“Viver é muito perigoso...”
João Guimarães Rosa (1986, p.9)
A constatação poética do grande escritor João Guimarães
Rosa acerca da existência humana expressa particularmente a sensação do
homem contemporâneo diante do mundo. Ao contrário do que se supunha, o
extraordinário avanço técnico-científico não aumentou a segurança e
tranqüilidade humanas; a confiança no que se acreditava ser o ilimitado
progresso da ciência gerou uma capacidade inimaginável de destruição. A
percepção do perigo e da ameaça está presente e assume proporções
inéditas.
Para enfrentar esse
contexto conturbado e contraditório é importante compreender as raízes do
modo de pensar no qual se estruturam a forma de organizar e viver da
sociedade atual. A possibilidade do homem contemporâneo não submergir a
perspectivas nefastas e desumanas hodiernas está vinculada à capacidade de
avaliação adequada do contexto cultural em que está imerso e de
compreensão e afirmação de sua própria humanidade. O grande filósofo e
teólogo Romano Guardini (1885-1968) tornou-se referência intelectual e
humana – de modo particular para várias gerações de alunos universitários
alemães – exatamente por buscar afirmar e dialogar acerca da verdade
integral do homem diante das circunstâncias dramáticas do período entre
guerras e posterior à segunda guerra mundial. O autor oferece-nos uma obra
vastíssima que, além de apresentar uma antropologia filosófica precisa,
propõe critérios claros para crítica e superação de modos de pensar
reducionistas que, segundo ele, provocaram as dificuldades e impasses da
mentalidade contemporânea.
Um juízo sobre a Idade
Moderna
A Idade Moderna gosta de fundamentar as normas da
ciência na sua utilidade para o bem estar do homem. Assim se ocultaram as
devastações produzidas pela ausência de escrúpulos.
(Guardini, 2000, p. 52)
Com o intuito de indicar claves de orientação para o homem na complexa
realidade dos meados do século XX, Guardini propõe inicialmente uma
análise crítica da trajetória do pensamento humano, identificando
formulações e conceitos que construíram, em cada época, certa imagem da
existência e do mundo. Particularmente determinante para o seu tempo, e
sem dúvida nenhuma para o momento atual, é a forma de pensar da época
moderna. Em uma obra dedicada exclusivamente a esse tema (O fim da
Idade Moderna, originalmente publicada em 1950),
o autor estabelece um juízo preciso e perspicaz sobre a
Idade Média, a Idade Moderna e lança um olhar impressionantemente
profético sobre a época futura, para ele, desconhecida e, para nós,
vivamente presente.
Os tempos modernos são inaugurados por dois movimentos humanos: o impulso
de conhecer a realidade por si mesmo, autonomamente, a partir de própria
inteligência e o desejo de libertar-se dos modelos anteriores, concebidos
como limitantes ou aprisionadores do pensamento. O homem entendido como
indivíduo torna-se importante por si mesmo, sem qualquer referência
exterior ou transcendente, contrapondo-se à Idade Média, para qual o
divino era o elemento primeiro, que fundamentava a concepção que o homem
tinha de si e do mundo.
Guardini aponta três
aspectos elementares para compreender a imagem do mundo formulada pelos
tempos modernos: a natureza, o sujeito-personalidade e a
cultura. Em primeiro lugar, o conceito de natureza, considerada
como um valor, ponto de referência para nortear, referendar descobertas e
atitudes:
O
conceito moderno de natureza refere-se ao dado imediato; ao conjunto das
coisas, antes que o homem faça qualquer coisa nelas; ao conjunto das
energias e das substâncias, essências e leis. Este conjunto é
experimentado como pressuposto da existência, e como tarefa a desempenhar
pelo conhecimento e pela criação. Mas “natureza’’ também significa um
conceito valorativo, a norma obrigatória de todo conhecimento e de toda
criação, do justo, do saudável e perfeito, precisamente o que se entende
por “natural”. Daí os critérios de toda existência válida: do homem
natural, da sociedade natural e da forma do estado, da educação, da
maneira de viver. Tal como se realizam desde o século XVI ao século XX. (Guardini,
2000, p.38)
A natureza adquire
um caráter sagrado, a mãe natureza, fonte de vida, de harmonia e de
critérios para o conhecimento, para ação. Esta forma de conceber a
natureza abarca também o próprio ser humano: ele também pertence à
natureza, porém, é capaz de separa-se para explorá-la, para dela se
apropriar. Em certo sentido ele se opõe à natureza, descobrindo-se
sujeito, que é um segundo elemento fundamental para compreensão da
existência nos tempos modernos. Este sujeito, segundo Guardini,
caracteriza-se por ser uma personalidade – com possibilidades
próprias de desenvolvimento, de expressão e de criação – e por ser
enraizado, fundado em si mesmo (subjetividade):
A
subjectividade aparece como “personalidade”, como forma humana que se
desenvolve a partir de disposições e iniciativas próprias. Tal como a
Natureza, é um elemento primordial que não deve ser posto em questão. Em
especial a grande personalidade tem que ser compreendida a partir dela
própria e justificar as suas ações pela sua própria originalidade. As
normas morais, aplicadas a ela, parecem-lhe relativas. A norma é
descoberta no homem genial e aplicada depois a qualquer homem e o ethos do
bem e da verdade objectivos é substituído pela autenticidade e pela
sinceridade. Assim como o conceito de personalidade se forma na
originalidade do ser individual, vivido, assim, também aquilo a que ele se
refere recebe a sua expressão formal no conceito de “sujeito”. Constitui o
suporte dos actos de valor como a unidade das categorias que determinam
este valor. A sua determinação mais penetrante encontra-se na filosofia de
Kant. Para ela o sujeito lógico, ético e estético é um elemento primordial
para lá do qual nada mais pode ser pensado. Tem o carácter de autonomia,
permanece em si próprio e fundamenta o sentido da vida espiritual. Tudo o
que se pode deduzir da personalidade ou do sujeito é definitivamente
compreendido; todo comportamento conforme a personalidade está
justificado. (Guardini, 2000, p.41)
O homem centrado em
si propõe-se como modelo através das grandes personalidades que passam a
se destacar e a ser valorizadas pela sua genialidade humana. Concebendo-se
como personalidade o homem torna-se senhor e árbitro de sua própria
existência, não necessita e nem admite nenhuma referência ou fundamento
exterior a ele. Qualquer ato é justificado e legitimado pelo próprio
sujeito: ele é independente, capaz de lançar-se inteligentemente no mundo,
destaca-se e orgulha-se disso. A autonomia é verificada não apenas pela
concepção que o homem moderno tem da sua existência, como também pela
ênfase dada a uma obra humana denominada de cultura, que constitui
o terceiro elemento peculiar dos tempos modernos destacado por Guardini:
É
da Idade Moderna que nasce a técnica, conjunto de processos que permitem
ao homem prosseguir os seus fins. A ciência, a política, a economia, a
arte, a pedagogia, afastam-se cada vez mais conscientemente dos vínculos
da Fé e também de uma ética que impõe obrigações, e criam a sua autonomia
a partir da sua essência. Enquanto cada um destes domínios particulares se
fundamenta em si próprio, todos estão em princípio numa relação comum que
se constrói a partir deles e que ao mesmo tempo os suporta. É a “cultura”,
enquanto conjunto da obra do homem independente de Deus e da sua
Revelação. (Guardini, 2000, p. 42)
Assim, o que inicialmente tinha sido assumido como ideal – a autonomia –
tornou-se cada vez mais a posição natural do homem, inclusive na forma de
pensar, fazendo com que os diferentes ramos do saber fossem regidos
exclusivamente por normas internas, segundo leis próprias. Ao buscar
compreender e controlar fenômenos de diversas áreas de conhecimento –
naturais, humanos, políticos, filosóficos – foram descobertos novos
objetos e métodos de estudo, gerando uma possibilidade completamente
inédita de apreensão e ação no mundo. A capacidade racional do homem
revela-se surpreendente, a ciência e a técnica trazem a sensação de
segurança e favorecem o bem estar, enfim, o futuro revela-se promissor. Os
tempos modernos têm confiança no progresso do homem e da ciência, que
deverão se desenvolver continua e indubitavelmente, como que por geração
espontânea.
Os três elementos –
a natureza, o sujeito-personalidade e a cultura –
estão, conforme explica Guardini, relacionados entre si, são
complementares, estruturam-se internamente e desenvolvem-se por si mesmos,
recusando qualquer fundamento ou norma exterior que sugerisse uma
ordenação diferente da natural:
Torna-se assim um problema de estrutura psicológica ou da situação
histórico-espiritual saber como entram em relações recíprocas os dados
originários da natureza, do sujeito, e, entre ambos, a cultura – a
existência como objecto, como eu e como tarefa. O centro de gravidade pode
ser colocado na natureza, e o sujeito é então entendido como órgão dela;
assim aconteceu na filosofia da natureza do Renascimento e do Romantismo.
Nesse caso, a cultura apresentar-se-á também como emanação da natureza;
como um edifício em que a natureza se constrói e se supera a si própria
pelo instrumento mediador do sujeito pensante. Ou, diferentemente, o
centro de gravidade pode ser colocado na individualidade, e a natureza
aparece como uma massa caótica de possibilidades, das quais, soberanamente
ordenador, o sujeito extrai o mundo da cultura – é o que se verifica na
filosofia de Kant. Finalmente, natureza e sujeito podem ser considerados
dois pontos de apoio de igual importância, processando-se entre eles, num
movimento que simultaneamente transcende a natureza e a pessoa, o devir
cultural: assim sucede com Hegel. (Guardini, 1963, p. 24)
De qualquer maneira, a independência é a característica fundamental
da época moderna. Guardini chama a atenção para o risco que representa
assumir a natureza como valor em si, conceber o homem como sujeito
autônomo, juiz de si mesmo e atribuir soberania à cultura, aos diversos
ramos do saber. O perigo de tal concepção reside em fundar no sujeito toda
a capacidade de conhecimento, de juízo moral, apostando na capacidade dele
e de sua obra – em particular a cultura e a ciência. A história referendou
a gravidade e magnitude deste risco, confirmando com os fatos, a
ingenuidade desse otimismo moderno.
Entretanto, esta imagem que o homem adquiriu de si, de sua existência, do
mundo a partir dos tempos modernos foi assumida nos séculos que se
seguiram, tornando-se uma concepção estabelecida, transmitida pela
sociedade e adotada, consciente ou inconscientemente, pelos indivíduos.
Acompanha-o também, desta época em diante, novas provocações e tarefas que
são conseqüências desta nova posição.
Herança pós-moderna
(1)
-
Muita gente já admite que a cultura não é o que a Idade
Moderna pensa dela: não uma bela segurança, mas um risco de vida e de
morte do qual ninguém sabe em que resultará.
(Guardini, 2000, p. 72)
Ser autônomo para decidir e conduzir a própria existência, ser ousado e
criador, apostar na própria capacidade de conhecimento e avaliação são
características que o homem conquistou para sempre. Porém, a essa
extraordinária possibilidade de conhecimento, de domínio do mundo não
corresponde uma evolução ou amadurecimento moral para discernimento e uso
adequado do poder adquirido, inaugurando uma nova e problemática condição
cultural.
O
século XX, de forma particular, revelou dramaticamente a insuficiência ou
parcialidade da forma de pensar moderna. Essa constatação instala uma nova
situação existencial para o homem hodierno, que pode ser identificada
através de algumas características que são interdependentes pois
potencializam-se umas às outras:
a) desamparo:
a partir da modernidade o homem aventura-se por um mundo que se descortina
à sua frente e lança-se com coragem para um desconhecido sem limites.
Porém, esse mesmo mundo revela-se inóspito, por já não constituir um lugar
seguro, familiar. O homem descobre-se livre para se movimentar, mas sem
morada no mundo.
Aparece o homem senhor de si próprio, que atua, arrisca e cria, que é
trazido pelo seu ‘ingenium’, conduzido pela ‘fortuna’,
recompensado pela ‘fama’ e pela ‘glória’. Mas com isso perde
também o homem o lugar objetivo, que a sua consciência tinha na antiga
imagem do mundo, e cria-se o sentimento de abandono e de ameaça. Aparece a
angústia do homem moderno, que é diferente da do homem medieval. (…) A
angústia da Idade Moderna é devida em grande parte ao sentimento de não
ter nem um lugar simbólico, nem um refúgio que seja imediatamente
convincente; e também da experiência sempre renovada de não encontrar no
mundo um lugar para existência e que satisfaça a sua necessidade de
sentido. (Guardini, 2000, p. 37)
Assim, a pretensa conquista do real, paradoxalmente, resultou no oposto:
domina-se e, ao mesmo tempo, perde-se o mundo. O homem apercebe-se num
mundo fechado, onde a existência humana revela-se carente de abrigo, de
porto seguro, de sentido. A concepção finita de mundo só aumenta a
sensação de desamparo, já que para além do mundo não há nada, não há algo
superior a ele, de modo que esse mundo sem morada é tudo: “atrás da
tentativa de conquista das coisas, desperta o sentimento de que elas são
aparências. (...) A base da aparência torna-se aí a base da autonomia
desesperada, da existência fechada na sua carência de sentido. O mundo
fechou-se sobre si mesmo. Não se sai dele, quer caminhando para o
interior, quer subindo para o alto. Está cerrado no seu topo como no seu
seio.” (Guardini, 1963, pp. 99, 108).
Acrescenta-se a essa experiência de desamparo, o questionamento quanto
independência e legitimidade de juízos formulados acerca da realidade e da
própria existência. O homem descobre-se frágil para continuar assumindo a
condição de senhor e árbitro de si e do mundo. Tudo é colocado em questão,
a própria realidade é percebida como suspensa. Guardini descreve com
lucidez e certa indignação, a situação dramática em que o esse homem se
colocou:
No século passado e nos princípios deste, cada um dos homens constituía
uma espécie à parte. Poderíamos dizer que estavam encerrados em si
próprios. Lá estavam em suas casas, fábricas e escritórios, e não eram
capazes de contemplar retamente o mundo exterior. É claro que havia
exceções, que foram aumentando cada vez mais. Mas a generalidade vivia
numa autêntica prisão. Davam muitos passeios, mas no íntimo não viviam
entre as árvores e as feras, mas no campo e na montanha. Eram homens de
estufa. Entre eles e a cor e a vivacidade das coisas lá de fora erguia-se
um muro. Escreveram grandes tratados para ver se, na realidade, existia o
mundo ou tudo era aparência ou ilusão. Não é estranho que os homens
duvidem da realidade, do enorme choupo que têm diante dos olhos, com as
suas esplêndidas ramagens e as suas folhas ébrias de luz verde-dourada? Ou
se são reais o rio e o mar? Não é fácil compreender o pensamento deles.
Esses homens chegaram ao extremo de se olharem ao espelho e perguntarem se
realmente estavam ali! Não nos podemos rir disto; era uma dolorosa
realidade! Mergulharam tão profundamente nos seus conceitos e cálculos que
se perderam a si próprios e perderam o mundo. Pensavam que não havia nada
além do que se podia desmontar. (...) O mundo era problemático para eles.
Torturavam-se com cálculos e abstrações, e nem sequer vislumbravam que
tinham as coisas firmes e essencialmente na sua presença. (Gaurdini, 1960,
pp. 61-63).
Dessa forma, a sensação de insegurança não existe apenas em relação ao
mundo mas também em relação a si próprio: o homem como sujeito autônomo,
com capacidade de domínio e controle não é mais uma evidência e norma.
Faz-se necessário reencontrar própria humanidade e a realidade, de forma a
descobrir um caminho para desenvolvimento pleno de si e da sua
contribuição para a construção da sociedade.
b) anonimato: a presença marcante do anonimato, da
impessoalidade na sociedade contemporânea é mais um traço e obstáculo a
ser enfrentado na condição existencial do homem atual.
O
homem das massas,
segundo Guardini, é levado a abrir mão de sua originalidade e
responsabilidade no modo de conduzir a vida, aceitando o que lhe é
proposto ou imposto exteriormente. Essa atitude é fruto da
normatização de comportamento, verificados quando se reduz o homem a um
mero número, passível de ser manipulado e conduzido à mercê dos interesses
de quem está no poder. Ele descreve com precisão a postura que o homem
contemporâneo é estimulado a assumir pelo ambiente massificador no qual se
encontra:
O
homem como esse, de modo nenhum, tem vontade de ser particular na sua
estrutura original da condução da sua vida, nem mesmo de criar para si um
ambiente que se refira completamente a ele e se possível só a ele. Ele
aceita antes as coisas correntes e as formas de vida que lhe são impostas
pela planificação racional e e pelos produtos em série da máquina e uma
maneira geral aceita isso com a idéia de que tudo está certo asim: mesmo
quando não tem vontade de viver segundo a sua própria iniciativa. A
liberdade de movimento interior e exterior parece não ter para ele um
valor fundamental. Insere-se com naturalidade na organização que á a forma
da massa e obedece ao programa de acordo como dictum “o homem sem
personalidade”. O instinto desta estrutura do homem leva precisamente a
não se distinguir enquanto indivíduo mas a ficar anônimo – quase como se a
autonomia constituísse a forma fundamental de toda a injustiça e o
princípio de todo o perigo. (Guardini, 2000, p. 55)
No contexto da
massa, não há espaço para individualidade e desaparece o sentido da
existência pessoal, estabelecendo-se as condições favoráveis para que o
homem seja reduzido a objeto. Essa tendência foi reforçada sobremaneira
pelo fenômeno da globalização, que dificulta a identificação e a expressão
de valores particulares e, mais ainda, a possibilidade de que esses se
tornem fundamento da ação da pessoa no mundo.
O homem é uma
totalidade em si, aberto para as outras totalidades que são os outros
homens. Enquanto ser relacional, o homem necessita de outros para se
formar e crescer como pessoa e, ao mesmo tempo, é capaz de independência,
se expressa através de características próprias, singulares, únicas (2). A
relação entre pessoa e grupo, individualidade e comunidade, deve ser de
interdependência, não sendo possível conceber um sem o outro. É só dentro
de uma relação dinâmica e recíproca com o grupo que há espaço para
expressão pessoal, da individualidade.
No entanto, na
sociedade atual a massa é uma realidade inevitável e é necessário que o
homem possa encontrar caminhos para não ser absorvido pelo anonimato. Se a
pessoa assume sua estrutura e caráter inalienável poderá encontrar na
massa a possibilidade de emancipação, de expressão e contribuição
original. (3)
c) progresso
problemático: o homem hodierno já não tem confiança irrestrita no
conhecimento científico: fatos históricos do século passado – como as duas
grandes guerras – e descobertas científicas recentes – como os
transgênicos, a clonagem, as pesquisas com células tronco embrionárias –
implicam mudanças extraordinárias no alcance de ação humana sobre a
realidade, sendo impossível prever todas suas implicações ou
conseqüências. Dessa forma, a ciência não constitui mais um espaço no qual
se possa abandonar com segurança: o homem olha para a o conhecimento
científico com cautela.
Diferentemente do
que se apostava na Idade Moderna, o conhecimento científico (ou cultura,
como Guardini prefere referir-se por ser um conceito mais amplo) não
constitui algo “natural”, não se desenvolve espontaneamente de forma
adequada e legítima, mas está submetida às orientações e decisões humanas.
Há que se encontrar critérios para orientar a aplicação justa e ética das
incessantes descobertas e dados inéditos conquistados.
-
O homem da Idade
Moderna é de opinião que todo o desenvolvimento do poder é em si um
“progresso”; um acréscimo de segurança, de utilidade, de bem-estar, de
força vital, de realização de valores. Na verdade o poder é algo que tem
mais significações: pode realizar o bem como o mal, pode construir como
destruir. As suas transformações dependem do pensamento que o orienta e
do fim para o qual é utilizado. (...) O homem tem poder sobre as coisas,
mas digamo-lo com mais certeza ainda, não tem poder sobre seu próprio
poder. O homem é livre e pode usar o poder como quiser. Mas é aí
precisamente que se encontra a possibilidade de lhe dar uma utilidade
falsa; falsa no sentido de má como no de destruidora. O que garante uma
utilização correta? Nada. Nada garante que a liberdade tome a decisão
certa. Tudo o que pode existir é apenas probabilidade, que reside no
fato de a boa vontade se tornar estado de espírito, numa atitude, num
caráter. Mas a análise sem preconceitos deve concluir que não existe uma
educação de caráter que torne possível a utilização correta do poder. (Guardini,
1950, p.74)
Para que enfrentar o
problema do poder, isto é, para aprender a dominá-lo e fazer
bom uso dele,
Guardini indica quatro condições que se constituem em virtudes: em
primeiro lugar, a seriedade, a busca da verdade imprescindível para
dar-se conta do que está em jogo quando se fala de avanço ou progresso
científico, identificando as conseqüências e responsabilidades que eles
significam. Em segundo lugar, coragem para enfrentar a mentalidade
dominante que tende a confundir mais do que a esclarecer. É preciso também
um trabalho ascético, de auto-superação de forma a buscar obter
autodomínio e ser dono do próprio poder. Por último, ele aponta a
importância de “uma maneira de governar mais espiritualizada, na
qual reine o poder sobre o poder, que distinga a justiça de injustiça, os
meios dos fins.” (Guardini, 2000, p.76).
De qualquer modo, a
constatação da necessidade de parâmetros para nortear o poder adquirido
pelo avanço do conhecimento técnico-científico pode ser identificada por
inúmeros fatos atuais, como o nascimento da Bioética, a promoção de
movimentos mundiais pela paz, contra o terrorismo, etc.. Desse modo, o
mito da autonomia, da neutralidade da ciência revelou-se infundado, ao
passo que a necessidade de orientação e formação humanas apresenta-se cada
vez mais premente.
Indicações para orientação e formação humana
O homem é ser finito mas pessoa autêntica; insuprimível na
sua essência, inalienável na sua dignidade, insubstituível na sua
responsabilidade. E a história não se processa como o prescreve a lógica
de uma essência do mundo, ela é o que o homem livremente determina que
seja.
(Guardini, 2000, p. 67)
Para Guardini o processo formativo do ser humano possui dos pólos: a
avaliação adequada do contexto cultural no qual se está inserido e a
educação da pessoa para aquilo ao qual ela foi consignada. Primeiramente,
há que se localizar no ambiente e mentalidade na qual se vive, tema ao
qual o autor destinou grande parte de sua obra e ao que dedicamos a
primeira parte desse artigo. O fundamental aqui é diferenciar e nomear com
propriedade os diferentes valores e propostas culturais:
Se existe um
verdadeiro trabalho formativo, ele é: voltar a levantar barreiras no caos;
assinalar seus limites, separar umas esferas de outras; distinguir as
diversas categorias de espíritos; tornar claro o que se exige em cada
situação daqueles que querem compreender o espiritual. (…) Não chamar essa
desolação de ordem, mas conservar as diferenças. Dizer claramente que a
desordem é desordem, que a despudor é despudor. E ter o desejo que isso
mude. (Guardini, 1965a, pp. 129-130). (tradução nossa)
Desse modo, o passo
inicial para que o homem possa orientar-se pessoalmente, bem como ter
discernimento para sua ação no mundo é a coragem para chegar a um juízo
pessoal acerca da mentalidade dominante, pois não é possível subtrair-se
ou ficar imune à forma de pensar hegemônica. É preciso conhecer e nomear o
desamparo, o desencanto presentes na condição existencial, a necessidade
de romper os limites asfixiantes nos quais a racionalidade moderna
circunscreveu o mundo, buscar parâmetros para nortear a decisões e
atuações humanas. Esta é uma urgência que se verifica na esfera cultural e
científica mas também expressa o anseio profundo de cada ser humano, que
para viver com dignidade, precisa de referências consistentes.
O segundo pólo da
formação pessoal diz respeito a cada homem na concretude e singularidade
de sua existência e deve ser assumido em primeira pessoa como afirma o
próprio Guardini:
Nossa época está
compreendendo claramente que “formar” é algo diferente de “ensinar”, algo
diferente da aquisição da ciência e da ordenação do saber. É algo
diferente também da conformação de uma imagem teorética ou estética do
mundo. A formação é um trabalho realizado em um ser vivo; em sua imagem
interna e externa; em seu mundo interior e seu entorno, a partir das
energias e aspirações vivas desse homem” (Guardini, 1965a, p. 122).
(tradução nossa)
O processo de formação e de orientação pessoal só tem
sentido se estiver dirigido à imagem ou forma à qual o homem está
configurado: a pessoa deve ser educada a realizar aquilo para que foi
consignada, isto é, para ser ela mesma.
Nesse sentido,
Guardini desaprova teorias formativas que se propõem a ensinar valores
éticos, estéticos ou políticos; afirma que o fundamental na tarefa
educativa não é transmitir valores, por mais nobres que sejam, mas
acompanhar com flexibilidade o desenvolvimento do ser humano, de tal modo
que ele possa alcançar a imagem ou a forma que lhe é própria.
Assim, a
possibilidade de orientação diante do caos cultural – aqui sinalizados
pela sensação de desamparo, pelo anonimato e pela problemática do emprego
adequado do conhecimento científico - está relacionada à capacidade do
homem ver de modo mais amplo e, ao mesmo tempo, profundo a
si mesmo e à realidade. É preciso deixar-se tocar pelo real, antes de
buscar compreendê-lo por meio do pensamento; para ver – é possível
estarmos diante de algo e simplesmente não vê-lo – é preciso uma decisão:
acolher o que se apresenta, sem violentar o que existe.
Para que se possa
ver com clareza e encontrar um caminho de saída para a confusão de valores
na qual se encontra o homem contemporâneo Guardini faz duas indicações
absolutamente não usuais e que, segundo ele, pode ser causa de escândalo:
1. Contemplação:
para enfrentar a forma de pensar racionalista e pragmática o autor propõe
uma atitude reflexiva, que possibilite uma autêntica interioridade capaz
de opor-se às tendências superficiais e dispersivas. A atitude de
contemplação nada tem de abstrata ou mística, mas busca um certo
“distanciamento” para poder ver de forma mais transparente e global o que
ocorre, procurando transcender as falsas evidências ou os paradigmas já
estabelecidos. É o próprio Guardini quem explica:
O núcleo pessoal
deve experimentar uma consolidação que, partindo da consciência da verdade
seja capaz, em cada caso, de estabelecer uma posição, que seja mais forte
que as regras e a propaganda. Assim, o ato de se libertar – não somente da
natureza, mas também do mundo circundante; do contexto da época e da
sociedade; de convenções e tradições de toda espécie – buscará a
capacidade de resistir realmente e de prevalecer. (Guardini, 1965b, p.
45). (tradução nossa)
A contemplação,
portanto, é uma postura interior que o homem assume de modo a poder ver
e se posicionar de forma mais verdadeira. Trata-se de buscar ver a si
mesmo, a própria vida de modo conjunto, colocando entre parênteses
opiniões, posicionamentos ou problemas cotidianos para buscar olhar-se,
considerar a própria pessoa em sua totalidade. Por isso, para Guardini, a
saída para a crise cultural pós-moderna está em colocar o centro da
consciência cultural mais profundamente no interior.
2. Ascese: o
trabalho de auto-superação e de disciplina interna é fundamental para que
o homem contemporâneo possa ultrapassar as dificuldades de seu tempo. É
preciso ordenar-se de forma a discernir o essencial do casual, a
possibilidade e da legitimidade (nem toda pesquisa aplicação possível é
admissível), razoável e do não razoável, etc.
O homem deve voltar
a assumir posicionamentos absolutos; tornar-se novamente capaz de formar
um juízo autêntico acerca de temas da vida cultural e sustentá-lo; de
adotar uma atitude e lutar para fazê-la prevalecer. Isso não se realiza
por si só, mas por meio de atitudes que devem ser desenvolvidas o que,
porém, consegue-se precisamente pela ascese. (Guardini, 1965b, p. 48).
(tradução nossa)
Identificar a
verdade e comprometer-se com ela é fruto de trabalho, de renuncia
interior. É dessa atitude e empenho pessoal que, segundo Guardini, depende
a solução dos problemas culturais e éticos contemporâneos: o que se espera
e necessita não são considerações intelectuais inovadoras, mas atitudes de
caráter, capazes de ver em profundidade, ordenar, discernir, julgar tendo
como fundamentos a própria humanidade.
Quando o homem dispõe-se ao trabalho ascético, ele se dá
conta de uma característica marcante da estrutura de seu ser: descobre-se
capaz de transcender-se, de ir além do que é. Por meio de seus anseios
pode vislumbrar ou chegar ao que gostaria ou deveria ser,
estabelecendo-se, assim, uma tensão entre o ser e o desejo. Delineia-se
diante dele uma trajetória de crescimento cuja meta é alcançar o que se
está chamado a ser. Isto significa que o processo de formação e realização
humana é construído durante toda sua existência, é um movimento dinâmico
contínuo, onde constantemente o homem experimenta sua existência como um
‘ainda não’ ou um constante ‘tornar-se’, ‘vir-a-ser’. Assim, o homem está
sempre a caminho de sua plena realização é um peregrino que se encontra
sempre em percurso.
Portanto, a
contemplação e a ascese são indicações precisas para que o
homem contemporâneo possa ordenar sua existência e participar da
construção de verdadeiros espaços de vida e morada no mundo. Essas duas
atitudes promovem o deslocamento do centro da atenção e decisão humanas:
os pontos de referência, os fundamentos passam a ser o homem, em sua
integridade pessoal, e a realidade complexa na qual está inserido, sem
censurar ou reduzir previamente qualquer de seus aspectos. São esses
fundamentos, lucidamente apontados por Romano Guardini no século passado,
que podem nortear o caminho para que a ciência, a cultura desenvolva-se a
favor do homem e não contra ele. Por meio desses fundamentos, cada ser
humano pode ter iluminada sua trajetória pessoal, de forma a construir uma
existência autêntica e valiosa.
-
Referências
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Guardini, R.
(2000). O fim da Idade Moderna. (M.S. Lourenço, Trad.). Lisboa:
Edições 70. (Original publicado em 1950).
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Notas
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(1) Pós-modernidade aqui faz referência ao período
histórico pois não se pode identificar questionamento ou contra posição
aos paradigmas assumidos na modernidade. [volta]
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(2) Esta singularidade
e unicidade do ser faz da pessoa um valor em si, absoluto irredutível
que, portanto, não pode ser instrumentalizada a nenhum fim. A pessoa
vale por si mesma, independente de sua maior ou menor ‘utilidade’ social.
[volta]
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(3) Aí
está, segundo Guardini, o sentido positivo da massa, já que nela pode
nascer de uma solidariedade, uma camaradagem: “há camaradagem na
existência: na futura obra do homem e no perigo futuro da humanidade. Se
essa camaradagem é entendida a partir da pessoa, ela é então o que de
melhor há na massa. A partir dela – nas condições transformadas que a
própria massa cria – podem ser de novo reconquistados os valores humanos
da bondade, da compreensão e da justiça.”
Guardini,
2000, p. 59.
[volta]
Nota
sobre a autora
Sílvia Regina Brandão
é Psicóloga, Doutora em Educação e Professora das Faculdades Santa
Marcelina – São Paulo. Membro do Grupo de Educadores do Núcleo Fé e
Cultura da PUC-SP, Brasil. Contato: ulisilvia@gmx.net
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Data de recebimento: 15/01/2006
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Data de
aceite: 29/03/2006
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/brandao01.htm