O regime de vida
O tema das
paixões da alma estava presente em diferentes tradições culturais em
circulação no Renascimento, inclusive na literatura médica. Proponho uma
análise do conhecimento e administração das paixões de acordo com um
regime de vida publicado pela primeira vez em 1600. Trata-se do Governo
necessário para cada um viver longamente em saúde (Le gouvernement
necessaire a chacun pour vivre longuement en santé) do médico francês
Nicolas Abraham, Sieur de la Framboisière. O método de análise segue a
linha de pesquisa em História da Ciência “História, ciência e cultura”,
que examina os saberes do passado em seus próprios termos e
inter-relações. O procedimento consiste no levantamento de obras da época,
sua leitura e análise comparativa, levando-se em conta os fundamentos das
idéias e o gênero de obra no qual foram elaboradas e difundidas. Em
particular, pretendo situar as idéias de La Framboisière sobre o
conhecimento afetivo na complexa rede de saberes sobre o corpo e a alma em
vigor na França do início da modernidade, e demonstrar como a problemática
dos afetos ou paixões da alma estava relacionada à busca do conhecimento e
da conservação da saúde. As fontes primárias usadas nesta pesquisa foram
encontradas na seção de obras antigas da biblioteca da École de Médecine
de Paris, na Bibliothèque Nationale de France, na Biblioteca Apostólica
Vaticana, na cidade do Vaticano, além de outros acervos históricos de Roma
(1).
Nicolas
Abraham, Sieur de la Framboisière, nasceu em Guise, na França, em 1560.
Ele estudou inicialmente com o seu pai, que era cirurgião, e
posteriormente tornou-se Doutor em Medicina pela Escola médica de
Reims em 1586. Em 1597, organizou as primeiras ambulâncias militares
francesas e tornou-se médico ordinário do rei Henrique IV em 1600. Também
foi nomeado o médico chefe do exército e o “doyen” da faculdade de
medicina de Reims. Louis XIII, sucessor de Henrique IV, o conservou como
seu médico, mas ele perdeu tal cargo em 1627 ao aliar-se aos adversários
de Richelieu, voltando a Reims, onde faleceu em 1636.
O Le gouvernement
necessaire a chacun pour vivre longuement en santé foi publicado
diretamente em francês, em 1600, em Paris. Logo no prefácio deste regime,
dedicado à longa vida do rei e de seu povo, o médico afirma que decidiu
escrever em língua vulgar para que todo público habitante da França,
francês de origem ou não, de todos os estados e condições naturais e
sociais, pudesse se servir do mesmo. Por isto, seu livro é escrito em
linguagem simples e direta.
O texto se divide em
oito partes nas quais o autor trata do governo, ou seja, da conduta para a
conservação da saúde de cada indivíduo conforme suas características
pessoais. Assim, há orientações sobre o regime de vida específico para as
mulheres; para as pessoas de diferentes idades; para os habitantes de
diferentes regiões da França; para cada estação do ano; sobre a conduta
necessária em tempo de peste e, por fim, aquela que se adequar às pessoas
sujeitas a uma enfermidade particular.
Como se
sabe, a tradição dos regimes de vida remonta-se à medicina grega antiga. A
escola hipocrática produziu, no final do século V a.C., um tratado sobre o
Regime de vida, que estabelece os postulados fundamentais que serão
retomados por muitos outros. No século seguinte, no meio peripatético,
surge uma espécie de paidéia para evitar doenças, a Epistola
sobre a vida sã, atribuída a Diocles de Carysto. Ainda no contexto da
cultura grega, a obra do filósofo Plutarco, Preceitos de saúde, do
ano 81 da era comum, exerceu grande influência (2).
O
médico de Pérgamo radicado em Roma, Cláudio Galeno (129-199) sintetizou
idéias hipocráticas, aristotélicas e de outras tradições helenísticas, em
seu tratado de Higiene, reeditado várias vezes na Itália medieval.
Foi na tradição fundada em sua medicina que ocorreu a sistematização das
causas externas da alteração da saúde, as assim chamadas seis coisas não
naturais, a saber: comida e bebida, ar e ambiente, esforço e repouso, sono
e vigília, excreções e secreções e os movimentos da alma.
Além das
regras monásticas da alta Idade Média e dos textos de origem árabe, como o
Canon de Avicena, os regimes de saúde medievais mais conhecidos,
embora não sejam os únicos, são os versos didáticos atribuídos à Escola de
Salerno, século XI, o Regimen sanitatis salernitanum, e o livro de
saúde de Aldebrando de Siena (1911) elaborado no século XIII. Este último,
inclusive, reafirma o bom uso das seis coisas não naturais, descreve como
se proteger da pestilência do ar, como conhecer o lugar em que se vive,
discorre sobre a sobrevivência no mar, sobre a vida com as mulheres, a
gravidez, a criação dos bebês, e, por fim, ensina como conservar o corpo e
mantê-lo sempre jovem, retardando a velhice.
No início
da modernidade, a Itália foi o local onde este gênero de escrito teve sua
mais expressiva fortuna. Vários médicos e humanistas propuseram modos de
preservar a saúde o máximo possível. Estes manuais de saúde apresentam uma
rica releitura da antiga tradição das dietas renovando-a. Constata-se,
notadamente, uma retomada de autores clássicos da antiga medicina grega e
árabe, que doravante são combinados com nomes contemporâneos do saber e
adaptados à discussão de costumes e problemas locais.
Neste
sentido, pode-se destacar o médico e professor da Universidade de Pádua
Michele Savonarola (1384-1469) que angariou muita fama tanto como
professor quanto como terapeuta; escreveu sobre medicina, moral, águas
termais, e ainda sobre a cidade de Pádua e seus homens ilustres. Seu
pequeno manual de longo título, o Libreto delo Excellentissimo physico
Maistro Michele Savonarola: De tutte le cose che se mangiano comunamente:
quale sono contrarie e quale al proposito: i como si apparecchiano: i di
quelle se beveno per Italia : e de sei cose non naturale: i le regole per
conservare la sanità deli corpi umani, sintetiza os princípios
considerados necessários para a conservação da boa saúde por muitos anos.
Savonarola
ensina que as chamadas seis coisas não naturais precisam ser propícias
para o bom funcionamento do corpo e portanto um bom regime de vida deve
orientar como administrá-las. Assim, a primeira parte de seu livreto
descreve os alimentos e discute suas propriedades. Há também uma parte
dedicada ao exame dos efeitos do clima sobre as diferentes constituições
corporais. Segue-se a consideração de que os exercícios, como jogar bola,
correr, lutar com espadas, escalar, saltar, andar rapidamente, quando
moderados, convém ao homem saudável. Já o repouso é indicado por
Savonarola para três ocasiões: após a refeição, para não atrapalhar a
digestão; nos dias muito quentes do verão e após o banho que deve suceder
os esforços físicos. Quanto ao sono, este depende das necessidades
requeridas conforme as características físicas de cada um, idade,
exercícios físicos realizados, força do corpo e hábito. Atenção também
deve ser dada à repleção e à evacuação. Finalmente, deve-se cuidar para
que os acidentes da alma não se tornem imoderados, pois, com isto,
poderiam alterar, de modo prejudicial, o calor interno responsável pela
conservação da vida.
A
popularidade dos regimes de vida na Itália do início da Idade Moderna tem
sido explicada apontando-se diferentes razões. Uma delas é o aumento de
leitores interessados em livros de conselhos. Em cidades como Florença e
Veneza, o público para este tipo de manual de saúde não se restringia aos
médicos; abrangia também as cortes e a intelectualidade urbana, em
especial os idosos destas classes. Além da redescoberta dos escritos
clássicos sobre este tema, este interesse pelos regimes está relacionado
certamente ao aumento na sofisticação das refeições e dos rituais
comensais das prósperas classes altas (3).
Outra razão deve-se à invenção da imprensa que permitiu a difusão de todo
tipo de manual. Ou ainda, o medo da peste pode ter motivado a demanda por
regimes de saúde. Finalmente, a divulgação de regimes na Itália pode
integrar uma campanha contra a crítica protestante à normativa dietética
da Igreja romana (4).
Todavia, a
produção e circulação de manuais de conservação da saúde não foi um
fenômeno exclusivo ao contexto italiano. Na Inglaterra, o The Castell
of Helthe (1536?) do humanista e diplomata Thomas Elyot (c.
1490-1546), cuja primeira edição foi dedicada a Thomas Cromwell, obteve
várias edições e larga difusão em pleno século XVI (Mikkeli,
1999.
Na França
dos séculos XVI e XVII, os manuais de higiene não estavam tão em
evidência. Embora a questão da conservação da saúde fizesse parte da
tradição galênica, orientação hegemônica da Escola de Medicina da
Universidade de Paris entre outras escolas francesas, os regimes
tornaram-se realmente difundidos apenas no século do Iluminismo. Uma
explicação possível: por ser um gênero de medicina mais popular, mais
pragmática, escrita em língua vulgar, os grandes nomes da medicina
francesa trataram apenas rapidamente da questão do regime de vida, e foram
médicos desconhecidos que produziram a maioria dos manuais de saúde,
anteriores ao século XVIII. O mais sofisticado dos regimes de vida
renascentistas produzidos na França seria justamente este de La
Framboisière (Colinjones,
1997).
De modo
geral, os regimes do período difundem o pressuposto da tradição
hipocrático-galênica, reiterada no Renascimento, segundo o qual o justo
equilíbrio dos líquidos corporais, conhecidos como quatro humores (sangue,
fleuma, bile amarela e bile negra) é uma condição para a saúde. O estado
patológico decorre da falta, excesso ou isolamento em alguma parte do
corpo de algum desses princípios. Medicar significa restabelecer a boa
crase, ou seja, a mistura equilibrada em força e em quantidade.
Em outras palavras,
esta tradição médica pressupõe uma espécie de economia do corpo em termos
de um equilíbrio entre a entrada de alimentos e o gasto com os esforços
corporais. Neste caso, o campo de ação do médico é sobretudo a modificação
das condições materiais do corpo. Portanto, a adaptação da dieta e do
regime de vida eram os principais recursos próprios aos médicos, sobretudo
na chamada medicina preventiva. O objetivo do regime é regular este
equilíbrio de modo a garantir uma boa proporção interna entre calor e
umidade.
As paixões da alma
Pode-se constatar
que os afetos ou paixões da alma continuaram a ser tratados pelos médicos
como uma das seis coisas não naturais que influem na saúde e que devem ser
corretamente administradas no bom regime de vida. Ao seguir esta definição
tradicional, os médicos dos Quinhentos e Seiscentos propunham modos de
prevenir ou remediar as enfermidades que agiam também na esfera dos
afetos. Apoiando-se em antigos repertórios filosóficos, eles aliavam
princípios da filosofia aos métodos médicos com o objetivo de sistematizar
modos de conservar ou restabelecer a saúde integral do indivíduo.
André du
Laurens, médico do rei Henrique IV e professor da Escola de Medicina de
Montpellier, embora afirmasse que a correção das desordens afetivas é
assunto dos filósofos morais e que ele, enquanto médico, ocupava-se
exclusivamente das alterações e corrupções do corpo, ao longo do
Discours de la conservation de la vue, des maladies melancholiques, des
catarrhes, & de la vieillesse, ele faz uso de preceitos filosóficos,
cita a autoridade de filósofos antigos como Aristóteles, Platão e os
estóicos, além de expoentes do humanismo, e sobretudo não se furta a
aconselhar modos de conduta que incluem até mesmo o uso das paixões no
processo de cura. Para ele, é preciso examinar as condições e qualidades
próprias de cada paixão para poder remediá-la. Por exemplo, o tédio, a
tristeza e o medo são caracterizados pela temperatura fria e a fraqueza do
cérebro. Seria, portanto, apropriado provocar um pouco de cólera nas
pessoas acometidas por estas paixões, a fim de aquecê-las e acordá-las.
Ao
discorrer sobre a influência das paixões na saúde das pessoas de idade
avançada, Du Laurens, inclusive, admite que muitas doenças corporais são
causadas por alterações provocadas pela alma. A guisa de argumentação, o
médico lança perguntas tais como: Quantas doenças não vemos aparecer e ser
curadas pela imaginação? Quantos não teriam morrido devido a uma extrema
alegria (5)?
La Framboisière, por
sua vez, anuncia as fontes de suas prescrições que, por sinal, também não
se resumem à tradição médica. Seu regime se sustenta no que o autor pôde
coletar em vários terrenos, isto é, em suas próprias palavras, nos:
jardins dos médicos,
filósofos, astrólogos, cosmógrafos, poetas e outros escritores, gregos,
latinos, árabes, franceses, tanto antigos como modernos.
(La
Framboisière, 1600, p. 8, trad. nossa).
O que torna o seu
regime digno de nota é que o médico também afirma que para conservar a
vida é necessário saber governar o que é comumente chamado de seis coisas
não naturais. Acontece que, no seu entender, entretanto, não se trata
propriamente de algo em si não natural ou contra a natureza, e sim de seis
coisas sem as quais é impossível viver, mas que em excesso podem
prejudicar a saúde.
Nas palavras de La
Framboisière:
Para se viver
longamente em saúde, é necessário governar as coisas, vulgarmente
conhecidas como não naturais, ainda que elas sejam naturais quando bem
empregadas, e contra a natureza se há abuso.
(La
Framboisière, 1600, p. 32, trad. nossa).
Aliás, La
Framboisière prefere se referir a estas coisas como “armas da natureza”. O
fato de ter sido médico oficial do exército francês pode explicar a
preferência pelo vocábulo “arma”. O mais relevante, porém, é que ele
considera tais coisas como sendo instrumentos perigosos e poderosos, mas
naturais caso bem governados.
Evidentemente que,
entre estas armas naturais, estão as paixões da alma que podem ser bem ou
mal usadas. Segundo o médico, não é possível evitar as paixões da alma
porque estão relacionadas à apreensão de um objeto mau ou bom, o que é de
fundamental importância na vida humana. Assim, resta administrá-las de
modo correto. E para conservar a saúde com o uso destas armas da natureza
é preciso considerar quatro coisas: a qualidade conveniente, a quantidade
razoável, o modo cômodo e o tempo oportuno, tudo em conformidade à
compleição física, ao sexo, à idade, à região onde se vive, à estação do
ano, à constituição do tempo e à disposição do corpo de cada um.
Entre todas as
paixões, a mais saudável é a alegria pois dá contentamento à alma e ao
corpo. Entretanto, é mais conveniente aos magros porque engorda. A cólera
pode ser de bom proveito aos fleumáticos porque esquenta o sangue e
restabelece o calor natural. Mas pode ser muito nociva aos biliosos pois
aumenta este humor. A tristeza é perniciosa às pessoas enfraquecidas, mas
não agride tanto os que estão em boa forma. Já o medo serve apenas aos que
estão em situação de risco de vida.
As paixões
e a razão
Trata-se
de uma abordagem dos afetos muito semelhante à posição sustentada pelos
adeptos da psicologia aristotélico-tomista, renovada na época. Retomando a
doutrina dos afetos de Aristóteles e São Tomás de Aquino, vários filósofos
e mesmo médicos afirmavam que a paixão é um movimento do apetite
sensitivo, causado pela imaginação de um bem ou mal, aparente ou
verdadeiro, que modifica o corpo contra as leis da natureza.
Segundo
Massimi (Massimi & Silva, 2001) a difusão desta tradição
aristotélico-tomista de categorização dos movimentos atribuídos à alma
ocorreu sobretudo no contexto ibérico. O rei português Dom Duarte, no
tratado Leal Conselheiro (1437-38), descreve a melancolia, a
tristeza, o nojo, a saudade e o amor para que seus leitores espelhem-se em
sua experiência e busquem neles próprios se verificam a mesma vivência.
Neste e em outros escritos, Dom Duarte aconselha o conhecimento de si e a
ordenação racional das paixões, afirmando ser preciso cuidar do corpo,
conhecer as afeições, e temperá-las de modo que estejam em acordo com a
razão. O humanista português frei Heitor Pinto, no Imagem da vida
cristã, também recomendava a moderação das paixões, dando continuidade
à tradição aristotélico-tomista que valoriza as paixões enquanto afeições
naturais, passíveis de serem mantidas sob o julgo da razão e servirem
perfeitamente ao homem cristão.
O filósofo
jesuíta da universidade de Coimbra Manuel Gois, no Commentarii
Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia
appellantur, publicado em 1593 em Lisboa, e difundido pela Europa,
inclusive na França, precisa que estas modalidades de animação teriam duas
causas: uma formal; o impulso da alma, e outra material, a alteração
orgânica dos espíritos vitais presentes no coração devido à modificação da
temperatura corporal desencadeada pelo movimento da alma. Ela pode
tornar-se um hábito vicioso somente se a vontade consente ao
desregramento. A temperança, hábito eletivo regulado pela razão, pode ser
obtida por meio do exercício de uma espécie de poder político sobre as
paixões da alma; ou seja, um governo do apetite pela razão e livre
arbítrio. Cumpre ressaltar que La Framboisière também emprega a noção de
governo no que concerne às tais armas naturais, o que inclui as paixões.
Talon-Hugon (2002) comenta que, na França, um exemplar especial do
sincretismo do pensamento do início do século XVII sobre as paixões é o
Charactères des passions, do médico do rei e membro da Académie
française e da Académie des sciences, Cureau de la Chambre (1594-1669).
Neste, que é uma das peças mestras da tela de fundo sobre a qual Descartes
inscreve sua teoria das paixões, cada paixão da alma é estudada em quatro
tempos. Em um primeiro momento, Cureau faz o retrato físico e moral do
homem no que diz respeito à paixão considerada. Em seguida, ele estabelece
a natureza da paixão, após o exame das definições propostas pelos antigos.
No terceiro momento, são descritos os movimentos do espírito e dos humores
que a acompanham. E finalmente, o médico faz uma etiologia dos signos por
meio das causas últimas de cada paixão.
Corpo e
alma estão envolvidos nestes movimentos do apetite: a cólera é ao mesmo
tempo uma agitação da alma e um punho que se ergue; o amor, o élan
espiritual e o rubor da pele; o medo, o recuo imaterial da alma e o tremor
dos membros. Cureau sustenta, porém, que é a alma quem solicita os humores
do corpo, recorrendo em sua explicação aos chamados espíritos animais, que
teriam o poder de sublevar os humores (6).
A alma irradia estes espíritos para as partes exteriores do corpo, ou os
retira e os envia ao coração, conforme a paixão concernida, e este fluxo e
refluxo arrasta os humores.
Na teoria
das paixões de Descartes (1644/1999) os espíritos animais também têm uma
função capital, mas enquanto componentes de um estrito mecanismo; já para
Cureau, bem como para La Framboisière, em consonância com o tomismo, eles
são os emissários da alma.
Ainda no
meio francês, o De l’usage des passions, publicado em 1641, por
Jean-François Senault, um dos mais célebres pregadores de seu século, faz
uma refutação nuançada da teoria das paixões da ética estóica, de
expressivo retorno nos séculos XVI e XVII.Este tratado, oferecido formalmente ao cardeal Richelieu e bastante
difundido, está fundamentado, sobretudo, na noção de alma e corpo tomista,
mas não sem se servir de imagens consolidadas por Platão.
Senault
(1641/1987) afirma, em sintonia com São Tomás de Aquino, que a paixão é um
movimento natural necessário, que nasce do fato de que a alma esteja
engajada na matéria. Não podendo, portanto, em si mesma, ser considerada
como vício ou enfermidade da alma, como queriam os estóicos. É com a queda
primordial que a natureza se tornou corrompida e as paixões tornaram-se
desregradas. Quando desmedidas as paixões deverão ser moderadas com o uso
da razão, o que se faz, a exemplo do médico que administra prudentemente
venenos, com o uso de uma paixão capaz de anular o efeito nocivo daquela
que se pretende remediar: opõe-se a alegria à dor; tempera-se o medo com a
esperança e modera-se os desejos com o pesar que acompanha sua realização.
Se for o pecado a origem da corrupção, é também a graça que permite à
vontade a possibilidade de seu livre exercício, que, bem administrado,
poderá modificar as paixões em virtudes, mantendo a alma sensitiva sob os
cuidados da parte superior da alma.
O influente jesuíta
francês Jacques Lambert (1666) também retoma a psicologia
aristotélico-tomista e afirma que as paixões são sentidos interiores da
função sensitiva da alma, como os apetites e as fantasias.
O
funcionamento é bastante lógico: se um objeto é apreendido pelos sentidos
e chega à fantasia como algo bom, o apetite concupiscível produz o amor
por via da simples inclinação. Surge o desejo; com ele, a busca, e por
fim, o prazer do gozo deste objeto. Quando a conquista é atravessada por
alguma dificuldade, entra em jogo o apetite irascível. Este último, quando
os obstáculos parecem transponíveis, incita à esperança e ao prazer que a
acompanha. Ele também produz o desespero quando se julga que o obstáculo
ao gozo é incontornável. Mesmo sendo acompanhada de dor, esta paixão
auxilia a fazer cessar o desejo de algo que é impossível obter.
Por outro lado, se o
objeto apresentado pela fantasia ao apetite lhe parecer mau, ele produz o
ódio, que é o contrário do amor; produz ainda a fuga, contrário do desejo,
que fará o esforço de evitá-lo. Se esta fuga é bem sucedida, o que pode
ser realizado com a audácia produzida pelo apetite irascível, há o prazer.
Já se a dificuldade é muito grande, ocorre o medo, o que pode ser
conveniente para não se atacar algo em vão. Enfim, se tal objeto mau
atinge o apetite concupiscível, o irascível fornece a cólera para que este
se vingue, o que faz sentir o prazer da vingança.
Em poucas palavras,
trata-se de uma dinâmica entre os sentidos interiores e os exteriores
(visão, audição, olfato, paladar, tato, o prazer e a dor) que pode ou deve
ser corrigida por meio do uso da razão moderadora.
A questão da
moderação comparece também no discurso médico antigo e contemporâneo ao
regime de La Framboisière. Apoiado no antigo hipocratismo, Du Laurens
afirma que o bom funcionamento do corpo depende de três princípios
naturais, a saber, o calor, a umidade e a eliminação de excrementos. Para
conservá-lo, portanto, deverá haver uma adequação no modo de vida de
maneira a preservar a correta relação entre estes três princípios e a
conseguinte harmonia interna do corpo.
O célebre cirurgião
francês Jean Devaux, por seu turno, afirma que os excessos são uma das
causas fundamentais das enfermidades, portanto, a moderação é uma chave
para a conservação da saúde. Em seu caso, porém, a questão da
determinação, pelo médico, da justa quantidade e qualidade é
problematizada de modo radical. No Le medecin de soi-meme, ou l’art de
se conserver la santé par l’instinct publicado em Leyde, por Henry
Drummond, em 1682, sendo reeditado na mesma cidade por Claude Jordan, em
1687, Devaux defende a idéia de que há no ser humano um movimento natural
de adesão ao que é útil e de rechaço daquilo que lhe faria mal (7).
É justamente esta capacidade natural que tornaria a medicina oficial
acadêmica desnecessária. Seriam suficientes dois termos: um bom clima e o
exame de si mesmo. Devaux adverte, entretanto, que não é necessário ser um
grande médico para encontrar a regra certa sobre a quantidade e a
qualidade de alimentos e bebidas, basta escutar a natureza e o bom senso.
Ou seja, respeitar as próprias necessidades do corpo e estar atento aos
efeitos das paixões da alma.
La Framboisière já
prescrevia o exame de si mesmo e a moderação muito tempo antes do polêmico
livro de Devaux (8).
Ele também insiste que a ingestão dos alimentos deve ser sempre
proporcional ao que se perde continuamente do corpo. Assim, convém evitar
sobrecarregar o estômago para não perturbar o calor natural. Entretanto, a
qualidade e a quantidade dos alimentos e das bebidas dependerão das
características de cada um, o que inclui o próprio tamanho do estômago e a
compleição física, a idade, o sexo, e as atividades desenvolvidas pelo
sujeito em questão.
É
necessário advertir que esta retomada da virtude da moderação, tão cara
aos gregos antigos, bem como a ênfase no exame de si mesmo não são
prerrogativas da medicina seiscentista francesa. O topos da
moderação organiza o regime, já citado, do paduense Michele Savonarola.
Cabe também mencionar o Trattato de la vita sobria do nobre
veneziano Luigi Cornaro (1467-1566). Este elogio dos regimes alimentares,
cuja primeira edição data de 1558, retoma os lugares comuns sobre os
efeitos da temperança, renovando a tradição, ao multiplicar os conselhos e
insistir, através de um relato em primeira pessoa, nos benefícios e
prazeres que a sobriedade e a moderação podem proporcionar.
As idéias de Cornaro
tiveram grande repercussão na Itália e fora dela, inclusive no meio
jesuítico, uma vez que seu tratado foi vertido para o latim pelo teólogo
jesuíta e professor da Universidade de Louvain Léonard Lessius
(1554-1623), e publicado em conjunto a uma espécie de longo e minucioso
comentário, no ano de 1613, com o título de Hygiasticon sev vera ratio
valetudinis bonae et vitae unà cum sensuum, iudicii, et memoriae
integritate ad extremam senectutem conservandae. Além de ser editado
em várias línguas ao longo do século XVII, inclusive em francês em 1623,
este duplo tratado de Lessius, a partir daquele de Cornaro, influenciou
outros autores dentro da Companhia de Jesus, como é o caso de Antoine de
Balinghem (1571-1630), jesuíta igualmente oriundo dos antigos
Países-baixos, que produziu uma obra de grande interesse para a
compreensão das relações entre a medicina e a filosofia em torno do modo
de viver moderado: o Apresdinees et propos de table contre l’excez au
boire, et au manger, pour vivre longuement, sainement, et sainctement.
Dialogisez entre un prince & sept sçavants personnages : un theologien,
cannoniste, ivrisconsulte, politique, médecin, philosophe moral, et
historien,
publicado em Saint-Omer, por Charles Boscart, em 1624.
Manter o corpo e
sobretudo a alma em equilíbrio também era recomendado pelo então renomado
médico italiano Girolamo Mercuriale (1597). O médico e professor em três
das maiores escolas italianas da época, Pádua, Bologna e Pisa, afirma que
não é contrário à razão nem à experiência admitir que as intensas
perturbações da alma e os pensamentos tristes agem negativamente sobre o
cérebro, o fígado e o estômago, estimulando a produção do humor
melancólico responsável por uma tétrica disposição de todos os membros, em
especial, do próprio cérebro de onde resulta a corrupção da imaginação e
do raciocínio.
Também orientado
pela perspectiva galênica dos contrários curam contrários, o médico romano
Paolo Zacchia (1665) sugere a alegria moderada como antídoto da tristeza e
seus incômodos no corpo e na alma. Tal prescrição vale também para a
hipocondria, considerada um mal de difícil diagnóstico por encobrir várias
enfermidades e produzir uma diversidade de manifestações de delicado
tratamento. Tradicionalmente entendida como uma indisposição dos processos
digestivos, a chamada melancolia hipocondríaca era associada ao temor e à
tristeza, intolerância a alimentos, incômodos e dores estomacais, rigidez
no abdômen, gazes, hemorróidas, dores no peito, nas costas e na cabeça,
dificuldades em ouvir e enxergar, vertigem, sono e sonhos desesperantes. O
remédio proposto, além dos métodos de harmonização dos sucos corporais
como sangrias e purgas, era uma mudança no estilo de vida, procurando-se
pela temperança.
Na própria França do
final do século XVII, Devaux representa, entretanto, uma posição mais
crítica quanto à prática do uso moderado dos afetos. Ele considera, em
primeiro lugar, que os acidentes da alma podem dificultar a cura do corpo.
A impaciência, por exemplo, pode levar à tomada de decisões equivocadas e
imprudentes. O medo da morte pode provocar a desordem da alma, o que,
evidentemente, prejudica a saúde corporal também.
Devaux identifica a
tristeza como uma das enfermidades mais graves que pode acometer a alma.
Em parte, porque nem sempre é possível curá-la com a destruição completa
de sua causa, pois ela está freqüentemente fora de nosso alcance. Além
disto, a persuasão do triste não se faz tão facilmente como se pode crer.
Basta pensar no caso de alguém que foi à falência. Simplesmente afirmar
que não deveria se apegar aos bens materiais, e, ao contrário, pensar
somente no que é eterno não impede que ele ressinta a perda. Na realidade,
o único remédio seria recobrar a soma perdida e tal solução não se
encontra nas boticas. Devaux é ainda menos otimista quanto ao método mais
utilizado para temperar as paixões: a administração do afeto contrário. No
caso da tristeza seria a alegria, mas ele se mostra cético e afirma que
tentar suscitar alegria em alguém entristecido pode ser inútil pois este
se encontra insensível aos prazeres comuns, podendo, até mesmo, sentir-se
ainda pior com atividades que fariam a alegria de alguém saudável.
Verdade e saúde
O governo das
paixões da alma segundo o regime de La Framboisière não se restringe,
contudo, ao consolo ou a incitar simplesmente uma paixão contrária.
Trata-se de uma prática que exige um exercício cognitivo.
Ele afirma, por
exemplo, que a tristeza provém da apreensão de um suposto mal presente. A
tristeza contrai o coração, diminuindo o fluxo dos espíritos e portanto
enfraquece a virtude vital. Mas será que há motivo para cultivar a
tristeza?
Já o medo resulta da
apreensão de um mal futuro. O medo também faz com que o calor, os
espíritos e o sangue concentrem-se no interior do corpo, causando a
palidez e o tremor. Este possível acontecimento negativo justifica, de
fato, todas estas reações?
Sentir medo é natural, mas até que ponto ele pode ajudar a superar tal
situação?
La Framboisière
pretende, na realidade, que seja necessário reportar-se aos objetos
apreendidos de modo racional para que as paixões não se tornem em vício e
prejudiquem o corpo com o excesso ou falta de sangue e espíritos nas
diversas partes do mesmo.
Para moderar as
paixões, La Framboisière propõe a consideração dos males advindos de seu
excesso. Ou seja, refletir sobre as causas e as conseqüências das paixões.
No caso da cólera o remédio é pensar no espetáculo de horror e violência
que oferece alguém tomado por esta paixão.
Ele recorre também
ao lugar comum de que o objeto suposto prazeroso ou ameaçador é, em geral,
transitório e perecível, não merecendo, portanto, tamanho apreço. O que
vale para o excesso de alegria, desejo, tristeza e medo.
Não se trata apenas
de encontrar o justo meio. De modo geral, é preciso manter a alma em tal
disposição que ela não incorra em falsas opiniões acerca dos objetos.
Portanto, é necessário examiná-los com a razão, pesá-los na balança do
entendimento. O que implica considerar se depende ou não de nossa vontade
e potência, para decidir se é razoável e conveniente deixar-se mover pelo
desejo de desfrutar ou evitar algo:
Quando sabemos que o
objeto é verdadeiramente aquilo que imaginamos, e sabemos ter os meios
para obter tal bem ou evitar o mal apreendido, deve-se se mover pelo
afeto. No caso contrário, não se deve deixar levar pelas paixões por se
tratar de algo falso ou impossível. (1600, p. 166, trad. nossa).
Enfim, o
remédio proposto por La Framboisière é o exercício da busca da verdade no
que concerne à apreensão de um objeto a ser perseguido ou evitado.
Conhecer a verdade sobre o que se apreende pelos sentidos é o primeiro
passo para o governo dos movimentos da alma. Conhecer o mundo externo e a
si mesmo são requisitos para uma vida mais longa e mais saudável. É por
esta razão que se pode afirmar que o regime de La Framboisière articula
claramente a questão do conhecimento, dos afetos e da saúde em um todo
integrado, como poucas vezes se verá na medicina moderna.
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Notas
(1) Agradeço à Fapesp pela bolsa de pesquisa na Europa e aos colegas da EHESS, CNRS, Université de Paris IV e École française de Rome pela
hospitalidade. [volta]
(2) Para um panorama
geral e exame das diferentes tradições de regimes de saúde na Antiguidade
e na Idade Média, ver Sotres, 1995. Sobre o regime de Plutarco, em
particular, ver
Corvisier,
2001. [volta]
(3) Para uma exposição detalhada sobre
os parâmetros da saúde praticados na Itália renascentista, ver Siraisi,
1997. [volta]
(4) Esta é a tese de M. Montanari (2003). A fome e a abundância: história da alimentação na
Europa, que cita, inclusive, o regime alimentício publicado pelo
médico romano Paolo Zacchia (1584-1659), nomeado médico do Estado da
Igreja, por Inocêncio X, em 1644.
No
Il vitto quaresimale.
Ove insegnasi come senza
offender la sanità si possa viver nella Quaresma,
Zacchia ensina, em língua vernácula, de forma que possa ser acompanhado
por todos, a controlar os ímpetos da parte humana inferior para que o
espírito superior, mais ágil e pronto, possa alcançar o fim a que fora
destinado, sem com o jejum causar dano ao corpo. Com isto, ele propunha
uma adaptação de saberes médicos e teológicos de maneira a conjugar os
cuidados com a saúde do corpo com a busca da salvação da alma. [volta]
(5) Todos
estes efeitos dever-se-iam à soberania da alma sobre o corpo, como previa
a filosofia platônica: “Platon en un dialogue qu’il nomme Carmides, escrit
avec verité, que les plus violentes & dãgereuses maladies que soufre le
corps viennent de l’âme: car l’âme (dit-il) ayant un pouvoir souverain &
commandant absolument au corps, le meut, altere & change en un momêt comme
il luy plait. (Du Laurens, 1630, f. 201). [volta]
(6) Por espírito entende-se, neste
caso, a versão para spiritus, tradução latina de pneuma. Na
fisiologia galênica o pneuma é algo como um sopro; um elemento nem
físico, nem transcendente. É o pneuma que mediaria a ação da alma
sobre processos somáticos, interagindo com os diferentes tipos de humores:
o pneuma psychicon, produzido no cérebro, rege as atividades
mentais; o pneuma zotichon, gerado no coração, age em órgãos e
funções vitais; e o pneuma physicon, produzido no fígado, participa
da nutrição. [volta]
(7) Sobre
a definição deste instinto de sobrevivência comum aos homens e animais:
“car le verbe latin instigo, d’où le substantif instinctus est derivé, qui
est ensuite passé dans nôtre langue, ne signifiant autre chose en François
sinon, je pousse, j’excite, j’ebranle, je donne du mouvement, on n’aurait
qu’à dire ce qu’on dit jusqu’ici la plupart des Philosophes, que
l’Instinct des bêtes est une impulsion qui les porte vers les choses qui
leur sont utiles, & qui les fait éloigner de celles qui leur sont nuisible"
(Devaux, 1682, pp. 4-5). [volta]
(8) A idéia de médico de si mesmo
comparece em várias obras do período, na própria França ou fora dela, mas
não no mesmo grau que no livro de Devaux. Por sinal, as teses apresentadas
por Devaux em 1682 provocaram diferentes reações. E. Aziza-Shuster (1972)
afirma que outros regimes foram escritos para combater ou nuançar as
afirmações do cirurgião. Em geral, vários autores admitiram a importância
do exame de si mesmo para a preservação da saúde, mas não concordaram que
os remédios e os próprios médicos fossem dispensáveis. La Framboisière
compartilhava desta posição. [volta]
Nota
sobre o autor
Paulo José Carvalho
da Silva
é
psicólogo, mestre em História da Ciência pela PUC-SP e doutor em
Psicologia pela USP, é professor pesquisador do Programa de estudos
pós-graduados em História da Ciência da PUC-SP e pesquisador do
Laboratório de Psicopatologia fundamental da mesma universidade.
Contato: paulojcs@hotmail.com.
Data
de recebimento: 31/01/2005
Data de aceite: 30/04/2006
Memorandum 10, abr/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a10/silva03.htm