Campos, R.H.F. e Guedes, M.C. (2006). Sílvia Tatiana Maurer Lane (1933-2006) e a ética do conhecimento. Memorandum, 10, 157-161. Retirado em  /   /   , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/camposguedes01.htm

Nota

Sílvia Tatiana Maurer Lane (1933-2006)
e a ética do conhecimento

Sílvia Tatiana Maurer Lane (1933-2006) and ethics of knowledge

Regina Helena de Freitas Campos
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
 
Maria do Carmo Guedes
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil

 

No dia 29 de abril de 2006 faleceu em São Paulo nossa querida mestra, colega e amiga Sílvia Tatiana Maurer Lane, pessoa de grande dignidade e delicadeza, responsável pela criação de uma verdadeira “escola” de Psicologia Social no Brasil, conhecida como “Psicologia Social laneana”, ou “Escola de São Paulo” (Sawaia, 2002, p.37). A abordagem à Psicologia Social proposta por Lane, denominada Psicologia crítica sócio-histórica, caracteriza-se por considerar a dialética sócio-cultural como constitutiva do ser humano, ao mesmo tempo enfatizando a força transformadora e criadora da consciência. De inspiração marxiana, e de mãos dadas com a Psicologia da Libertação de Martin-Baró, essa perspectiva de análise dos processos psicossociais baseia-se na indissociabilidade entre a teoria, a metodologia e a prática transformadora. Para Sílvia, toda a Psicologia seria social, já que o ser humano se constitui no social, sendo produto e produtor da história, a partir do domínio dos instrumentos de trabalho e do desenvolvimento da linguagem. Assim, os objetos de estudo da Psicologia Social devem ser a linguagem e o grupo, pois é a partir desses dois processos que o ser humano encontra a sua identidade. A metodologia a ser utilizada deve ser “participativa e qualitativa”, visando “conhecer as pessoas, seus problemas e emoções e potencializá-las à emancipação” (Lane, 1984, p.19). Essa idéia de que o conhecimento leva necessariamente à ação transformadora, à práxis, em busca de uma vida mais plena e satisfatória em termos éticos atravessa toda a obra de Sílvia na área da Psicologia Social, e é a marca que a distingue. Mas como Sílvia chegou a elaborar esse referencial de análise? Vamos acompanhar sua trajetória buscando compreender como ela foi construindo progressivamente essa perspectiva teórica que se tornou conhecida e respeitada nacional e internacionalmente, inspirando o trabalho e a pesquisa de tantos estudantes e colegas que com ela conviveram e atuaram em diversas instituições, a partir de seu trabalho como professora de Psicologia Social, fundadora do Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e da Associação Brasileira de Psicologia Social (ABRAPSO).

Sílvia Lane nasceu em São Paulo, em uma família de origem suíço-alemã (por parte de pai) e eslava (por parte da mãe). A convivência com o pai, professor universitário, e o tio, especializado em filologia, parece ter despertado nela o gosto pelo trabalho intelectual. A convivência com a mãe, marcada pela experiência da 1ª. Guerra Mundial, na Lituânia, deve ter legado à filha o horror à violência. Formada em Filosofia na USP – teve como professores intelectuais como Cruz Costa, Antonio Cândido, Gilda Mello e Souza, Dante Moreira Leite, Carolina Bori e Annita Cabral. Annita ensinou-lhe as primeiras lições de Psicologia, através da leitura de Koffka. Na Faculdade, entre 1952 e 1956, envolveu-se nas atividades do Centro Acadêmico e, segundo Sawaia (2002), foi nessa época que a questão da linguagem passou a preocupá-la, especialmente as diferenças no significado das palavras para grupos sociais diversos, tema que escolheu para desenvolver em sua tese de Doutorado, defendida em 1972, sob a orientação de Aniela Ginsberg. Em 1955, obteve bolsa de estudos para estudar Psicologia durante um ano no Wellesley College, nos Estados Unidos, onde conheceu o trabalho de Solomon Asch. Após obter o bacharelado e a licenciatura em Filosofia, em 1956, foi Assistente de Pesquisa da Divisão Educacional do Centro Regional de Pesquisas Educacionais de São Paulo, entre 1956 e 1960, chegando a ocupar o cargo de diretora da Divisão no período 1959-1960.  Iniciou a carreira docente em 1957 como professora de Psicologia Geral na Escola de Enfermagem da Cruz Vermelha de São Paulo e em 1965, a convite de Maria do Carmo Guedes, tornou-se professora de Psicologia Social e da Personalidade na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Após a defesa da tese de Doutorado, em 1972, criou o Programa de Pós-graduação em Psicologia Social na mesma universidade, o segundo Programa de Pós-graduação em Psicologia a ser estabelecido no Brasil, e iniciou a trajetória de pesquisadora na área, orientando dezenas de dissertações de Mestrado e teses de Doutorado. A partir dessa época participou ativamente da ALAPSO (Associação Latino-americana de Psicologia Social), cuja diretoria integrou entre 1977 e 1980, e da Sociedade Interamericana de Psicologia (SIP).

Foi no congresso da SIP, em 1979, em meio às discussões sobre a chamada “crise” da Psicologia, em especial da Psicologia latino-americana, considerada pouco relevante na solução dos problemas sociais e políticos em que se debatia a região, que foi aprovada recomendação sugerindo a criação de associações nacionais de Psicologia Social, visando focalizar a realidade de cada país e incentivar o intercâmbio de pesquisadores e estudiosos. Sensibilizada com a idéia, Sílvia propôs a criação de uma Associação Brasileira de Psicologia Social, a ABRAPSO, durante a 32ª. Reunião Anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em julho de 1980, e foi sua primeira Presidente. A ABRAPSO passou a ser, a partir dessa época, o principal fórum de discussão e divulgação da pesquisa em Psicologia Social feita no Brasil, voltada para o conhecimento das condições psicossociais da população brasileira, e para o debate sobre as práticas transformadoras de que Sílvia era uma das principais incentivadoras.

Também nessa época ela inicia as publicações que a tornaram internacionalmente reconhecida por sua proposta original para uma agenda para a Psicologia Social latino-americana e brasileira, ao mesmo tempo crítica, teoricamente bem fundamentada e voltada para a práxis transformadora. A primeira dessas publicações foi o volume O que é Psicologia Social (Lane, 1981). Esse pequeno trabalho despertou tanto interesse que logo em seguida Sílvia organiza, juntamente com o orientando e colega Wanderley Codo, a coletânea Psicologia Social: o Homem em Movimento (Lane e Codo, 1984). Na Introdução, Sílvia critica a Psicologia como ciência positivista, que trata do indivíduo abstrato, que apenas responde aos estímulos ambientais como um autômato, e propõe considerar que “o ser humano traz consigo uma dimensão que não pode ser descartada, que é sua condição social e histórica”, sendo também dotado de “criatividade, o poder de transformação da sociedade por ele construída” (Lane, 1984, p.12). Esse discurso aponta a crítica à ideologia da adaptação, que perpassava a Psicologia produzida nas duras condições da ditadura militar no Brasil, e também a sensibilidade para a busca da transformação das precárias condições de vida das classes populares no país. O desejo de Sílvia é construir uma Psicologia Social que focalize a busca de soluções para as questões sociais de seu tempo, através do conhecimento concreto das condições de vida e da realidade psicossocial da população brasileira, especialmente das classes de baixa renda. Sua proposta baseia-se em uma leitura materialista histórica da dialética do concreto como síntese de múltiplas determinações, e nas lições de Jean Piaget e da Psicologia sócio-histórica soviética (especialmente Vigotski e Leontiev). A coletânea tornou-se logo um best-seller, estando atualmente em sua 13ª. edição, evidenciando sua receptividade no seio da comunidade os psicólogos sociais brasileiros. A essas publicações seguiram-se muitas outras, em que Sílvia aprofundou a perspectiva de análise proposta, sempre insistindo na necessidade de ampliar o raio de visão do psicólogo, incorporando conhecimentos sócio-antropológicos, e na metodologia ativa e participante. Entre essas publicações destacam-se Novas Veredas em Psicologia Social, organizado junto com Bader Sawaia (Lane e Sawaia, 1995); Arqueologia das Emoções, organizado junto com Yara Araújo (Lane e Araújo, 2000); e os capítulos “Histórico e Fundamentos da Psicologia Comunitária no Brasil”, elaborado para a coletânea Psicologia Social Comunitária: Da solidariedade à autonomia, (Lane, 2006) e “A Psicologia Social na América Latina: por uma ética do conhecimento”, elaborado para a coletânea Paradigmas em Psicologia Social para a América Latina, organizada por Regina H.F.Campos e Pedrinho Guareschi (Lane, 2002). O texto sobre a Psicologia Comunitária foi escrito quando Sílvia liderava o Grupo de Trabalho em Psicologia Comunitária da ANPEPP (Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Psicologia). O capítulo sobre a Psicologia Social na América Latina revisita um tema caro a Sílvia: os rumos da Psicologia Social em nosso subcontinente, e foi lido quando de sua participação no Colóquio Internacional: Paradigmas em Psicologia Social para a América Latina, realizado durante o Encontro Nacional da ABRAPSO em 1997, na Universidade Federal de Minas Gerais, em Belo Horizonte. Neste último texto, Sílvia desenvolve um tema que a preocupava especialmente nos últimos anos: a questão da ética do conhecimento. Em entrevista concedida à revista Psicologia e Sociedade, em 1995, ela reafirmava a convicção sobre a necessidade de democratizar o saber, em nossa sociedade profundamente desigual e excludente. Para ela, a aceitação das diferenças, a luta contra o preconceito e a discriminação dependiam dessa democratização, isto é, da presença do intelectual fora dos muros da academia, atuando e interagindo com os grupos sociais. E isto deveria ser feito

abrindo esse espaço para todo mundo, para quem quiser aprender e mais: fazendo o esforço de falar a linguagem de todo o mundo. Transmitir nosso saber numa linguagem do cotidiano. É um desafio. Mas é uma briga entre o poder autoritário e o poder democrático. Acho que esta é a questão fundamental da academia (Lane, 1995, p.9).

Coerente, Sílvia sabia falar para e com os mais jovens. Vê-se isso em seus textos, tanto os de pesquisa como os teóricos, nos exemplos que traz, a todo momento, sem perda da reflexão exigida num discurso científico. São exemplos sempre de casos concretos, que ela traz a partir de pesquisas de seus orientandos, aos quais dá sempre o devido crédito. Vê-se isso também nas muitas palestras a estudantes de graduação em Psicologia, cujos convites nunca recusou. A última, no segundo semestre de 2005, foi para estudantes da Universidade Regional de Blumenau, quando da atribuição de seu nome ao Centro Acadêmico de Psicologia. Outra marca de sua coerência pode ser encontrada em seu trabalho editorial, organizando coletâneas nas quais se apresentavam seus orientandos (foi editora de seis números dos Cadernos PUC - 1, 4, 11, 15, 23 e 34) (1) e nas parcerias que fez com alguns na organização de livros, caso de Psicologia Social: o homem em movimento e Arqueologia das emoções.

Finalmente, uma palavra ainda sobre sua coerência ético-política, na declaração de duas estudantes de graduação, uma em Jornalismo (para a disciplina “Técnica de Reportagem”), outra em Psicologia (co-editora da revista Fluxo: Revista dos alunos de Ciências Humanas da PUC-SP). Conversando com Sílvia sobre seu projeto de uma Psicologia Social Comunitária, iniciado no começo dos anos 1970 e que se concretizou com a criação, em meados dessa década, em conjunto com o Professor Padre Abib Andery (1981), de um centro de atendimento comunitário participativo em Osasco (oportunidade para estágio de estudantes da graduação da PUC-SP), as entrevistadoras concluem:

Sílvia tem uma visão muito crítica da sociedade, para tudo propõe discussão e contrapontos; mesmo as tendências e atividades que não considera boas, para ela têm um valor social. Os problemas, para ela, têm solução. É quando fala de ciência que ela segura o mundo na palma da mão e disserta sobre a condição humana (...) sempre levando em consideração o “por que não” das coisas. (Bock e Demarchi Santos, 1998, p.76).

Assim despojada e generosa, Sílvia se revela em sua extrema sensibilidade e em sua paixão pelo conhecimento, que ela quer transmitir a todos, pois o que é bom deve ser de todos, sem discriminação. E desse modo se despediu de nós, deixando um legado de dignidade e de grande força intelectual. Viva Sílvia Lane!

Referências bibliográficas

Andery, A.A. (1981). Psicologia na Comunidade no Brasil. Em ABRAPSO (Ed.) Anais do I Encontro Regional de Psicologia na Comunidade. São Paulo: ABRAPSO.
 
Bock, L.B. e Demarchi Santos, L.M. (1998). Sílvia Lane. Fluxo, 2 (3), 75-82.
 
Bomfim, E.M. (2003). Psicologia Social no Brasil. Belo Horizonte: Edições do Campo Social.
 
Lane, S.T.M. (2006). Histórico e fundamentos da Psicologia Comunitária no Brasil. Em R.H.F. Campos, (Org.). Psicologia Social Comunitária: da solidariedade à autonomia. 11ª. ed. (pp. 17-34). Petrópolis: Vozes.
 
Lane, S.T.M. (2002). A Psicologia Social na América Latina: por uma ética do conhecimento. Em R.H.F .Campos, e P. Guareschi (Org.s). Paradigmas em Psicologia Social para a América Latina. 2ª. ed. (pp. 58-69). Petrópolis: Vozes.
 
Lane, S.T.M. e Araújo, Y. (2000). Arqueologia das emoções. Petrópolis: Vozes.
 
Lane, S.T.M. (1996). Parar para pensar... e depois fazer. Psicologia e Sociedade, 8 (1), 3-15.
 
Lane, S.T.M. e Sawaia, B.B. (Org.s.). (1995). Novas veredas em Psicologia Social. São Paulo: EDUC; Brasiliense.
 
Lane, S.T.M. e Codo, W. (Org.s) (1984). Psicologia Social: o homem em movimento. São Paulo: Brasiliense.
 
Lane, S.T.M. (1984). A Psicologia Social e uma nova concepção de homem para a Psicologia. Em S.T.M Lane e W. Codo (Org.s). Psicologia Social: o homem em movimento. (pp. 10-19). São Paulo: Brasiliense.
 
Lane, S.T.M. (1981). O que é Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense.
 
Sawaia, B.B. (2002). Sílvia Lane. Rio de Janeiro: Imago; Brasília: Conselho Federal de Psicologia. (Coleção Pioneiros da Psicologia Brasileira).

Nota

(1) CADERNOS PUC. Série publicada pela PUC São Paulo entre 1980 e 1988. São Paulo: Cortez e EDUC, 1980 (n. 1 e n. 4), 1981 (n. 11), 1983 (n. 15), 1985 (n. 31), 1988 (n. 34). [volta]

Nota sobre as autoras

Regina Helena F. Campos é professora de Psicologia da Educação e História da Psicologia na Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais, bolsista de pesquisa do CNPq, presidente do Centro de Documentação e Pesquisa Helena Antipoff. Contato: Rua Professor Saul Macedo 111, Belvedere, 30320-490 Belo Horizonte (MG), Brasil. E-mail: regihfc@terra.com.br

Maria do Carmo Guedes é formada em filosofia e doutora em psicologia, professora na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo e dirige o Núcleo de História da Psicologia junto ao Programa de Pós-graduação em Psicologia Social da mesma instituição. Contato: mcguedes@pucsp.br

 

Data de recebimento: 25/01/2006
Data de aceite: 19/04/2006

 

 

Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/camposguedes01.pdf

 

 

 

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