Subjetividade é o
abstrato de sujeito. Seria necessário construir toda uma história dessas
noções para nos situarmos. Meu objetivo, porém, aqui, é bem mais modesto.
Pretendo apenas partir de minha experiência de pesquisador qualitativo
fenomenológico, e de orientador de projetos de pesquisa em psicologia,
para propor algo sobre o conceito de subjetividade e sua pesquisa. Ou
seja: como minha experiência me solicita que conceba a subjetividade e sua
pesquisa.
Preciso dizer antes,
contudo, que, embora eu acredite que minhas pesquisas e de meus alunos
possam ser colocadas sob o rótulo de pesquisa da subjetividade, como
tendência ao menos, eu pessoalmente não tenho feito uso dessa expressão
para designar o que faço e nem tampouco sinto necessidade dela. Pesquisa
do vivido, pesquisa fenomenológica de tendência dialética, envolvimento
pessoal na pesquisa têm sido designações para mim suficientes. No entanto
quero propor uma reflexão sobre o que seria a partir de minha experiência
a pesquisa da subjetividade.
Conceito curioso,
esse, de subjetividade. Ele não é como a maioria dos conceitos que usamos
em pesquisa e que nos dizem sobre algum aspecto da realidade que se
encontra diante de nós. Talvez estejamos necessitando de uma explanação
sobre os tipos de conceitos que podemos construir. Tomemos exemplos bem
simples inicialmente. Livro, árvore, fogo, rio. São conceitos que se
referem à realidade que está aí diante de nós. Estou no campo e vejo uma
fumaça grossa surgindo do horizonte. Digo: ali tem fogo. A palavra que
uso, “fogo”, refere-se a uma idéia compartilhada na comunidade. Todos
sabemos o que é o fogo. Aquela minha frase tem um sentido no contexto. Uso
o conceito comum de fogo. Assim são as palavras e os conceitos que usamos
no dia a dia, e que são recebidos no processo de socialização.
Essas palavras, e os
conceitos por elas designados, foram construídos em uma relação
sujeito-objeto. Pressupõem esse tipo de relação: alguém que considera um
objeto que está ali diante dele. Conceitos mais complicados como os de
sociedade, estado, ego, tendência atualizante, congruência,
racionalização, processo, cultura, são sem dúvida mais abstratos, pois não
designam uma coisa concreta, um objeto material particular. Mas eles são
construídos dentro da mesma relação sujeito-objeto. Trata-se sempre da
compreensão que posso ter de alguma coisa que está aí diante de mim. A
maioria dos conceitos é assim. Até mesmo aqueles que designam relações,
como, por exemplo, paternidade, amor, menor, equação.
Um outro aspecto
interessante desses conceitos é que com eles eu posso separar, ou melhor,
considerar em separado, seu conteúdo meramente intelectual (o que ele
significa em si mesmo), e seu conteúdo afetivo emocional, digamos assim,
para uma determinada pessoa ou grupo. Posso saber o que significa fogo
independentemente das conotações emocionais que essa realidade possa ter
para mim. Posso separar a denotação de um conceito (seu significado), de
sua conotação num determinado caso (a que outros conceitos, afetos,
emoções esse significado está relacionado): uma coisa é o conceito em si,
e outra sua conotação concreta. E isso mesmo quando na prática seja muito
difícil separar essas duas considerações. Episódios das relações humanas
cotidianas ilustram bem isso. Às vezes, em uma discussão familiar, por
exemplo, não conseguimos separar o conteúdo racional de alguma coisa que
está sendo dita, de seu conteúdo emocional. Mas uma coisa é certa: esses
dois aspectos são, ao menos em princípio, separáveis.
É graças a isso, por
exemplo, que em outro plano podemos fazer ciência isenta, ciência
objetiva. O que significa a objetividade científica aqui? Significa que eu
considero a coisa tal como ela é em si mesma, e não tal como eu gostaria
que fosse. A ciência se apóia na separabilidade desses dois aspectos dos
conceitos: o racional e o emocional.
Há ainda um terceiro
aspecto. Existem certas coisas que são de tal natureza que eu não posso me
aproximar delas só intelectualmente. Com elas ou há uma experiência
pessoal, ou não há entendimento verdadeiro algum. Esses conceitos comuns a
que estamos nos referindo não contemplam esse tipo de realidade. Esses
conceitos comuns (pedra, fogo, e até mesmo narcisismo e representação
social) podem ser entendidos independentemente de qualquer envolvimento
pessoal.
Pois bem, embora a
maioria dos conceitos seja desse tipo (construídos a partir da relação
sujeito-objeto e tendo o aspecto racional separável do aspecto emocional e
do envolvimento experiencial), nem todos são assim. Talvez o conceito de
subjetividade seja desse outro tipo. Vamos nos aproximar dessa
possibilidade aos poucos. Comparemos inicialmente essas duas palavras:
ciência e consciência.
A ciência se refere
a um conhecimento objetivo, cercado de todas as garantias de segurança. É
uma aproximação meramente racional da realidade; isenta. É um saber o
objeto. Já a consciência é um saber que se sabe, ou melhor, é o saber-se
de um saber. Na ciência estamos totalmente polarizados pelo objeto. Na
consciência nos incluímos nessa relação. Na ciência todo meu campo de
conhecimento é preenchido pelo objeto, na consciência eu mesmo estou
explicitamente presente nesse campo. Movimentar-me no campo da ciência é
conhecer cada vez mais detalhes da realidade objetiva. Movimentar-me no
campo da consciência não é isso, mas, sim, incluir-me cada vez mais em
minha relação com o mundo. Aumentar ciência é acumular informações
objetivas. Aumentar consciência é envolver-me criticamente com as coisas.
Não é um mero saber. Aqui saber, agir e sentir são indissociáveis.
No entanto, a
palavra consciência pode ser entendida simplesmente como algo que está aí
diante de mim como um objeto. Isso ocorre, por exemplo, quando considero a
consciência que alguém tem da situação política na qual está envolvido.
Posso até montar um instrumento psicológico para medir esse grau de
consciência política. Contudo, nesse caso, estarei medindo ou catalogando
a consciência mas sem saber realmente o que é ela, sem tê-la tornado
efetivamente presente para mim. Sem ter a experiência subjetiva dela.
Serei então capaz de acumular conhecimentos objetivos sobre esse objeto (a
“consciência”), que até me tornarão apto a manipulá-lo como a qualquer
outro objeto. E tudo isso sem saber verdadeiramente o que é a consciência.
Permaneço na relação sujeito-objeto. É aqui que se coloca todo o problema
das ciências humanas, ao menos desde um enfoque da psicologia clínica.
A subjetividade é a
consciência de si, a auto-consciência. Posso saber muito sobre ela, sem
saber nada dela. Posso estudá-la do ponto de vista da relação
sujeito-objeto e fazer ciência humana no sentido de quem toma o ser humano
como objeto de ciência objetiva. Mas seria isso conhecer a subjetividade?
Seria isso apropriar-me mais de mim mesmo? Aqui poderíamos pensar: mas
para quê isso? Não bastaria conhecer objetivamente a subjetividade? O que
se perde com isso? Penso que o que se perde ficando somente no
conhecimento objetivo é a própria noção de sujeito. O que se perde é a
autonomia humana. É a capacidade de ser senhor de si. Mesmo sendo muito
difícil sermos senhores de nós mesmos, não quero deixar de lado essa
possibilidade que faz toda a beleza do mistério humano. Sinto que deixar
isso de lado seria renunciar à própria humanidade do ser humano. É uma
opção. Do ponto de vista da clínica, eis o que diz Pagès: a
possibilidade para o indivíduo de perceber adequadamente sua própria
experiência subjetiva é a condição mesma da mudança, pois ela restaura a
possibilidade de o próprio indivíduo avaliar sua experiência e modifica-la
(Pagès, 1976, p.49). Perceber adequadamente a própria experiência
subjetiva não é a mesma coisa que conhecer, no sentido de um conhecimento
objetivo. É muito mais um aproximar-se de sua subjetividade: eis aqui um
conhecimento que envolve a pessoa.
Rogers, aceitando
uma sugestão de Gendlin, fala de experiência imediata ou vivência (experiencing)
e de distância em relação à experiência imediata (distance to
experiencing) (ver, por exemplo, Rogers, 1980, e Rogers & Rosenberg,
1977). Essa experiência é o que se passa no todo que é o organismo
enquanto consciente ou potencialmente consciente. Mas a pessoa pode estar
distante disso. Ou mais ou menos distante. Daí que o termo experienciação
(experiencing), segundo Pagès, designe na verdade a qualidade da
experiência em termos de distância, em termos de estar mais ou menos
apropriada pelo sujeito. É interessante notar aqui que a palavra usada
para designar a relação da pessoa com sua própria experiência, não é
conhecimento ou saber. Não “sei” minha própria experiência, mas
“aproximo-me” dela, “aproprio-me” dela, e até mesmo, no limite, “torno-me”
minha própria experiência viva. Dizer que conheço minha experiência
significa que faço dela um objeto separado, significa que ainda estou
distante dela e não posso integrá-la em meu modo de ser, fazer-me um com
ela. Em outras palavras: pretender aproximar-se da própria experiência
somente em termos cognitivos equivale a perdê-la. Há realidades às quais
não tenho acesso somente pelo conhecimento objetivo.
Ora, a subjetividade
é o âmago mais profundo da experiência, e não é possível apenas conhecê-la
objetivamente. Tudo que eu consigo saber dela pelo caminho do conhecimento
objetivo não é ainda a subjetividade. Para conhecê-la preciso sair da
relação sujeito-objeto, preciso aceitar que nesse caso pensamento,
sentimento e decisão estão indissociavelmente ligados, preciso aceitar
também que o caminho em direção a ela é um caminho de envolvimento
pessoal.
Curioso esse
conceito. Ele não fala de algo que está lá e que se dá a conhecer, mas de
algo com o qual posso me relacionar, e é só dessa relação que nasce um
certo conhecimento. E mais: quanto mais me aproximo disso, tanto mais me
transformo numa unidade integrada, interagindo criativamente com o mundo.
Isso lembra muito Buber e Ebner (ver, por exemplo, Moreno Márquez, 2000, e
Lopez Quintás, 1997).
Então como seria
pesquisar a subjetividade? Em primeiro lugar é preciso que eu a conceitue
adequadamente; caso contrário estarei pesquisando outra coisa. E uma justa
conceituação aqui é indissociável de uma epistemologia, pois o conceito
foi criado justamente para expressar uma outra relação com o real. Em
segundo lugar, pesquisar a subjetividade enquanto tal não é simplesmente
produzir conhecimentos sobre ela, mas aproximar-se experiencialmente dela
para só depois produzir um discurso expressivo. Se o pesquisador não se
deixar “tocar” pela subjetividade do outro, permitindo que ela faça um
sentido humano para ele, estará pesquisando a objetividade e não a
subjetividade. É preciso sair da perspectiva convencional de ciência para
fazer esse outro tipo de pesquisa. Eu diria que a subjetividade não se
entrega como objeto de conhecimento se eu me aproximar dela de modo
meramente cognitivo. Só posso me aproximar dela participativamente,
mobilizando-a também dentro de mim. A pesquisa da subjetividade é
diretamente mobilizadora do sujeito e não apenas instrumentalizadora dele.
Por isso ela é tão importante na clínica.
Ora, o tipo de
pesquisa que vai além da relação sujeito-objeto é a pesquisa
fenomenológica, de tendência dialética (Amatuzzi, 1996).
Tal coisa acontece
no encontro clínico onde o terapeuta busca se aproximar da subjetividade
do paciente em primeiro lugar, para, somente depois e nessa proximidade,
refletir com ele sobre o que aí se faz presente. Acontece também na
terapia comunitária onde o terapeuta ajuda o grupo a se aproximar de seus
sentimentos predominantes no momento para poder então tomar as situações a
que eles se referem como tema de consideração. Nesses dois acasos está
havendo pesquisa da subjetividade: pesquisa intervenção, mesmo quando o
resultado não seja publicado.
Mas há também o caso
de outras pesquisas que visam a publicação, isto é, visam associar um
público mais amplo às conclusões. Nesses casos trata-se de um processo
cujo objetivo não é tanto gerar informações úteis para alguma política de
intervenção (isso seria mais próprio da pesquisa que se situa na
perspectiva da relação sujeito-objeto), mas sim mudar a consciência das
pessoas diante de alguma realidade, tornando essa realidade presente sob
alguma luz nova e, conseqüentemente, permitindo mudanças no modo vigente
de ação.
Poderíamos perguntar
como pode tal prática ser denominada ainda pesquisa, se a objetividade é
um requisito indispensável a essa forma de conhecimento. Não seria mais
válido denominá-la de intervenção ou até mesmo de influência podendo então
utilizar todos os recursos da retórica? A separação entre pesquisa e
intervenção é uma decorrência da postura epistemológica que separa sujeito
e objeto, com os inconvenientes de fazer da pesquisa mero ato cognitivo e
da intervenção mero ato de aplicação de conhecimentos (separando assim o
pesquisador do profissional da prática). Existe sem dúvida um modo de se
fazer pesquisa-intervenção da subjetividade, com objetividade. Só que não
é a objetividade que coloca o objeto fora do âmbito do sujeito (essa seria
a objetividade da pesquisa positivista) e sim a que decorre da
intersubjetividade quando ela é vivida de forma crítica: objetividade na
intersubjetividade que equivale a ter senso crítico sobre os pressupostos
da relação (e portanto a saber justificá-los). No manejo histórico, essa é
a alternativa mais respeitosamente humana, pois a outra seria a
manipulação dominadora ou impositiva. E existe, sem dúvida, a manipulação
da subjetividade, e baseada em pesquisa objetiva: só que já não será
pesquisa da subjetividade no sentido em que estamos usando os termos aqui.
Em resumo, existe objetividade na pesquisa da subjetividade: é a que
decorre da intersubjetividade (o consenso) e do senso crítico (dar conta
dos pressupostos envolvidos).
O que poderia ser
então a pesquisa da subjetividade? Uma pesquisa que envolve o sujeito ou
os sujeitos, incluindo aí o próprio pesquisador, e os mobiliza. É uma
pesquisa que tende a modificar a consciência das pessoas envolvidas,
incluindo aí os seus leitores, e pelo fato mesmo tende a alterar o modo de
ação dessas pessoas. Quando se exerce no contexto direto da atenção
psicológica ou da atuação comunitária, essa pesquisa faz tudo isso
simplesmente sendo, existindo. Quando, além disso, e porque visa um
público mais amplo, é escrita, deve então adotar um estilo suficientemente
comunicativo (e em duas mãos, isto é, suscitando posicionamentos do
leitor), para que possa recriar a presença viva da realidade questionadora
de onde partiu. Tal pesquisa-intervenção não exclui uma certa
objetividade: a que decorre da intersubjetividade e da capacidade de ver
claro os pressupostos.
Referências
bibliográficas
-
Amatuzzi, M.M.
(1996). Apontamentos acerca da pesquisa fenomenológica. Estudos de
Psicologia, 13 (1), 5-10.
-
-
Lopez Quintás, A.
(1997). El poder del diálogo y del encuentro. Madrid: BAC.
-
-
Moreno márquez, C.
(2000). Interpessoalidade e intersubjetividade. Em M. Villa (Org.)
Dicionário do Pensamento Contemporâneo. (H. Dalbosco, Trad.). São
Paulo: Paulus. (Original publicado em 1997).
-
-
Pagès, M. (1976).
Orientação não-diretiva em psicoterapia e em psicologia social.
(A.S. Santos, Trad.). Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: EDUSP.
(Original publicado em 1970).
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-
Rogers, C.R. & Rosenberg, R.L. (1977).
A pessoa como
centro.
São Paulo: EPU;
EDUSP.
Rogers,
C.R. (1980). A Way of Being.
Boston: Houghton
Mifflin
Nota
sobre o autor
Mauro Martins
Amatuzzi
trabalha atualmente como docente do Programa de Pós-Graduação em
Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. É
psicólogo e doutor em Educação. Contato: R. Luverci Pereira de
Sousa 1656 / Cidade Universitária / 13083-730 Campinas – SP / Brasil.
E-mail: amatuzzi2m@yahoo.com.br
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Data de recebimento: 27/03/2006
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Data de
aceite: 30/04/2006
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/amatuzzi03.htm