Mahfoud, M. e Massimi, M. (2006). Editorial: Experiência humana: diversidade de olhares, diálogos possíveis. Memorandum, 10, 1-8. Retirado em  /   /   , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/ed10po.htm

Editorial

Memorandum: memória e história em psicologia
Número 10

Experiência humana: diversidade de olhares, diálogos possíveis

O número 10 de Memorandum representa o resultado do percurso de integração de pesquisadores pertencentes a diversas áreas de pesquisa em torno do interesse comum pelo estudo do ser humano – concebido como portador de memória, sujeito de experiência psicológica e realizador de história –, percurso este que a revista vem percorrendo ao longo destes anos de vida.

Desse modo, há no presente número uma densidade qualitativa e quantitativa de contribuições que queremos aqui destacar. Tais contribuições são organizadas por volta dos eixos estruturantes da revista Memorandum: a história dos saberes psicológicos, a história das ciências psicológicas, psicanalíticas e psiquiátricas, a epistemologia, as interfaces entre psicologia, cultura, experiência religiosa e memória, a antropologia filosófica.

Inicialmente encontram-se vários estudos no domínio da História dos saberes psicológicos, começando pelo período medieval: A antropologia paulino-agostiniana: a criação do paradigma da ambivalência do eu-moral e a interpretação do binômio saúde-doença de Cláudio Ivan de Oliveira, Anderson Clayton Pires, Raquel Ghetti Macedo e Ana Tereza Elias Siqueira assinala a importância histórica daquele paradigma no que diz respeito à concepção antropológica do binômio saúde-doença. Já referindo-se ao período histórico da Idade Moderna, colocam-se as temáticas dos artigos: As paixões da alma no regime de vida de La Framboisière (1560-1636) de Paulo José Carvalho da Silva, o qual analisa o tópico das paixões da alma na concepção dos médicos da tradição hipocrático-galênica e de sua utilização visando a saúde e o bem estar; Um importante corpo documentário para a reconstrução da história da cultura no Brasil colonial: Os acervos da oratória sagrada de Marina Massimi descreve corpos documentais neste domínio o estado dos acervos brasileiros significativos para a história cultural e religiosa. Ainda referente à história da Idade Moderna – notadamente à história das ciências –, assinalamos ainda a contribuição Os Primórdios do coleccionismo moderno em espaços de produção do saber e do gosto de Ana Luísa Janeira a qual propõe uma análise arqueológica do coleccionismo moderno e aponta suas origens na época do Renascimento e dos descobrimentos geográficos. Já aprofundando a importante leitura de M. Foucault acerca das origens das ciências psicológicas e psicanáliticas, O surgimento da psicologia e da psicanálise nos textos da genealogia foucaultiana de Arthur Arruda Leal Ferreira analisa, ao longo das grandes fases do trabalho de Michel Foucault (arqueológica, genealógica e ética), sua leitura histórica acerca das origens da psicologia e da psicanálise. Por sua vez, referindo-se a um período histórico mais recente e focando a área da psiquiatria, o artigo de Patrizia Manganaro, A psiquiatria fenomenológico- existencial na Itália, descreve os desenvolvimentos da fenomenologia na Itália no domínio da psicopatologia, levando a uma mudança radical na maneira de exercer a prática psiquiátrica em geral.

Abordando outro campo muito importante para uma visão crítica da Psicologia, A subjetividade e sua pesquisa de Mauro Martins Amatuzzi é uma reflexão teórica sobre o termo e o conceito de subjetividade, discutindo as visões tradicionais e propondo uma nova modalidade de construir este conceito.

Outras contribuições colocam-se nas interfaces entre Psicologia, cultura, memória e religiosidade. O artigo Contar histórias como experiência enraizadora: análise de vivências do Grupo de Contadores de Estórias Miguilim  de Karina Braga Miziara e Miguel Mahfoud examina, numa abordagem fenomenológica, as vivências do contadores de histórias de Guimarães Rosa em Cordisburgo-MG mostrando que a experiência de contar histórias permite o enraizamento, a inserção da pessoa em sua comunidade e na história humana. Les éléments de résilience chez les Demandeurs d’Asile et Réfugiés Politiques de Cláudia Clarindo Oliveira analisa as influências dos componentes da resiliência sobre os dinamismos de adaptação à sociedade francesa utilizados pelos exilados e asilados políticos à luz da hipótese de que o sentimento de pertença e a busca de um sentido para a vida, podem ser influenciados por valores religiosos. Do Titicaca ao Rio: imagens culturais de uma tradição de Maria Antonieta Pereira analisa as aproximações existentes entre as culturas peruana e brasileira, a partir do culto à Virgem de Copacabana.

Um terceiro grupo de contribuições é de natureza filosófica e discutem questões antropológicas e éticas. Fundamentos metodológicos do pensamento antropológico e ético de Paul Ricoeur: o problema do mal de autoria de Manuel Tavares, analisa o pensamento antropológico e ético de Paul Ricoeur, que estrutura-se em torno do problema do mal, tema sempre desafiante para o pensamento filosófico e para as ciências humanas. A pessoa em Romano Guardini : um desafio à autonomia e desamparo do homem contemporâneo de Sílvia Regina Brandão discute a análise do filósofo austro-italiano Romano Guardini sobre a forma de pensar da época moderna indicando além de seus avanços e limites, as implicações para a concepção de homem e de cultura.

Por fim a nota de falecimento Sílvia Tatiana Maurer Lane (1933-2006) e a ética do conhecimento de Regina Helena de Freitas Campos e Maria do Carmo Guedes homenageia uma pessoa que, sem dúvida, foi uma das mais significativas e empenhadas construtoras da Psicologia no Brasil contemporâneo.

Em nosso entender, os diálogos e as interfaces aqui propostos entre psicologia, história, epistemologia, cultura, memória, religiosidade, antropologia filosófica, ética, não concernem apenas questões paralelas ou marginais ao “acontecer” da psicologia como ciência e como profissão. Pelo contrário, são essenciais ao seu definir-se segundo um projeto que vincule, na raiz, o estudo científico dos fenômenos psíquicos inerentes à pessoa humana e a apreensão dos processos culturais que esta põe em ato. Reiteramos , neste sentido, a necessidade de superar as abordagens de matriz determinista e psicologista, as quais consideram a ciência uma superação definitiva da cultura e consideram a psicologia científica como a palavra última sobre o ser do homem. Com efeito, a ciência não pode desautorizar o ser humano a se colocar como sujeito de sua própria experiência, não pode destituí-lo do lugar singular e decisivo que ocupa no mundo. Os homens, usando a razão, afirmam significados da sua existência e da realidade e assim geram culturas. As diversas culturas alimentam-se de suas raízes no passado (memória) e nesta ótica o conhecimento histórico contribui para manter vivos os vínculos com as raízes. Por sua vez, culturas geram identidades, diversidades de experiências humanas que modulam também as vivências psicológicas e modalidades próprias de elaborá-las. Num momento histórico em que a tendência à homologação, ao achatamento, ao questionamento das diversas identidades é predominante, afirmar as identidades e suas peculiaridades parece-nos cada vez mais ser um desafio urgente e exigente. Agradecemos, por isso, todos os que quiseram e puderam contribuir neste percurso.

Miguel Mahfoud
Marina Massimi
Editores
Abril de 2006.