Amatuzzi, M.M. (2006). A subjetividade e sua pesquisa. Memorandum, 10, 93-97. Retirado em       /  /  , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/amatuzzi03.htm

A subjetividade e sua pesquisa

Subjectivity and its research

Mauro Martins Amatuzzi
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
Brasil
 

Resumo
Este texto é uma reflexão teórica que procura definir o tipo de conceito que se expressa com o termo subjetividade e a pesquisa que ele possibilita. Propõe que subjetividade não seja um conceito construído a partir de uma relação tipo sujeito-objeto, mas sim a partir do interior de uma relação intersubjetiva. Objetividade e subjetividade opõem-se assim como ciência e consciência. É possível uma pesquisa da subjetividade, mas ela será necessariamente pesquisa-intervenção, envolvendo sujeitos, pesquisador e leitores, e sua objetividade não é a de uma epistemologia positivista e sim a do consenso e do senso crítico.

Palavras-chave: subjetividade; pesquisa; intersubjetividade; epistemologia

Abstract
This text is a theoretical reflection that tries to define the kind of concept that is expressed by the word subjectivity and the research that this concept makes possible. It proposes that subjectivity is not a concept built starting from a subject-object relationship but built from the inside of an inter-subjective relationship. Objectivity relates to subjectivity as science relates to conscience. Research on subjectivity is possible but it will be necessarily a intervention research, involving subjects, researcher and readers, and its objectivity is not the one of a positivistic epistemology but one of the consensus and of the critical sense.

Keywords: subjectivity; research; inter-subjectivity; epistemology

Subjetividade é o abstrato de sujeito. Seria necessário construir toda uma história dessas noções para nos situarmos. Meu objetivo, porém, aqui, é bem mais modesto. Pretendo apenas partir de minha experiência de pesquisador qualitativo fenomenológico, e de orientador de projetos de pesquisa em psicologia, para propor algo sobre o conceito de subjetividade e sua pesquisa. Ou seja: como minha experiência me solicita que conceba a subjetividade e sua pesquisa.

Preciso dizer antes, contudo, que, embora eu acredite que minhas pesquisas e de meus alunos possam ser colocadas sob o rótulo de pesquisa da subjetividade, como tendência ao menos, eu pessoalmente não tenho feito uso dessa expressão para designar o que faço e nem tampouco sinto necessidade dela. Pesquisa do vivido, pesquisa fenomenológica de tendência dialética, envolvimento pessoal na pesquisa têm sido designações para mim suficientes. No entanto quero propor uma reflexão sobre o que seria a partir de minha experiência a pesquisa da subjetividade.

Conceito curioso, esse, de subjetividade. Ele não é como a maioria dos conceitos que usamos em pesquisa e que nos dizem sobre algum aspecto da realidade que se encontra diante de nós. Talvez estejamos necessitando de uma explanação sobre os tipos de conceitos que podemos construir. Tomemos exemplos bem simples inicialmente. Livro, árvore, fogo, rio. São conceitos que se referem à realidade que está aí diante de nós. Estou no campo e vejo uma fumaça grossa surgindo do horizonte. Digo: ali tem fogo. A palavra que uso, “fogo”, refere-se a uma idéia compartilhada na comunidade. Todos sabemos o que é o fogo. Aquela minha frase tem um sentido no contexto. Uso o conceito comum de fogo. Assim são as palavras e os conceitos que usamos no dia a dia, e que são recebidos no processo de socialização.

Essas palavras, e os conceitos por elas designados, foram construídos em uma relação sujeito-objeto. Pressupõem esse tipo de relação: alguém que considera um objeto que está ali diante dele. Conceitos mais complicados como os de sociedade, estado, ego, tendência atualizante, congruência, racionalização, processo, cultura, são sem dúvida mais abstratos, pois não designam uma coisa concreta, um objeto material particular. Mas eles são construídos dentro da mesma relação sujeito-objeto. Trata-se sempre da compreensão que posso ter de alguma coisa que está aí diante de mim. A maioria dos conceitos é assim. Até mesmo aqueles que designam relações, como, por exemplo, paternidade, amor, menor, equação.

Um outro aspecto interessante desses conceitos é que com eles eu posso separar, ou melhor, considerar em separado, seu conteúdo meramente intelectual (o que ele significa em si mesmo), e seu conteúdo afetivo emocional, digamos assim, para uma determinada pessoa ou grupo. Posso saber o que significa fogo independentemente das conotações emocionais que essa realidade possa ter para mim. Posso separar a denotação de um conceito (seu significado), de sua conotação num determinado caso (a que outros conceitos, afetos, emoções esse significado está relacionado): uma coisa é o conceito em si, e outra sua conotação concreta. E isso mesmo quando na prática seja muito difícil separar essas duas considerações. Episódios das relações humanas cotidianas ilustram bem isso. Às vezes, em uma discussão familiar, por exemplo, não conseguimos separar o conteúdo racional de alguma coisa que está sendo dita, de seu conteúdo emocional. Mas uma coisa é certa: esses dois aspectos são, ao menos em princípio, separáveis.

É graças a isso, por exemplo, que em outro plano podemos fazer ciência isenta, ciência objetiva. O que significa a objetividade científica aqui? Significa que eu considero a coisa tal como ela é em si mesma, e não tal como eu gostaria que fosse. A ciência se apóia na separabilidade desses dois aspectos dos conceitos: o racional e o emocional.

Há ainda um terceiro aspecto. Existem certas coisas que são de tal natureza que eu não posso me aproximar delas só intelectualmente. Com elas ou há uma experiência pessoal, ou não há entendimento verdadeiro algum. Esses conceitos comuns a que estamos nos referindo não contemplam esse tipo de realidade. Esses conceitos comuns (pedra, fogo, e até mesmo narcisismo e representação social) podem ser entendidos independentemente de qualquer envolvimento pessoal.

Pois bem, embora a maioria dos conceitos seja desse tipo (construídos a partir da relação sujeito-objeto e tendo o aspecto racional separável do aspecto emocional e do envolvimento experiencial), nem todos são assim. Talvez o conceito de subjetividade seja desse outro tipo. Vamos nos aproximar dessa possibilidade aos poucos. Comparemos inicialmente essas duas palavras: ciência e consciência.

A ciência se refere a um conhecimento objetivo, cercado de todas as garantias de segurança. É uma aproximação meramente racional da realidade; isenta. É um saber o objeto. Já a consciência é um saber que se sabe, ou melhor, é o saber-se de um saber. Na ciência estamos totalmente polarizados pelo objeto. Na consciência nos incluímos nessa relação. Na ciência todo meu campo de conhecimento é preenchido pelo objeto, na consciência eu mesmo estou explicitamente presente nesse campo. Movimentar-me no campo da ciência é conhecer cada vez mais detalhes da realidade objetiva. Movimentar-me no campo da consciência não é isso, mas, sim, incluir-me cada vez mais em minha relação com o mundo. Aumentar ciência é acumular informações objetivas. Aumentar consciência é envolver-me criticamente com as coisas. Não é um mero saber. Aqui saber, agir e sentir são indissociáveis.

No entanto, a palavra consciência pode ser entendida simplesmente como algo que está aí diante de mim como um objeto. Isso ocorre, por exemplo, quando considero a consciência que alguém tem da situação política na qual está envolvido. Posso até montar um instrumento psicológico para medir esse grau de consciência política. Contudo, nesse caso, estarei medindo ou catalogando a consciência mas sem saber realmente o que é ela, sem tê-la tornado efetivamente presente para mim. Sem ter a experiência subjetiva dela. Serei então capaz de acumular conhecimentos objetivos sobre esse objeto (a “consciência”), que até me tornarão apto a manipulá-lo como a qualquer outro objeto. E tudo isso sem saber verdadeiramente o que é a consciência. Permaneço na relação sujeito-objeto. É aqui que se coloca todo o problema das ciências humanas, ao menos desde um enfoque da psicologia clínica.

A subjetividade é a consciência de si, a auto-consciência. Posso saber muito sobre ela, sem saber nada dela. Posso estudá-la do ponto de vista da relação sujeito-objeto e fazer ciência humana no sentido de quem toma o ser humano como objeto de ciência objetiva. Mas seria isso conhecer a subjetividade? Seria isso apropriar-me mais de mim mesmo? Aqui poderíamos pensar: mas para quê isso? Não bastaria conhecer objetivamente a subjetividade? O que se perde com isso? Penso que o que se perde ficando somente no conhecimento objetivo é a própria noção de sujeito. O que se perde é a autonomia humana. É a capacidade de ser senhor de si. Mesmo sendo muito difícil sermos senhores de nós mesmos, não quero deixar de lado essa possibilidade que faz toda a beleza do mistério humano. Sinto que deixar isso de lado seria renunciar à própria humanidade do ser humano. É uma opção. Do ponto de vista da clínica, eis o que diz Pagès: a possibilidade para o indivíduo de perceber adequadamente sua própria experiência subjetiva é a condição mesma da mudança, pois ela restaura a possibilidade de o próprio indivíduo avaliar sua experiência e modifica-la (Pagès, 1976, p.49). Perceber adequadamente a própria experiência subjetiva não é a mesma coisa que conhecer, no sentido de um conhecimento objetivo. É muito mais um aproximar-se de sua subjetividade: eis aqui um conhecimento que envolve a pessoa.

Rogers, aceitando uma sugestão de Gendlin, fala de experiência imediata ou vivência (experiencing) e de distância em relação à experiência imediata (distance to experiencing) (ver, por exemplo, Rogers, 1980, e Rogers & Rosenberg, 1977). Essa experiência é o que se passa no todo que é o organismo enquanto consciente ou potencialmente consciente. Mas a pessoa pode estar distante disso. Ou mais ou menos distante. Daí que o termo experienciação (experiencing), segundo Pagès, designe na verdade a qualidade da experiência em termos de distância, em termos de estar mais ou menos apropriada pelo sujeito. É interessante notar aqui que a palavra usada para designar a relação da pessoa com sua própria experiência, não é conhecimento ou saber. Não “sei” minha própria experiência, mas “aproximo-me” dela, “aproprio-me” dela, e até mesmo, no limite, “torno-me” minha própria experiência viva. Dizer que conheço minha experiência significa que faço dela um objeto separado, significa que ainda estou distante dela e não posso integrá-la em meu modo de ser, fazer-me um com ela. Em outras palavras: pretender aproximar-se da própria experiência somente em termos cognitivos equivale a perdê-la. Há realidades às quais não tenho acesso somente pelo conhecimento objetivo.

Ora, a subjetividade é o âmago mais profundo da experiência, e não é possível apenas conhecê-la objetivamente. Tudo que eu consigo saber dela pelo caminho do conhecimento objetivo não é ainda a subjetividade. Para conhecê-la preciso sair da relação sujeito-objeto, preciso aceitar que nesse caso pensamento, sentimento e decisão estão indissociavelmente ligados, preciso aceitar também que o caminho em direção a ela é um caminho de envolvimento pessoal.

Curioso esse conceito. Ele não fala de algo que está lá e que se dá a conhecer, mas de algo com o qual posso me relacionar, e é só dessa relação que nasce um certo conhecimento. E mais: quanto mais me aproximo disso, tanto mais me transformo numa unidade integrada, interagindo criativamente com o mundo. Isso lembra muito Buber e Ebner (ver, por exemplo, Moreno Márquez, 2000, e Lopez Quintás, 1997).

Então como seria pesquisar a subjetividade? Em primeiro lugar é preciso que eu a conceitue adequadamente; caso contrário estarei pesquisando outra coisa. E uma justa conceituação aqui é indissociável de uma epistemologia, pois o conceito foi criado justamente para expressar uma outra relação com o real. Em segundo lugar, pesquisar a subjetividade enquanto tal não é simplesmente produzir conhecimentos sobre ela, mas aproximar-se experiencialmente dela para só depois produzir um discurso expressivo. Se o pesquisador não se deixar “tocar” pela subjetividade do outro, permitindo que ela faça um sentido humano para ele, estará pesquisando a objetividade e não a subjetividade. É preciso sair da perspectiva convencional de ciência para fazer esse outro tipo de pesquisa. Eu diria que a subjetividade não se entrega como objeto de conhecimento se eu me aproximar dela de modo meramente cognitivo. Só posso me aproximar dela participativamente, mobilizando-a também dentro de mim. A pesquisa da subjetividade é diretamente mobilizadora do sujeito e não apenas instrumentalizadora dele. Por isso ela é tão importante na clínica.

Ora, o tipo de pesquisa que vai além da relação sujeito-objeto é a pesquisa fenomenológica, de tendência dialética (Amatuzzi, 1996).

Tal coisa acontece no encontro clínico onde o terapeuta busca se aproximar da subjetividade do paciente em primeiro lugar, para, somente depois e nessa proximidade, refletir com ele sobre o que aí se faz presente. Acontece também na terapia comunitária onde o terapeuta ajuda o grupo a se aproximar de seus sentimentos predominantes no momento para poder então tomar as situações a que eles se referem como tema de consideração. Nesses dois acasos está havendo pesquisa da subjetividade: pesquisa intervenção, mesmo quando o resultado não seja publicado.

Mas há também o caso de outras pesquisas que visam a publicação, isto é, visam associar um público mais amplo às conclusões. Nesses casos trata-se de um processo cujo objetivo não é tanto gerar informações úteis para alguma política de intervenção (isso seria mais próprio da pesquisa que se situa na perspectiva da relação sujeito-objeto), mas sim mudar a consciência das pessoas diante de alguma realidade, tornando essa realidade presente sob alguma luz nova e, conseqüentemente, permitindo mudanças no modo vigente de ação.

Poderíamos perguntar como pode tal prática ser denominada ainda pesquisa, se a objetividade é um requisito indispensável a essa forma de conhecimento. Não seria mais válido denominá-la de intervenção ou até mesmo de influência podendo então utilizar todos os recursos da retórica? A separação entre pesquisa e intervenção é uma decorrência da postura epistemológica que separa sujeito e objeto, com os inconvenientes de fazer da pesquisa mero ato cognitivo e da intervenção mero ato de aplicação de conhecimentos (separando assim o pesquisador do profissional da prática). Existe sem dúvida um modo de se fazer pesquisa-intervenção da subjetividade, com objetividade. Só que não é a objetividade que coloca o objeto fora do âmbito do sujeito (essa seria a objetividade da pesquisa positivista) e sim a que decorre da intersubjetividade quando ela é vivida de forma crítica: objetividade na intersubjetividade que equivale a ter senso crítico sobre os pressupostos da relação (e portanto a saber justificá-los). No manejo histórico, essa é a alternativa mais respeitosamente humana, pois a outra seria a manipulação dominadora ou impositiva. E existe, sem dúvida, a manipulação da subjetividade, e baseada em pesquisa objetiva: só que já não será pesquisa da subjetividade no sentido em que estamos usando os termos aqui. Em resumo, existe objetividade na pesquisa da subjetividade: é a que decorre da intersubjetividade (o consenso) e do senso crítico (dar conta dos pressupostos envolvidos).

O que poderia ser então a pesquisa da subjetividade? Uma pesquisa que envolve o sujeito ou os sujeitos, incluindo aí o próprio pesquisador, e os mobiliza. É uma pesquisa que tende a modificar a consciência das pessoas envolvidas, incluindo aí os seus leitores, e pelo fato mesmo tende a alterar o modo de ação dessas pessoas. Quando se exerce no contexto direto da atenção psicológica ou da atuação comunitária, essa pesquisa faz tudo isso simplesmente sendo, existindo. Quando, além disso, e porque visa um público mais amplo, é escrita, deve então adotar um estilo suficientemente comunicativo (e em duas mãos, isto é, suscitando posicionamentos do leitor), para que possa recriar a presença viva da realidade questionadora de onde partiu. Tal pesquisa-intervenção não exclui uma certa objetividade: a que decorre da intersubjetividade e da capacidade de ver claro os pressupostos.

Referências bibliográficas

Amatuzzi, M.M. (1996). Apontamentos acerca da pesquisa fenomenológica. Estudos de Psicologia, 13 (1), 5-10.
 
Lopez Quintás, A. (1997). El poder del diálogo y del encuentro. Madrid: BAC.
 
Moreno márquez, C. (2000). Interpessoalidade e intersubjetividade. Em M. Villa (Org.) Dicionário do Pensamento Contemporâneo. (H. Dalbosco, Trad.). São Paulo: Paulus. (Original publicado em 1997).
 
Pagès, M. (1976). Orientação não-diretiva em psicoterapia e em psicologia social. (A.S. Santos, Trad.). Rio de Janeiro: Forense; São Paulo: EDUSP. (Original publicado em 1970).
 
Rogers, C.R. & Rosenberg, R.L. (1977). A pessoa como centro. São Paulo: EPU; EDUSP.

Rogers, C.R. (1980). A Way of Being. Boston: Houghton Mifflin

 

Nota sobre o autor

Mauro Martins Amatuzzi trabalha atualmente como docente do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Pontifícia Universidade Católica de Campinas, Brasil. É psicólogo e doutor em Educação. Contato: R. Luverci Pereira de Sousa 1656 / Cidade Universitária / 13083-730 Campinas – SP / Brasil. E-mail: amatuzzi2m@yahoo.com.br

 

Data de recebimento: 27/03/2006
Data de aceite: 30/04/2006

 

Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/amatuzzi03.htm

 

 

 

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