Brandão, S.R. (2006). A pessoa em Romano Guardini: um desafio à autonomia e desamparo do homem contemporâneo. Memorandum, 10, 147-156. Retirado em   /  /  , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/brandao01.htm

A pessoa em Romano Guardini: um desafio à autonomia e desamparo do homem contemporâneo

The concept of person in Romano Guardini: a challenge to the autonomy and helplessness of contemporary man

Sílvia Regina Brandão
Faculdade Santa Marcelina
Brasil

 

Resumo
Este trabalho apresenta a lúcida análise de Romano Guardini sobre a forma de pensar da época moderna indicando além de seus avanços e limites, as implicações para a concepção de homem e de cultura que dela nasceu. As conseqüências dessa nova imagem que o homem adquiriu de si e do mundo são paradoxais: de um lado a autonomia conquistada pelo extraordinário progresso científico e, de outro, a falta de lucidez no uso do poder adquirido, que decorre na grande vulnerabilidade do homem e do mundo contemporâneos. A necessidade de orientação e formação humanas apresenta-se cada vez mais premente e, para tanto, o autor apresenta indicações valiosas, fundamentadas no seu conceito de pessoa.

Palavras-chave: Romano Guardini; pensamento moderno; cultura contemporânea; pessoa

Abstract
This work presents Romano Guardini’s lucid analysis of the way of thinking in Modern Age, in which the author points out not only its advances and limits, but also the implications for the concepts of man and culture. The consequences that emerge from this new image man has constructed for himself and for the world are paradoxical: on one hand, there is the autonomy following the extraordinary scientific progress and, on the other, the lack of lucidity in the way man uses the power acquired, which results in  accentuated vulnerability of both contemporary man and world. There is growing and urgent need for human orientation and formation, and, in this respect, the author presents valuable indications founded on his concept of person.

Keywords: sRomano Guardini, modern thought, contemporary culture; person

 

“Viver é muito perigoso...

João Guimarães Rosa (1986, p.9)

A constatação poética do grande escritor João Guimarães Rosa acerca da existência humana expressa particularmente a sensação do homem contemporâneo diante do mundo. Ao contrário do que se supunha, o extraordinário avanço técnico-científico não aumentou a segurança e tranqüilidade humanas; a confiança no que se acreditava ser o ilimitado progresso da ciência gerou uma capacidade inimaginável de destruição. A percepção do perigo e da ameaça está presente e assume proporções inéditas.

Para enfrentar esse contexto conturbado e contraditório é importante compreender as raízes do modo de pensar no qual se estruturam a forma de organizar e viver da sociedade atual. A possibilidade do homem contemporâneo não submergir a perspectivas nefastas e desumanas hodiernas está vinculada à capacidade de avaliação adequada do contexto cultural em que está imerso e de compreensão e afirmação de sua própria humanidade. O grande filósofo e teólogo Romano Guardini (1885-1968) tornou-se referência intelectual e humana – de modo particular para várias gerações de alunos universitários alemães – exatamente por buscar afirmar e dialogar acerca da verdade integral do homem diante das circunstâncias dramáticas do período entre guerras e posterior à segunda guerra mundial. O autor oferece-nos uma obra vastíssima que, além de apresentar uma antropologia filosófica precisa, propõe critérios claros para crítica e superação de modos de pensar reducionistas que, segundo ele, provocaram as dificuldades e impasses da mentalidade contemporânea.

Um juízo sobre a Idade Moderna

A Idade Moderna gosta de fundamentar as normas da ciência na sua utilidade para o bem estar do homem. Assim se ocultaram as devastações produzidas pela ausência de escrúpulos. (Guardini, 2000, p. 52)

Com o intuito de indicar claves de orientação para o homem na complexa realidade dos meados do século XX, Guardini propõe inicialmente uma análise crítica da trajetória do pensamento humano, identificando formulações e conceitos que construíram, em cada época, certa imagem da existência e do mundo. Particularmente determinante para o seu tempo, e sem dúvida nenhuma para o momento atual, é a forma de pensar da época moderna. Em uma obra dedicada exclusivamente a esse tema (O fim da Idade Moderna, originalmente publicada em 1950),  o autor estabelece um juízo preciso e perspicaz sobre a Idade Média, a Idade Moderna e lança um olhar impressionantemente profético sobre a época futura, para ele, desconhecida e, para nós, vivamente presente.

Os tempos modernos são inaugurados por dois movimentos humanos: o impulso de conhecer a realidade por si mesmo, autonomamente, a partir de própria inteligência e o desejo de libertar-se dos modelos anteriores,  concebidos como limitantes ou aprisionadores do pensamento. O homem entendido como indivíduo torna-se importante por si mesmo, sem qualquer referência exterior ou transcendente, contrapondo-se à Idade Média, para qual o divino era o elemento primeiro, que fundamentava a concepção que o homem tinha de si e do mundo.

Guardini aponta três aspectos elementares para compreender a imagem do mundo formulada pelos tempos modernos: a natureza, o sujeito-personalidade e a cultura. Em primeiro lugar, o conceito de natureza, considerada como um valor, ponto de referência para nortear, referendar descobertas e atitudes:

O conceito moderno de natureza refere-se ao dado imediato; ao conjunto das coisas, antes que o homem faça qualquer coisa nelas; ao conjunto das energias e das substâncias, essências e leis. Este conjunto é experimentado como pressuposto da existência, e como tarefa a desempenhar pelo conhecimento e pela criação. Mas “natureza’’ também significa um conceito valorativo, a norma obrigatória de todo conhecimento e de toda criação, do justo, do saudável e perfeito, precisamente o que se entende por “natural”. Daí os critérios de toda existência válida: do homem natural, da sociedade natural e da forma do estado, da educação, da maneira de viver. Tal como se realizam desde o século XVI ao século XX. (Guardini, 2000, p.38)

A natureza adquire um caráter sagrado, a mãe natureza, fonte de vida,  de harmonia e de critérios para o conhecimento, para ação. Esta forma de conceber a natureza abarca também o próprio ser humano: ele também pertence à natureza, porém, é capaz de separa-se para explorá-la, para dela se apropriar. Em certo sentido ele se opõe à natureza, descobrindo-se sujeito, que é um segundo elemento fundamental para compreensão da existência nos tempos modernos. Este sujeito, segundo Guardini, caracteriza-se por ser uma personalidade – com possibilidades próprias de desenvolvimento, de expressão e de criação – e por ser enraizado, fundado em si mesmo (subjetividade):

A subjectividade aparece como “personalidade”, como forma humana que se desenvolve a partir de disposições e iniciativas próprias. Tal como a Natureza, é um elemento primordial que não deve ser posto em questão. Em especial a grande personalidade tem que ser compreendida a partir dela própria e justificar as suas ações pela sua própria originalidade. As normas morais, aplicadas a ela, parecem-lhe relativas. A norma é descoberta no homem genial e aplicada depois a qualquer homem e o ethos do bem e da verdade objectivos é substituído pela autenticidade e pela sinceridade. Assim como o conceito de personalidade se forma na originalidade do ser individual, vivido, assim, também aquilo a que ele se refere recebe a sua expressão formal no conceito de “sujeito”. Constitui o suporte dos actos de valor como a unidade das categorias que determinam este valor. A sua determinação mais penetrante encontra-se na filosofia de Kant. Para ela o sujeito lógico, ético e estético é um elemento primordial para lá do qual nada mais pode ser pensado. Tem o carácter de autonomia, permanece em si próprio e fundamenta o sentido da vida espiritual. Tudo o que se pode deduzir da personalidade ou do sujeito é definitivamente compreendido; todo comportamento conforme a personalidade está justificado. (Guardini, 2000, p.41)

O homem centrado em si propõe-se como modelo através das grandes personalidades que passam a se destacar e a ser valorizadas pela sua genialidade humana. Concebendo-se como personalidade o homem torna-se senhor e árbitro de sua própria existência, não necessita e nem admite nenhuma referência ou fundamento exterior a ele. Qualquer ato é justificado e legitimado pelo próprio sujeito: ele é independente, capaz de lançar-se inteligentemente no mundo, destaca-se e orgulha-se disso. A autonomia é verificada não apenas pela concepção que o homem moderno tem da sua existência, como também pela ênfase dada a uma obra humana denominada de cultura, que constitui o terceiro elemento peculiar dos tempos modernos destacado por Guardini:

É da Idade Moderna que nasce a técnica, conjunto de processos que permitem ao homem prosseguir os seus fins. A ciência, a política, a economia, a arte, a pedagogia, afastam-se cada vez mais conscientemente dos vínculos da Fé e também de uma ética que impõe obrigações, e criam a sua autonomia a partir da sua essência. Enquanto cada um destes domínios particulares se fundamenta em si próprio, todos estão em princípio numa relação comum que se constrói a partir deles e que ao mesmo tempo os suporta. É a “cultura”, enquanto conjunto da obra do homem independente de Deus e da sua Revelação. (Guardini, 2000, p. 42)

Assim, o que inicialmente tinha sido assumido como ideal – a autonomia – tornou-se cada vez mais a posição natural do homem, inclusive na forma de pensar, fazendo com que os diferentes ramos do saber  fossem regidos exclusivamente por normas internas, segundo leis próprias. Ao buscar compreender e controlar fenômenos de diversas áreas de conhecimento – naturais, humanos, políticos, filosóficos – foram descobertos novos objetos e métodos de estudo, gerando uma possibilidade completamente inédita de apreensão e ação no mundo. A capacidade racional do homem revela-se surpreendente, a ciência e a técnica trazem a sensação de segurança e favorecem o bem estar, enfim, o futuro revela-se promissor. Os tempos modernos têm confiança no progresso do homem e da ciência, que deverão se desenvolver continua e indubitavelmente, como que por geração espontânea.

Os três elementos – a natureza, o sujeito-personalidade e a cultura – estão, conforme explica Guardini, relacionados entre si, são complementares, estruturam-se internamente e desenvolvem-se por si mesmos, recusando qualquer fundamento ou norma exterior que sugerisse uma ordenação diferente da natural:

Torna-se assim um problema de estrutura psicológica ou da situação histórico-espiritual saber como entram em relações recíprocas os dados originários da natureza, do sujeito, e, entre ambos, a cultura – a existência como objecto, como eu e como tarefa. O centro de gravidade pode ser colocado na natureza, e o sujeito é então entendido como órgão dela; assim aconteceu na filosofia da natureza do Renascimento e do Romantismo. Nesse caso, a cultura apresentar-se-á também como emanação da natureza; como um edifício em que a natureza se constrói e se supera a si própria pelo instrumento mediador do sujeito pensante. Ou, diferentemente, o centro de gravidade pode ser colocado na individualidade, e a natureza aparece como uma massa caótica de possibilidades, das quais, soberanamente ordenador, o sujeito extrai o mundo da cultura – é o que se verifica na filosofia de Kant. Finalmente, natureza e sujeito podem ser considerados dois pontos de apoio de igual importância, processando-se entre eles, num movimento que simultaneamente transcende a natureza e a pessoa, o devir cultural: assim sucede com Hegel. (Guardini, 1963, p. 24)

De qualquer maneira, a independência é a característica fundamental da época moderna. Guardini chama a atenção para o risco que representa assumir a natureza como valor em si, conceber o homem como sujeito autônomo, juiz de si mesmo e atribuir soberania à cultura, aos diversos ramos do saber. O perigo de tal concepção reside em fundar no sujeito toda a capacidade de conhecimento, de juízo moral, apostando na capacidade dele e de sua obra – em particular a cultura e a ciência. A história referendou a gravidade e magnitude deste risco, confirmando com os fatos, a ingenuidade desse otimismo moderno.

Entretanto, esta imagem que o homem adquiriu de si, de sua existência, do mundo a partir dos tempos modernos foi assumida nos séculos que se seguiram, tornando-se uma concepção estabelecida, transmitida pela sociedade e adotada, consciente ou inconscientemente, pelos indivíduos. Acompanha-o também, desta época em diante, novas provocações e tarefas que são conseqüências desta nova posição.

Herança pós-moderna (1)

Muita gente já admite que a cultura não é o que a Idade Moderna pensa dela: não uma bela segurança, mas um risco de vida e de morte do qual ninguém sabe em que resultará. (Guardini, 2000, p. 72)

Ser autônomo para decidir e conduzir a própria existência, ser ousado e criador, apostar na própria capacidade de conhecimento e avaliação são características que o homem conquistou para sempre. Porém, a essa extraordinária possibilidade de conhecimento, de domínio do mundo não corresponde uma evolução ou amadurecimento moral para discernimento e uso adequado do poder adquirido, inaugurando uma nova e problemática condição cultural.

O século XX, de forma particular, revelou dramaticamente a insuficiência ou parcialidade da forma de pensar moderna. Essa constatação instala uma nova situação existencial para o homem hodierno, que pode ser identificada através de algumas características que são interdependentes pois potencializam-se umas às outras:

a) desamparo: a partir da modernidade o homem aventura-se por um mundo que se descortina à sua frente e lança-se com coragem para um desconhecido sem limites. Porém, esse mesmo mundo revela-se inóspito, por já não constituir um lugar seguro, familiar. O homem descobre-se livre para se movimentar, mas sem morada no mundo.

Aparece o homem senhor de si próprio, que atua, arrisca e cria, que é trazido pelo seu ‘ingenium’, conduzido pela ‘fortuna’, recompensado pela ‘fama’ e pela ‘glória’. Mas com isso perde também o homem o lugar objetivo, que a sua consciência tinha na antiga imagem do mundo, e cria-se o sentimento de abandono e de ameaça. Aparece a angústia do homem moderno, que é diferente da do homem medieval. (…) A angústia da Idade Moderna é devida em grande parte ao sentimento de não ter nem um lugar simbólico, nem um refúgio que seja imediatamente convincente; e também da experiência sempre renovada de não encontrar no mundo um lugar para existência e que satisfaça a sua necessidade de sentido. (Guardini, 2000, p. 37)

Assim, a pretensa conquista do real, paradoxalmente, resultou no oposto: domina-se e, ao mesmo tempo, perde-se o mundo. O homem apercebe-se num mundo fechado, onde a existência humana revela-se carente de abrigo, de porto seguro, de sentido. A concepção finita de mundo só aumenta a sensação de desamparo, já que para além do mundo não há nada, não há algo superior a ele, de modo que esse mundo sem morada é tudo: “atrás da tentativa de conquista das coisas, desperta o sentimento de que elas são aparências. (...) A base da aparência torna-se aí a base da autonomia desesperada, da existência fechada na sua carência de sentido. O mundo fechou-se sobre si mesmo. Não se sai dele, quer caminhando para o interior, quer subindo para o alto. Está cerrado no seu topo como no seu seio.” (Guardini, 1963, pp. 99, 108).

Acrescenta-se a essa experiência de desamparo, o questionamento quanto independência e legitimidade de juízos formulados acerca da realidade e da própria existência.  O homem descobre-se frágil para continuar assumindo a condição de senhor e árbitro de si e do mundo. Tudo é colocado em questão, a própria realidade é percebida como suspensa. Guardini descreve com lucidez e certa indignação, a situação dramática em que o esse homem se colocou:

No século passado e nos princípios deste, cada um dos homens constituía uma espécie à parte. Poderíamos dizer que estavam encerrados em si próprios. Lá estavam em suas casas, fábricas e escritórios, e não eram capazes de contemplar retamente o mundo exterior. É claro que havia exceções, que foram aumentando cada vez mais. Mas a generalidade vivia numa autêntica prisão. Davam muitos passeios, mas no íntimo não viviam entre as árvores e as feras, mas no campo e na montanha. Eram homens de estufa. Entre eles e a cor e a vivacidade das coisas lá de fora erguia-se um muro. Escreveram grandes tratados para ver se, na realidade, existia o mundo ou tudo era aparência ou ilusão. Não é estranho que os homens duvidem da realidade, do enorme choupo que têm diante dos olhos, com as suas esplêndidas ramagens e as suas folhas ébrias de luz verde-dourada? Ou se são reais o rio e o mar? Não é fácil compreender o pensamento deles. Esses homens chegaram ao extremo de se olharem ao espelho e perguntarem se realmente estavam ali! Não nos podemos rir disto; era uma dolorosa realidade! Mergulharam tão profundamente nos seus conceitos e cálculos que se perderam a si próprios e perderam o mundo. Pensavam que não havia nada além do que se podia desmontar. (...) O mundo era problemático para eles. Torturavam-se com cálculos e abstrações, e nem sequer vislumbravam que tinham as coisas firmes e essencialmente na sua presença. (Gaurdini, 1960, pp. 61-63).

Dessa forma, a sensação de insegurança não existe apenas em relação  ao mundo mas também em relação a si próprio: o homem como sujeito autônomo, com capacidade de domínio e controle não é mais uma evidência e norma. Faz-se necessário reencontrar própria humanidade e a realidade, de forma a descobrir um caminho para desenvolvimento pleno de si e da sua contribuição para a construção da sociedade.

b) anonimato: a presença marcante do anonimato, da impessoalidade na sociedade contemporânea é mais um traço e obstáculo a ser enfrentado na condição existencial do homem atual. O homem das massas, segundo Guardini, é levado a abrir mão de sua originalidade e responsabilidade no modo de conduzir a vida, aceitando o que lhe é proposto ou imposto exteriormente. Essa atitude é fruto da normatização de comportamento, verificados quando se reduz o homem a um mero número, passível de ser manipulado e conduzido à mercê dos interesses de quem está no poder.  Ele descreve com precisão a postura que o homem contemporâneo é estimulado a assumir pelo ambiente massificador no qual se encontra:

O homem como esse, de modo nenhum, tem vontade de ser particular na sua estrutura original da condução da sua vida, nem mesmo de criar para si um ambiente que se refira completamente a ele e se possível só a ele. Ele aceita antes as coisas correntes e as formas de vida que lhe são impostas pela planificação racional e e pelos produtos em série da máquina e uma maneira geral aceita isso com a idéia de que tudo está certo asim: mesmo quando não tem vontade de viver segundo a sua própria iniciativa. A liberdade de movimento interior e exterior parece não ter para ele um valor fundamental. Insere-se com naturalidade na organização que á a forma da massa e obedece ao programa de acordo como dictum “o homem sem personalidade”. O instinto desta estrutura do homem leva precisamente a não se distinguir enquanto indivíduo mas a ficar anônimo – quase como se a autonomia constituísse a forma fundamental de toda a injustiça e o princípio de todo o perigo. (Guardini, 2000, p. 55)

No contexto da massa, não há espaço para individualidade e desaparece o sentido da existência pessoal, estabelecendo-se as condições favoráveis para que o homem seja reduzido a objeto.  Essa tendência foi reforçada sobremaneira pelo fenômeno da globalização, que dificulta a identificação e a expressão de valores particulares e, mais ainda, a possibilidade de que esses se tornem fundamento da ação da pessoa no mundo.

O homem é uma totalidade em si, aberto para as outras totalidades que são os outros homens. Enquanto ser relacional, o homem necessita de outros para se formar e crescer como pessoa e, ao mesmo tempo, é capaz de independência, se expressa através de características próprias, singulares, únicas (2). A relação entre pessoa e grupo, individualidade e comunidade, deve ser de interdependência, não sendo possível conceber um sem o outro. É só dentro de uma relação dinâmica e recíproca com o grupo que há espaço para expressão pessoal, da individualidade.

No entanto, na sociedade atual a massa é uma realidade inevitável e é necessário que o homem possa encontrar caminhos para não ser absorvido pelo anonimato. Se a pessoa assume sua estrutura e caráter inalienável poderá encontrar na massa a possibilidade de emancipação, de expressão e contribuição original. (3)

c) progresso problemático: o homem hodierno já não tem confiança irrestrita no conhecimento científico: fatos históricos do século passado – como as duas grandes guerras – e descobertas científicas recentes – como os transgênicos, a clonagem, as pesquisas com células tronco embrionárias – implicam mudanças extraordinárias no alcance de ação humana sobre a realidade, sendo impossível prever todas suas implicações ou conseqüências. Dessa forma, a ciência não constitui mais um espaço no qual se possa abandonar com segurança: o homem olha para a o conhecimento científico com cautela.

Diferentemente do que se apostava na Idade Moderna, o conhecimento científico (ou cultura, como Guardini prefere referir-se por ser um conceito mais amplo) não constitui algo “natural”, não se desenvolve espontaneamente de forma adequada e legítima, mas está submetida às orientações e decisões humanas. Há que se encontrar critérios para orientar a aplicação justa e ética das incessantes descobertas e dados inéditos conquistados.

O homem da Idade Moderna é de opinião que todo o desenvolvimento do poder é em si um “progresso”; um acréscimo de segurança, de utilidade, de bem-estar, de força vital, de realização de valores. Na verdade o poder é algo que tem mais significações: pode realizar o bem como o mal, pode construir como destruir. As suas transformações dependem do pensamento que o orienta e do fim para o qual é utilizado. (...) O homem tem poder sobre as coisas, mas digamo-lo com mais certeza ainda, não tem poder sobre seu próprio poder. O homem é livre e pode usar o poder como quiser. Mas é aí precisamente que se encontra a possibilidade de lhe dar uma utilidade falsa; falsa no sentido de má como no de destruidora. O que garante uma utilização correta? Nada. Nada garante que a liberdade tome a decisão certa. Tudo o que pode existir é apenas probabilidade, que reside no fato de a boa vontade se tornar estado de espírito, numa atitude, num caráter. Mas a análise sem preconceitos deve concluir que não existe uma educação de caráter que torne possível a utilização correta do poder. (Guardini, 1950, p.74)

Para que enfrentar o problema do poder, isto é, para aprender a dominá-lo e fazer bom uso dele, Guardini indica quatro condições que se constituem em virtudes: em primeiro lugar, a seriedade, a busca da verdade imprescindível para dar-se conta do que está em jogo quando se fala de avanço ou progresso científico, identificando as conseqüências e responsabilidades que eles significam. Em segundo lugar, coragem para enfrentar a mentalidade dominante que tende a confundir mais do que a esclarecer. É preciso também um trabalho ascético, de auto-superação de forma a buscar obter autodomínio e ser dono do próprio poder. Por último, ele aponta a importância de “uma maneira de governar mais espiritualizada, na qual reine o poder sobre o poder, que distinga a justiça de injustiça, os meios dos fins.” (Guardini, 2000, p.76).

De qualquer modo, a constatação da necessidade de parâmetros para nortear o poder adquirido pelo avanço do conhecimento técnico-científico pode ser identificada por inúmeros fatos atuais, como o nascimento da Bioética, a promoção de movimentos mundiais pela paz, contra o terrorismo, etc.. Desse modo, o mito da autonomia, da neutralidade da ciência revelou-se infundado, ao passo que a necessidade de orientação e formação humanas apresenta-se cada vez mais premente.

Indicações para orientação e formação humana

O homem é ser finito mas pessoa autêntica; insuprimível na sua essência, inalienável na sua dignidade, insubstituível na sua responsabilidade. E a história não se processa como o prescreve a lógica de uma essência do mundo, ela é o que o homem livremente determina que seja. (Guardini, 2000, p. 67)

Para Guardini o processo formativo do ser humano possui dos pólos: a avaliação adequada do contexto cultural no qual se está inserido e a educação da pessoa para aquilo ao qual ela foi consignada. Primeiramente, há que se localizar no ambiente e mentalidade na qual se vive, tema ao qual o autor destinou grande parte de sua obra e ao que dedicamos a primeira parte desse artigo. O fundamental aqui é diferenciar e nomear com propriedade os diferentes valores e propostas culturais:

Se existe um verdadeiro trabalho formativo, ele é: voltar a levantar barreiras no caos; assinalar seus limites, separar umas esferas de outras; distinguir as diversas categorias de espíritos; tornar claro o que se exige em cada situação daqueles que querem compreender o espiritual. (…) Não chamar essa desolação de ordem, mas conservar as diferenças. Dizer claramente que a desordem é desordem, que a despudor é despudor. E ter o desejo que isso mude. (Guardini, 1965a, pp. 129-130). (tradução nossa)

Desse modo, o passo inicial para que o homem possa orientar-se pessoalmente, bem como ter discernimento para sua ação no mundo é a coragem para chegar a um juízo pessoal acerca da mentalidade dominante, pois não é possível subtrair-se ou ficar imune à forma de pensar hegemônica. É preciso conhecer e nomear o desamparo, o desencanto presentes na condição existencial, a necessidade de romper os limites asfixiantes nos quais a racionalidade moderna circunscreveu o mundo, buscar parâmetros para nortear a decisões e atuações humanas. Esta é uma urgência que se verifica na esfera cultural e científica mas também expressa o anseio profundo de cada ser humano, que para viver com dignidade, precisa de referências consistentes.

O segundo pólo da formação pessoal diz respeito a cada homem na concretude e singularidade de sua existência e deve ser assumido em primeira pessoa como afirma o próprio Guardini:

Nossa época está compreendendo claramente que “formar” é algo diferente de “ensinar”, algo diferente da aquisição da ciência e da ordenação do saber. É algo diferente também da conformação de uma imagem teorética ou estética do mundo. A formação é um trabalho realizado em um ser vivo; em sua imagem interna e externa; em seu mundo interior e seu entorno, a partir das energias e aspirações vivas desse homem” (Guardini, 1965a, p. 122). (tradução nossa)

O processo de formação e de orientação pessoal só tem sentido se estiver dirigido à imagem ou forma à qual o homem está configurado: a pessoa deve ser educada a realizar aquilo para que foi consignada, isto é, para ser ela mesma.  Nesse sentido, Guardini desaprova teorias formativas que se propõem a ensinar valores éticos, estéticos ou políticos; afirma que o fundamental na tarefa educativa não é transmitir valores, por mais nobres que sejam, mas acompanhar com flexibilidade o desenvolvimento do ser humano, de tal modo que ele possa alcançar a imagem ou a forma que lhe é própria.

Assim, a possibilidade de orientação diante do caos cultural – aqui sinalizados pela sensação de desamparo, pelo anonimato e pela problemática do emprego adequado do conhecimento científico -  está relacionada à capacidade do homem ver de modo mais amplo e, ao mesmo tempo, profundo a si mesmo e à realidade. É preciso deixar-se tocar pelo real, antes de buscar compreendê-lo por meio do pensamento; para ver – é possível estarmos diante de algo e simplesmente não vê-lo – é preciso uma decisão: acolher o que se apresenta, sem violentar o que existe.

Para que se possa ver com clareza e encontrar um caminho de saída para a confusão de valores na qual se encontra o homem contemporâneo Guardini faz duas indicações absolutamente não usuais e que, segundo ele, pode  ser causa de escândalo:

1. Contemplação: para enfrentar a forma de pensar racionalista e pragmática o autor propõe uma atitude reflexiva, que possibilite uma autêntica interioridade capaz de opor-se às tendências superficiais e dispersivas. A atitude de contemplação nada tem de abstrata ou mística, mas busca um certo “distanciamento” para poder ver de forma mais transparente e global o que ocorre, procurando transcender as falsas evidências ou os paradigmas já estabelecidos. É o próprio Guardini quem explica:

O núcleo pessoal deve experimentar uma consolidação que, partindo da consciência da verdade seja capaz, em cada caso, de estabelecer uma posição, que seja mais forte que as regras e a propaganda. Assim, o ato de se libertar – não somente da natureza, mas também do mundo circundante; do contexto da época e da sociedade; de convenções e tradições de toda espécie – buscará a capacidade de resistir realmente e de prevalecer. (Guardini, 1965b, p. 45). (tradução nossa)

A contemplação, portanto, é uma postura interior que o homem assume   de modo a poder ver e se posicionar de forma mais verdadeira. Trata-se de buscar ver a si mesmo, a própria vida de modo conjunto, colocando entre parênteses opiniões, posicionamentos ou problemas cotidianos para buscar olhar-se, considerar a própria pessoa em sua totalidade. Por isso, para Guardini, a saída para a crise cultural pós-moderna está em colocar o centro da consciência cultural mais profundamente no interior.

2. Ascese: o trabalho de auto-superação e de disciplina interna é fundamental para que o homem contemporâneo possa ultrapassar as dificuldades de seu tempo. É preciso ordenar-se de forma a discernir o essencial do casual, a possibilidade e da legitimidade (nem toda pesquisa aplicação possível é admissível), razoável e do não razoável, etc.

O homem deve voltar a assumir posicionamentos absolutos; tornar-se novamente capaz de formar um juízo autêntico acerca de temas da vida cultural e sustentá-lo; de adotar uma atitude e lutar para fazê-la prevalecer. Isso não se realiza por si só, mas por meio de atitudes que devem ser desenvolvidas o que, porém, consegue-se precisamente pela ascese. (Guardini, 1965b, p. 48). (tradução nossa)

Identificar a verdade e comprometer-se com ela é fruto de trabalho, de renuncia interior. É dessa atitude e empenho pessoal que, segundo Guardini, depende a solução dos problemas culturais e éticos contemporâneos: o que se espera e necessita não são considerações intelectuais inovadoras, mas atitudes de caráter, capazes de ver em profundidade, ordenar, discernir, julgar tendo como fundamentos a própria humanidade.

Quando o homem dispõe-se ao trabalho ascético, ele se dá conta de uma característica marcante da estrutura de seu ser: descobre-se capaz de transcender-se, de ir além do que é. Por meio de seus anseios pode vislumbrar ou chegar ao que gostaria ou deveria ser, estabelecendo-se, assim, uma tensão entre o ser e o desejo. Delineia-se diante dele uma trajetória de crescimento cuja meta é alcançar o que se está chamado a ser. Isto significa que o processo de formação e realização humana é construído durante toda sua existência, é um movimento dinâmico contínuo, onde constantemente o homem experimenta sua existência como um ‘ainda não’ ou um constante ‘tornar-se’, ‘vir-a-ser’. Assim, o homem está sempre a caminho de sua plena realização é um peregrino que se encontra sempre em percurso.

Portanto, a contemplação e a ascese são indicações precisas para que o homem contemporâneo possa ordenar sua existência e participar da construção de verdadeiros espaços de vida e morada no mundo. Essas duas atitudes promovem o deslocamento do centro da atenção e decisão humanas: os pontos de referência, os fundamentos passam a ser o homem, em sua integridade pessoal, e a realidade complexa na qual está inserido, sem censurar ou reduzir previamente qualquer de seus aspectos. São esses fundamentos, lucidamente apontados por Romano Guardini no século passado, que podem nortear o caminho para que a ciência, a cultura desenvolva-se a favor do homem e não contra ele. Por meio desses fundamentos, cada ser humano pode ter iluminada sua trajetória pessoal, de forma a construir uma existência autêntica e valiosa.

Referências bibliográficas
 
Rosa, J. G. (1986). Grande Sertão: veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.
 
Guardini, R. (1960). Cartas de formação. (R. Belo, Trad.) Lisboa: Áster. (Original publicado em 1922).
 
Guardini, R. (1963). O mundo e a pessoa. (F. Gil, Trad.). São Paulo: Livraria Duas Cidades. (Original publicado em 1952).
 
Guardini, R. (1965a). La fe en nuestro tiempo. (A. P. S. Pascual, Trad.) Madrid: Ediciones Cristiandad. (Original publicado em 1961).
 
Guardini, R. (1965b). Preocupacion por el hombre. (J. M. Valverde, Trad.) Madrid: Ediciones Castilla. (Original publicado em 1962).
 
Guardini, R. (2000). O fim da Idade Moderna. (M.S. Lourenço, Trad.). Lisboa: Edições 70. (Original publicado em 1950).

 

Notas
 
(1) Pós-modernidade aqui faz referência ao período histórico pois não se pode identificar questionamento ou contra posição aos paradigmas assumidos na modernidade. [volta]
 
(2) Esta singularidade e unicidade do ser faz da pessoa um valor em si, absoluto irredutível que, portanto, não pode ser instrumentalizada a nenhum fim. A pessoa vale por si mesma, independente de sua maior ou menor ‘utilidade’ social. [volta]
 
(3) Aí está, segundo Guardini, o sentido positivo da massa, já que nela pode nascer de uma solidariedade, uma camaradagem: “há camaradagem na existência: na futura obra do homem e no perigo futuro da humanidade. Se essa camaradagem é entendida a partir da pessoa, ela é então o que de melhor há na massa. A partir dela – nas condições transformadas que a própria massa cria – podem ser de novo reconquistados os valores humanos da bondade, da compreensão e da justiça.” Guardini, 2000, p. 59. [volta]

Nota sobre a autora

Sílvia Regina Brandão é Psicóloga, Doutora em Educação e Professora das Faculdades Santa Marcelina – São Paulo. Membro do Grupo de Educadores do Núcleo Fé e Cultura da PUC-SP, Brasil. Contato: ulisilvia@gmx.net

 

Data de recebimento: 15/01/2006
Data de aceite: 29/03/2006

 

Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/brandao01.htm

 

 

 

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