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A
psiquiatria fenomenológico-existencial na Itália
Phenomenological-existential psychiatry in Italy
Patrizia Manganaro
Pontifícia Università Lateranense
Itália
Resumo
O artigo descreve desenvolvimentos da fenomenologia na
Itália no domínio da psicopatologia, em termos de uma
releitura das questões fundamentais da ciência médica
psiquiátrica e de uma reformulação da relação do
psiquiatra com o sintoma e com a pessoa humana que o
expressa, levando a uma mudança radical na maneira de
exercer a prática psiquiátrica. Consideram-se fundamentais
para esta transformação as obras de K. Jaspers. No que diz
respeito ao período contemporâneo, assinala-se a
contribuição de psiquiatras italianos como E. Borgna e L.
Calvi. Um destaque especial é reservado a Bruno Callieri e
à sua proposta de psicopatologia clínica. Finalmente,
aborda-se a questão da reforma psiquiátrica na Itália (Basaglia)
traçando um breve histórico da mesma e da formação do
psiquiatra, atualmente moldada por uma maior consciência
crítica desta função. Com efeito, a abordagem
fenomenológica não dispensa as categorias diagnósticas nem
o ato clínico mas aponta a ineficácia destes quanto à
pretensão de definir a pessoa de modo totalizante em sua
realidade existencial.
Palavras-chave:
historia da psiquiatria; fenomenologia e psiquiatria;
psicopatologia clínica; história da fenomenologia |
Abstract
The article describes developments of phenomenology in
Italy in psychopathology, in terms of a new reading of
fundamental questions of psychiatric medical science
and reformulation of the relation of the psychiatrist
with the symptom and with the human person who
expresses it, leading to a change in the way of
practicing psychiatry. For this transformation, the
works of K. Jaspers are fundamentl. Regarding the
contemporary period, it is underlined the
contributions of Italian psychiatrists such as E.
Borgna and L. Calvi in this perspective. A special
place is reserved to Bruno Callieri and to his
proposal of clinic psychopathology. The question of
psychiatric reform in Italy (Basaglia) is approached
through the description of its history, and formation
of psychiatrists, the phenomenological approach
doesn´t excludes diagnostic categories and the
clinical act but points the inefficacy of these
regarding the claim of defining person in a totalizing
way in its existential reality.
Keywords:
history of psychiatry; phenomenology and psychiatry;
clinic psychopathology; history of phenomenology
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1. Desenvolvimentos
da fenomenologia na investigação sobre psicopatologia
Em Ideen Husserl
propõe uma ciência descritivo-essencial do conhecimento puro (1), cujas
formulações podem ser eficazmente aplicadas a situações concretas,
quotidianas. De fato, obviamente, isso atraiu a atenção de alguns
psiquiatras e psicopatologistas de orientação humanista e existencial. A
postura fenomenológica, mesmo em psiquiatria, se esforça por manter entre
parêntesis a preocupação etio-patogênica e a necessidade de ordenação
nosológica, para poder entrar sem impedimentos pré-concebidos em um
relacionamento cognitivo-pático imediato com as “coisas”. A delimitação
formal do fenômeno torna-se expressão verdadeira do modo de ser da
realidade e do seu fazer-se mundano – ou seja, “como” ela é para o mundo e
“como“ ela “tem” o seu mundo (Cf. Callieri, 1981). Independentemente do
conhecimento indutivo e causal, não há duvidas quanto a riqueza
qualitativa do ato fenomenológico, e pode-se facilmente compreender como
ele tenha feito surgir os aspectos mais originais da contestação
psiquiátrica (cf. Basaglia, 1968).
Desse modo, a grande maioria das contribuições da
fenomenologia husserliana e das filosofias da existência à pesquisa em
psicopatologia gradualmente conduziram a uma revisão das questões
fundamentais da ciência médica psiquiátrica mesma, solicitando uma
reformulação do relacionamento do psiquiatra com o sintoma e com a pessoa
humana que o expressa (Callieri & Ales Bello, 2002). Os últimos decênios
do século XX, com efeito, viram a abordagem fenomenológica dirigir-se
gradualmente a uma global reformulação dos temas existenciais da
psiquiatria e a uma maneira radicalmente diversa de exercitá-la: um salto
qualitativo, no verdadeiro sentido do termo, que tem suas raízes na
orientação fenomenológico-existencial e na sua antropologia filosófica.
Essa abordagem não tem a intenção de invalidar as categorias diagnósticas
nem o ato clínico, mas estabelece sua ineficácia devido à pretensão de
apreender o outro sem resíduos na sua realidade existencial (Callieri &
Maldonato, 1998).
Através das investigações filosóficas de Husserl e
Heidegger e graças aos estudos de Jaspers (1963, 1965) – sobretudo
Psicopatologia geral (1913) e Psicologia das visões de mundo
(1919) – os desenvolvimentos da antropologia filosófica de base
fenomenológica permitiu apreender o indivíduo como presença no mundo e
como espaço-tempo vivido, na sua irredutível unicidade e singularidade,
mas também na sua ulterioridade, sempre excedente. (Callieri, 1963b;
Callieri & Castellani, 1971; Callieri, Castellani & De Vincentiis, 1972).
As categorias redutivamente biologizantes e psicologizantes foram
superadas pela abordagem fenomenológico-existencial, que permite o acesso
à alteridade, ao mundo do outro, à sua Lebenswelt, ao universo das
relações interpessoais, prescindindo do juízo clínico, das funcionalidades
operativas e dos objetivos práticos, sem, todavia, invalidá-los. (Cf.
Cargnello, 1966). Evitou-se assim cair em esquemas pré-constituídos (de
matriz diagnóstico-naturalistica) não idôneos para colher os “fenômenos”
em toda a sua formulação e em seu autêntico sentido.
A psiquiatria da existência considera si mesma como serva
da psiquiatria clínica: um sustento válido, real, concreto para a ciência
médica psiquiática, como já recordava L. Binswanger (1942). Além da
organicidade, é de grande alcance cognoscitivo a exploração do
inconsciente e a influência da cultura: o sublinhou E. Borgna (1979, 1988,
1992, 1995, 1997), responsável pelo Serviço de Psiquiatria do Ospedale
Maggiore di Novara e livre-docente em Clinica delle Malattie
Nervose e Mentali da Universidade de Milão. Borgna vê a psiquiatria
como ciência da intersubjetividade no sentido fenomenológico, mesmo quando
a analisa do ponto de vista claramente social (Borgna, 1998). Ainda no
panorama italiano, uma grande contribuição para a difusão da antropologia
fenomenológica cabe a L. Calvi (1980), livre-docente em Clinica delle
Malattie Nervose e Mentali, primário neurologista nos hospitais de
Sondrio e de Lecco e editor da revista Comprendere: Archive
international pour l’Anthroplogie Phénomenologique.
Como dizíamos, os estudos de K. Jaspers são considerados a
pedra angular da psicopatologia moderna, tendo formado pelo menos três
gerações de psiquiatras, preparando o terreno para o grande exército de
psicopatologistas destinados a receber e desenvolver a influência de E.
Husserl e de M. Heiddeger. Como M. Binswanger mostrou, o método
fenomenológico facilita – de um modo totalmetne original – a reconstrução
e compreensão do “mundo de significados” do paciente. Isso torna possível
a retomada do intencional desvelar-se da existência do indivíduo e confere
continuidade de sentido às suas vicissitudes; pode-se dizer que seja uma
significativa disposição estrutural até mesmo onde um psiquiatra de velha
concepção veria somente fragmentos de sentido ou até mesmo um sentido
caótico. Colocar entre parêntesis (mas não negar) o naturalismo
psiquiátrico implica, em primeiro lugar, e sobretudo, atribuir um grau
inferior às classificações e aos juízos diagnósticos, evidenciando que
tais juízos dependem dos critérios culturais.
Concluindo,
orientação fenomenológica significa abordar a doença mental não como uma
disfunção da mente, mas como um diverso modo de manifestar-se, em
determinados indivíduos, daquelas figuras universais do homem, como o
espaço, o tempo, a co-existência, o mundo em que todos habitamos segundo
os cânones compartilhados que, em seu conjunto, constituem o fenômeno
originário, que costumamos chamar de cultura, pela qual é no corpo
vivo da cultura, antes que no organismo da natureza, que são descobertas
“as raízes da alienação que fazem do alienado não um ‘doente’, mas um
‘alheio’, um ‘estranho’, um ‘estrangeiro’ no interior da comunidade que o
hospeda como seu ‘outro’ ”. (Galimberti, 1998, p. 271).
1.1. Psicopatologia
clínica como ciência humana: Bruno Callieri
Bruno Callieri foi um dos primeiros a introduzir a
abordagem fenomenológica na Itália, que já havia sido introduzida na
Alemanha e na França, duas nações não dificultadas pelos atrasos
ideológicos que condicionaram fortemente a cultura italiana. Formado em
medicina em 1948, Callieri tornou-se livre docente em psiquiatria em 1955
e em clínica de doenças mentais em 1957. Lutou por muitos anos pela
aceitação da psiquiatria na “Neuro” de Roma, onde foi diretor do hospital
psiquiátrico. Publicou mais de quatrocentos estudos, ensaios, artigos e
notas, principalmente de psicopatologia e de psiquiatria clínica (Callieri,
1952, 1953, 1963b, 1978, 1981; Callieri & Ales Bello, 2002; Callieri &
Frighi, 1958), demonstrando grande sensibilidade pelas questões
fenomenológicas básicas e por suas implicações éticas, contribuindo
notavelmente para sua divulgação e compreensão. Como dito, Callieri
contribuiu decisivamente para a renovação da psicopatologia na Itália e na
Europa, aprofundando o aspecto antropológico-fenomenológico através de
muitas apresentações em congressos nacionais e internacionais. Há muitos
anos ensina psicopatologia em diversas escolas romanas de psiquiatria e
psicopatologia, e na Scuola di Diritto Canonico della Sacra Romana Rota.
A difusão da psiquiatria antropológico-fenomenológica,
chamada análise existencial, tornou possível tanto um renovado acesso as
questões que haviam sido deixadas à margem da pesquisa em psicopatologia e
psiquiatria, quanto uma visão renovada de algumas temáticas – culpa,
corporeidade, atribuição de sentido, perplexidade, máscara, consciência,
olhar, símbolo – até então assumidos principalmente (ou exclusivamente) de
modo objetivante.
Um dos mais férteis âmbitos da abordagem fenomenológica em
psiquiatria é o que se refere à pesquisa de diferentes mundos-da-vida,
Lebenswelten, a que o último Husserl dedicou grande parte de seu
esforço intelectual. Segundo Callieri, a análise dos mundos-da-vida revela
diversos estilos de existência e lança nova luz sobre modalidades de
“fazer experiência”, inclusive algumas tradicionalmente psicopatológicas
(como a fobia e as modalidades esquizofrênicas e maníacas). Por esta
razão, a antropologia fenomenológica constitui uma indispensável premissa
para toda forma de psiquiatria que se interesse pelo ser humano em seu
mundo: “A psiquiatria é, na raiz, ciência do homem, da existência humana:
existência que não é somente natureza mas também cultura e história, em
uma palavra, ‘pessoa’. É ao conceito husserliano de Krisis, à
redescoberta da ‘intencionalidade da consciência’, da Lebenswelt,
que se devem as grandes aberturas de horizonte da psicopatologia e da
psiquiatria. Aberturas à relação intersubjetiva, à corporeidade, ao
encontro, à necessidade de ‘intencionar’ e de apreender, sempre
husserlianamente, o Outro-Eu e o seu ser-mundano, mesmo no caso clínico
mais inequívoco” (Callieri & Maldonato, 1998, p. 22). Com Callieri a
psiquiatria habita esse espaço intepretativo, criando assim uma
significativa distância de todos aqueles espaços redutivos ou bloqueados
nos quais infelizmente são expressas muitas páginas de psiquiatria
contemporânea, “onde a asfixiada linguagem diagnóstica sepultou o respiro
da alma que, mesmo nas formas mais errantes, dá preferência à abertura dos
mundos do que aos fechados recintos das esquemáticas interpretações, onde
não só o sentido implode na precisão de significado, mas também a
esperança se extingue no traço ultimado da definição” (Galimberti, 1998,
p. 274).
No importante livro Quando vince l’ombra: problemi di
psicopatologia clínica, Callieri (2001) confessa o constante temor de
que a presença do outro-de-si seja toda abordada no aprofundamento
psicopatológico do juízo clínico (em si lícito e de dever), ou
cristalizada na preliminar referência a conceitos teoréticos no final das
contas abstratos, desvinculados do impacto profundamente humano,
existencial, com a alteridade pessoal. Os “casos” analisados não devem ser
tomados somente como paradigmáticos dessa ou daquela síndrome, numa
redutiva visão manicomial, porque desse modo nos escapa a sua inalienável
qualidade de humana presença, e só poderia abrir espaço à identidade
meramente médica e psicológica do psiquiatra, às custas da dimensão
antropológica.
Segundo Callieri, o discurso psicopatológico clínico é
essencial para a formação do psiquiatra; este, porém, deve ser um human
scientist no pleno sentido do termo. Revisitar a psicopatologia
clínica em termos da experiência inter-humana permite chegar não mais ao
“caso de esquizofrenia”, objetivado em sintomas ou em mecanismos de
defesa, descritos e tomados como fenômeno natural, mas à presença
psicótica como eventualidade ou modalidade pessoal, como ameaça imanente
do ser-humano, que paira sobre cada um. Evitar os reducionismos significa
aproximar-se do estudo da psicopatologia com um novo espírito, que faz
dela uma autêntica ciência do homem.
Callieri mostrou um grande interesse pela relevância ética
no âmbito da saúde mental. Os problemas concernentes à psiquiatria são, de
fato, numerosos, ricos de implicações que vez por outra são
contraditórios, indo desde o campo referente, em sentido estrito, ao
sofrimento do paciente e à sua patologia clínica (que implica a tarefa de
melhorar seu estado mental e decidir se sua liberdade deva ser reduzida
para defender sua saúde), até às questões sociais fundamentais. Enquanto
as leis estão se tornando sempre mais complexas, há também um crescimento
de consciência da falta de especificidade do código de ética.
A psicopatologia fenomenológica é particularmente sensível
às questões até aqui expostas. Como indicado, a disciplina é também
conhecida como antropo-análise e vive graças às contribuições das análises
fenomenológicas de Husserl e das análises existencialistas de Heidegger.
Ainda que a escola existencialista tenha o mérito de indagar sobre o ser
humano “na situação”, a contribuição construtiva no campo da ética pode
ser atribuída mais propriamente à escola fenomenológica. Callierei se
dirige justamente a esta última para chegar a respostas convincentes: a
antropologia que emerge das análises de E. Husserl, M. Scheler, E. Stein,
A. Pfänder, D. von Hildebrand – graças à clarificação da tríplice
estrutura do ser humano (corpo, psique, espírito) – leva a considerar não
somente os problemas da psique, mas também os da dimensão espiritual, que
é responsável pelas decisões e pelos posicionamentos conscientes.
No encontro entre psiquiatra e paciente ambos põem em jogo
a própria humanidade e, conseqüentemente, isso envolve a pessoa humana em
toda a sua complexidade e inteireza. As reflexões sobre a atitude a ser
assumida na relação terapêutica não podem prescindir de uma série de
decisões que requerem a minuciosa consideração do que venha a ser bem para
um e outro. Assim, leva-se em consideração (também) a questão dos valores,
tratada exaustivamente pelos fenomenólogos aqui já citados. Husserl, no
segundo volume de Ideen zur einer reinen Phänomenologie und
phänomenologische Philosophie, Scheler no seu Der Formalismus in
der Ethik und die materiale Wertethik, Stein em Beiträge zur
philosophische Begründung der Psychologie und der Geisteswissenschaften,
Pfänder em Psychologie der Gesinnungen e von Hildebrand em
Ideen der sittlichen Handlung – para lembrar somente as obras mais
importantes – chegam a adentrar o tema da constituição da pessoa ao qual
os valores são indissoluvelmente ligados.
Esses estudos enfatizam a centralidade da pessoa e a fonte
de valores que deveriam assegurar o harmônico desenvolvimento da vida e
estabelecer assim um nexo com a tradição. Não se trata, porém, de sair da
pessoa, mas mostrar (através de significados de um detalhado procedimento
analítico) tanto a estrutura do ser humano quanto o horizonte para o qual
ele tende ou deveria tender, e então deduzir que o interesse é pela
pessoa. Além disso, não se trata de deter-se na singularidade, ainda
que seja altamente relevante; na verdade, sendo que o ser humano vive em
associação, é necessário indicar qual associação lhe permite um pleno
desenvolvimento. O interesse dos fenomenólogos é particularmente atraído
pela associação denominada “comunidade”, na qual se evidencia uma mútua
responsabilidade. É, então, importante que o comportamento humano se
adapte aos valores que fundam a comunidade. De fato, é a solidariedade
entre os indivíduos que torna possível a fundação de um vínculo de tipo
pessoal. Dá inter-subjetividade à interpessoalidade: essa é a via
teorizada pelos fenomenólogos, que deve estar presente nas relações
humanas e na prática em psicopatologia.
Sem estar cônscios
disso e sem uma adequada reflexão sobre a relação entre antropologia e
ética, simplesmente não é possível apreender as questões que emergem da
manipulação física do cérebro na psico-cirurgia, das técnicas de
condicionamento, da terapia sexual, das delicadas temáticas que permitem o
chamado consenso esclarecido, do tratamento dos pacientes socialmente
perigosos, das dimensões éticas da psiquiatria infantil e do adolescente,
da psico-geriatria, da “morte digna” e da psiquiatria judiciária. (Fornari,
1997).
1.2.
Conhecimento/compreensão psiquiátrica: explicação versus
compreensão
Há um século o psiquiatra, univocamente orientado na
perspectiva positivista e naturalista, definia a sua ação com o duplo
movimento de reificação e de despersonalização, dissolvendo o paciente e a
unicidade de sua existência no anonimato de categorias patogênicas e
sistematizações gnosiológicas, todas dentro dos cânones de uma pensamento
nomológico. Essa postura não-dialógica resultava confinada no horizonte
exclusivo e excludente da “explicação” e da identificação causal
psique-cérebro. Nesse sentido, a nota equalizante segundo a qual “as
doenças mentais são doenças do cérebro” vinha sendo acriticamente assumida
e absolutizada em uma perspectiva de radical medicalização do sofrimento
psíquico e do distúrbio do comportamento humano.
Ainda em Quando vince l’ombra: problemi di
psicopatologia clinica, Callieri (2001) indica diversas formas do
conhecer/compreender psiquiátrico (Callieri, Castellani, De. Vincentiis,
1972), importantes para a aplicação correta do método e aproximação do
paciente:
1) Conhecer por “explicação” (Erklären), entendida
como puramente biológica ou funcionalista: pertence a esse âmbito a
corrente de pensamento chamada de psiquiatria biológica, que busca
formular os problemas psicopatológicos segundo parâmetros da
neurofisiologia. Na compreensão por “explicação” os fenômenos são
considerados como manifestações da natureza, ou seja, como distúrbios
psíquicos. O conhecimento é dirigido à clarificação do princípio causal,
pelo qual o examinador busca a causa da qual a doença é sintoma ou efeito
– obviamente, entre causa e efeito não há qualquer relação de significado.
Nesta abordagem, acentua Callieri, há uma clara separação entre examinador
e examinado: através de uma redução diagnóstica, o doente torna-se um mero
caso clínico.
2) Conhecer como “compreensão” (Verstehen),
entendida no sentido estrito de Jaspers ou no sentido de identificação de
Gruhle, ou ainda no sentido intuitivo de Minkowski, de tipo bergsoniano:
trata-se de uma compreensão que emerge de colocar-se em relacionamento
inter-humano com o examinado. Os fenômenos são aqui assumidos como
manifestações psíquicas com as quais o outro se revela, e o conhecimento
tende a buscar os motivos das manifestações psíquicas. Desse modo, a
distância entre examinador e examinado é reduzida, diminuída. De um ponto
de vista doutrinário, grande importância é aqui atribuída ao critério
analógico: é uma compreensão que se parece com a do senso comum.
3) O modo “interpretativo” psicanalítico de compreender
parece se apoiar num plano cognoscitivo mecanicista, no qual o fenômeno é
entendido como distúrbio natural, ou seja, de natureza pulsional do ser
humano ou como epifenômeno da dinâmica da libido. Nessa abordagem domina a
busca da causa inconsciente ou do motivo inconsciente ao qual remeter
determinado efeito. No momento da transferência, porém, a aproximação
humana é máxima, enquanto torna-se máximo o distanciamento no momento
redutivo explicativo. A base teorética é redutível à noção de libido ou a
outros conceitos afins (de tipo energético, mecanicista, pulsionalista) e
à noção de transferência (que é de tipo antropológico).
4) Conhecer “antropoanalítico”, no sentido de Binswanger,
situa-se em uma antropologia fundamentada sobre a indagação a respeito da
presença humana no seu ser-no-mundo e se propõe a conhecer a
essência dos fenômenos psicopatológicos e o modo de ser daqueles que
manifestam o fenômeno. A postura do examinador busca o primado de
apreender a essência com a qual um outro expressa seu modo de ser.
O fundamento teorético se desloca do plano do experimentado ao da
expressividade: isso comporta uma referência ontológica para os vários
modos de ser no humano, com as suas respectivas normatividades. Torna-se
aqui totalmente insuficiente – e inadequada – a noção de “normalidade”, da
qual, ao invés, a chamada fenomenologia compreensiva parece se aproximar.
5) Compreender “sociológico”, no qual o conhecimento é por
alguns aspectos causal e interpretativo, e por outros é principalmente
compreensivo. Distinguindo ulteriormente a perspectiva sociológica
comportamentalista daquela interpessoal e cultural, pode-se afirmar que a
primeira se move sobre um corpus de conceitos generalizados com
referência empírica, enquanto que a segunda supera o princípio de
interdependência lógica e ecológica para tornar-se também ela uma
antropologia, estrutural primeiro e relacional depois.
De modo límpido,
Callieri conclui: “Baseado nisso, considero que os primeiros passos a dar
são na trilha descritiva e na metodológica. Ou seja, é preciso aprender a
observar e a descrever o que se observa, e aprender a distinguir a
explicação da compreensão” (Callieri, 1982, p. 18). Na tensão bipolar
entre “natureza” e “existência”, entre a erklären da explicação e o
verstehen da “compreensão”, entre o caso objetivado em parâmetros
biológicos e o caso encontrado na sua realidade individual, irrepetível e
irredutível, põe-se o tertium da interpretação: uma abordagem, esta
última, governada por um princípio causal meta-psicológico, humanista na
sua práxis, marcado por uma aguda dialética entre naturalidade e
historicidade do ser humano, por uma irredutível ambigüidade entre
“explicar” e “compreender”.
2. A reforma
legislativa na Itália e a formação do psiquiatra
O hospital psiquiátrico sofreu de uma esclerose progressiva
que o transformou em “reclusório”, em depósito dos marginalizados, dos
indesejados, dos últimos. Como R. Canosa (1979) bem documentou,
freqüentemente se abusou da ciência médica psiquiátrica como método de
discriminação e de coerção: isso produziu a reproposta e/ou reformulação
dos dois eixos do cuidado psiquiátrico, a saber, a psicofarmacoterapia e a
psicoterapia, e uma mais consciente discussão sobre limites da abordagem
psiquiátrica mesma (Callieri, 1962, 1963a).
Em junho de 1972, a Sociedade Italiana de Psiquiatria
elaborava as Linhas programáticas para a assistência psiquiátrica
na qual se previam a superação da instituição psiquiátrica e a vinculação
das atividades de cuidado dos doentes mentais aos hospitais gerais. Já
estavam desenvolvidas experiências desse tipo em Gorizia, Trieste, Perúsia
e Arezzo; outras, de caráter mais territorial, estavam iniciadas em
Florença, Pádua, Varese, buscando que os serviços chegassem a resolver a
grande maioria dos casos psiquiátricos sem recorrer a hospitalização de
tipo tradicional. Na Itália, desde o pequeno manicômio de Gorizia onde
Franco Basaglia iniciou em 1965 (mas ainda antes, desde a fenomenologia
existencial), deu-se uma considerável coagulação de energias reformadoras
e revolucionárias em torno de seu projeto anti-institucional. Junto a
numerosos psiquiatras e ao seu Movimento Democrático de Psiquiatria
criaram-se as condições que em 1978 levaram à reforma da legislação
psiquiátrica, introduzida com grande entusiasmo e ásperas críticas,
perplexidade e hostilidade, apoios críticos e às vezes incondicionados. De
fato, Basaglia conseguiu imprimir um salutar choque na psiquiatria
italiana, que até aquele momento jazia em torpor.
Em maio de 1978 a lei 180 (depois lei 833, 1979, de reforma
sanitária), substituindo a de 1904 parcialmente modificada em 1968,
decreta o fim dos hospitais psiquiátricos, enquadrando a assistência ao
distúrbio psíquico no âmbito da saúde geral, redimensionando nitidamente a
custódia obrigatória do doente mental, abolindo o critério do escândalo
público e o da periculosidade. Assim é removida a ambivalência fundamental
implícita na lei de 1904: cuidado e/ou custódia, pendendo a uma conotação
mais marcadamente terapêutica. É justamente o que o legislador, recebendo
as instâncias dos movimentos de renovação psiquiátrica, quis como
concepção fundamental e qualificante da reforma. Os atrasos são ainda
graves: é verdade que foram fortemente limitadas as admissões a
tratamentos obrigatórios, permitidas, em geral, somente nos hospitais
gerais; mas as polêmicas estão ainda acesas, em parte determinadas pela
lógica da conservação e dos interesses constituídos em torno da
instituição manicomial; em parte favorecidas por ampla carência de
estruturas e de articulações assistenciais extra-hospitais. Além disso, a
reforma não aboliu o artigo 59 (abandono de pessoas menores ou incapazes),
nem o artigo 593 (omissão de socorro) do Código Penal. Por isso as
obrigações a tratamento e assistência dispostos pela lei permanecem
intactos, e suscetíveis a reações regressivas onde se tornassem freqüentes
os procedimentos judiciários a cargo de psiquiatras com relação àqueles
artigos (Benassi e Turrini, 1979).
Nos últimos 50 anos
se assistiu em toda parte a um crescimento do número de psiquiatras, tanto
pelo desenvolvimento das psicoterapias quanto pela melhora das técnicas de
tratamento. Registra-se que também na Itália, como já há muito nos países
ocidentais, o psiquiatra prático tende geralmente para uma formação
psicanalítica. A revolução psiquiátrica dos anos setenta e oitenta do
século XX comportou – ao lado das corajosas desmitificações e de uma maior
consciência crítica do próprio papel – também posicionamentos
extremistas, ideologicamente condicionados, e uma confusão de papéis, com
um geral achatamento do nível de preparação técnico-profissional e com uma
tendência paradoxal a psiquiatrizar indevidamente outros setores.
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Nota
(1) Tadução de Miguel Mahfoud do inédito original em
italiano. [volta]
Nota
sobre a autora
Patrizia
Manganaro é doutora em filosofia, professora de
filosofia da linguagem na Pontificia Universirtà Lateranense, Roma,
Itália. Contato: patriziamanganaro@yahoo.it
Data
de recebimento: 26/08/2005
Data de aceite: 31/08/2005
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/manganaro05.htm
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