Pereira, M.A. (2006). Do Titicaca ao Rio: imagens culturais de uma tradição. Memorandum, 10, 131-135. Retirado em   /  /  , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/pereira01.htm

Do Titicaca ao Rio: imagens culturais de uma tradição

From Titicaca to Rio: cultural images of a tradition

Maria Antonieta Pereira
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
 

Resumo
Análise das aproximações existentes entre as culturas peruana e brasileira, a partir do culto a Nossa Senhora de Copacabana que, sendo trazido da região do lago Titicaca para o Rio de Janeiro pelos peruleiros no início do século XVII, deu origem ao nome da praia mais famosa do país. Exame dessas trocas culturais tendo como base o filme Copacabana, de Carla Camuratti. Análise de outros intercâmbios significativos para Brasil e Peru, tais como as relações estabelecidas entre o romance El zorro de arriba y el zorro de abajo, de José María Arguedas, e o conto “A terceira margem do rio”, de João Guimarães Rosa.

Palavras-chave: tradição; religiosidade; literatura; trocas culturais.

Abstract
Analysis of the approximations that exist between Peruvian and Brazilian cultures, based on the cult of Nossa Senhora de Copacabana which, being taken from the Titicaca lake region to Rio de Janeiro city by peruleiros, in the beginning of XVII century, originated the name of the most famous Brazilian beach. Examination of those cultural exchanges, based on the movie Copacabana, directed by Carla Camuratti. Analysis of other expressive interchanges between Brazil and Peru, like the relationships established by the novel El zorro de arriba y el zorro de abajo, by José María Arguedas, and the tale “A terceira margem do rio”, by João Guimarães Rosa.

 Keywords: tradition; religiosity; literature; cultural exchanges.

 

O filme Copacabana, dirigido por Carla Camurati (1), utiliza o humor carioca para abordar um momento importante da História do Brasil – o do nascimento do nome da praia mais famosa do país, Copacabana, que é uma homenagem à Virgem de Copacabana cultuada pelas populações da região do lago Titicaca, situado em territórios de Bolívia e Peru. Além disso, o filme também discute a situação contemporânea do país pois seu ponto de partida é a história de um menino abandonado (como tantos no Brasil e no Peru) que, sob a proteção de N. S. de Copacabana, encontra um futuro melhor.

 

Copacabana é a história bem humorada de Alberto no momento em que ele completava 90 anos, de seus amigos das margens brasileiras (personagens da terceira idade, prostitutas e travestis), do bairro Copacabana, da praia de Copacabana e  também dos intercâmbios entre as culturas brasileira e andina. Na verdade, o signo Copacabana – Virgem, praia ou bairro - funciona como uma metonímia das relações Brasil/Peru. Não se trata, portanto, de um movimento metafórico (substitutivo de uma coisa por outra, seja o país ou a religiosidade) mas de um processo de contigüidade e aproximação de muitas coisas entre si:  países, línguas, religiões, tempos e pessoas de vários tipos. Nessa obra, as particularidades de ambos os países e de suas culturas permanecem, mas há um movimento afetuoso, lúdico e poético de aproximação. Daí, pode-se compreender o que acontece quando se escuta o estribilho da trilha sonora do filme: “Copacabana... planet, planet, planet”. Ao tratar da mais famosa praia do Brasil, a película a apresenta como se fosse uma metonímia do mundo: a palavra “planeta” falada em inglês dá uma visão ainda mais ampla de si mesma, ou seja, trata-se de um planeta globalizado, pensado na língua do grande poder hegemônico contemporâneo. Por outro lado, o filme também aborda Copacabana como uma criação peruana do século XVII, quando trata do culto de N. S. de Copacabana, levado ao Brasil pelos peruleiros.

 

A palavra peruleiros tem origem espanhola e começou a ser usada no início do século XVII para designar os comerciantes da América Portuguesa que faziam negócios com os espanhóis do Baixo Peru e, mais concretamente, importavam prata dessa região. Desde 1637, estabeleceu-se no Rio de Janeiro o culto a Nossa Senhora de Copacabana, trazido do Baixo Peru pelos peruleiros que lhe construíram uma capela na praia que depois tomou seu nome.

 

Segundo Luiz Felipe de Alencastro, nessa época e via porto de Buenos Aires, os portugueses desenvolviam um intenso comércio de escravos africanos, trocados por prata peruana de Potosí:

 

[Os] dados da alfândega de Buenos Aires fixam em 18.100 o número de africanos oficialmente importados no porto entre 1597 e 1645. Mas a cifra deve ser multiplicada por dois — no mínimo — para incluir o contrabando. Durante alguns anos a zona platense esteve aberta ao Asiento, com os [navios] negreiros saindo diretamente de Luanda para Buenos Aires, cuja população contava com um número importante de portugueses, em geral cristãos-novos. Nos anos de proibição, o contrabando se fazia através do Rio de Janeiro. Caravelões, barcos menores que as caravelas (ao contrário do sugerido pelo aumentativo), ligavam os dois portos numa viagem de dez a quinze dias de navegação. De retorno, os caravelões traziam, não só para o Rio de Janeiro mas ainda para a Bahia e o Recife, patacas, prata lavrada e por lavrar, assim como ouro. (...) Em torno das trocas de africanos pela prata do Potosí, cristalizam-se no Rio de Janeiro os interesses dos peruleiros representados pela oligarquia dos Sá e seus aliados fluminenses e platinos (Alencastro, 2000, p. 110).

 

Portanto, a história narrada pela película tem sua modernidade mas também a ancestralidade dos intercâmbios desenvolvidos entre o lago Titicaca e o Rio de Janeiro. Fazendo um trajeto histórico, os personagens do filme avançam de um lago (Titicaca) a um rio (de Janeiro) e ao Oceano Atlântico - há a recuperação de uma tradição muito antiga pela via das muitas águas moventes e cambiantes do continente latino-americano.

 

A água — elemento fundamental da película e da vida — também atua como um signo de relações já estabelecidas desde a colonização por nossos pais indígenas, africanos e europeus que buscaram no lago sagrado de Titicaca a proteção da Virgem aimara, uma espécie de Pacha Mama (2) protetora de todos, de ontem e de hoje.

 

Nossa Senhora de Copacabana é, portanto, uma forma de provocar a aproximação entre culturas distintas — algo semelhante ao que ocorre com Nossa Senhora Aparecida, padroeira do Brasil. Ambas as santas, embora cultuadas pelo catolicismo europeu, não têm a pele clara dos povos do Norte: o bronzeado andino ou a negritude afro-brasileira que ostentam já é fruto da mesclagem de crenças e padrões estéticos oriundos de ibéricos e indígenas ameríndios ou africanos.  Outras semelhanças entre elas é que são consideradas extremamente miraculosas e saíram das águas. Contudo, as santas nos aproximam sem anular nossas diferenças. Para falar na linguagem da crítica literária brasileira contemporânea, poderíamos dizer que essas Senhoras  funcionam como um entre-lugar da cultura latino-americana (3).

 

A expansão do culto a N. S. de Copacabana em território brasileiro também recorda o complexo diálogo do escritor peruano José María Arguedas com João Guimarães Rosa em seu último romance, El zorro de arriba y el zorro de abajo (Arguedas, 1983) (4). Citando o conto “A terceira margem do rio”, do escritor mineiro, Arguedas discute um dos conceitos mais importantes da crítica brasileira atual: a idéia de terceira margem. O relato tem como narrador um filho cujo pai entra em uma canoinha de nada e continua vivendo nela, deslocando-se por muitos anos em um rio. O pai navega sem parar e todo o seu esforço é para nunca mais colocar o pé na terra e também para não afastar-se muito da região familiar. Esse personagem constrói uma terceira margem, líquida e lúdica, em uma espécie de jogo que, tal como Arguedas, fala da morte para manter a vida. Na leitura de Arguedas desse conto, também está presente uma reflexão sobre a mutação incessante da água das culturas peruana e brasileira. Falando com um morto (Guimarães morreu em 1967, no Rio de Janeiro), Arguedas começa seu romance em maio de 1968, como se fosse um diário em que ele, Arguedas, prepara-se para a morte. Considerando o pai de “A terceira margem do rio” como um homem que já morreu, mas que permanece vivo nas recordações de seu filho, Arguedas também prenuncia seu próprio destino — de morrer fisicamente mas de continuar vivendo na memória não somente do Peru mas também de toda a América Latina, especialmente do Brasil.

 

Nesse sentido, para muitos críticos, as raposas de Arguedas encerram o ciclo do realismo fantástico e começam outra escritura, que já trata dos problemas da globalização, da violência cultural resultante da entrada da economia peruana no mercado mundial, fato que foi muito bem retratado nas figurações da indústria de farinha de peixe de Chimbote. As raposas são imagens de algo que descende das alturas às planícies e que ascendem de novo: têm a mesma movência da água que também é o tema de Arguedas no romance Los ríos profundos e no conto “Água”. O desejo de provocar a união de pessoas, línguas, culturas e países também está na obra do brasileiro Rosa. Isso já se encontra na palavra “nonada” com que ele começa Grande sertão: veredas. Considerada pela crítica como uma palavra-valise, “nonada” tem muitas outras palavras em seu interior — o “no” do espanhol e do inglês, o “nona” do italiano, o “Ada” e o “nada” do português, o “non” do francês etc. Além disso,  tal como Arguedas faz com a mescla de quéchua e espanhol, Rosa escreve numa língua distinta do português oficial: ele compõe seus textos com a língua do sertão em que recupera arcaísmos, funda neologismos e pratica o típico canibalismo cultural brasileiro. E assim, ambos os escritores recuperam tradições ibero-americanas muito antigas, cuja releitura contribui para fortalecer nossa literatura frente à pressão cultural do mundo globalizado. A maior herança da geração de Arguedas e Rosa talvez seja essa bem sucedida prática de aproximar povos, eras e línguas em nosso continente.

 

Ainda que Arguedas tenha se matado — e Rosa também, em certa medida, quando aceitou um cargo de cuja fatalidade desconfiava — ambos os escritores nos delegaram algo muito vivo: a idéia de que a tradição se mantém porque se renova. Eles sabiam que a força dos povos mestiços e das culturas híbridas não está em sua rigidez mas em sua mudança incessante, que pode e deve ser tratada sob pontos de vista críticos.

 

Não por casualidade, Peru e Brasil detêm uma imensa riqueza cultural numa região de águas eternas e valiosos recursos naturais. O grande rio Amazonas, nascido a mais de 4.000 metros de altura, nos Andes peruanos, desce lentamente pelas amplas planícies brasileiras até o Oceano Atlântico. Com 6.577 km de longitude total, o rio tem de 2 a 6 km de largura mas pode atingir até 50 km. Sua profundidade varia entre 10 e 130 metros, numa bacia com 7 milhões de Km2 e cerca de 900 espécies de peixe. Funcionando como uma forte conexão entre brasileiros e peruanos, o rio também é responsável pela existência da vasta região da Amazônia, compartilhada por Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Suriname e Venezuela. A água constitui uma importante metáfora de nossos escritores porque também representa uma forma de pensamento crítico, nascida da terra e da cultura latino-americanas. Podendo avançar da condição de metáfora para o lugar de conceito, a água funciona como uma forma contemporânea de resistir à globalização cultural já que nos permite criar teorias próprias, que fazem da movência e da travessia as marcas fortes de nossas vidas.

 

Para nossa alegria, brasileiros e peruanos estão dando continuidade aos esforços de Arguedas e Rosa. Um bom exemplo disso é o convênio estabelecido entre a Universidade Federal de Minas Gerais e a Universidad Católica Sedes Sapientiae (UCSS), situada em Lima, que deu origem a Missões de Estudo e Trabalho. É importante ressaltar que, no âmbito da UCSS, também funciona um Mestrado em Literatura Brasileira. Além disso, há publicações conjuntas da PUC-MINAS e da UCSS, com apoio da embaixada do Brasil em Lima. Também os jovens escritores do Brasil e do Peru estão realizando antologias poéticas bilíngües, como é o caso da revista Homúnculus n. 3 que publicou uma “tri-antologia” da poesia argentina, brasileira e peruana (Flores, 2004). Outros projetos conjuntos — visando à luta contra o analfabetismo pelo uso de tecnologias computacionais e investigações avançadas — estão na pauta de discussões entre pesquisadores de ambos os países.

 

Noutras palavras, os diálogos continuam. O filme Copacabana é mais um desses rituais de aproximação, pois recupera uma tradição muito antiga e mostra como nós, peruanos e brasileiros, estávamos e estamos em produtivas conexões.

 

Como diria a raposa andina de Arguedas, “seguimos vendo e conhecendo...”.

Referências bibliográficas

Alencastro, L.F. (2000). O trato dos viventes. São Paulo: Companhia das Letras.

Arguedas, J.M. (1983). El zorro de arriba y el zorro de abajo. En Obras completas. Tomo V. (p. 9-219). Lima: Editorial Horizonte.

Flores, G. (Dir.). (2004). Actual triantología de la poesia Argentina, Brasileña y Peruana. Homúnculus, 2 (3).

Santiago, S. (2000). Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco

Notas

(1) O presente artigo foi, originalmentel, palestra proferida na Embaixada do Brasil em Lima, no dia 12/07/2005, como parte da Missão de Estudo e Trabalho realizada pela profa. Maria Antonieta Pereira, no âmbito do convênio UFMG/UCSS.
Camurati foi atriz de cinema e das novelas Fera radical e Livre para voar, da Rede Globo de Televisão, antes de trabalhar na direção de filmes. Como atriz, ela ganhou o prêmio Moliére com a película A estrela nua, em 1985, e o prêmio de melhor atriz com Pagu, em 1988, no Festival de Gramado. Em 1987, ela também ganhou muitos prêmios, inclusive o de melhor filme no Rio Cine Festival com o curta-metragem A mulher fatal encontra o homem ideal. Essa diretora é considerada responsável pelo renascimento do cinema brasileiro, com o filme Carlota Joaquina onde narra, de forma irônica, uma parte da História do país, por meio da vida da corte de D. João VI. Em Copacabana, a ex-atriz também atua como roteirista. Do filme, terminado em 2001, participam grandes atores brasileiros como Marco Nanini e Renata Fronzi. Sua estréia na América Espanhola ocorreu em 4 de novembro de 2001, na Semana do Cinema Brasileiro, em Buenos Aires. [volta]

(2) Para a população quéchua, anterior aos incas, a Pacha Mama (Mãe Terra), é a deidade máxima dos montes peruanos, bolivianos e do nordeste argentino. Pacha significa “universo, mundo, tempo, lugar” e Mama é uma forma carinhosa de “mãe”. Sendo a deusa feminina que engendra a vida, a Pacha Mama é representada como uma índia que amamenta o filho e está cercada de potes contendo alimentos. [volta]

(3) Cunhado por Silviano Santiago, em 1971, o conceito de entre-lugar mostra como o escritor latino-americano se constitui a partir da mesclagem de culturas diferentes e do desvio sistemático dos conceitos de unidade e pureza. Cf. Santiago, 2000, p. 9-26. [volta]

(4) Em português, o nome da obra seria “A raposa de cima e a raposa de baixo”, numa referência aos homens típicos da região serrana (dos Andes) e da zona litorânea (que vive às margens do Oceano Pacífico). [volta]

Nota sobre o autor

Maria Antonieta Pereira é professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais, Brasil. É Coordenadora do convênio UFMG/UCSS. Contato: litera.bhz@zaz.com.br.

 

Data de recebimento: 27/10/2005
Data de aceite: 30/04/2006

 
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/pereira01.htm

 

 

 

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