Manganaro, P. (2006). A psiquiatria fenomenológico-existencial na Itália. Memorandum, 10, 85-92. Retirado em   /  /  , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/manganaro05.htm

A psiquiatria fenomenológico-existencial na Itália

Phenomenological-existential psychiatry in Italy

Patrizia Manganaro
Pontifícia Università Lateranense
Itália
 

Resumo
O artigo descreve desenvolvimentos da fenomenologia na Itália no domínio da psicopatologia, em termos de uma releitura das questões fundamentais da ciência médica psiquiátrica e de uma reformulação da relação do psiquiatra com o sintoma e com a pessoa humana que o expressa, levando a uma mudança radical na maneira de exercer a prática psiquiátrica. Consideram-se fundamentais para esta transformação as obras de K. Jaspers. No que diz respeito ao período contemporâneo, assinala-se a contribuição de psiquiatras italianos como E. Borgna e L. Calvi. Um destaque especial é reservado a Bruno Callieri e à sua proposta de psicopatologia clínica. Finalmente, aborda-se a questão da reforma psiquiátrica na Itália (Basaglia) traçando um breve histórico da mesma e da formação do psiquiatra, atualmente moldada por uma maior consciência crítica desta função. Com efeito, a abordagem fenomenológica não dispensa as categorias diagnósticas nem o ato clínico mas aponta a ineficácia destes quanto à pretensão de definir a pessoa de modo totalizante em sua realidade existencial.

Palavras-chave: historia da psiquiatria; fenomenologia e psiquiatria; psicopatologia clínica; história da fenomenologia

Abstract
The article describes developments of phenomenology in Italy in psychopathology, in terms of a new reading of fundamental questions of psychiatric medical science and reformulation of the relation of the psychiatrist with the symptom and with the human person who expresses it, leading to a change in the way of practicing psychiatry. For this transformation, the works of K. Jaspers are fundamentl. Regarding the contemporary period, it is underlined the contributions of Italian psychiatrists such as E. Borgna and L. Calvi in this perspective. A special place is reserved to Bruno Callieri and to his proposal of clinic psychopathology. The question of psychiatric reform in Italy (Basaglia) is approached through the description of its history, and formation of psychiatrists, the phenomenological approach doesn´t excludes diagnostic categories and the clinical act but points the inefficacy of these regarding the claim of defining person in a totalizing way in its existential reality.

Keywords: history of psychiatry; phenomenology and psychiatry; clinic psychopathology; history of phenomenology

 

1. Desenvolvimentos da fenomenologia na investigação sobre psicopatologia

Em Ideen Husserl propõe uma ciência descritivo-essencial do conhecimento puro (1), cujas formulações podem ser eficazmente aplicadas a situações concretas, quotidianas. De fato, obviamente, isso atraiu a atenção de alguns psiquiatras e psicopatologistas de orientação humanista e existencial. A postura fenomenológica, mesmo em psiquiatria, se esforça por manter entre parêntesis a preocupação etio-patogênica e a necessidade de ordenação nosológica, para poder entrar sem impedimentos pré-concebidos em um relacionamento cognitivo-pático imediato com as “coisas”. A delimitação formal do fenômeno torna-se expressão verdadeira do modo de ser da realidade e do seu fazer-se mundano – ou seja, “como” ela é para o mundo e “como“ ela “tem” o seu mundo (Cf. Callieri, 1981). Independentemente do conhecimento indutivo e causal, não há duvidas quanto a riqueza qualitativa do ato fenomenológico, e pode-se facilmente compreender como ele tenha feito surgir os aspectos mais originais da contestação psiquiátrica (cf. Basaglia, 1968).

Desse modo, a grande maioria das contribuições da fenomenologia husserliana e das filosofias da existência à pesquisa em psicopatologia gradualmente conduziram a uma revisão das questões fundamentais da ciência médica psiquiátrica mesma, solicitando uma reformulação do relacionamento do psiquiatra com o sintoma e com a pessoa humana que o expressa (Callieri & Ales Bello, 2002). Os últimos decênios do século XX, com efeito, viram a abordagem fenomenológica dirigir-se gradualmente a uma global reformulação dos temas existenciais da psiquiatria e a uma maneira radicalmente diversa de exercitá-la: um salto qualitativo, no verdadeiro sentido do termo, que tem suas raízes na orientação fenomenológico-existencial e na sua antropologia filosófica. Essa abordagem não tem a intenção de invalidar as categorias diagnósticas nem o ato clínico, mas estabelece sua ineficácia devido à pretensão de apreender o outro sem resíduos na sua realidade existencial (Callieri & Maldonato, 1998).

Através das investigações filosóficas de Husserl e Heidegger e graças aos estudos de Jaspers (1963, 1965) – sobretudo Psicopatologia geral (1913) e Psicologia das visões de mundo (1919) – os desenvolvimentos da antropologia filosófica de base fenomenológica permitiu apreender o indivíduo como presença no mundo e como espaço-tempo vivido, na sua  irredutível unicidade e singularidade, mas também na sua ulterioridade, sempre excedente. (Callieri, 1963b; Callieri & Castellani, 1971; Callieri, Castellani & De Vincentiis, 1972). As categorias redutivamente biologizantes e psicologizantes foram superadas pela abordagem fenomenológico-existencial, que permite o acesso à alteridade, ao mundo do outro, à sua Lebenswelt, ao universo das relações interpessoais, prescindindo do juízo clínico, das funcionalidades operativas e dos objetivos práticos, sem, todavia, invalidá-los. (Cf. Cargnello, 1966). Evitou-se assim cair em esquemas pré-constituídos (de matriz diagnóstico-naturalistica) não idôneos para colher os “fenômenos” em toda a sua formulação e em seu autêntico sentido.

A psiquiatria da existência considera si mesma como serva da psiquiatria clínica: um sustento válido, real, concreto para a ciência médica psiquiática, como já recordava L. Binswanger (1942). Além da organicidade, é de grande alcance cognoscitivo a exploração do inconsciente e a influência da cultura: o sublinhou E. Borgna (1979, 1988, 1992, 1995, 1997), responsável pelo Serviço de Psiquiatria do Ospedale Maggiore di Novara e livre-docente em Clinica delle Malattie Nervose e Mentali da Universidade de Milão. Borgna vê a psiquiatria como ciência da intersubjetividade no sentido fenomenológico, mesmo quando a analisa do ponto de vista claramente social (Borgna, 1998). Ainda no panorama italiano, uma grande contribuição para a difusão da antropologia fenomenológica cabe a L. Calvi (1980), livre-docente em Clinica delle Malattie Nervose e Mentali, primário neurologista nos hospitais de Sondrio e de Lecco e editor da revista Comprendere: Archive international pour l’Anthroplogie Phénomenologique.

Como dizíamos, os estudos de K. Jaspers são considerados a pedra angular da psicopatologia moderna, tendo formado pelo menos três gerações de psiquiatras, preparando o terreno para o grande exército de psicopatologistas destinados a receber e desenvolver a influência de E. Husserl e de M. Heiddeger. Como M. Binswanger mostrou, o método fenomenológico facilita – de um modo totalmetne original – a reconstrução e compreensão do “mundo de significados” do paciente. Isso torna possível a retomada do intencional desvelar-se da existência do indivíduo e confere continuidade de sentido às suas vicissitudes; pode-se dizer que seja uma significativa disposição estrutural até mesmo onde um psiquiatra de velha concepção veria somente fragmentos de sentido ou até mesmo um sentido caótico. Colocar entre parêntesis (mas não negar) o naturalismo psiquiátrico implica, em primeiro lugar, e sobretudo, atribuir um grau inferior às classificações e aos juízos diagnósticos, evidenciando que tais juízos dependem dos critérios culturais.

Concluindo, orientação fenomenológica significa abordar a doença mental não como uma disfunção da mente, mas como um diverso modo de manifestar-se, em determinados indivíduos, daquelas figuras universais do homem, como o espaço, o tempo, a co-existência, o mundo em que todos habitamos segundo os cânones compartilhados que, em seu conjunto, constituem o fenômeno originário, que costumamos chamar de cultura, pela qual é no corpo vivo da cultura, antes que no organismo da natureza, que são descobertas “as raízes da alienação que fazem do alienado não um ‘doente’, mas um ‘alheio’, um ‘estranho’, um ‘estrangeiro’ no interior da comunidade que o hospeda como seu ‘outro’ ”. (Galimberti, 1998, p. 271).

1.1. Psicopatologia clínica como ciência humana: Bruno Callieri

Bruno Callieri foi um dos primeiros a introduzir a abordagem fenomenológica na Itália, que já havia sido introduzida na Alemanha e na França, duas nações não dificultadas pelos atrasos ideológicos que condicionaram fortemente a cultura italiana. Formado em medicina em 1948, Callieri tornou-se livre docente em psiquiatria em 1955 e em clínica de doenças mentais em 1957. Lutou por muitos anos pela aceitação da psiquiatria na “Neuro” de Roma, onde foi diretor do hospital psiquiátrico. Publicou mais de quatrocentos estudos, ensaios, artigos e notas, principalmente de psicopatologia e de psiquiatria clínica (Callieri, 1952, 1953, 1963b, 1978, 1981; Callieri & Ales Bello, 2002; Callieri & Frighi, 1958), demonstrando grande sensibilidade pelas questões fenomenológicas básicas e por suas implicações éticas, contribuindo notavelmente para sua divulgação e compreensão. Como dito, Callieri contribuiu decisivamente para a renovação da psicopatologia na Itália e na Europa, aprofundando o aspecto antropológico-fenomenológico através de muitas apresentações em congressos nacionais e internacionais. Há muitos anos ensina psicopatologia em diversas escolas romanas de psiquiatria e psicopatologia, e na Scuola di Diritto Canonico della Sacra Romana Rota.

A difusão da psiquiatria antropológico-fenomenológica, chamada análise existencial, tornou possível tanto um renovado acesso as questões que haviam sido deixadas à margem da pesquisa em psicopatologia e psiquiatria, quanto uma visão renovada de algumas temáticas – culpa, corporeidade, atribuição de sentido, perplexidade, máscara, consciência, olhar, símbolo – até então assumidos principalmente (ou exclusivamente) de modo objetivante.

Um dos mais férteis âmbitos da abordagem fenomenológica em psiquiatria é o que se refere à pesquisa de diferentes mundos-da-vida, Lebenswelten, a que o último Husserl dedicou grande parte de seu esforço intelectual. Segundo Callieri, a análise dos mundos-da-vida revela diversos estilos de existência e lança nova luz sobre modalidades de “fazer experiência”, inclusive algumas tradicionalmente psicopatológicas (como a fobia e as modalidades esquizofrênicas e maníacas). Por esta razão, a antropologia fenomenológica constitui uma indispensável premissa para toda forma de psiquiatria que se interesse pelo ser humano em seu mundo: “A psiquiatria é, na raiz, ciência do homem, da existência humana: existência que não é somente natureza mas também cultura e história, em uma palavra, ‘pessoa’. É ao conceito husserliano de Krisis, à redescoberta da ‘intencionalidade da consciência’, da Lebenswelt, que se devem as grandes aberturas de horizonte da psicopatologia e da psiquiatria. Aberturas à relação intersubjetiva, à corporeidade, ao encontro, à necessidade de ‘intencionar’ e de apreender, sempre husserlianamente, o Outro-Eu e o seu ser-mundano, mesmo no caso clínico mais inequívoco” (Callieri & Maldonato, 1998, p. 22). Com Callieri a psiquiatria habita esse espaço intepretativo, criando assim uma significativa distância de todos aqueles espaços redutivos ou bloqueados nos quais infelizmente são expressas muitas páginas de psiquiatria contemporânea, “onde a asfixiada linguagem diagnóstica sepultou o respiro da alma que, mesmo nas formas mais errantes, dá preferência à abertura dos mundos do que aos fechados recintos das esquemáticas interpretações, onde não só o sentido implode na precisão de significado, mas também a esperança se extingue no traço ultimado da definição” (Galimberti, 1998, p. 274).

No importante livro Quando vince l’ombra: problemi di psicopatologia clínica, Callieri (2001) confessa o constante temor de que a presença do outro-de-si seja toda abordada no aprofundamento psicopatológico do juízo clínico (em si lícito e de dever), ou cristalizada na preliminar referência a conceitos teoréticos no final das contas abstratos, desvinculados do impacto profundamente humano, existencial, com a alteridade pessoal. Os “casos” analisados não devem ser tomados somente como paradigmáticos dessa ou daquela síndrome, numa redutiva visão manicomial, porque desse modo nos escapa a sua inalienável qualidade de humana presença, e só poderia abrir espaço à identidade meramente médica e psicológica do psiquiatra, às custas da dimensão antropológica.

Segundo Callieri, o discurso psicopatológico clínico é essencial para a formação do psiquiatra; este, porém, deve ser um human scientist no pleno sentido do termo. Revisitar a psicopatologia clínica em termos da experiência inter-humana permite chegar não mais ao “caso de esquizofrenia”, objetivado em sintomas ou em mecanismos de defesa, descritos e tomados como fenômeno natural, mas à presença psicótica como eventualidade ou modalidade pessoal, como ameaça imanente do ser-humano, que paira sobre cada um. Evitar os reducionismos significa aproximar-se do estudo da psicopatologia com um novo espírito, que faz dela uma autêntica ciência do homem.

Callieri mostrou um grande interesse pela relevância ética no âmbito da saúde mental. Os problemas concernentes à psiquiatria são, de fato, numerosos, ricos de implicações que vez por outra são contraditórios, indo desde o campo referente, em sentido estrito, ao sofrimento do paciente e à sua patologia clínica (que implica a tarefa de melhorar seu estado mental e decidir se sua liberdade deva ser reduzida para defender sua saúde), até às questões sociais fundamentais. Enquanto as leis estão se tornando sempre mais complexas, há também um crescimento de consciência da falta de especificidade do código de ética.

A psicopatologia fenomenológica é particularmente sensível às questões até aqui expostas. Como indicado, a disciplina é também conhecida como antropo-análise e vive graças às contribuições das análises fenomenológicas de Husserl e das análises existencialistas de Heidegger. Ainda que a escola existencialista tenha o mérito de indagar sobre o ser humano “na situação”, a contribuição construtiva no campo da ética pode ser atribuída mais propriamente à escola fenomenológica. Callierei se dirige justamente a esta última para chegar a respostas convincentes: a antropologia que emerge das análises de E. Husserl, M. Scheler, E. Stein, A. Pfänder, D. von Hildebrand – graças à clarificação da tríplice estrutura do ser humano (corpo, psique, espírito) – leva a considerar não somente os problemas da psique, mas também os da dimensão espiritual, que é responsável pelas decisões e pelos posicionamentos conscientes.

No encontro entre psiquiatra e paciente ambos põem em jogo a própria humanidade e, conseqüentemente, isso envolve a pessoa humana em toda a sua complexidade e inteireza. As reflexões sobre a atitude a ser assumida na relação terapêutica não podem prescindir de uma série de decisões que requerem a minuciosa consideração do que venha a ser bem para um e outro. Assim, leva-se em consideração (também) a questão dos valores, tratada exaustivamente pelos fenomenólogos aqui já citados. Husserl, no segundo volume de Ideen zur einer reinen Phänomenologie und phänomenologische Philosophie, Scheler no seu Der Formalismus in der Ethik und die materiale Wertethik, Stein em Beiträge zur philosophische Begründung der Psychologie und der Geisteswissenschaften, Pfänder em Psychologie der Gesinnungen e von Hildebrand em Ideen der sittlichen Handlung – para lembrar somente as obras mais importantes – chegam a adentrar o tema da constituição da pessoa ao qual os valores são indissoluvelmente ligados.

Esses estudos enfatizam a centralidade da pessoa e a fonte de valores que deveriam assegurar o harmônico desenvolvimento da vida e estabelecer assim um nexo com a tradição. Não se trata, porém, de sair da pessoa, mas mostrar (através de significados de um detalhado procedimento analítico) tanto a estrutura do ser humano quanto o horizonte para o qual ele tende ou deveria tender, e então deduzir que o interesse é pela pessoa. Além disso, não se trata de deter-se na singularidade, ainda que seja altamente relevante; na verdade, sendo que o ser humano vive em associação, é necessário indicar qual associação lhe permite um pleno desenvolvimento. O interesse dos fenomenólogos é particularmente atraído pela associação denominada “comunidade”, na qual se evidencia uma mútua responsabilidade. É, então, importante que o comportamento humano se adapte aos valores que fundam a comunidade. De fato, é a solidariedade entre os indivíduos que torna possível a fundação de um vínculo de tipo pessoal. Dá inter-subjetividade à interpessoalidade: essa é a via teorizada pelos fenomenólogos, que deve estar presente nas relações humanas e na prática em psicopatologia.

Sem estar cônscios disso e sem uma adequada reflexão sobre a relação entre antropologia e ética, simplesmente não é possível apreender as questões que emergem da manipulação física do cérebro na psico-cirurgia, das técnicas de condicionamento, da terapia sexual, das delicadas temáticas que permitem o chamado consenso esclarecido, do tratamento dos pacientes socialmente perigosos, das dimensões éticas da psiquiatria infantil e do adolescente, da psico-geriatria, da “morte digna” e da psiquiatria judiciária. (Fornari, 1997).

1.2. Conhecimento/compreensão psiquiátrica: explicação versus compreensão

Há um século o psiquiatra, univocamente orientado na perspectiva positivista e naturalista, definia a sua ação com o duplo movimento de reificação e de despersonalização, dissolvendo o paciente e a unicidade de sua existência no anonimato de categorias patogênicas e sistematizações gnosiológicas, todas dentro dos cânones de uma pensamento nomológico. Essa postura não-dialógica resultava confinada no horizonte exclusivo e excludente da “explicação” e da identificação causal psique-cérebro. Nesse sentido, a nota equalizante segundo a qual “as doenças mentais são doenças do cérebro” vinha sendo acriticamente assumida e absolutizada em uma perspectiva de radical medicalização do sofrimento psíquico e do distúrbio do comportamento humano.

Ainda em Quando vince l’ombra: problemi di psicopatologia clinica, Callieri (2001) indica diversas formas do conhecer/compreender psiquiátrico (Callieri, Castellani, De. Vincentiis, 1972), importantes para a aplicação correta do método e aproximação do paciente:

1) Conhecer por “explicação” (Erklären), entendida como puramente biológica ou funcionalista: pertence a esse âmbito a corrente de pensamento chamada de psiquiatria biológica, que busca formular os problemas psicopatológicos segundo parâmetros da neurofisiologia. Na compreensão por “explicação” os fenômenos são considerados como manifestações da natureza, ou seja, como distúrbios psíquicos. O conhecimento é dirigido à clarificação do princípio causal, pelo qual o examinador busca a causa da qual a doença é sintoma ou efeito – obviamente, entre causa e efeito não há qualquer relação de significado. Nesta abordagem, acentua Callieri, há uma clara separação entre examinador e examinado: através de uma redução diagnóstica, o doente torna-se um mero caso clínico.

2) Conhecer como “compreensão” (Verstehen), entendida no sentido estrito de Jaspers ou no sentido de identificação de Gruhle, ou ainda no sentido intuitivo de Minkowski, de tipo bergsoniano: trata-se de uma compreensão que emerge de colocar-se em relacionamento inter-humano com o examinado. Os fenômenos são aqui assumidos como manifestações psíquicas com as quais o outro se revela, e o conhecimento tende a buscar os motivos das manifestações psíquicas. Desse modo, a distância entre examinador e examinado é reduzida, diminuída. De um ponto de vista doutrinário, grande importância é aqui atribuída ao critério analógico: é uma compreensão que se parece com a do senso comum.

3) O modo “interpretativo” psicanalítico de compreender parece se apoiar num plano cognoscitivo mecanicista, no qual o fenômeno é entendido como distúrbio natural, ou seja, de natureza pulsional do ser humano ou como epifenômeno da dinâmica da libido. Nessa abordagem domina a busca da causa inconsciente ou do motivo inconsciente ao qual remeter determinado efeito. No momento da transferência, porém, a aproximação humana é máxima, enquanto torna-se máximo o distanciamento no momento redutivo explicativo. A base teorética é redutível à noção de libido ou a outros conceitos afins (de tipo energético, mecanicista, pulsionalista) e à noção de transferência (que é de tipo antropológico).

4) Conhecer “antropoanalítico”, no sentido de Binswanger, situa-se em uma antropologia fundamentada sobre a indagação a respeito da presença humana no seu ser-no-mundo e se propõe a conhecer a essência dos fenômenos psicopatológicos e o modo de ser daqueles que manifestam o fenômeno. A postura do examinador busca o primado de apreender a essência com a qual um outro expressa seu modo de ser. O fundamento teorético se desloca do plano do experimentado ao da expressividade: isso comporta uma referência ontológica para os vários modos de ser no humano, com as suas respectivas normatividades. Torna-se aqui totalmente insuficiente – e inadequada – a noção de “normalidade”, da qual, ao invés, a chamada fenomenologia compreensiva parece se aproximar.

5) Compreender “sociológico”, no qual o conhecimento é por alguns aspectos causal e interpretativo, e por outros é principalmente compreensivo. Distinguindo ulteriormente a perspectiva sociológica comportamentalista daquela interpessoal e cultural, pode-se afirmar que a primeira se move sobre um corpus de conceitos generalizados com referência empírica, enquanto que a segunda supera o princípio de interdependência lógica e ecológica para tornar-se também ela uma antropologia, estrutural primeiro e relacional depois.

De modo límpido, Callieri conclui: “Baseado nisso, considero que os primeiros passos a dar são na trilha descritiva e na metodológica. Ou seja, é preciso aprender a observar e a descrever o que se observa, e aprender a distinguir a explicação da compreensão” (Callieri, 1982, p. 18). Na tensão bipolar entre “natureza” e “existência”, entre a erklären da explicação e o verstehen da “compreensão”, entre o caso objetivado em parâmetros biológicos e o caso encontrado na sua realidade individual, irrepetível e irredutível, põe-se o tertium da interpretação: uma abordagem, esta última, governada por um princípio causal meta-psicológico, humanista na sua práxis, marcado por uma aguda dialética entre naturalidade e historicidade do ser humano, por uma irredutível ambigüidade entre “explicar” e “compreender”.

2. A reforma legislativa na Itália e a formação do psiquiatra

O hospital psiquiátrico sofreu de uma esclerose progressiva que o transformou em “reclusório”, em depósito dos marginalizados, dos indesejados, dos últimos. Como R. Canosa (1979) bem documentou, freqüentemente se abusou da ciência médica psiquiátrica como método de discriminação e de coerção: isso produziu a reproposta e/ou reformulação dos dois eixos do cuidado psiquiátrico, a saber, a psicofarmacoterapia e a psicoterapia, e uma mais consciente discussão sobre limites da abordagem psiquiátrica mesma (Callieri, 1962, 1963a).

Em junho de 1972, a Sociedade Italiana de Psiquiatria elaborava as Linhas programáticas para a assistência psiquiátrica na qual se previam a superação da instituição psiquiátrica e a vinculação das atividades de cuidado dos doentes mentais aos hospitais gerais. Já estavam desenvolvidas experiências desse tipo em Gorizia, Trieste, Perúsia e Arezzo; outras, de caráter mais territorial, estavam iniciadas em Florença, Pádua, Varese, buscando que os serviços chegassem a resolver a grande maioria dos casos psiquiátricos sem recorrer a hospitalização de tipo tradicional. Na Itália, desde o pequeno manicômio de Gorizia onde Franco Basaglia iniciou em 1965 (mas ainda antes, desde a fenomenologia existencial), deu-se uma considerável coagulação de energias reformadoras e revolucionárias em torno de seu projeto anti-institucional. Junto a numerosos psiquiatras e ao seu Movimento Democrático de Psiquiatria criaram-se as condições que em 1978 levaram à reforma da legislação psiquiátrica, introduzida com grande entusiasmo e ásperas críticas, perplexidade e hostilidade, apoios críticos e às vezes incondicionados. De fato, Basaglia conseguiu imprimir um salutar choque na psiquiatria italiana, que até aquele momento jazia em torpor.

Em maio de 1978 a lei 180 (depois lei 833, 1979, de reforma sanitária), substituindo a de 1904 parcialmente modificada em 1968, decreta o fim dos hospitais psiquiátricos, enquadrando a assistência ao distúrbio psíquico no âmbito da saúde geral, redimensionando nitidamente a custódia obrigatória do doente mental, abolindo o critério do escândalo público e o da periculosidade. Assim é removida a ambivalência fundamental implícita na lei de 1904: cuidado e/ou custódia, pendendo a uma conotação mais marcadamente terapêutica. É justamente o que o legislador, recebendo as instâncias dos movimentos de renovação psiquiátrica, quis como concepção fundamental e qualificante da reforma. Os atrasos são ainda graves: é verdade que foram fortemente limitadas as admissões a tratamentos obrigatórios, permitidas, em geral, somente nos hospitais gerais; mas as polêmicas estão ainda acesas, em parte determinadas pela lógica da conservação e dos interesses constituídos em torno da instituição manicomial; em parte favorecidas por ampla carência de estruturas e de articulações assistenciais extra-hospitais. Além disso, a reforma não aboliu o artigo 59 (abandono de pessoas menores ou incapazes), nem o artigo 593 (omissão de socorro) do Código Penal. Por isso as obrigações a tratamento e assistência dispostos pela lei permanecem intactos, e suscetíveis a reações regressivas onde se tornassem freqüentes os procedimentos judiciários a cargo de psiquiatras com relação àqueles artigos (Benassi e Turrini, 1979).

Nos últimos 50 anos se assistiu em toda parte a um crescimento do número de psiquiatras, tanto pelo desenvolvimento das psicoterapias quanto pela melhora das técnicas de tratamento. Registra-se que também na Itália, como já há muito nos países ocidentais, o psiquiatra prático tende geralmente para uma formação psicanalítica. A revolução psiquiátrica dos anos setenta e oitenta do século XX comportou – ao lado das corajosas desmitificações e de uma maior consciência crítica do próprio papel –  também posicionamentos extremistas, ideologicamente condicionados, e uma confusão de papéis, com um geral achatamento do nível de preparação técnico-profissional e com uma tendência paradoxal a psiquiatrizar indevidamente outros setores.

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Nota

 

(1) Tadução de Miguel Mahfoud do inédito original em italiano. [volta]

 

Nota sobre a autora

Patrizia Manganaro é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na Pontificia Universirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato: patriziamanganaro@yahoo.it

 

Data de recebimento: 26/08/2005
Data de aceite: 31/08/2005

 

Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
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