O filme
Copacabana, dirigido por Carla Camurati (1),
utiliza o humor carioca para abordar um momento importante da História do
Brasil – o do nascimento do nome da praia mais famosa do país,
Copacabana, que é uma homenagem à Virgem de Copacabana cultuada pelas
populações da região do lago Titicaca, situado em territórios de Bolívia e
Peru. Além disso, o filme também discute a situação contemporânea do país
pois seu ponto de partida é a história de um menino abandonado (como
tantos no Brasil e no Peru) que, sob a proteção de N. S. de Copacabana,
encontra um futuro melhor.
Copacabana
é a história bem humorada de Alberto no momento em que ele completava 90
anos, de seus amigos das margens brasileiras (personagens da terceira
idade, prostitutas e travestis), do bairro Copacabana, da praia de
Copacabana e também dos intercâmbios entre as culturas brasileira e
andina. Na verdade, o signo Copacabana – Virgem, praia ou bairro -
funciona como uma metonímia das relações Brasil/Peru. Não se trata,
portanto, de um movimento metafórico (substitutivo de uma coisa por outra,
seja o país ou a religiosidade) mas de um processo de contigüidade e
aproximação de muitas coisas entre si: países, línguas, religiões, tempos
e pessoas de vários tipos. Nessa obra, as particularidades de ambos os
países e de suas culturas permanecem, mas há um movimento afetuoso, lúdico
e poético de aproximação. Daí, pode-se compreender o que acontece quando
se escuta o estribilho da trilha sonora do filme: “Copacabana... planet,
planet, planet”. Ao tratar da mais famosa praia do Brasil, a
película a apresenta como se fosse uma metonímia do mundo: a palavra
“planeta” falada em inglês dá uma visão ainda mais ampla de si mesma, ou
seja, trata-se de um planeta globalizado, pensado na língua do grande
poder hegemônico contemporâneo. Por outro lado, o filme também aborda
Copacabana como uma criação peruana do século XVII, quando trata do culto
de N. S. de Copacabana, levado ao Brasil pelos peruleiros.
A palavra
peruleiros tem origem espanhola e começou a ser usada no início do
século XVII para designar os comerciantes da América Portuguesa que faziam
negócios com os espanhóis do Baixo Peru e, mais concretamente, importavam
prata dessa região. Desde 1637, estabeleceu-se no Rio de Janeiro o culto a
Nossa Senhora de Copacabana, trazido do Baixo Peru pelos peruleiros
que lhe construíram uma capela na praia que depois tomou seu nome.
Segundo Luiz Felipe
de Alencastro, nessa época e via porto de Buenos Aires, os portugueses
desenvolviam um intenso comércio de escravos africanos, trocados por prata
peruana de Potosí:
[Os] dados da
alfândega de Buenos Aires fixam em 18.100 o número de africanos
oficialmente importados no porto entre 1597 e 1645. Mas a cifra deve ser
multiplicada por dois — no mínimo — para incluir o contrabando. Durante
alguns anos a zona platense esteve aberta ao Asiento, com os
[navios] negreiros saindo diretamente de Luanda para Buenos Aires,
cuja população contava com um número importante de portugueses, em geral
cristãos-novos. Nos anos de proibição, o contrabando se fazia através do
Rio de Janeiro. Caravelões, barcos menores que as caravelas (ao
contrário do sugerido pelo aumentativo), ligavam os dois portos numa
viagem de dez a quinze dias de navegação. De retorno, os caravelões
traziam, não só para o Rio de Janeiro mas ainda para a Bahia e o Recife,
patacas, prata lavrada e por lavrar, assim como ouro. (...) Em torno das
trocas de africanos pela prata do Potosí, cristalizam-se no Rio de Janeiro
os interesses dos peruleiros representados pela oligarquia dos Sá e
seus aliados fluminenses e platinos (Alencastro, 2000, p. 110).
Portanto, a história
narrada pela película tem sua modernidade mas também a ancestralidade dos
intercâmbios desenvolvidos entre o lago Titicaca e o Rio de Janeiro.
Fazendo um trajeto histórico, os personagens do filme avançam de um lago (Titicaca)
a um rio (de Janeiro) e ao Oceano Atlântico - há a recuperação de uma
tradição muito antiga pela via das muitas águas moventes e cambiantes do
continente latino-americano.
A água — elemento
fundamental da película e da vida — também atua como um signo de relações
já estabelecidas desde a colonização por nossos pais indígenas, africanos
e europeus que buscaram no lago sagrado de Titicaca a proteção da Virgem
aimara, uma espécie de Pacha Mama
(2) protetora de todos, de ontem e de hoje.
Nossa Senhora de
Copacabana é, portanto, uma forma de provocar a aproximação entre culturas
distintas — algo semelhante ao que ocorre com Nossa Senhora Aparecida,
padroeira do Brasil. Ambas as santas, embora cultuadas pelo catolicismo
europeu, não têm a pele clara dos povos do Norte: o bronzeado andino ou a
negritude afro-brasileira que ostentam já é fruto da mesclagem de crenças
e padrões estéticos oriundos de ibéricos e indígenas ameríndios ou
africanos. Outras semelhanças entre elas é que são consideradas
extremamente miraculosas e saíram das águas. Contudo, as santas nos
aproximam sem anular nossas diferenças. Para falar na linguagem da crítica
literária brasileira contemporânea, poderíamos dizer que essas Senhoras
funcionam como um entre-lugar da cultura latino-americana
(3).
A expansão do culto
a N. S. de Copacabana em território brasileiro também recorda o complexo
diálogo do escritor peruano José María Arguedas com João Guimarães Rosa em
seu último romance, El zorro de arriba y el zorro de abajo (Arguedas,
1983)
(4). Citando o conto “A terceira margem do rio”, do escritor
mineiro, Arguedas discute um dos conceitos mais importantes da crítica
brasileira atual: a idéia de terceira margem. O relato tem como
narrador um filho cujo pai entra em uma canoinha de nada e continua
vivendo nela, deslocando-se por muitos anos em um rio. O pai navega sem
parar e todo o seu esforço é para nunca mais colocar o pé na terra e
também para não afastar-se muito da região familiar. Esse personagem
constrói uma terceira margem, líquida e lúdica, em uma espécie de jogo
que, tal como Arguedas, fala da morte para manter a vida. Na leitura de
Arguedas desse conto, também está presente uma reflexão sobre a mutação
incessante da água das culturas peruana e brasileira. Falando com um morto
(Guimarães morreu em 1967, no Rio de Janeiro), Arguedas começa seu romance
em maio de 1968, como se fosse um diário em que ele, Arguedas, prepara-se
para a morte. Considerando o pai de “A terceira margem do rio” como um
homem que já morreu, mas que permanece vivo nas recordações de seu filho,
Arguedas também prenuncia seu próprio destino — de morrer fisicamente mas
de continuar vivendo na memória não somente do Peru mas também de toda a
América Latina, especialmente do Brasil.
Nesse sentido, para
muitos críticos, as raposas de Arguedas encerram o ciclo do realismo
fantástico e começam outra escritura, que já trata dos problemas da
globalização, da violência cultural resultante da entrada da economia
peruana no mercado mundial, fato que foi muito bem retratado nas
figurações da indústria de farinha de peixe de Chimbote. As raposas são
imagens de algo que descende das alturas às planícies e que ascendem de
novo: têm a mesma movência da água que também é o tema de Arguedas no
romance Los ríos profundos e no conto “Água”. O desejo de provocar
a união de pessoas, línguas, culturas e países também está na obra do
brasileiro Rosa. Isso já se encontra na palavra “nonada” com que ele
começa Grande sertão: veredas. Considerada pela crítica como uma
palavra-valise, “nonada” tem muitas outras palavras em seu interior — o
“no” do espanhol e do inglês, o “nona” do italiano, o “Ada” e o “nada” do
português, o “non” do francês etc. Além disso, tal como Arguedas faz com
a mescla de quéchua e espanhol, Rosa escreve numa língua distinta do
português oficial: ele compõe seus textos com a língua do sertão em
que recupera arcaísmos, funda neologismos e pratica o típico canibalismo
cultural brasileiro. E assim, ambos os escritores recuperam tradições
ibero-americanas muito antigas, cuja releitura contribui para fortalecer
nossa literatura frente à pressão cultural do mundo globalizado. A maior
herança da geração de Arguedas e Rosa talvez seja essa bem sucedida
prática de aproximar povos, eras e línguas em nosso continente.
Ainda que Arguedas
tenha se matado — e Rosa também, em certa medida, quando aceitou um cargo
de cuja fatalidade desconfiava — ambos os escritores nos delegaram algo
muito vivo: a idéia de que a tradição se mantém porque se renova. Eles
sabiam que a força dos povos mestiços e das culturas híbridas não está em
sua rigidez mas em sua mudança incessante, que pode e deve ser tratada sob
pontos de vista críticos.
Não por casualidade,
Peru e Brasil detêm uma imensa riqueza cultural numa região de águas
eternas e valiosos recursos naturais. O grande rio Amazonas, nascido a
mais de 4.000 metros de altura, nos Andes peruanos, desce lentamente pelas
amplas planícies brasileiras até o Oceano Atlântico. Com 6.577 km de
longitude total, o rio tem de 2 a 6 km de largura mas pode atingir até 50
km. Sua profundidade varia entre 10 e 130 metros, numa bacia com 7 milhões
de Km2 e cerca de 900 espécies de peixe. Funcionando como uma
forte conexão entre brasileiros e peruanos, o rio também é responsável
pela existência da vasta região da Amazônia, compartilhada por Bolívia,
Colômbia, Equador, Guiana, Suriname e Venezuela. A água constitui uma
importante metáfora de nossos escritores porque também representa uma
forma de pensamento crítico, nascida da terra e da cultura
latino-americanas. Podendo avançar da condição de metáfora para o lugar de
conceito, a água funciona como uma forma contemporânea de resistir à
globalização cultural já que nos permite criar teorias próprias, que fazem
da movência e da travessia as marcas fortes de nossas vidas.
Para nossa alegria,
brasileiros e peruanos estão dando continuidade aos esforços de Arguedas e
Rosa. Um bom exemplo disso é o convênio estabelecido entre a Universidade
Federal de Minas Gerais e a Universidad Católica Sedes Sapientiae (UCSS),
situada em Lima, que deu origem a Missões de Estudo e Trabalho. É
importante ressaltar que, no âmbito da UCSS, também funciona um Mestrado
em Literatura Brasileira. Além disso, há publicações conjuntas da
PUC-MINAS e da UCSS, com apoio da embaixada do Brasil em Lima. Também os
jovens escritores do Brasil e do Peru estão realizando antologias poéticas
bilíngües, como é o caso da revista Homúnculus n. 3 que publicou
uma “tri-antologia” da poesia argentina, brasileira e peruana (Flores,
2004). Outros projetos conjuntos — visando à luta contra o analfabetismo
pelo uso de tecnologias computacionais e investigações avançadas —
estão na pauta de discussões entre pesquisadores de ambos os países.
Noutras palavras, os
diálogos continuam. O filme Copacabana é mais um desses rituais de
aproximação, pois recupera uma tradição muito antiga e mostra como nós,
peruanos e brasileiros, estávamos e estamos em produtivas conexões.
Como diria a raposa
andina de Arguedas, “seguimos vendo e conhecendo...”.
Referências
bibliográficas
Alencastro, L.F. (2000). O trato dos viventes. São Paulo: Companhia
das Letras.
Arguedas, J.M. (1983).
El zorro de arriba y el zorro de abajo. En Obras completas. Tomo V.
(p. 9-219). Lima: Editorial Horizonte.
Flores, G. (Dir.). (2004).
Actual triantología de
la poesia Argentina, Brasileña y Peruana.
Homúnculus, 2
(3).
Santiago, S. (2000).
Uma literatura nos trópicos. Rio de Janeiro: Rocco
Notas
-
(1) O presente
artigo foi, originalmentel, palestra proferida na Embaixada do Brasil em
Lima, no dia 12/07/2005, como parte da Missão de Estudo e Trabalho
realizada pela profa. Maria Antonieta Pereira, no âmbito do convênio UFMG/UCSS.
-
Camurati foi atriz
de cinema e das novelas Fera radical e Livre para voar, da
Rede Globo de Televisão, antes de trabalhar na direção de filmes. Como
atriz, ela ganhou o prêmio Moliére com a película A estrela nua, em
1985, e o prêmio de melhor atriz com Pagu, em 1988, no Festival de
Gramado. Em 1987, ela também ganhou muitos prêmios, inclusive o de melhor
filme no Rio Cine Festival com o curta-metragem A mulher fatal encontra
o homem ideal. Essa diretora é considerada responsável pelo
renascimento do cinema brasileiro, com o filme Carlota Joaquina
onde narra, de forma irônica, uma parte da História do país, por meio da
vida da corte de D. João VI. Em Copacabana, a ex-atriz também atua
como roteirista. Do filme, terminado em 2001, participam grandes atores
brasileiros como Marco Nanini e Renata Fronzi. Sua estréia na América
Espanhola ocorreu em 4 de novembro de 2001, na Semana do Cinema
Brasileiro, em Buenos Aires. [volta]
(2) Para a população
quéchua, anterior aos incas, a Pacha Mama (Mãe Terra), é a deidade
máxima dos montes peruanos, bolivianos e do nordeste argentino. Pacha
significa “universo, mundo, tempo, lugar” e Mama é uma forma
carinhosa de “mãe”. Sendo a deusa feminina que engendra a vida, a Pacha
Mama é representada como uma índia que amamenta o filho e está cercada
de potes contendo alimentos. [volta]
(3) Cunhado por
Silviano Santiago, em 1971, o conceito de entre-lugar mostra como o
escritor latino-americano se constitui a partir da mesclagem de culturas
diferentes e do desvio sistemático dos conceitos de unidade e
pureza. Cf. Santiago, 2000, p. 9-26. [volta]
(4) Em português, o
nome da obra seria “A raposa de cima e a raposa de baixo”, numa referência
aos homens típicos da região serrana (dos Andes) e da zona litorânea (que
vive às margens do Oceano Pacífico). [volta]
Nota
sobre o autor
Maria Antonieta
Pereira é
professora da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais,
Brasil. É Coordenadora do convênio UFMG/UCSS. Contato: litera.bhz@zaz.com.br.
Data
de recebimento: 27/10/2005
Data de aceite: 30/04/2006
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/pereira01.htm