibilitou um intercâmbio de valores, estabelecendo vínculos e
parcerias satisfatórios tanto para o Raízes quanto para a Igreja Católica
local. A participação nas missas foi se tornando cada vez mais
intensa, assinalando uma maior aceitação dos seus valores e de sua
história, bem como uma conquista mais efetiva de seu espaço social.
A
possibilidade de refletir criticamente sobre sua condição de grupo
estigmatizado, gerou uma nova concepção de valores no Raízes, uma vez
que o Grupo passou a não buscar mais em sua condição, elementos que
pudessem justificar uma inferioridade para a consecução de ganhos
secundários. Este momento foi essencial no desenvolvimento do processo
de conscientização do Grupo, pois a percepção do próprio
preconceito gerou uma postura de maturidade, de modo a não sustentar
mais nenhuma forma de preconceito, interno ou externo. (Goffman, 1988).
Todo
esse processo foi fundamental, também, para o fortalecimento da
identidade afrodescendente, de
modo que os propósitos grupais foram reiterados a partir de uma busca
mais efetiva de parceiros eventuais, que até então eram vistos como
oponentes. Conseqüentemente, houve uma mobilização mais efetiva da
comunidade local e da igreja, para
que fossem ao encontro dos valores do Grupo, até então depreciados.
Com o apoio da comunidade, tornou-se viável ao Raízes assumir, de
maneira mais contundente, sua condição de afrodescendência. Então,
através da re-significação dos propósitos grupais, também foram
re-significados os valores da negritude, tendo sido excluídos todos os
elementos negativos carregados ao longo da história (Munanga, 1988).
Um
dos fatores que evidenciam o reconhecimento social conquistado pelo Raízes
da Terra é a parceria com o grupo de Maracatu Mucambo. Esta ocorre em
eventos culturais e datas comemorativas específicas, proporcionando junção
dos ritmos do Maracatu com cantigas já existentes no cotidiano do
Grupo. Outro fator que demonstrou a expansão do Raízes foi a
aliança com o Quilombo de São Benedito, no ano de 2003. Tal grupo,
também conhecido como Quilombo II, surgiu como um grupo de congado, e
acabou se tornando um grupo de reflexão acerca das questões da
afrodescendência, quando começou a se unir ao Raízes da Terra. O
grupo passou a organizar, em conjunto com o Raízes as tradicionais
festas e alternar reuniões de reflexão e planejamento de atividades
comuns, como as participações no Projeto de Extensão Populações
Afrodescendentes e Cidadania: Ações Interdisciplinares, financiado
pelo Programa de Fomento à Extensão Universitária do MEC – 2003,
também desenvolvido pela UFSJ, através do LAPIP e do Núcleo Malungo
de Pesquisa e Extensão, compreendendo a realização de oficinas de música,
memória e história, contação de histórias e fotografia.
Durante
todo esse processo de reestruturação, pode-se afirmar que o Grupo de
Inculturação Afrodescendente Raízes da Terra, passou por uma fase de
fortalecimento da sua identidade. O reconhecimento externo obtido atuou
como elemento deflagrador de um crescimento no nível de conscientização
do Grupo, que, utilizando-se da situação estigmatizante como referência
para sua constituição, articulou parcerias e reuniu forças para
enfrentar as condições adversas.
Nesta
dinâmica, tornam-se evidentes as constantes transformações que o
Grupo processa, quer seja na militância, na luta por estabelecer seu
lugar através das missas inculturadas, ou através da mudança de nome,
que culminou numa reavaliação de suas relações com a comunidade e
com a própria igreja católica. Ciampa (1990), defende a hipótese de
que identidade é metamorfose, em função de um contínuo
movimento de constituição e reconstituição, o qual pode ser
confirmado na trajetória do Raízes da Terra.
Todavia,
a partir do ano de 2003, percebeu-se que os vínculos do Grupo com a
igreja católica vinham se tornando cada vez mais carregados de contradições.
Isso porque, com a mudança de direção na paróquia, o atual padre vem
questionando a atuação do Grupo na comunidade e chegou a solicitar a
desocupação do salão comunitário.
Além disso, chegou a proibir a realização das missas
inculturadas, entrando em contradição com o ideal ecumênico difundido
pela própria Igreja Católica.
Diante
da dificuldade de se estabelecer o ecumenismo com as religiões não
cristãs, propõe-se o diálogo inter-religioso como uma alternativa. O
interessante é que, mesmo tendo como horizonte o diálogo, para alguns
setores das Igrejas cristãs esta relação é quase impossível ou
mesmo inexistente (Pereira, 2000, p. 2).
Mais uma vez o Grupo encontra
adversidades na vivência cotidiana das condições sociais vigentes;
pode-se perceber claramente, através da atitude do pároco local, uma
influência do processo histórico, resquícios de uma ideologia do
embranquecimento, em que a cultura e os valores do Grupo são
depreciados e incompreendidos. Constata-se, portanto, a presença de uma
atitude preconceituosa manifesta pela rejeição.
Este
episódio desencadeou no Grupo um processo de desmobilização, de forma
que as reuniões e as festas diminuíram sua freqüência, pelo fato de
não contarem mais com o apoio da Paróquia e pelos questionamentos à
utilização do salão comunitário.
Mesmo
com todas essas dificuldades, o Grupo vivencia momentos de afirmação
de sua cultura e amplia espaços de articulação com parceiros que
respeitam sua condição afrodescendente.
Talvez
a maior prova disso tenha sido a realização da festa do Divino Espírito
Santo em 2005. Trata-se de um evento tradicionalmente promovido com a
participação do Santuário do Senhor Bom Jesus de Matozinhos. Dessa
vez houve uma mobilização intensa de ambos os grupos envolvidos
diretamente, Quilombo de São Benedito e Raízes da Terra que, mesmo com
relações estremecidas, se organizaram com grande antecedência e
procuraram atrair parceiros para todas as atividades, mostrando aos
representantes da Igreja Católica, principalmente ao pároco do bairro
São Geraldo, sua força de organização e mobilização popular. O
Imperador do Divino, Sr. Nivaldo, um dos mais atuantes coordenadores do
Grupo Raízes da Terra, sucedeu no trono a Tadeu, um dos líderes do
Quilombo de São Benedito. Diversos setores das comunidades envolvidas
foram mobilizados. Vale destacar que a entrega da Coroa foi feita, pela
primeira vez em muitos anos de realização da festa, pelo Bispo
Diocesano de São João del-Rei, no altar principal do santuário. A
entrada do Imperador foi precedida de um cortejo com trajes afro, tendo
como principais participantes as meninas do Grupo de Danças do Raízes
da Terra. Todos os Membros do Grupo estiveram presentes e envolvidos com
a realização das festividades. Entre os participantes, grupos de
congado de São João e região, grupos de capoeira, grupos de maculelê,
o Maracatu Mucambo, representantes do candomblé e da comunidade católica
local, a Secretária Municipal de Cultura e o Prefeito Municipal.
O
evento se revestiu de grande importância para o Grupo, tendo em vista
as dificuldades e os preconceitos enfrentados. Contar com a participação
do Bispo foi uma vitória, um tapa
de luvas no pároco que vinha se mostrando tão intransigente.
Entretanto, após a intensa mobilização, a apatia volta a se fazer
presente e o Raízes continua a conviver com a pouca participação
cotidiana, característica dos períodos entre festas.
Estando
as relações de vinculação cotidiana comprometidas, como conseqüência,
as relações de vínculos intragrupais também são afetadas. Dessa
maneira, a produtividade grupal altera-se, havendo uma certa dispersão
por parte dos integrantes do Grupo.
Outro fator
que pode estar influenciando negativamente o desenvolvimento do processo
grupal e dificultando a transmissão da memória coletiva é a característica
de alta rotatividade na participação dos membros do Grupo. A princípio,
a ênfase no valor do patrimônio imaterial, era um dos objetivos
primordiais do Raízes. Observou-se que a transmissão da memória
coletiva não é mais um processo tão valorizado pelo Grupo, visto que
a maioria absoluta dos seus integrantes desconhece sua trajetória e os
objetivos. Este fator também tem contribuído para a evasão sistemática
de membros do Grupo.
Inicialmente,
devido ao movimento organizado como estratégia de inserção na
comunidade local, o Grupo atuava de maneira mais efetiva, realizando
festas, desfiles, momentos de comemorações nas missas católicas e
trabalhos sociais em parceria com a igreja local. Pode-se perceber que,
nos últimos dois anos o número de festas promovidas pelo Raízes vem
decrescendo e os trabalhos sociais diminuíram muito.
Portanto,
torna-se necessário que se façam reflexões acerca do processo
ocorrido, buscando a reestruturação do Grupo e, principalmente, de seu
processo grupal. Dessa forma, a cada período de trabalho, há
uma alternância de movimentos de mobilização e desmobilização da
tarefa, sendo possível relacionar diretamente este movimento com a época
festiva, visto que estes eventos regem sua dinâmica (Silva, 2000).
Conclusões
Diante deste processo, pode-se perceber que a
alta rotatividade do Raízes, o comprometimento do vínculo com a igreja
católica e a conseqüente alteração nas relações intragrupais atuam
como fatores de interferência na transmissão da memória coletiva, e
esta passa a não ser um fator tão valorizado pelo Grupo. Naturalmente,
ocorre a evasão de seus membros, tendo em vista que estes desconhecem
sua trajetória e os principais objetivos, inicialmente relacionados à
reconstrução e transmissão de elementos da cultura afrodescendente.
Se
a identidade grupal é constituída a partir de identificações com os
objetivos do grupo e com o líder, na medida em que os membros do Raízes
ignoram tais preceitos, esta fica comprometida, prejudicando o processo
grupal. Todavia, o papel da Coordenadora consiste em ser uma espécie de
liga que cimenta o alicerce para o Grupo, facilitando o processo de
identificação de alguns membros, o que permite que os objetivos e a
memória coletiva não sejam totalmente esquecidos, ainda que
transmitidos de maneira precária (Pichon-Rivière, 1991).
Observa-se
que o Grupo se encontra entre os estágios de grupo aglutinado e
possessivo, onde algumas decisões são tomadas e executadas pelas
lideranças e determinadas tarefas são distribuídas por estas, entre
os membros. Dessa forma, as idéias e ações da Coordenadora
representam um modelo para o Grupo (Lane, 1997b).
A
permanência nesse estágio prejudica o processo de transmissão da memória
coletiva, levando-se em consideração que esta acompanha os movimentos
de idas e vindas, mobilização e desmobilização do processo grupal.
Como exemplo, o Grupo enfrentou e enfrenta adversidades, principalmente
no que se refere às manifestações de preconceito.
O
preconceito sofrido no momento de busca da instituição das missas
inculturadas representou para o Raízes o primeiro obstáculo, já que
os objetivos grupais colidiam com a tradição local. A solução
encontrada foi a introdução gradativa de elementos afro nas missas
tradicionais, não esquecendo que neste período o Grupo contava com o
apoio do pároco local.
Inicialmente,
o estigma operou como fator de identificação na formação do Grupo,
um apoio para a contestação do estado marginal em que esta minoria pôde
encontrar referências para se fortalecer. Mais adiante, o próprio
Grupo percebeu-se numa atitude preconceituosa, re-significando seus propósitos,
na busca por parcerias. Este momento reflexivo foi fundamental, tendo em
vista que houve uma conscientização e a partir disso, os elementos
estigmatizantes também foram re-significados, a ponto de não
representarem mais a justificativa para ganhos secundários.
Em
outra ocasião, as atitudes inflexíveis do pároco local levaram ao
comprometimento do vínculo com a igreja e reflexos nas relações
internas do Raízes, já enfraquecidas pela própria configuração em
que se encontra o Grupo, no que se refere aos estágios do processo
grupal.
Tais obstáculos se apresentaram como
fator prejudicial, uma vez que acarretaram oscilações ao movimento do
Grupo. O Raízes passou por dificuldades objetivas que funcionaram como
entraves ao desenvolvimento do processo grupal, mesmo que em algumas
ocasiões, o fato de entrar em contato com os próprios limites, pudesse
gerar, posteriormente, uma possibilidade de progresso. Como conseqüência
direta, este processo influenciou no trabalho de transmissão da memória
coletiva.
A
elaboração e re-elaboração dos conteúdos tornaram-se precárias,
principalmente diante das dificuldades de vínculo com a Igreja Católica.
Dessa forma, a memória se desagrega e o grupo perde suas referências,
que são essenciais para a manutenção do processo grupal. Além disso,
a transmissão da memória coletiva fornece o alicerce cultural, que é
a base para produção da identidade.
Se a base, a referência deste Grupo encontra-se abalada, existe uma dificuldade iminente no processo de transmissão da memória coletiva. E quando este não pode, por algum motivo ser concretizado, seus objetivos vão se perdendo através dos tempos, não ocorrendo o fortalecimento da identidade de negritude, essencial para o desenvolvimento do processo grupal, quando nos referimos a grupos de consciência negra como o Raízes da Terra.
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Notas
(1)
O LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial é um
laboratório constituído por pesquisadores de várias áreas do
Departamento de Psicologia da UFSJ, a saber, Psicologia Social,
Psicologia da Educação, Psicologia do Trabalho e Psicologia Clínica;
pesquisadores do Departamento de ciências Sociais e do Departamento de
ciências Naturais. Conta, ainda, com o trabalho de membros associados,
profissionais não pertencentes aos quadros da UFSJ e pesquisadores de
outras universidades. Nossos projetos de trabalho propõem o
desenvolvimento de ações articuladas de ensino, pesquisa e extensão. [volta]
(2)
O MOSCAB - Movimento Sãojoanense de Cultura Afro-Brasileira, foi criado
em 17 de abril de 1987, sob estímulo do Movimento Cultural Feminino e
incentivo da Universidade Federal de São João Del Rei, objetivando
trabalhar com movimentos afrodescendentes da região, com vistas à
produção de identidades coletivas. O Grupo Raízes da Terra se
originou destes trabalhos. [volta]
(3) O
termo inculturação denota
uma re-elaboração cultural da história e das tradições do povo de
origem, bem como de conteúdos religiosos de outras Igrejas. A inculturação
religiosa proporciona uma releitura da própria religião,
partindo-se de uma re-interpretação crítica de conteúdos religiosos
diferentes. As contradições e avanços
referentes às trocas de informações entre as culturas, emergem na
forma de uma configuração única de vivência religiosa, funcionando como veículo de construção social. Dessa
forma, surge uma nova vivência, não desprezando nenhum dos elementos
fundantes de cada religião. A inculturação
pode significar a manutenção de uma identidade social, cultural e
religiosa de todas as instituições envolvidas (Pereira, 2000).
[volta]
(4)
Essa
identidade afrodescendente, segundo Gilroy (2002), é assinalada pelas
trocas culturais realizadas através do Atlântico, mais influenciada
por uma relação identitária com as próprias raízes, do que com um
processo de transformação e mediação. Para Munanga (1988), assumir
uma identidade afrodescendente significa transformar o histórico
sentido pejorativo do termo numa fonte de orgulho, momento em que o
afrodescendente se afirma pela valorização dos vários elementos das
culturas africanas.
[volta]
Nota sobre os
autores
Marcos
Vieira Silva,
Psicólogo, Mestre em Educação pela UFMG e Doutor em Psicologia Social
pela PUC-SP, é professor da Universidade Federal de São João del-Rei.
Trabalha com pesquisa e extensão em Psicologia Social Comunitária.
Atualmente é o Coordenador do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e
Intervenção Psicossocial da UFSJ. Contato: mvsilva@ufsj.edu.br
Danielle
Laísa Oliveira Paiva, estudante do 13º período do Curso de Psicologia da UFSJ, estagiária
do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção Psicossocial da
UFSJ, junto ao Grupo de Inculturação Afrodescente Raízes da Terra. Contato:
danielle@psicologia.ufsj.edu.br
Sheila
Ferreira Miranda, estudante
do 11º período do Curso de Psicologia da UFSJ. É bolsista de Iniciação
Científica PIBIC-CNPq/UFSJ
e estagiária do LAPIP – Laboratório de Pesquisa e Intervenção
Psicossocial da UFSJ, junto ao Grupo de Inculturação Afrodescente Raízes
da Terra. Contato: sheila@psicologia.ufsj.edu.br
Data
de aceite: 30/09/2005
Data de recebimento:
29/07/2005
Memorandum
9, out/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a09/silva01.htm
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