Ferreira, A.A.L. (2006). O surgimento da psicologia e da psicanálise nos textos da genealogia foucaultiana. Memorandum, 10, 71-84. Retirado em / / , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/ferreira03.htm

O surgimento da psicologia e da psicanálise nos textos da genealogia foucaultiana

The appearance of psychology and psychoanalysis along the works of Foucaultian genealogy

Arthur Arruda Leal Ferreira
Universidade Federal do Rio de Janeiro

Brasil
 

Resumo
Apesar da enorme variação conceitual ao longo das grandes fases do trabalho de Michel Foucault (arqueológica, genealógica e ética), permanece um tema crítico à psicologia: ela é uma invenção datada, oriunda de práticas específicas. O que varia ao longo dos textos foucaultianos é a determinação destes dispositivos históricos. No caso do período genealógico (anos setenta) podemos encontrar três hipóteses referentes ao surgimento da psicologia, correspondendo às três grandes variações desta fase, cada qual ligada a uma determinada concepção do poder subjacente aos saberes: formas jurídicas; microfísica das relações de força; ou formas de governo. Quanto à psicanálise, sua problematização nesse período é feita em duas etapas: primeiro ao vê-la como uma empreitada de despsiquiatrização parcial do aparato asilar, mas mantendo todos os poderes médicos; e principalmente ao concebê-la como um mero desdobramento do dispositivo da sexualidade e produto do biopoder.

Palavras-chave: genealogia; história da psicologia; psicanálise

Abstract
Although the extreme conceptual variation along the great three phases of Michel Foucault works (archeological, genealogical and ethic), it remains a critical theme to psychology: it is a historical invent, arisen from specific social practices. What varies along Foucaultians works is the determination of these historical apparatus. In the genealogical phase (during the seventies) we can find three hypotheses about the appearance of psychology, corresponding to the three great variations of this phase, each one related to a determined conception of power in the basis of the knowledge: juridical forms; microphysics of force relations; or governmental forms. The establishment of the problem regarding psychoanalysis in this phase is made in two moments: first seeing it as partial work of de-psychiatrization of the asylums apparatus (maintaining all the medical powers); and specially conceiving it as mere development of the sexuality apparatus and product of the biopower.

 Keywords: genealogy; psychology; psychoanalysis

 

Introdução

 

Tradicionalmente se faz a divisão do trabalho de Michel Foucault em três grandes períodos: arqueológico, genealógico e ético, cada qual correspondendo respectivamente aos trabalhos das décadas de 1960, 1970 e 1980. Mas, se observarmos de modo mais detalhado, veremos que cada um destes períodos (em especial os dois primeiros) possui uma série de subdivisões que correspondem a um conjunto de deslocamentos conceituais. O objetivo deste trabalho é mapear no conjunto de fases do período genealógico, todas as hipóteses relativas à irrupção dos saberes psicológicos e psicanalíticos.

 

O objeto postulado na fase genealógica do pensamento de Foucault são os poderes na sua relação com os saberes, especialmente das ciências humanas. Os poderes não são deduzidos de uma teoria geral, mas de uma analítica, de caráter indutivo, que conduz ao realce nestes de propriedades singulares: materialidade, dispersão, força irruptiva e raridade. É deste modo que esta nova analítica do poder possui características opostas às das teorias liberal e à marxista. Assim, não haveria um único poder que emana de cima, do Estado, propriedade de uma classe (a burguesia), atuando por razões econômicas, e operando apenas no sentido repressivo, ou quando muito, produzindo ideologia, ou falsa consciência. Tal leitura do poder, de cunho econômico-jurídico, não reconhece uma multiplicidade de poderes que se espalham por todas as direções da sociedade (trata-se de uma rede sináptica, de capilaridades), ao modo de lutas contínuas e sem sujeito, situadas nas relações entre os corpos, podendo ser aglutinadas ou não por um Estado ou por uma classe social, não apenas reprimindo, mas principalmente produzindo saberes, desejos e estados corporais, e gerando resistências e contra-poderes. Na relação com tal configuração do poder se instala um novo papel do intelectual, não mais na enunciação de caminhos e direções a serem seguidas, mas na problematização das relações de poder atuais e destruição das evidências a elas ligadas, para tal se engajando em torno de lutas locais (em oposição ao intelectual global), inventando novos mecanismos de resistência, e buscando sancionar e dar voz aos contra-poderes.

 

O sentido da genealogia pode ser visto em um esmiuçar, de modo cada vez mais detalhado as formas de poder: das formas jurídicas passa-se à separação entre poder soberano (baseado na lei) e disciplinar (baseado na norma), e daí à subdivisão progressiva entre novos poderes, o biopoder (sobre populações), a governamentalidade e o poder pastoral, que reúne todas as propriedades dos demais. Este esmiuçamento dos poderes determinará as subfases deste período. Nestas serão enunciadas hipóteses diversas sobre a gênese da psicologia e das ciências humanas, que irão se desdobrando conforme os poderes postulados. As psicologias e as ciências humanas vão ser vistas se produzindo e se reproduzindo neste amálgama de poderes. Mas de todos estes saberes nenhum terá tanto destaque quanto à psicanálise. De uma crítica parcial no início do período, ao se alinhar às teses do Anti-Édipo de Gilles Deleuze e Félix Guattari, Foucault passa no final da década a tomar a psicanálise como alvo principal de suas problematizações, questionando inicialmente o dispositivo da sexualidade, e em seguida, já no período ético, a hermenêutica do desejo. Passemos à análise fase à fase.

 

a) As formas jurídicas (1971-1973)

 

O primeiro modo em que a questão do poder é tematizada se dá através da relação entre as modalidades jurídicas historicamente determinadas e as formas de verdade. É deste modo que a Medida, como modo grego de justiça, engendra o Conhecimento Matemático; o Inquérito, gerado na Idade Média serve de parâmetro para as Ciências da Natureza; e o Exame, produzido na Modernidade, conduz às Ciências Humanas (Foucault, 1997a). Em outros textos como A verdade e as formas jurídicas (Foucault, 1996a) e Vigiar e Punir (Foucault, 1977a), Foucault não trata da Medida, mas da prova, ou justa entre os homens, em que a justiça e a verdade eram decididas por intervenção da graça divina, tal como se procedia na Antigüidade. De todas as formas de verdade, as Ciências Humanas são as que menos se distanciam de sua estrutura jurídica de origem.

 

A partir daí surge uma primeira hipótese sobre a gênese da psicologia, ligando-a à forma jurídica do exame. As demais hipóteses que se seguirão neste período serão um aprofundamento desta. Contudo, cabem as referências à psicologia como um quinto poder, numa sociedade em que até o poder político passa a ter função terapêutica (Foucault, 1992). Foucault (1997b, pp. 42-43) trata de igual modo do surgimento do sujeito psicológico no século XIX, como efeito de uma nova física do poder, marcada por uma ótica (em que o panoptismo é o maior símbolo da vigilância constante), uma mecânica (disciplina da vida, do tempo, das energias) e uma fisiologia (normalização por intervenções corretoras).

 

Quanto à psicanálise, Foucault endossa de início as teses de O Anti-Édipo de Deleuze e Guattari, num prefácio à edição americana (Foucault, 1991). Mas o fundamental é que a psicanálise é considerada como uma das formas iniciais de despsiquiatrização, ou quebra da relação entre o poder e a verdade sobre o louco que o psiquiatra propaga no espaço asilar. Na instituição psiquiátrica, coabitariam dois modos de verdade: a verdade-acontecimento, oriunda da prova, e a verdade-revelação (de caráter científico), proveniente do inquérito (Foucault, 1982a, pp. 113-115). Ainda que Charcot introduza a sugestão como método para conhecimento/controle da histeria, o tratamento moral persiste enquanto modo de produção de verdade no espaço asilar, em que o louco confessa a sua verdade no embate com a vontade do médico. Contudo, o esforço de despsiquiatrização da psicanálise se revelaria incompleto, pois se por um lado o poder de enunciar a verdade cede ao silêncio do analista, por outro, a reclusão se recodifica no poder médico ritualizado na cena analítica. Aqui se retoma uma velha tese presente na História da Loucura da psicanálise como ampliadora dos poderes médicos. Das tentativas de despsiquiatrização, ou quebra desta equação verdade-prova, dentre as promovidas pelas psicocirurgias, psicofarmacologia, psicanálise e antipsiquiatria, somente a última romperia este teorema por completo (Foucault, 1982a, pp. 125-126), uma vez que não recodifica nem o saber nem o poder psiquiátrico na sua destituição do espaço asilar. É neste sentido que a antipsiquiatria se impõe enquanto contra-poder e modo de questionamento do saber médico (Foucault, 1992).

 

b) Normatização e disciplina (1973-1975)

 

Aqui, os poderes passam a ser repartidos entre duas grandes modalidades: a Soberana, de onde derivam todos os pressupostos clássicos da concepção jurídico-econômica de poder; e a Disciplinar, donde se legitimam os poderes das Ciências Humanas, da Medicina e Psiquiatria, e seu respectivo modo de saber, qual seja, o Exame. Se a forma Soberana opera conforme o critério da Lei, a Disciplina atua conforme o princípio da Norma. O poder soberano representa um instrumento da monarquia no combate aos poderes feudais, substituindo a guerra pelo tribunal, pelo litígio judiciário, fazendo reaparecer o direito romano nos séculos XIII e XIV (Foucault, 1981, pp.24-25). Posteriormente a burguesia passa a usar este modo de poder jurídico calcado no direito para dar forma às trocas econômicas, e em seguida, pôr em xeque a própria monarquia (Foucault, 1981, p. 25). Este modo de poder, em que através da lei se atua por decretos e enunciados sobre uma realidade representada como código inflexível (Ribeiro, 1993, p. 182), apresenta alguns inconvenientes: se mostra descontínuo (o castigo esporádico e exemplar), com malhas largas (por onde operaram o contrabando e a pirataria), oneroso (freiando o fluxo econômico através de impostos sucessivos, por exemplo) e rígido.

 

A disciplina, por outro lado, representa uma malha mais fina e flexível do poder, atuando sobre os corpos em operação, visando extrair deles o máximo de docilidade e utilidade. Para tal, opera uma distribuição dos indivíduos em um espaço fechado (hospitais, casernas, fábricas, por exemplo), controlando o seu tempo com fins de produtividade, através de um sistema de vigilância (em que o Panopticum é o caso exemplar na medida em que permite o máximo de visibilidade de todos sem ser visto), e produzindo um saber, notadamente o das ciências humanas (Machado, 1982, pp. XVII-XVIII). Não se trata mais de um “controle-repressão”, mas de um “controle-estimulação” (Foucault, 1982b, p. 147). Surgem novos atores do poder, zeladores da norma, separando o anormal do normal como o joio do trigo: professores, juizes, psiquiatras, médicos e psicanalistas (Foucault, 1979, p. 54). Os indivíduos são o seu alvo e efeito por excelência: “o indivíduo não é o outro do poder: é um de seus primeiros efeitos. O indivíduo é um efeito do poder e simultaneamente, ou pelo próprio fato de ser um efeito, é seu centro de transmissão. O poder passa através do indivíduo que ele constituiu” (Foucault, 1982c, pp. 183-184). É deste modo que a prisão cria o delinqüente, o hospício produz o doente mental, e a confissão e as ciências humanas inventam o indivíduo em sua verdade (Machado, 1982, pp. XIX-XX).

 

O caso exemplar desta ciranda dos poderes é a história das punibilidades, tal como descrita em Vigiar e Punir (Foucault, 1977a). Se no período clássico, sob a égide do Poder Soberano, predominavam os suplícios, que se abatiam sobre os corpos desde o momento da suspeita até a condenação (não havia a separação absoluta entre investigação e punição), numa métrica perfeita da vingança contra a quebra da Lei, tomada como injuria ao corpo do soberano; na alvorada da modernidade, erguem-se as “vozes humanistas“ contra o excesso de violência da justiça. Contudo, mais do que bons sentimentos, o que os reformistas vão buscar é um dispositivo mais eficiente de controle do delito, que atinja mais as representações dos não-infratores através de punições exemplares do que simples vinganças aos infratores. Mais do que reparação ou vingança, a punição deve ter fim educativo, e visar um efeito global. Contudo, no momento em que estas reformas se impunham na virada para o século XIX, começa a se disseminar sem qualquer teorização prévia, as prisões. A novidade é que, estas, visam produzir não efeitos no corpo, mas na “alma” dos delinqüentes, observá-la, descrevê-la, corrigi-la: “alma, prisão do corpo” (Foucault, 1977a, p. 32). A prisão aqui atua como um dispositivo disciplinar de normatização autônomo, e mesmo a par da justiça, com todos os seus mecanismos de recompensa e punição. Tributados menos pelo crime do que pela conduta do preso neste espaço. Daí todos os mecanismos de observação e todos os saberes daí derivados.

 

A psicologia, como toda ciência humana, é produzida através do Poder Disciplinar e pela normalização (Foucault, 1982b, pp. 150-151). Ou ainda, no confronto desta com o Poder Soberano, como é sugerido em Soberania e Disciplina (Foucault, 1982c, pp. 189-190). Trata-se aqui da segunda hipótese postulada na genealogia foucaultiana. Como as prisões são os objetos privilegiados de análise do Poder Disciplinar nesta subfase, encontramos na genealogia destas vários elementos para entender a sua irrupção. Em primeiro lugar, como já destacado na subfase anterior, a psicologia e as demais Ciências Humanas são tributárias das práticas de exame. A se acrescentar aqui, um processo de maior individualização dos examinados no regime disciplinar, de modo diverso do regime soberano, onde a individualização se manifestaria nas camadas superiores:

 

Num regime disciplinar, a individualização, ao contrário [do regime soberano], é “descendente ”: à medida que o poder se torna mais anônimo e funcional, aqueles sobre os quais se exerce tende a ser mais fortemente individualizados... Todas as ciências, análises ou práticas com radicais “psico” tem seu lugar nessa troca histórica dos processos de individualização. O momento em que passamos dos mecanismos históricos-rituais de formação da individualidade a mecanismos científico-disciplinares, em que o normal tomou o lugar do ancestral, e a medida, o lugar do status, substituindo assim a individualidade do homem memorável pela do homem calculável, esse momento em que as ciências do homem se tornaram possíveis, é aquele em que foram postas em funcionamento uma nova tecnologia do poder e uma outra anatomia política do corpo (Foucault, 1977a, pp.171-172).

Do surgimento uma maneira mais específica, Foucault vai tentar demonstrar que estas práticas disciplinares são tão importantes para o surgimento da psicologia, quanto à mensuração dos limiares diferenciais das sensações, legitimada pela Lei de Weber. O que garantiria uma caução científica e jurídica no seu poder de atuação sobre os corpos:

E, no entanto, na formação e no crescimento da psicologia, o aparecimento dos profissionais da disciplina, da normalidade e da sujeição, vale bem sem dúvida a medida de um limiar diferencial. Dir-se-á que a estimação quantitativa das respostas sensoriais podia ao menos usar a autoridade dos prestígios da fisiologia nascente e que a este título merece constar na história dos conhecimentos. Mas os controles da normalidade eram, por sua vez, fortemente enquadrados por uma medicina ou uma psiquiatria que lhes garantiam uma forma de “cientificidade”; estavam apoiados num aparelho judiciário que, de maneira ou indireta lhes trazia caução legal... Assim, ao abrigo dessas duas consideráveis tutelas, e aliás servindo-lhes de vínculo, ou de lugar de troca, desenvolveu-se continuamente até hoje uma técnica refletida do controle das normas (Foucault, 1977a, p. 259).

A psicanálise, por outro lado, é cotejada na deriva histórica que constitui os saberes e práticas psiquiátricas. Inicialmente, ela é vista como constituída “contra um certo tipo de psiquiatria (a da degenerescência, da eugenia, da hereditariedade)”, desempenhando, especialmente em países como Brasil, “um papel libertador” (Foucault, 1982b, pp. 150). Isto, contudo, não teria um sentido elogioso à psicanálise, pois não se excluiria aqui seus “efeitos que entram no quadro de controle e da normalização” (Foucault, 1982b, pp. 151). Nem aboliria outras relações mais profundas com conceitos e experiências psiquiátricas. É o que se pode encontrar no curso proferido no Collège de France no período de (1974-1975), Os Anormais.

Neste curso, Foucault (2001, pp. 349-350) opera duas genealogias da psiquiatria em que o conceito de instinto se colocaria como chave. De um lado teríamos, a masturbação infantil, considerada verdadeira pandemia no século XVIII, que demarcaria a sexualidade na base de diversas doenças e que instruiria uma série de racionalizações no espaço familiar. Por outro, encontraríamos o impasse surgido pela presença dos “crimes imotivados”, cujo autor não podia ser classificado em um quadro de demência clássico. Este impasse entre o sistema judiciário e o alienismo clássico encontraria a sua solução no conceito de instinto, enquanto um conjunto de automatismos que irromperiam em circunstâncias bastante especiais. Tal conceito, cuja base se encontraria na experiência de possessão (Foucault, 2001, pp. 282-283), faz com que a psiquiatria se desloque do “eixo consciência-delírio” para o eixo “insconsciente-automatismo” (Foucault, 2001, p. 179), promovendo uma ampliação dos poderes de gerência da psiquiatria na direção dos aparatos judiciário e familiar. Um dos exemplos da reunião destas duas genealogias, pode ser encontrada na Psychopathia Sexualis de Heinrich Kaan, que, em 1844, bem antes do surgimento da psicanálise propõe um instinto sexual na base de diversas patologias (Foucault, 2001, p. 353). É nesta genealogia dupla do conceito de instinto na psiquiatria, que se pode enxergar um duplo efeito contemporâneo, a eugenia e a psicanálise:

E, finalmente, a psiquiatria do século XIX vai se encontrar, nos últimos anos desse século emoldurada por duas grandes tecnologias, vocês sabem, que vão bloqueá-la de um lado e dar-lhe novo impulso de outro. De um lado a tecnologia eugênica, com o problema da hereditariedade, da purificação da raça e da correção do sistema instintivo dos homens por uma depuração da raça. Tecnologia do instinto: eis o que foi o eugenismo, desde seus fundadores até Hitler. De outro lado, tivemos, em face da eugenia, a outra grande tecnologia dos instintos, o outro grande meio que foi proposto simultaneamente, numa sincronia notável, a outra grande tecnologia da correção e da normalização da economia dos instintos, que é a psicanálise. A eugenia e a psicanálise são essas duas grandes tecnologias que se ergueram, no fim do século XIX, para permitir que a psiquiatria agisse no mundo dos instintos (Foucault, 2001, p. 167).

A correlação da psicanálise com os poderes psiquiátricos se radicaliza aqui. Não se trata apenas da herança e da reconfiguração dos poderes médicos, como destacado na fase anterior. Trata-se de uma vinculação conceitual aos conceitos de instinto e sexualidade, tal como exercidos pela psiquiatria no século XIX. Ainda que a ancoragem da psicanálise ao tema dos instintos tenha praticamente se limitado a este curso no Collège de France, o tema da sexualidade será mantido no arsenal foucaultiano, preparando o ataque que será realizado no período seguinte através de A Vontade de Saber (1977a). Uma sexualidade que não se produz apenas na psiquiatria do século XIX, mas tem seu solo na constituição do próprio dispositivo confessional cristão.

c) O biopoder (1975-1977)

Foucault postula neste período uma terceira forma de poder. Se o Poder Disciplinar (a anátomo-política) produz os indivíduos através do exame com fins de normalização, instruindo as Ciências Humanas, a Biopolítica, fará surgir em meados do século XVIII as populações (grupos de indivíduos governados por leis biológicas), por meio de tecnologias de saber (como a Estatística) empreendidas pelos órgãos administrativos da nascente burocracia européia, visando a regulação dos corpos a fim de extrair sua máxima utilidade. Ambas as estratégias são agrupadas sob o nome de biopoder. O saber a ser produzido por esta biopolítica torna-se condição de possibilidade das Ciências Sociais (Foucault, 1981, pp. 37-38). Para dar conta da arqueologia da psicanálise, vinculando-a a um conjunto de práticas discursivas e não-discursivas de origem cristã, que associam a sexualidade à nossa verdade mais própria, Foucault cria a noção de dispositivo. Este não seria nada mais do que o conjunto heterogêneo, a rede em que se enlaçariam o discursivo e o não-discursivo (não se vê aqui mais o saber e o poder como unidades segregadas), com relações de funções vicariantes e intercambiáveis entre as partes (um discurso pode ser um programa, um ocultamento ou a reinterpretação de uma certa prática), e visando responder uma determinada urgência histórica (Foucault, 1982e, p. 244).

A psicologia não se encontra enredada nesta nova malha conceitual. Ela sai de cena mediante o ataque que passa a ser promovido em direção à psicanálise. É como se a psicologia não fosse mais um adversário à altura. Em A Vontade de Saber (Foucault, 1977b) é lançado o primeiro grande ataque de Foucault à psicanálise, atrelando-a ao dispositivo da sexualidade e ao dispositivo anterior a este, o confessional da carne, de origem cristã. Contrariando a hipótese repressiva da qual a psicanálise se julga libertadora, o dispositivo de sexualidade se estabelece na associação do sexo como a nossa verdade mais cara, rendendo um misto de interdição e falatório. Deste ponto de vista, a psicanálise pouco possuiria de original. Esta argumentação será melhor esmiuçada no que se segue.

De início a psicanálise é criticada em sua concepção de poder. Se, por um lado, alguns psicanalistas como Lacan e Melanie Klein, ao contrário de Freud e Reich, não mais opõem instinto, desejo ou pulsão ao poder, pensando-os todos em relação complementar, por outro lado, sua concepção de poder permanece ainda atrelada ao modelo jurídico da soberania, tomando-o como lei, proibição, ou regra, tal como os etnólogos ainda fazem (Foucault, 1981, pp. 23-23; 41). Como será visto, este vínculo não é gratuito, pois um dos modos com que a psicanálise se liga ao dispositivo da sexualidade é atrelando-o ao da aliança, ou de parentesco (o nome do pai). Ligação com o poder soberano, mas de igual modo com a biopolítica individualizante, regulador de populações, e a disciplina individualizante: se no corpo-indivíduo, o controle pela normalização do sexo visa coibir o dispêndio sem finalidade procriativa, no corpo-espécie, a regulação tem como alvo a prole saudável e a gestão da população (Ribeiro, 1993, p. 183). Pareia-se o sexo com a saúde, tomando-se esta como um valor a fim de zelar por sua pureza.

Contudo, em A Vontade de Saber (Foucault, 1977a), Foucault vai mais além, remetendo o sexo a um dispositivo (o da sexualidade), que finca longas raízes na história e tem na psicanálise um de seus últimos ramos; esta pouco teria de original. Renato Mezan (1985, pp. 103-104) delineia a estratégia deste livro em quatro pontos: 1) mostrar a falsidade da hipótese repressiva da sexualidade alardeada pela psicanálise como sua suposta supressora; 2) assinalar que na verdade há uma explosão discursiva que vem desde a pastoral cristã da carne (anterior ao século XVIII e ao dispositivo da sexualidade); 3) estabelecer a continuidade entre este regime eclesial e o científico atual; 4) demarcar a psicanálise como um dos efeitos deste movimento (e não a ruptura revolucionária com relação ao cristianismo, sexologia, ou psiquiatria).

Conforme já destacado, o conceito central deste texto, que articulará em rede todas estas pretensões, é o de dispositivo da sexualidade. Será novamente Mezan que nos guiará na heterogeneidade inerente a este conceito, relacionando-o às quatro causas aristotélicas: “Matéria: A sexualidade. Forma: A confissão. Função: Fixar a sexualidade sobre o sistema [dispositivo] de alianças [ou de parentesco, de natureza soberana]. Finalidade: estabelecer uma tecnologia diferenciada do sexo para uso das elites” (Mezan, 1985, p. 98). Contudo, a marca mais notável e surpreendente deste dispositivo na intenção de estranharmos o que se mostra presente é o pareamento que ele produz entre sexo e verdade: “o que aconteceu no Ocidente que faz com que a questão da verdade tenha sido colocada em relação ao prazer sexual? Esta é a minha questão desde a História da Loucura” (Foucault, 1982e, p. 258). Neste esquema em que, através da sexualidade não se fabrica prazer, mas verdade (Foucault, 1982e, p. 262), a psicanálise gozaria atualmente de largo privilégio:

No cruzamento dessas duas idéias – a de que não devemos nos enganar a respeito de nosso sexo e, a de que nosso sexo esconde o que há de mais verdadeiro em nós mesmos – a psicanálise consolidou o seu vigor cultural. Ela nos promete, ao mesmo tempo, nosso verdadeiro sexo e a verdade de nós mesmos que vela secretamente nele (Foucault, 1983, p. 4).

Este dispositivo da sexualidade, que nutre como húmus a psicanálise, tem em sua história uma longa linha de continuidade. Se o dispositivo da sexualidade surge no século XVIII, antes havia o dispositivo da carne, que se lança no tempo em direção ao cristianismo primitivo, à confissão e ao processo de direção da consciência (século V). São estes processos que permitem o acoplamento da verdade ao sexo: “Por confissão entendo todos estes procedimentos pelos quais se incita o sujeito a produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio sujeito” (Foucault, 1982e, p. 264). Neste aspecto, Ribeiro (1993, pp. 180-181) fornece três características das práticas confessionais: 1) coloca o sexo em discurso (“A confissão nasce ao mesmo tempo que o inconfessável [...] lugar onde a verdade fugitiva gostava de se esconder, ainda que insidiosamente acossada por uma infinita rede da linguagem. Sexo verbal”); 2) constitui uma estratégia de individuação (“No interior da literatura [...] toda uma exploração da intimidade passou a ocupar o espaço que era antes reservado às narrativas heróicas onde se contavam feitos de bravura ou santidade, que visavam imortalizar os homens que as teriam protagonizado”); 3) coloca a verdade do lado de quem fala (em oposição a uma ars erotica oriental, de natureza esotérica para poucos iniciados, na scientia sexualis a verdade emana da boca daquele que se submete ao confessor). O que muda precisamente no século XVIII, na passagem do dispositivo da carne ao da sexualidade, é o investimento de natureza médico-científica dos discursos, em detrimento do eclesiástico, mas ainda mantendo-se o esquema confessional, que atrela o sexo à nossa primeira e mais íntima verdade.

Como a psicanálise se enreda neste dispositivo? Foucault, citado por Mezan (1985, pp. 108-111) caracteriza este modo singular de posicionamento da psicanálise no dispositivo da sexualidade através de três papéis básicos: 1) função mais comumente atribuída à psicanálise: atenuar para as elites os rigores da repressão, onde esta numa maior intensidade se tornava patológica; 2) oposição, através de sua concepção de sexualidade infantil, à teoria da degenerescência, comum na psiquiatria da época, que propunha a ligação entre a perversão e as degenerações hereditárias, tese subjacente às práticas de eugenia nazi-facistas; 3) fixação da sexualidade sobre o dispositivo da aliança, que regula, através da lei, as relações de parentesco, tal como é operado no Complexo de Édipo. É deste modo que a sexualidade, afastada do modelo biológico, reencontra o da lei, através do desejo. E assim a soberania pode ser vista no seio da sexualidade, por intermédio da lei que a regula como poder negativo de interdição na figura do Pai/Rei (Ribeiro, 1993, p. 182). De igual modo, este dispositivo da aliança reativado pela psicanálise é congruente ao da pastoral da carne, mas com uma inversão: se na pastoral da carne, a lei impunha à carne uma armação jurídico-legal, na psicanálise a sexualidade anima as regras de aliança, saturando-as de desejo. São enfim estes os três vetores que animam o dispositivo da sexualidade sobre o qual se ergue a psicanálise: a) dispositivo da Aliança, b) pastoral da Carne, e c) referências médico-jurídicas da Sexualidade; em outros termos, poderes soberanos, disciplinares e biopolíticos.

d) A governamentalidade e o poder pastoral (1978-1979)

Partindo do Biopoder, Foucault começa a estudar a governamentalidade, ou o governo enquanto gestão (de saúde, higiene, natalidade e raças) das populações, movimento surgido no século XVI. Para além do governo de si-mesmo (estoicismo), do governo das almas (pastoral católica e protestante) e do governo das crianças (pedagogia), haveria o “Estado de governo que tem essencialmente como alvo a população e utiliza a instrumentalização do saber econômico, [que] corresponderia a uma sociedade controlada pelos dispositivos de segurança” (Foucault, 1982f, p. 293). Para Foucault, haveria três grandes economias de poder no Ocidente:

O Estado de justiça, nascido em uma territorialidade do tipo feudal e que corresponderia grosso modo a uma sociedade da lei; em segundo lugar, o Estado administrativo, nascido em uma territorialidade de tipo fronteiriço nos séculos XV-XVI e que corresponderia a uma sociedade de regulamento e disciplina; finalmente, um Estado de governo que não é mais essencialmente definido por sua territorialidade, pela superfície ocupada, mas pela massa da população, com seu volume e sua densidade, e em que o território que ela ocupa é apenas um componente (Foucault, 1982f, p. 293).

Vê-se aqui como Foucault redistribui os antigos poderes postulados em outras subfases. A Governamentalidade segundo o autor (Foucault, 1996b, p. 88) se cristaliza enquanto Racionalidade de Estado (doutrina repartida entre uma Razão de Estado, que busca determinar as especificidades do governo e a Polícia, enquanto conjunto de objetivos, objetos e instrumentos do Estado a fim de controlar homens e riquezas). Isto, sem apelar a qualquer instância transcendental ou modelo cosmológico (Foucault, 1982f, p. 286). Foucault irá pôr esta Racionalidade de Governo em contraste com diversos objetos: com o que a antecede e se opõe, a Arte de Governar Soberana (Foucault, 1982f); com o que a sucede e se opõe, o Liberalismo (Foucault, 1997c), e com o seu associado enquanto condição de possibilidade dos Estados modernos, o Poder Pastoral (Foucault, 1996b). Contra a Arte de Governar Soberana, inspirada em Maquiavel, surge a partir do século XVI uma série de manuais que irão lhe contrapor objetos, objetivos e estratégias políticas diversas: não se busca mais como alvo o príncipe e o reforço de seu poder, expresso na extensão territorial, mas a gestão de riquezas e homens em diferentes níveis de governo, que se implicam mutuamente, seja o de si (moral), o da família (economia), e o do Estado (política). Do mesmo modo, não se visa mais a obediência às leis pela obediência, como um fim tautológico em si mesmo, mas objetivos específicos encaminhados por estratégias determinadas ao largo do aparato jurídico.

Esta exposição da razão de governo em seu estado nascente segue a linha de manuais como os de Guillaume de La Perrièrre. Mas ela não se coloca de modo puro no interior das práticas de governo na época. A razão de governo, expressa inicialmente no mercantilismo e no cameralismo, se encontra entrelaçada com a soberania. Por exemplo, no mercantilismo, o alvo final era o fortalecimento do rei, e o instrumental era de natureza jurídica-contratual (Foucault, 1982f, pp. 286-287). O que desbloqueia, desenlaça e libera esta nova governamentalidade é a explosão demográfica da população do século XVII na Europa. Com isto, a família deixa de ser modelo e se torna instrumento de intervenção; a população transforma-se em alvo e instrumento para o governo; e a economia, de nível de governo das famílias, torna-se um modo racional de intervenção e controle, ou um nível de realidade, conforme a soberania se veja superada (Foucault, 1982f, pp. 280-281).

Quanto ao liberalismo, este é visto dentro da abordagem nominalista em história (conforme Paul Veyne, 1980) como uma prática, e não uma ideologia, uma teoria, ou mesmo uma representação. E sua prática é a de sempre pôr a governamentalidade em questão, seja através da sociedade, seja através do mercado; não sendo, pois, um mero movimento doutrinário. Do mesmo modo que a governamentalidade para a soberania, o liberalismo se valeu de início dos recursos da razão de governo como o sistema parlamentar e as políticas econômicas (Foucault, 1997c, pp. 93-94).

Mas o mais fundamental nesta contraposição com a Racionalidade do Estado seria o poder pastoral, enquanto condição de possibilidade da governamentalidade. Dando um imenso salto histórico para trás em direção à Antigüidade, Foucault constata que o tema do pastorado é oriental (judaico, egípcio, assírio e mais tardiamente cristão), e jamais grego. Para os gregos a metáfora do pastor caberia a algumas poucas figuras, como a dos agricultores, padeiros, médicos, pedagogos e ginastas. O poder pastoral seria demarcado pelas seguintes características: 1) o pastor exerce o poder sobre um rebanho e não sobre uma terra; 2) o pastor reúne, guia e conduz o se rebanho. Basta que o pastor desapareça para que o seu rebanho se disperse; 3) o papel do pastor é garantir a salvação de seu rebanho, cuidando de cada indivíduo dia após dia; 4) a relação do pastor para com o seu rebanho é de devotamento; tudo o que ele faz está voltado para o bem de seu grupo. Deve-se ainda acrescentar, conforme Foucault (1996b/1979, pp. 80-81) que o poder pastoral jamais atingiu qualquer supremacia, mesmo na Europa medieval, posto que era incompatível com os laços estabelecidos pelo poder feudal em contexto rural (o poder pastoral seria essencialmente urbano). Este jogo pastor-rebanho combinado com o da cidade-cidadão dará ensejo aos Estados Modernos, em seu poder, ao mesmo tempo coletivizante e individualizante, sintetizando todos os poderes enunciados anteriormente. Sua luta contra a razão governamental não visa liberar o indivíduo das garras do Estado e suas instituições, “mas liberarmo-nos do Estado e do tipo de individualização que lhe é próprio” (Foucault, 1995, p. 239).

A psicologia, como as demais ciências humanas e sociais, tem sua condição de possibilidade no seio do poder pastoral, ou da governamentalidade (reunindo aquele poder e a Razão de Estado). Seria a terceira hipótese foucaultiana sobre a gênese da psicologia, considerando os saberes individualizantes e coletivizantes. Em Sujeito e Poder, texto do período seguinte, ético, o poder pastoral se incumbirá destes dois tipos de saber: “a multiplicação dos objetivos e agentes do poder pastoral enfocava o desenvolvimento de um saber sobre o homem em torno de dois pólos: um globalizador e quantitativo, concernente à população; o outro analítico, concernente ao indivíduo” (Foucault, 1995, p. 239). A governamentalidade aponta não só para o governo dos outros, mas também para o governo de si que, somado à sexualidade como verdade de si, gera o cuidado de si como objeto do período ético de Foucault. A questão passa a ser descobrir como um governo de si (Cuida-te de ti mesmo) transformou-se numa verdade de si (Conhece-te a ti mesmo), própria do cristianismo. Mas este já é o objeto da próxima fase ética (1).

Conclusão

A pesquisa genealógica de Foucault prossegue no trabalho de alguns pensadores atuais como Giorgio Agamben (2002), ao buscar as condições da biopolítica contemporânea na figura do direito romano do homo sacer, um indivíduo que podia ser morto impunemente por qualquer um, mas jamais sob as normas rituais prescritas. Ou ainda esta pesquisa pode ser encontrada na suposição deleuziana de uma sociedade contemporânea de controle, cujos dispositivos de poder se dariam de modo aberto, ultrapassando a configuração disciplinar, limitada ao espaço fechado de instituições como prisões, escolas e asilos (Deleuze, 1992) Ou mesmo pode ser vista no trabalho de Toni Negri e Michael Hardt (2001) que configuram a biopolítica atual na forma imperial, ao ultrapassar as fronteiras nacionais e se conjugar no amálgama de instituições, organizações e conglomerados transnacionais e não-governamentais. Contudo é no trabalho de Nikolas Rose (1998) que esta pesquisa genealógica vai mais claramente se articular às condições de surgimento da psicologia. Para este autor, estas se articulam ao liberalismo, entendendo este não como uma mera crítica da governamentalidade (como supõe Foucault), mas como uma prática de governo ancorada na suposição de liberdade e responsabilidade dos indivíduos. Uma contra-prova desta tese seria a quase ausência dos saberes e práticas psicológicas em países de regime totalitário. Nas formas liberais a psicologia coloca-se como uma técnica privilegiada de governo na medida em que articula a administração dos indivíduos e das populações às peculiaridades de suas leis internas, conjugando os princípios de autenticidade e objetividade científica.

À guisa de conclusão pode-se propor os trabalhos genealógicos de Foucault e Rose como ferramentas fundamentais na investigação das condição de possibilidade para o surgimento dos saberes e práticas psicológicas. No caso, estas incidiriam especificamente sobre a formação histórica da experiência de individualização. Trata-se aqui do processo da constituição dos indivíduos enquanto unidades políticas a serem destacadas e diferenciadas no conjunto da vida comunitária. Mais do que a percepção das diferenças entre os indivíduos concretos, trata-se da experiência de que os indivíduos são ao mesmo tempo fonte e alvo dos poderes. E esta história não se resumiria à constituição dos indivíduos pela forma jurídica do exame, poder disciplinar, biopoder ou poder pastoral, como propõe Foucault. Ela poderia ser contada em dois tempos, conforme a constituição de dois tipos de indivíduos. O primeiro, o indivíduo enquanto entidade universal, autônoma, e livre pode ser descrito conforme a reflexão de alguns pensadores políticos modernos (como Thomas Hobbes e Jean-Jacques Rousseau), consagrando uma série de práticas políticas herdadas pelos Estados Modernos da Igreja católica sediada em Roma. O segundo, um indivíduo tomado como um objeto a ser descrito e classificado a partir de normas bio-médicas seria produto das relações políticas de poder constituídas a partir do século XVIII, notadamente as disciplinares, bipolíticas e pastorais. Tratemos brevemente da genealogia do primeiro tipo que pode ser buscada no trabalho de autores como Louis Dumont.

Os acontecimentos que ancorariam uma experiência de individualização no campo social e político, tal como começa a despontar no fim da Idade Média, remontam a criação dos Estados Modernos. Segundo Louis Dumont (1993) a criação correlata dos Estados Modernos e de uma experiência de individualização decorreria dessa matriz cristã mais arcaica. É nos Estados Modernos que a fraternidade dos homens em torno de Deus se laiciza: todos são irmãos perante a lei não mais divina, mas do Estado. Trata-se de uma concepção algo paralela a do poder pastoral enquanto matriz dos Estados Modernos. Por detrás dos Estados Modernos teríamos o modelo de Roma (como sede da estrutura eclesial), e por detrás desta, as antigas fraternidades monásticas, individualizadas pela igualdade perante a lei divina. Teríamos assim no início da Idade Moderna uma primeira experiência mais universal de individualização: a constituição do indivíduo no século XVI enquanto um sujeito autônomo, singular, igual aos demais e dotado de uma interioridade (foro íntimo), que seria base contratual dos Estados modernos e fonte jurídica do poder destes.

Esta idéia foi fartamente explorada pelo pensamento político desde a defesa do absolutismo esclarecido por Thomas Hobbes (1588-1679) até o pensamento liberal (John Locke, David Hume e outros) e iluminista (Voltaire, Denis Diderot e Jean-Jacques Rousseau) do século XVIII. Em outras palavras, teríamos o surgimento do indivíduo soberano regulado pela Lei. Aqui o indivíduo seria meramente fonte, mas jamais alvo de um poder: o Estado não tem ainda como meta o Bem-Estar e a qualidade de vida dos seus cidadãos. Suas únicas funções neste momento são as declarações de guerra e de paz e a gerência do comércio. Trata-se de um Estado que, em nome da Lei contratada entre os seus cidadãos, pode tirar a vida destes e submetê-los a toda espécie de suplícios toda vez que houver uma infração. Nas palavras de Foucault (1977, p. 128) “trata-se de um Estado que faz morrer e deixa viver”.

Este indivíduo soberano, tal como surge no raiar da modernidade, também não é objeto de qualquer saber. Até o início do século XVIII perseverava o veto aristotélico contra uma ciência do particular: só existe ciência de entes universais. De mais a mais, o indivíduo soberano jamais poderia se tornar objeto de um saber, uma vez que era a fonte da legalidade e identificado a um sujeito autônomo. Contudo, se o indivíduo como alvo do conhecimento não existia, ele já se fazia presente, como fonte jurídica, própria do poder soberano. Daí que Figueiredo (1985) sustente que este sujeito soberano não é alvo e nem condição suficiente da psicologia, enquanto saber sobre o indivíduo; é necessária a invenção de outra forma de individualização, oriunda das disciplinas e do biopoder, que se manifestam a partir de meados do século XVIII.

A partir de então impõe-se uma duplicidade no que entendemos por indivíduo: para além do indivíduo soberano, que não gera um saber sobre si, emerge o indivíduo disciplinado, que é produzido através do exame, superando o veto aristotélico. Se no poder soberano o indivíduo é avaliado a partir da Lei contratuada, o indivíduo disciplinado é ordenado a partir de uma Norma, que determina a sua filiação ou não à normalidade. Aqui se destaca a importância de todos os saberes sobre a vida. Este novo indivíduo desponta não mais como um sujeito, mas um objeto determinado, singular, diferenciado e dotado de uma interioridade (identificada agora a uma natureza biológica), que será o alvo do cuidado dos Estados contemporâneos e de uma série de agências privadas. Muda-se a meta; se a forma soberana indicava o “fazer morrer e deixar viver”, a fórmula disciplinar agora é “fazer viver e deixar morrer”.

Como esta experiência de dupla de individualização, ao mesmo tempo soberana e disciplinar, em que o indivíduo configura-se ora como sujeito livre, ora como objeto determinado, determina a formação do campo psicológico? Esta experiência de individualização marca diversas escolas fundadas no século XIX em países de língua inglesa, uma vez que ancoradas em saberes sobre a vida, como a biologia evolucionista. É o caso das psicologias funcional, evolutiva, comparativa e diferencial. Contudo, deve-se considerar que estas formas da nossa individualização também estão presentes em todas as práticas psicológicas, oscilando entre a busca de autonomia (soberania) e o controle dos seus sujeitos (disciplina). Pode-se, a partir daqui, de igual modo estabelecer uma das tensões que operam como bússola no campo psicológico: como colocar como objeto de controle o mesmo indivíduo que se configura como essencialmente autônomo e livre em termos jurídicos?

Deste modo, ou uma determinada teoria, prática ou sistema psicológico valorizará mais o indivíduo em sua suposta autonomia soberana, ou tomará mais como referência a disciplina, seja em nome da Sociedade, do Estado, ou do Bem-Comum, sempre, contudo, se dirigindo à direção complementar à sua posição. Assim, ou se parte do indivíduo autônomo em direção a uma suposta determinação última, como procedem os funcionalistas, construtivistas e gestaltistas, ou se parte das disciplinas para a constituição de um indivíduo autônomo e autocontrolado, como realiza o behaviorismo. Algumas psicologias, pois, mesmo que privilegiem a autonomia do ser humano, remetem-no a uma norma natural; outras, ainda que tentem disciplinar os sujeitos, fazem-no de modo a favorecer o seu autocontrole autônomo.

A psicologia se situa, assim, em um espaço político entre o indivíduo autônomo e soberano (fonte do poder) e o indivíduo sob controle das disciplinas (alvo dos poderes), realizando o trânsito entre estes. Poderíamos dizer que, sem esta ambigüidade moderna, não haveria nem mesmo a psicologia, pois, se só houvesse a individualidade autônoma, não haveria a suposição do indivíduo como objeto de conhecimento. Por outro lado, se só houvesse a determinação, cairíamos em um fatalismo em que toda a intervenção psicológica seria desnecessária. Daí a suposição de Nikolas Rose (1998) de que a psicologia só é possível em sociedades liberais, tendo como função favorecer o “bom uso” da liberdade pelos indivíduos.

Referências bibliográficas

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Nota

 

(1) A abordagem das condições de possibilidade do surgimento da psicologia e da psicanálise nos trabalhos da última fase do pensamento foucaultiano foi desenvolvida pelo autor em artigo publicado na revista Memorandun (Ferreira, 2005). [volta]

 

Nota sobre o autor

Arthur Arruda Leal Ferreira é Professor Adjunto do Instituto de Psicologia e do Programa de Pós-graduação em Saúde Coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil), Doutor em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica da São Paulo (Brasil) e pesquisador financiado pela FAPERJ & FUJB. Atualmente trabalha na organização de dois livros: "História da Psicologia: Trilhas e rumos" (Editora Nau) e "Pragmatismos e Pragmáticas" (Editora DP & A). É residente na Rua do Riachuelo 169/405. Rio de Janeiro/RJ, Brasil. CEP: 20.230-014. E-mail: arleal@superig.com.br

 

Data de recebimento: 29/09/2005
Data de aceite: 30/04/2006

 
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/ferreira03.htm

 

 

 

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