No dia 29 de abril de 2006 faleceu em São Paulo nossa
querida mestra, colega e amiga Sílvia Tatiana Maurer Lane, pessoa de
grande dignidade e delicadeza, responsável pela criação de uma verdadeira
“escola” de Psicologia Social no Brasil, conhecida como “Psicologia Social
laneana”, ou “Escola de São Paulo” (Sawaia, 2002, p.37). A abordagem à
Psicologia Social proposta por Lane, denominada Psicologia crítica
sócio-histórica, caracteriza-se por considerar a dialética sócio-cultural
como constitutiva do ser humano, ao mesmo tempo enfatizando a força
transformadora e criadora da consciência. De inspiração marxiana, e de
mãos dadas com a Psicologia da Libertação de Martin-Baró, essa perspectiva
de análise dos processos psicossociais baseia-se na indissociabilidade
entre a teoria, a metodologia e a prática transformadora. Para Sílvia,
toda a Psicologia seria social, já que o ser humano se constitui no
social, sendo produto e produtor da história, a partir do domínio dos
instrumentos de trabalho e do desenvolvimento da linguagem. Assim, os
objetos de estudo da Psicologia Social devem ser a linguagem e o grupo,
pois é a partir desses dois processos que o ser humano encontra a sua
identidade. A metodologia a ser utilizada deve ser “participativa e
qualitativa”, visando “conhecer as pessoas, seus problemas e emoções e
potencializá-las à emancipação” (Lane, 1984, p.19). Essa idéia de que o
conhecimento leva necessariamente à ação transformadora, à práxis, em
busca de uma vida mais plena e satisfatória em termos éticos atravessa
toda a obra de Sílvia na área da Psicologia Social, e é a marca que a
distingue. Mas como Sílvia chegou a elaborar esse referencial de análise?
Vamos acompanhar sua trajetória buscando compreender como ela foi
construindo progressivamente essa perspectiva teórica que se tornou
conhecida e respeitada nacional e internacionalmente, inspirando o
trabalho e a pesquisa de tantos estudantes e colegas que com ela
conviveram e atuaram em diversas instituições, a partir de seu trabalho
como professora de Psicologia Social, fundadora do Programa de
Pós-graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo e da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).
Sílvia Lane nasceu em São Paulo, em uma família de origem
suíço-alemã (por parte de pai) e eslava (por parte da mãe). A convivência
com o pai, professor universitário, e o tio, especializado em filologia,
parece ter despertado nela o gosto pelo trabalho intelectual. A
convivência com a mãe, marcada pela experiência da 1ª. Guerra Mundial, na
Lituânia, deve ter legado à filha o horror à violência. Formada em
Filosofia na USP – teve como professores intelectuais como Cruz Costa,
Antonio Cândido, Gilda Mello e Souza, Dante Moreira Leite, Carolina Bori e
Annita Cabral. Annita ensinou-lhe as primeiras lições de Psicologia,
através da leitura de Koffka. Na Faculdade, entre 1952 e 1956, envolveu-se
nas atividades do Centro Acadêmico e, segundo Sawaia (2002), foi nessa
época que a questão da linguagem passou a preocupá-la, especialmente as
diferenças no significado das palavras para grupos sociais diversos, tema
que escolheu para desenvolver em sua tese de Doutorado, defendida em 1972,
sob a orientação de Aniela Ginsberg. Em 1955, obteve bolsa de estudos para
estudar Psicologia durante um ano no Wellesley College, nos Estados
Unidos, onde conheceu o trabalho de Solomon Asch. Após obter o bacharelado
e a licenciatura em Filosofia, em 1956, foi Assistente de Pesquisa da
Divisão Educacional do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São
Paulo, entre 1956 e 1960, chegando a ocupar o cargo de diretora da Divisão
no período 1959-1960. Iniciou a carreira docente em 1957 como professora
de Psicologia Geral na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha de São Paulo
e em 1965, a convite de Maria do Carmo Guedes, tornou-se professora de
Psicologia Social e da Personalidade na Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Após a defesa da tese de Doutorado, em 1972, criou o
Programa de Pós-graduação em Psicologia Social na mesma universidade, o
segundo Programa de Pós-graduação em Psicologia a ser estabelecido no
Brasil, e iniciou a trajetória de pesquisadora na área, orientando dezenas
de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado. A partir dessa época
participou ativamente da ALAPSO (Associação Latino-americana de Psicologia
Social), cuja diretoria integrou entre 1977 e 1980, e da Sociedade
Interamericana de Psicologia (SIP).
Foi no congresso da SIP, em 1979, em meio às discussões
sobre a chamada “crise” da Psicologia, em especial da Psicologia
latino-americana, considerada pouco relevante na solução dos problemas
sociais e políticos em que se debatia a região, que foi aprovada
recomendação sugerindo a criação de associações nacionais de Psicologia
Social, visando focalizar a realidade de cada país e incentivar o
intercâmbio de pesquisadores e estudiosos. Sensibilizada com a idéia,
Sílvia propôs a criação de uma Associação Brasileira de Psicologia Social,
a ABRAPSO, durante a 32ª. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o
Progresso da Ciência, em julho de 1980, e foi sua primeira Presidente. A
ABRAPSO passou a ser, a partir dessa época, o principal fórum de discussão
e divulgação da pesquisa em Psicologia Social feita no Brasil, voltada
para o conhecimento das condições psicossociais da população brasileira, e
para o debate sobre as práticas transformadoras de que Sílvia era uma das
principais incentivadoras.
Também nessa época ela inicia as publicações que a tornaram
internacionalmente reconhecida por sua proposta original para uma agenda
para a Psicologia Social latino-americana e brasileira, ao mesmo tempo
crítica, teoricamente bem fundamentada e voltada para a práxis
transformadora. A primeira dessas publicações foi o volume O que é
Psicologia Social (Lane, 1981). Esse pequeno trabalho despertou tanto
interesse que logo em seguida Sílvia organiza, juntamente com o orientando
e colega Wanderley Codo, a coletânea Psicologia Social: o Homem em
Movimento (Lane e Codo, 1984). Na Introdução, Sílvia critica a
Psicologia como ciência positivista, que trata do indivíduo abstrato, que
apenas responde aos estímulos ambientais como um autômato, e propõe
considerar que “o ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser
descartada, que é sua condição social e histórica”, sendo também dotado de
“criatividade, o poder de transformação da sociedade por ele construída” (Lane,
1984, p.12). Esse discurso aponta a crítica à ideologia da adaptação, que
perpassava a Psicologia produzida nas duras condições da ditadura militar
no Brasil, e também a sensibilidade para a busca da transformação das
precárias condições de vida das classes populares no país. O desejo de
Sílvia é construir uma Psicologia Social que focalize a busca de soluções
para as questões sociais de seu tempo, através do conhecimento concreto
das condições de vida e da realidade psicossocial da população brasileira,
especialmente das classes de baixa renda. Sua proposta baseia-se em uma
leitura materialista histórica da dialética do concreto como síntese de
múltiplas determinações, e nas lições de Jean Piaget e da Psicologia
sócio-histórica soviética (especialmente Vigotski e Leontiev). A coletânea
tornou-se logo um best-seller, estando atualmente em sua 13ª.
edição, evidenciando sua receptividade no seio da comunidade os psicólogos
sociais brasileiros. A essas publicações seguiram-se muitas outras, em que
Sílvia aprofundou a perspectiva de análise proposta, sempre insistindo na
necessidade de ampliar o raio de visão do psicólogo, incorporando
conhecimentos sócio-antropológicos, e na metodologia ativa e participante.
Entre essas publicações destacam-se Novas Veredas em Psicologia Social,
organizado junto com Bader Sawaia (Lane e Sawaia, 1995); Arqueologia
das Emoções, organizado junto com Yara Araújo (Lane e Araújo,
2000); e os capítulos “Histórico e Fundamentos da Psicologia Comunitária
no Brasil”, elaborado para a coletânea Psicologia Social Comunitária:
Da solidariedade à autonomia, (Lane, 2006) e “A Psicologia Social na
América Latina: por uma ética do conhecimento”, elaborado para a coletânea
Paradigmas em Psicologia Social para a América Latina, organizada
por Regina H.F.Campos e Pedrinho Guareschi (Lane, 2002). O texto sobre a
Psicologia Comunitária foi escrito quando Sílvia liderava o Grupo de
Trabalho em Psicologia Comunitária da ANPEPP (Associação Nacional de
Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia). O capítulo sobre a Psicologia
Social na América Latina revisita um tema caro a Sílvia: os rumos da
Psicologia Social em nosso subcontinente, e foi lido quando de sua
participação no Colóquio Internacional: Paradigmas em Psicologia Social
para a América Latina, realizado durante o Encontro Nacional da
ABRAPSO em 1997, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo
Horizonte. Neste último texto, Sílvia desenvolve um tema que a preocupava
especialmente nos últimos anos: a questão da ética do conhecimento. Em
entrevista concedida à revista Psicologia e Sociedade, em 1995, ela
reafirmava a convicção sobre a necessidade de democratizar o saber, em
nossa sociedade profundamente desigual e excludente. Para ela, a aceitação
das diferenças, a luta contra o preconceito e a discriminação dependiam
dessa democratização, isto é, da presença do intelectual fora dos muros da
academia, atuando e interagindo com os grupos sociais. E isto deveria
ser feito
abrindo esse espaço para todo mundo, para quem quiser aprender e mais:
fazendo o esforço de falar a linguagem de todo o mundo. Transmitir nosso
saber numa linguagem do cotidiano. É um desafio. Mas é uma briga entre o
poder autoritário e o poder democrático. Acho que esta é a questão
fundamental da academia (Lane, 1995, p.9).
Coerente, Sílvia sabia falar para e com os mais jovens.
Vê-se isso em seus textos, tanto os de pesquisa como os teóricos, nos
exemplos que traz, a todo momento, sem perda da reflexão exigida num
discurso científico. São exemplos sempre de casos concretos, que ela traz
a partir de pesquisas de seus orientandos, aos quais dá sempre o devido
crédito. Vê-se isso também nas muitas palestras a estudantes de graduação
em Psicologia, cujos convites nunca recusou. A última, no segundo semestre
de 2005, foi para estudantes da Universidade Regional de Blumenau, quando
da atribuição de seu nome ao Centro Acadêmico de Psicologia. Outra marca
de sua coerência pode ser encontrada em seu trabalho editorial,
organizando coletâneas nas quais se apresentavam seus orientandos (foi
editora de seis números dos Cadernos PUC - 1, 4, 11, 15, 23 e 34)
(1) e nas parcerias que fez com alguns na organização de livros, caso de
Psicologia Social: o homem em movimento e Arqueologia das
emoções.
Finalmente, uma palavra ainda sobre sua coerência
ético-política, na declaração de duas estudantes de graduação, uma em
Jornalismo (para a disciplina “Técnica de Reportagem”), outra em
Psicologia (co-editora da revista Fluxo: Revista dos alunos de Ciências
Humanas da PUC-SP). Conversando com Sílvia sobre seu projeto de
uma Psicologia Social Comunitária, iniciado no começo dos anos 1970 e que
se concretizou com a criação, em meados dessa década, em conjunto com o
Professor Padre Abib Andery (1981), de um centro de atendimento
comunitário participativo em Osasco (oportunidade para estágio de
estudantes da graduação da PUC-SP), as entrevistadoras concluem:
Sílvia tem uma visão muito crítica da sociedade, para tudo propõe
discussão e contrapontos; mesmo as tendências e atividades que não
considera boas, para ela têm um valor social. Os problemas, para ela, têm
solução. É quando fala de ciência que ela segura o mundo na palma da mão e
disserta sobre a condição humana (...) sempre levando em consideração o
“por que não” das coisas. (Bock e Demarchi Santos, 1998, p.76).
Assim despojada e generosa, Sílvia se revela em sua extrema
sensibilidade e em sua paixão pelo conhecimento, que ela quer transmitir a
todos, pois o que é bom deve ser de todos, sem discriminação. E desse modo
se despediu de nós, deixando um legado de dignidade e de grande força
intelectual. Viva Sílvia Lane!
Referências
bibliográficas
-
Andery, A.A.
(1981). Psicologia na Comunidade no Brasil. Em ABRAPSO (Ed.) Anais
do I Encontro Regional de Psicologia na Comunidade. São Paulo:
ABRAPSO.
-
-
Bock, L.B. e
Demarchi Santos, L.M. (1998). Sílvia Lane. Fluxo, 2 (3), 75-82.
-
-
Bomfim, E.M.
(2003). Psicologia Social no Brasil. Belo Horizonte: Edições do
Campo Social.
-
-
Lane, S.T.M.
(2006). Histórico e fundamentos da Psicologia Comunitária no Brasil.
Em R.H.F. Campos, (Org.). Psicologia Social Comunitária: da
solidariedade à autonomia. 11ª. ed. (pp. 17-34). Petrópolis:
Vozes.
-
-
Lane, S.T.M.
(2002). A Psicologia Social na América Latina: por uma ética do
conhecimento. Em R.H.F .Campos, e P. Guareschi (Org.s). Paradigmas
em Psicologia Social para a América Latina. 2ª. ed. (pp. 58-69).
Petrópolis: Vozes.
-
-
Lane, S.T.M. e
Araújo, Y. (2000). Arqueologia das emoções. Petrópolis: Vozes.
-
-
Lane, S.T.M.
(1996). Parar para pensar... e depois fazer. Psicologia e
Sociedade, 8 (1), 3-15.
-
-
Lane, S.T.M. e
Sawaia, B.B. (Org.s.). (1995). Novas veredas em Psicologia Social.
São Paulo: EDUC; Brasiliense.
-
-
Lane,
S.T.M. e Codo, W.
(Org.s) (1984).
Psicologia Social: o homem em movimento.
São Paulo:
Brasiliense.
-
-
Lane, S.T.M.
(1984). A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a
Psicologia. Em S.T.M Lane e W. Codo (Org.s). Psicologia Social: o
homem em movimento. (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense.
-
-
Lane, S.T.M.
(1981). O que é Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense.
-
-
Sawaia, B.B.
(2002). Sílvia Lane. Rio de Janeiro: Imago; Brasília: Conselho
Federal de Psicologia. (Coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira).
Nota
(1) CADERNOS PUC. Série publicada pela PUC São Paulo
entre 1980 e 1988. São Paulo: Cortez e EDUC, 1980 (n. 1 e n. 4), 1981
(n. 11), 1983 (n. 15), 1985 (n. 31), 1988 (n. 34). [volta]
Nota sobre as autoras
Regina Helena
F. Campos
é professora de Psicologia da Educação e História da
Psicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas
Gerais, bolsista de pesquisa do CNPq, presidente do Centro de
Documentação e Pesquisa Helena Antipoff.
Contato:
Rua Professor Saul Macedo 111, Belvedere, 30320-490 Belo Horizonte (MG),
Brasil. E-mail: regihfc@terra.com.br
Maria do Carmo Guedes é formada em filosofia e doutora em psicologia,
professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e dirige o
Núcleo de História da Psicologia junto ao Programa de Pós-graduação em
Psicologia Social da mesma instituição.
Contato:
mcguedes@pucsp.br
-
Data de recebimento: 25/01/2006
-
Data de
aceite: 19/04/2006
-
Memorandum 10, abr/2006
-
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
-
ISSN 1676-1669
-
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/camposguedes01.pdf