Assis, R.M. (2006). A inteligência à deriva e a enfermidade social: idéias sobre ser humano e sociedade difundidas em Minas Gerais pelo jornal religioso Selecta Catholica (1846-1847). Memorandum, 11, 59-70. Retirado em / / , do World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/assis02.htm

A inteligência à deriva e a enfermidade social: idéias sobre ser humano e sociedade difundidas em Minas Gerais pelo jornal religioso Selecta Catholica (1846-1847)

Intelligence adrift and social illness: ideas about human being and society spread in Minas Gerais by the religious journal Selecta Catholica (1846-1847)

Raquel Martins de Assis
Universidade Federal de Minas Gerais

Brasil
 

Resumo
Este artigo discute concepções sobre o ser humano e sobre a sociedade difundidas pelo jornal religioso Selecta Catholica, editado por D. Antônio Ferreira Viçoso, publicado no estado de Minas Gerais, Brasil, nos anos de 1846 e 1847. O jornal, entendido como estratégia para educação da população, tinha os objetivos de reformar costumes, promover a fé católica e combater idéias materialistas, panteístas e racionalistas, estas vistas como origem de enfermidades e de violência social. Em contraposição a esses ideais, encontramos a idéia de ser humano como pessoa, definido como corpo individual e social, sendo a sociedade concebida de forma análoga como pessoa moral.

Palavras-chave: história da psicologia; século XIX; impressos; pessoa.

Abstract
This paper brings into light the discussion of concepts found in the religious journal Selecta Catholica, published in Minas Gerais, Brazil, in the years 1846 and 1847, focusing on human being and society. The journal, taken as a strategy to educate the population, aimed at reforming customs, implementing the catholic faith  and fight back materialistic, pantheist and rationalist  ideas  understood as a source of diseases and social violence. Opposing to these ideals, we   find the concept of a human being as a person, defined as an individual and social body, and the society conceived analogously as a moral person.

 Keywords: The history of psychology; 19th century; printed matters; person.

 

Introdução

O jornal religioso Selecta Catholica foi publicado em Mariana, Província de Minas Gerais, nos anos de 1846 e 1847. O periódico, impresso pela Tipografia Episcopal, foi editado por Antônio Ferreira Viçoso (1), bispo de Mariana de 1844 a 1875, e pelo Padre João Antônio dos Santos (2), reitor do Seminário de Mariana e futuro bispo de Diamantina.

A primeira publicação do jornal data de 1° de julho de 1846 e a última é de 15 de setembro de 1847. Sendo publicado quinzenalmente, o periódico foi interrompido quando João Antônio dos Santos viajou para Roma a fim de continuar seus estudos.

No Arquivo Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana existe uma compilação da Selecta Catholica de 1846 e números avulsos dos periódicos de 1847. Na compilação aos exemplares de 1846, encontramos uma introdução denominada Notícia sobre a Selecta Catholica, escrita por D. Antônio Ferreira Viçoso, em que o bispo explica os motivos que levaram a Diocese à publicação.

A publicação desse jornal, bem como de outros impressos divulgados e vendidos pela Tipografia, tinha o objetivo de educar e transformar os costumes da população local e do clero, levando à conversão e à promoção da fé católica, a fim de possibilitar o progresso de uma sociedade cuja base seria um ser humano renovado.

Nessa época, a crença no uso da imprensa e dos periódicos como meio educativo foi bastante difundida. Massimi (1989) acredita que no Brasil o objetivo da imprensa era o de proporcionar uma educação capaz de abranger mais pessoas, já que as instituições escolares eram freqüentadas sobretudo por uma elite mais restrita.

De fato, desde o século XVIII, os jornais vinham sendo entendidos como um novo e importante meio de comunicação, graças ao papel educacional que poderia exercer na sociedade como fonte de ilustração e instrução (Pallares-Burke, 1995). A própria Enciclopédia definia-se como uma espécie de jornal e descrevia "a arte dos jornalistas como arte não de agradar, mas de analisar e instruir”. (Pallares-Burke, 1995, p. 14).

Acreditando na força da palavra como propulsora das reformas desde o Concílio de Trento e usando o mesmo método de instrução por meio de periódicos do século XIX e início do XX, a Igreja dedicou-se a promover a difusão da boa leitura, utilizando-se da instalação de Tipografias com a finalidade de formar uma rede editorial ou instalando bibliotecas paroquiais que faziam empréstimos gratuitos de livros (Charter e Hebrard, 1995). Obedecendo a esse movimento da Igreja que valorizava a imprensa e o bom uso que se poderia fazer dela, D. Viçoso montou um parque gráfico cujo objetivo era a publicação de impressos capazes de contribuir para a reforma da sociedade.

De fato, obras e estudos sobre a vida e o episcopado de D. Antônio Ferreira Viçoso (Pimenta, 1920; Camello, 1986; Moreira, 1992) chamam a atenção para a grande quantidade de citações e referências nas quais o bispo afirmava a importância da leitura para a formação adequada do cristão. Seguramente, o religioso tinha em grande conta os poderes da palavra impressa, tanto que recorreu à Tipografia Episcopal, formando por meio dela uma rede de distribuição capaz de levar leituras sobre a fé católica para as mais diversas localidades de Minas Gerais.

A Selecta Catholica

O jornal religioso Selecta Catholica era publicado quinzenalmente pela Tipografia Episcopal e cada exemplar era formado pela compilação de textos de diversos autores, de obras da tradição cristã e de jornais franceses, portugueses e brasileiros. Os textos abordavam uma variedade de temas como educação, formação de virtudes, estudo da natureza, notícias históricas, vida de santos, teorias filosóficas, entre outros.

No texto intitulado Notícia sobre a Selecta Catholica, D. Viçoso afirma que a motivação para a publicação do periódico era a inexistência de jornais oficiais católicos no Brasil. Isto parecia imperdoável ao bispo lazarista, já que os jornais vinham sendo reconhecidos, desde o século anterior, como preciosos instrumentos de propagação das idéias e de educação da população. Além disso, a imprensa já contava com jornais publicados em diversos países como uma das estratégias utilizadas a favor dos ideais católicos, enquanto que no Brasil a Igreja se mostrava indiferente a esse movimento.

Observa-se que a luta contra idéias enciclopedistas e a preocupação com a prosperidade da sociedade eram tidas como as motivações centrais para a produção do impresso:

Sendo o Brasil e outros estados sulamericanos, aquelles em que a impiedade ou o indifferentismo religioso do século 18 entrou ultimamente, não tem tido ainda tempo de conhecer a falsidade, e insubsistencia das theorias encyclopedistas, nem a gravidade dos males por ellas produzidos, não só em relação ao fim último do homem, mas tambem para a sua felicidade na vida presente, para a ordem, e prosperidade das grandes sociedades humanas (Notícia sobre a Selecta Catholica, 1846, s.p.).

 

Aprofundando a leitura do jornal, percebe-se que as teorias enciclopedistas a que o bispo se refere são principalmente aquelas que negam a possibilidade de a inteligência humana  conhecer as realidades metafísicas. A Selecta Catholica refuta as críticas à limitação do conhecimento humano preconizadas pelo panteísmo spinoziano, pelo sensualismo e pelo materialismo.

 

A filosofia que “pretende que tudo seja matéria [...] e que Deus seja o mesmo Universo” (Selecta Catholica, 1 de julho de 1846, p. 7) aparece nas páginas do periódico como uma das grandes “enfermidades da razão” dos filósofos iluministas. Segundo tais teorias o ser humano teria a mesma estatura dos animais e estaria  confinado aos mesmos limites destes, negando a idéia do homem como nível mais perfeito da realidade, já que dotado de liberdade e de relações naturais com Deus. Para o bispo de Mariana, acreditando-se limitado como os animais o homem fica rendido a suas paixões, tornando-se instintivo:

 

Por aquelas doutrinas, o homem suppondo-se confinado como os brutos nos limites desta vida, alem de curta, tão incerta, sem motivo algum para praticar o bem, quando contraria suas paixões, todas as vezes que se acha collocado fóra das leis penaes, e da publicidade, não pode deixar de dirigir os seos actos para a satisfação dos seos appetites, sem respeito, ao mal, ou ao bem, que nisso possa causar aos seos similhantes. (Notícia sobre a Selecta Catholica, 1846, s.p.)

 

O resultado deste tipo de mentalidade seria o completo desaparecimento do respeito e benevolência para com os semelhantes e consequentemente a instauração da “desordem pública”. Sem motivo para “contrariar as paixões”, as pessoas não praticariam o bem por si mesmas, mas apenas pela força coercitiva da lei.

 

Entretanto se as leis penais não são capazes de vigiar a conduta de toda população, nem o controle da Igreja consegue ser tão ativo a fim de manter a população e mesmo o clero longe de condutas como o concubinato, como a violência principalmente contra os escravos e como o abandono de crianças que se tornavam órfãs, entre outros problemas, então seria preciso que as pessoas colocassem regras a si mesmas e a seus próximos, unindo-se por laços potentes e capazes de formar uma sociedade unitária. Para que isso acontecesse, segundo D. Viçoso, seria  necessário que o culto católico reagisse, que a fé se espalhasse, já que no Brasil os católicos pareciam estar completamente “indiferentes” à religião que deveria guiar suas vidas e a de seus familiares e amigos.

 

Assim, fica claro que os objetivos do jornal eram a tentativa da construção de uma nova sociedade que, verdadeiramente convertida à fé católica, pudesse combater o “indiferentismo religioso” e as conseqüências das teorias enciclopedistas causadoras “das desordens sociais”. Para tanto, o jornal Selecta Catholica vai divulgar diversas concepções sobre a natureza, estatura e valor do ser humano e sobre a sociedade, sua estrutura e ordem, a fim de tocar a população e o próprio clero, modificando-os e fazendo com que a vida social fosse regulada pela idéia de Deus e pelo relacionamento com a Igreja e não pelos estreitos “limites desta vida, alem de curta, tão incerta” (Notícia sobre a Selecta Catholica, 1846, s.p.).

Veremos a seguir quais eram, então, as idéias sobre sociedade e natureza humana divulgadas pelo jornal.

A proposta de sociedade do jornal Selecta Catholica: o corpo social cristão

Na Selecta Catholica ser humano e sociedade são definidos como corpos guiados pela inteligência. Análoga ao ser humano, a sociedade também é uma inteligência servida por órgãos, porém a sua inteligência é o código de leis e os seus órgãos são os homens. Tanto a sociedade quanto o ser humano são considerados pessoas, sendo a sociedade uma pessoa moral. Assim, todas as leis que regem o homem, guiam também a sociedade: “A sociedade, expressão das relações que se dirivão da natureza do homem, he submettida às mesmas leis. Considerada, como uma pessoa moral, os homens são seos órgãos, e o seo codigo de leis, a intelligencia”. (Selecta Catholica, 15 de julho de 1846, p. 42).

Embora, no periódico mineiro não apareça a referência explícita ao autor, a definição de homem e sociedade como uma inteligência servida por órgãos, no século XIX, pertence a Louis De Bonald (1754 – 1840), o que representa uma relação entre a concepção de sociedade da Selecta Catholica e as idéias do movimento filosófico tradicionalista ocorrido na França nessa época.

A tradição segundo a qual homem e sociedade funcionam em uníssono, respeitando a uma única ordem, vem do conceito de corpo social cristão. A idéia de corpo social cristão por sua vez é fruto de uma longa elaboração do tema do corpo desenvolvida na Antigüidade e na Idade Média. Segundo essas tradições, o homem é o microcosmo, mundo pequeno que tem suas leis e seu modo de funcionar. e a sociedade e a natureza são o macrocosmo, expressão mais ampla do microcosmo, funcionando através das mesmas leis.

Assim, encontramos na Selecta Catholica uma tradição de pensamento muito antiga, segundo a qual a pessoa é entendida como corpo, ao mesmo tempo individual, social e cósmico (Massimi, 2003), o que implica na impossibilidade de separar o indivíduo da sociedade e do Ser que a criou. Essa tradição de pensamento remonta principalmente às obras Timeu e República de Platão e à Política de Aristóteles. Na República encontramos a concepção de que o Estado é uma reprodução aumentada da alma humana. Do mesmo modo que a alma é triádica, ou seja, uma alma dividida em três – a apetitiva, a irascível e a racional - a cidade era constituída por três classes sociais - os artesãos, os guardas e os dirigentes - e cada um dos membros dessas classes deveria exercer bem as suas funções específicas para que houvesse justiça.

A concepção do corpo social, como a entendiam Platão e Aristóteles, vai ser posteriormente desenvolvida pela tradição cristã. Na Selecta Catholica encontramos já a idéia de corpo social cristão, acrescentando então às tópicas platônica e aristotélica toda a tradição cristã que desenvolve também a noção de corpo místico, ou seja, a idéia de que o homem, a sociedade e a Igreja são um só corpo.

A comparação entre a Igreja e o corpo humano aparece originariamente nos escritos de São Paulo, para quem a união dos membros do corpo cristão acontece por meio do batismo que os faz comungar do mesmo Espírito. Relações traçadas entre a Igreja e o corpo humano vão ser encontradas em toda a Idade Média. Em 1302, o Papa Bonifácio VII preconiza a doutrina corporativa da Igreja, afirmando que pela fé era-se obrigado a crer em uma única e santa Igreja Católica que representava um único corpo místico, cuja cabeça era Cristo e a cabeça de Cristo era Deus (Kantorowicz, 1998)

A idéia de corpo social também aparece na obra de Louis De Bonald (Rodrigues, 2005), segundo o qual existem “leis e relações (derivadas da natureza) entre Deus e o homem, que têm como objetivo o desenvolvimento e a conservação social” (Rodrigues, 2005, p.44). Também para o autor francês seria impossível a separação entre homem, sociedade e Deus.

Na Selecta Catholica, a consolidação do corpo social representado pela Igreja foi realizada por meio do sangue e do corpo de Cristo, ou seja, da instituição do sacramento da Eucaristia:

O dom do Espírito Santo aperfeiçoa a constituição da sociedade christã [...] O corpo consolidou-se; os membros ligarão-se com o sangue e corpo do Christo; o Espírito de Deos o animou; o qual segundo as promessas da Sabedoria increada, permanecerá na Igreja para sustentar os seos combates, e santificá-la até o fim dos tempos, e reger hum mundo novo, que he a Igreja. (Selecta Catholica, 1 de novembro de 1846, p. 262)

Desse modo, o sacramento da Eucaristia na qual está presente o próprio corpo de Cristo, segundo a tradição cristã, produz uma ordem de união incomum que pressupõe a presença de Cristo como graça e a atualização cotidiana dessa presença por meio dos rituais e ações da Igreja. Segundo Pécora (1994), a partir dos sacramentos o corpo coletivo reúne as vontades individuais em uma vontade pública única, realizando assim um corpo místico. Deus é o ponto comum que reúne os homens em uma única vontade que é maior que a razão e o sentimento individuais e que fornece o fundamento ontológico da sociedade.

Sendo assim, a concepção de pessoa encontrada na Selecta Catholica é essencialmente política, já que todo o significado do que o homem é está jogado nesta reunião de seres cujo fundamento é a Vontade divina. O Espírito de Deus anima o corpo social, ou seja, dá vida, dá alma ao corpo social, tornando-a uma pessoa moral do mesmo modo que animou o homem com o sopro divino, segundo a descrição do Gênesis. É impossível entender o que é o homem, a sociedade e a educação para o grupo ligado a D. Viçoso sem levar em consideração a idéia do Ser como fundamento ontológico. Daí que no conceito de pessoa deva existir a dimensão “cósmica”, pois como discute Massimi (2003), segundo o referencial aristotélico o homem não deveria se conformar em pensar apenas em coisas mortais e em obedecer cegamente às suas paixões, buscando a satisfação imediata de seus apetites, mas ocupar seu pensamento com as coisas imortais, tentando assim viver conforme a parte mais nobre de sua alma, ou seja, aquela que intui a verdade e busca os bens duráveis e eternos.

Kantorowicz (1998) afirma que São Tomás usava a expressão “corpo místico” com liberdade para designar a Igreja como fenômeno social. A característica do “corpus mysticum é que, animado pelo Espírito divino, possui uma natureza material e espiritual ao mesmo tempo. Essa singularidade, segundo a tradição cristã e católica, pertence apenas à Igreja Católica devido à história de sua constituição que tem como ponto de partida a Encarnação de Cristo, ou seja, o fato de que o divino se misturou com a vida humana.

Desse modo, vamos encontrar no período medieval a idéia de que os reis e os bispos eram investidos de divindade. Essa idéia origina-se do conceito de “persona mixta, segundo o qual nas pessoas dos reis e dos bispos existia uma “mescla de poderes e faculdades espirituais e seculares unidas em uma só pessoa”. (Kantorowicz, 1998, p. 49).

O modelo desse ideal para a Igreja era evidentemente a figura de Cristo que, segundo o XI Concílio de Toledo de 675, possui uma “gemina substantia”, ou seja, Cristo tem em si sua pessoa divina e a nossa humanidade. Desse modo, Reis e Bispos possuíam ao mesmo tempo duas condições: a de “personae mixta, eram espirituais e seculares e “personae geminate, humanas por natureza e divinas pela graça (Kantorowicz, 1998). Mais tarde, as idéias de “personae mixta e “personae geminata difundiram-se, desvinculando-se dos personagens governantes para os coletivos governados, ou seja, para “as novas monarquias nacionais e os outros agregados políticos da sociedade humana” (Kantorowicz, 1998, p. 125).

Desse modo, não eram apenas os bispos ou reis, considerados individualmente, que possuíam a singularidade de reunir em si o humano e o espiritual, mas a sociedade como um todo. Assim, para a tradição cristã, a pessoa e a sociedade têm, ao mesmo tempo, uma natureza humana e outra divina, aproximando-se da natureza de Cristo, mas nunca sendo idêntica a ela. Afirmar uma identidade entre o Ser e o homem é errado do ponto de vista da ortodoxia (Pécora, 1994). O homem é inclinado a participar da natureza divina e por isso deve tender para Deus.

A discussão que estabelece as relações entre a pessoa, o corpo social e a graça é fundamental para entendermos o conceito de homem da Selecta Catholica, pois para esse grupo de religiosos não é possível pensar o homem sem o reconhecimento de que está inscrito nos seres sua natureza partícipe de Deus e que todas as criaturas devem  tender para esse fim, sob pena de violarem a própria natureza do seu ser.

A idéia de finalidade vem da filosofia grega que mais tarde vai ser retomada por muitos filósofos, inclusive Santo Agostinho e São Tomás de Aquino. Segundo Aristóteles todo ser tem um fim último para o qual deve tender. A finalidade do homem é a Felicidade. A tradição cristã medieval trata a idéia de finalidade como tendência para Deus, para o Bem e para a Verdade que é coincidente com a Felicidade.

 Além das tópicas platônica e aristotélico-tomista, na Selecta Catholica encontram-se muitas concepções sobre ser humano e sociedade cujas raízes são agostinianas como, por exemplo, a idéia de que o homem é conhecimento e amor que o levam a Deus. Também aparecem os temas da Revelação como forma mais perfeita de conhecimento e da espera por uma sociedade totalmente cristianizada.

A dinâmica harmoniosa entre os homens, membros do corpo e sua cabeça, a Igreja, leva à sociedade de Deus. Aí há unidade entre Deus e homem, Deus e sociedade e entre os homens e o homem consigo mesmo, produzindo uma sociedade justa, composta por seres verdadeiramente virtuosos. A analogia entre a saúde da pessoa e a ordenação da sociedade vem da medicina da alma surgida de Hipócrates e de tradições filosóficas, segundo as quais a saúde, a felicidade e a tranqüilidade da vida só podem existir quando há harmonia e equilíbrio entre os órgãos do corpo, entre a razão e as paixões e entre as diversas faculdades da alma (Assis, 1998). Ao contrário disso, a sociedade sem religião não pode ser justa nem saudável, já que há separação entre homem e Deus.

Para o periódico mineiro, as leis só podem ser justas e verdadeiras quando são, de fato, a expressão das relações naturais que unem Deus e os homens. Levando em consideração a analogia entre corpo humano e sociedade, assim como quando a discórdia entre os órgãos do corpo ou entre razão e paixões produz a doença, na sociedade, quando há discórdia e desunião entre os membros que formam o corpo social cristão ou entre os membros e sua cabeça, a Igreja, aparecem a injustiça e a violência.

Para a Selecta Catholica, a sociedade instituída pela Igreja como corpo místico, por obra da Graça e da Revelação, conserva a saúde e a verdade entre os homens que se manifestam em um ideal de justiça:

Desde que há história, nella deparamos com a escravidão das mulheres, com a escravidão das raças, oppressão dos pobres, abatimento por clientes, e certa desigualdade de condições que parece estabelecer entre as castas, naturezas differentes, e creações distinctas. Jesus Christo se mostra, e a liberdade, a fraternidade, a caridade descem á terra e nella se aclimatão. Elle emancipa a mulher, dá alforria ao escravo, allivia o indigente do peso da riqueza, protege o ignorante e o livra do jugo da sciencia orgulhosa. Elle iguala as distancias que separavão os homens, levanta o proletário a dignidade d¢homem, elle funda em fim a igualdade que ate então não tinha sido comprehendida. (Selecta Catholica, 1 de dezembro de 1846, p 328)

D. Viçoso, afiançando-se nesse ideal de justiça que pressupõe a igualdade entre todos os homens, colocou-se abertamente contra a escravidão. Entre outras iniciativas escreveu um texto A escravatura ofendida e defendida (1840) que lhe rendeu uma longa inimizade com seu primeiro companheiro no Brasil, o Pe. Leandro Rabello Peixoto, favorável à escravidão. Mas para o lazarista, se Cristo institui a igualdade entre os homens, amando do mesmo modo os pescadores, os ricos, as crianças, as prostitutas e os cobradores de impostos, então a escravidão não deveria existir.

A presença do tema da escravidão na Selecta Catholica mostra que esse grupo de religiosos estava bem dentro da discussão que envolvia os maiores problemas de sua época. Havia um posicionamento claro diante desses problemas, sempre respaldado pelo ideal de sociedade como corpo cuja cabeça é Cristo e sempre alerta para que as relações naturais existentes entre Deus, a sociedade e as pessoas não fossem quebradas.

A conseqüência da quebra ou da desarmonia dessas relações levam o ser humano a perder a si mesmo e a possibilidade de uma sociedade justa:

a maior parte dos homens aspirando por hum instincto irresistível á felicidade despresão loucamente o principal elemento della. Huns consomem os dias e as noites em ímprobos estudos, para alcançarem a reputação de sábios, elevão-se até os Ceos para interrogarem o curso dos astros, e esquecem-se daquelle Deos, de quem os Ceos recontao a gloria, e publicão a grandeza. (Selecta Catholica, 1 de maio de 1847, p. 268)

Este fragmento descreve justamente o tipo humano considerado vil para o progresso da sociedade e que o grupo liderado por D. Viçoso desejava combater, transformar ou educar, ou seja, aqueles que consomem os dias e as noites em aperfeiçoar sua inteligência e, reconhecendo-se como sábios, estudam a natureza sem se dar conta da presença de Deus no mundo. É muito claro o objetivo educativo do periódico nesse sentido, pois para a Selecta Catholica, muitos eram os homens que burilavam sua inteligência, mas se esqueciam de sua natural e frágil condição de seres corruptíveis, criados por Deus e salvos por sua Misericórdia.

Desse modo, segundo os editores do jornal, havia um tom de enfermidade na sociedade de sua época, proveniente justamente de pessoas que burilavam sua inteligência com teorias errôneas sobre a natureza humana. A enfermidade social, como afirma D. Viçoso nas Notícias sobre a Selecta Catholica, expressava-se principalmente pelo indiferentismo religioso e pelas conseqüências de algumas das idéias das teorias enciclopedistas. Mas, segundo o periódico de Mariana, qual era exatamente a enfermidade social de sua época?

A inteligência à deriva: a crítica às teorias enciclopedistas e a enfermidade da sociedade

Para os editores do periódico é a confiança excessiva nos sentidos, a desordem das paixões, a crença desmedida na razão e, conseqüentemente, a falsa imagem de si mesmo que levam ao enfermo tom filosófico da época, à filosofia que nega a existência de Deus e proclama a religião como invenção da política.

Ao tratar da idéia de que a sociedade estava enferma devido à crença em teorias errôneas, a Selecta Catholica utiliza-se principalmente das idéias de Felicite de Lamennais, outro autor francês que, ao lado de Louis De Bonald e Joseph de Maistre, constituem o movimento tradicionalista e anti-revolucionário francês. Segundo esses autores os princípios propagados pelos ideais da Revolução francesa eram fonte de erro na sociedade e corrupção da alma humana.

 Para os redatores do periódico mineiro eram falsas as teorias que defendiam a idéia de que o conhecimento das coisas deveria se dar apenas pela razão e pelo sentimento, sem o auxílio da fé e da revelação. Assim, o jornal criticava tanto as teorias que exaltavam a autonomia da razão quanto aquelas que afirmavam que era possível chegar à verdade e à vida feliz baseando-se apenas nas indicações do sentimento. Para todos os homens da Igreja que se fundamentavam na tradição tomista, não havia oposição entre fé e razão. Pelo contrário, há complementaridade entre fé e razão, pois crer significa ter um comportamento racional.

O conceito de razão dos iluministas é criticado pelo periódico de Mariana e tido como a origem do mal contemporâneo, cuja principal característica é o não conhecimento de si mesmo. O homem, não reconhecendo os seus limites e tampouco sua dignidade, cria idéias falsas sobre si mesmo, leis falsas como código da sociedade e religiões fabulosas:

Confessemos a fraqueza da razão, e appelemos para outro tribunal que seja recto e seguro. [ ... ] supponde a razão individual como principio de toda certeza, vereis nascerem os mesmos inconvenientes. O homem, senhor de suas crenças, será igualmente das suas acções, poderá negar tudo, dizendo: “Eu não comprehendo” e depois se permittirá tudo, dizendo: “Eu não creio”. (Selecta Catholica, 1 de outubro de 1846, p. 198)

Deste modo, para o jornal religioso um dos principais problemas dos racionalistas era acreditar que a verdade e a certeza sobre a realidade poderiam ser alcançadas apenas por algo tão instável e cheio de variações quanto a razão. A racionalidade de cada homem é importante, mas a justiça da sociedade e a verdade sobre a religião devem  necessariamente  fundamentar-se em uma Razão e em uma Vontade superiores que unem todos os homens como um só, como já foi discutido a respeito da analogia entre corpo humano e corpo social cristão.

Se o código de leis é a cabeça do corpo social e os homens seus membros, como pode uma pessoa, uma parte do corpo, querer ditar as leis? Seria como as pernas dizerem a um homem que caminho ele deve tomar para chegar a seu destino.

A tradição filosófica platônica, da qual nasce o conceito de sociedade como corpo, coloca a cabeça como parte principal e guia do corpo, como fica claro neste trecho de Louis De Bonald: “La définition de l’ homme, une intelligence servie par des organes, nomme d’ abord l’ intelligence, et designe l’ homme par la parti ela plus noble de son être: elle fait de l’ intelligence lê maitre”. (De Bonald, 1859, p. 149)

Na cabeça estava a alma racional imortal que deveria governar as duas outras almas mortais, onde residiam, entre outros aspectos, as paixões. No Timeu Platão descreve o homem como uma árvore invertida, planta celeste cuja alma superior é representada pelas raízes que se lançam ao céu e para as realidades infinitas e imortais.

Nessa perspectiva, a “razão individual” que funciona em uníssono com a “razão social” deve estar voltada para Deus. E por isso D. Viçoso acredita que os livros e impressos de religião são importantes porque são capazes de manter o pensamento ocupado com a idéia de Deus.

A razão dos filósofos, entretanto, desejando a autonomia de Deus, da Igreja e do corpo místico, é uma razão enraizada no mundo, uma cabeça que não se volta para o mundo celeste. Apostando numa razão individual que não erra e é capaz de criar leis, religião, educação e uma noção de sociedade, os filósofos propõem uma sociedade que é como um corpo governado pelos membros, em que a cabeça é a que obedece. É um corpo em desequilíbrio, cuja dinâmica natural encontra-se em desarmonia,  o que levaria a sociedade para a perdição.

Bossuet, um dos autores citado diversas vezes na Selecta Catholica, na oração fúnebre proferida em 1685 a Ana de Gonzaga de Clèves, já alertava em sua época para o cuidado com a intemperança do espírito que poderia se expressar também em uma razão doente, incapaz de reconhecer outra autoridade senão a si mesma, cujas características eram o orgulho e o desejo dos homens de fazerem-se Deus de si mesmos. (Daniel-Rops, 2001).

Assim, de acordo com o jornal religioso, para a “razão” destemperada do “filosofismo”, as verdades reveladas, os mistérios da liturgia e dos sacramentos e a mística do corpo social cristão não se relacionavam com a razão e inteligência humanas e nem deviam ser levadas em consideração como verdades fundamentadas em alguma autoridade legítima. O problema dessas teorias, segundo os editores mineiros, não era apenas o fato de os filósofos acreditarem sem medidas na capacidade racional do homem, mas reconhecendo os limites da razão e incapacidade dela de conhecer absolutamente tudo, proclamar que o que estava fora dos parâmetros da experiência e dos sentidos não poderia se constituir em legítimo campo de questões caras e fundamentais ao homem.

De fato, uma das temáticas da Ilustração, como herança da tendência empirista, é a razoabilidade de a razão ater-se ao campo da experiência e ao mundo do homem (Abbagnano e Visalberghi, 1995). Desse modo, no século XVIII há uma tendência para que a essência metafísica da realidade e do espírito humano e a transcendência religiosa deixem de ser consideradas como problemas que mereçam algum tipo de credibilidade. Tais questões passam a ser tratadas como meras superstições, produtos da imaginação, fantasia ou ilusão do homem (Abbagnano e Visalberghi, 1995). Ao mesmo tempo, no âmbito da experiência humana e do mundo material é reconhecida nessa época uma quase ilimitada capacidade da razão para chegar ao conhecimento de tudo.

Todavia, para o periódico mineiro, o ápice do erro humano é conceber que a razão deve considerar apenas os objetos que compõem o mundo sensível. De acordo com a Selecta Catholica, a desintegração da sociedade e a violência entre os semelhantes se dão quando o homem, arrastado por suas paixões, acredita não haver nada além daquilo que os seus sentidos podem alcançar e assim deixa de entender a finalidade para a qual deve tender e nega a existência de Deus e de seus mistérios: “E que dizem entretanto? Appellão para o testimunho dos sentidos: querem que a vida pare onde parão os olhos, semelhantes aos meninos que vendo o sol descer abaixo do horisonte, o julgão exctinto!”. (Selecta Catholica, 15 de agosto de 1846, p. 98).

Os filósofos, acreditando apenas naquilo que é evidente aos sentidos, são como os meninos, ignorantes do verdadeiro funcionamento do universo, que afirmam a inexistência do sol quando a noite cai. Na concepção da Selecta, o homem que acredita mais nos próprios sentidos e nos próprios pensamentos do que naquilo que a razão social vem apregoando há tanto tempo por meio da tradição sofre uma enfermidade do entendimento, pois sua inteligência já não é mais capaz de se relacionar com a razão comum do corpo social.  A razão social é mais alta que as razões de cada membro do corpo social e une todos os homens em uma verdade comum, fazendo com que eles se voltem também para um bem comum.

Para o jornal, a busca de justiça e dos bens comuns de uma sociedade passava pela necessidade humana de relacionamento com algo maior e mais completo do que um homem considerado isoladamente. Como exemplo de uma vontade sincera de conhecer a verdade e estabelecer a justiça, a Selecta Catholica valoriza a busca filosófica dos gregos. Para o jornal mineiro, esse desejo sincero do conhecimento da verdade não existia mais em sua época, pois, diferente dos gregos que buscavam um bem que fosse comum e justo a todos os homens, os modernos pareciam mais preocupados em burilar a sua inteligência, tornando-a poderosa. É por causa da busca da verdade, do justo e do bem perfeito que Platão teria dito na República que “em toda república bem governada, o primeiro cuidado deve ser estabelecer nella a verdadeira Religião” (Selecta Catholica, 1 de setembro de 1846, p. 136).

Platão, como um dos depositários do desejo justo de conhecimento da Verdade, ao afirmar que o primeiro elemento de uma República bem governada é a verdadeira religião,  reconhecia a fundamental importância da relação entre a razão social e a razão eterna para a saúde de cada membro do corpo social, bem como para a cidade inteira. De fato, na República Platão afirma que uma cidade só poderá ser feliz se for “traçada por artistas que copiem o modelo divino” (Platão, 1988, p. 264).

A enfermidade acontece quando a razão individual, devido a uma corrupção qualquer, destaca-se da razão do corpo social e decide criar suas próprias leis, substituindo as leis divinas. Essa atitude era a causa da enfermidade dos novos tempos que pervertia a ordem política e moral:

O universo material mesmo não existe, se não por que há verdade nas leis que o regem; e se fosse dado ao homem de as substituir pelos erros de sua razão, ou o que vem a ser a mesma cousa, de aniquilar ou de inverter as leis impostas ao mundo phisico pela razão divina, verdade suprema, o mundo transtornado cairia logo no chão. (Selecta Catholica, 15 de julho de 1846, p. 42)

A razão doente, acreditando em seu poder desmedido, começa a desejar que as leis e a autoridade a serem seguidas não tenham outra medida além dela própria.

Para as teorias combatidas pela Selecta Catholica, o princípio de união entre os homens se daria por meio de aspectos sensíveis, como por exemplo, a transmissão de idéias ligadas às sensações, que surgem nas relações entre os homens, não possuindo nenhuma dependência de Deus ou da Igreja. A moral, por sua vez, não teria por que estar fundamentada num desejo de bem infinito, mas na idéia de que os homens têm deveres para com seus semelhantes porque devem conviver de maneira a não se destruírem mutuamente, respeitando as leis da cidade e da convivência pacífica. Há, portanto, uma valorização do conceito de cidadão em detrimento do conceito de pessoa. Nesse sentido, a definição de sociedade dos enciclopedistas é totalmente diferente da definição de sociedade como corpo social cristão do periódico de Mariana, o que conseqüentemente implica também em um diferente conceito de saúde.

Na perspectiva dos editores do jornal religioso, os filósofos que afirmam o surgimento da moral e do código de leis advindas apenas das relações entre os homens considerados em si mesmos, dão abertura para que cada lugar tenha a sua moral, seu código de leis e sua religiosidade. A moral, as leis e a religiosidade nesse caso, dependeriam das inteligências individuais que formam esta ou aquela sociedade.

Todavia para o universo cristão contido nas páginas do periódico, os homens são todos iguais e por isso, as leis devem ser iguais para todos os homens e em todos os lugares. Sendo os homens todos iguais, as verdades reveladas valem para todos e a composição do corpo social cristão deve se estender para todo o mundo. Assim, o código que rege as relações entre os homens deve ser uma expressão da unidade do corpo social cristão e suas leis devem seguir os ensinamentos e exemplos do próprio Cristo. A saúde e a duração do homem e da sociedade são resultantes da ordem moral que, por sua vez, relaciona-se às condutas virtuosas ou viciosas de seus membros, sendo que as leis que constituem a moralidade de uma sociedade são as que mais devem ser cuidadas e observadas. Daí a importância que D. Viçoso atribuía ao fato de a educação dos jovens não poder se restringir à formação intelectual, mas dever atingir também as virtudes. As boas leituras, nesse caso, eram importantes aliadas, pois instruíam bem o intelecto e fortaleciam as virtudes.

Nessa perspectiva, a educação era vista como importante instrumento de formação de uma sociedade mais justa cujos membros estivessem voltados para os ensinamentos de Cristo. A idéia, como vimos no início do texto, era educar as pessoas por meio de leituras adequadas e da ação pastoral, de forma a construir uma sociedade cuja base fosse um ser humano renovado.

Conclusão

Durante muito tempo, na tradição antiga e medieval, a parte sensitiva da alma era apenas uma das dimensões da totalidade do ser humano. Assim, limitar a certeza do conhecimento àquilo que os sentidos podem testemunhar era operar uma grande redução da capacidade da natureza humana.

Para as tradições filosóficas cristãs e da Antigüidade, o homem que se guia apenas pelos sentidos é como o animal. Para a teoria aristotélico-tomista, os animais têm alma sensitiva e vegetativa e, por não possuírem alma racional, guiam-se apenas pelos sentidos. Determinados pelos sentidos, os animais não têm escolha ou liberdade e tendem natural e passivamente para Deus. Assim, filósofos, que preconizam que apenas o que os sentidos apreendem do mundo faz parte do campo da racionalidade, diminuem a estatura ontológica do homem, tornando-o demasiadamente terrestre e deixando a sociedade sem o seu fundamento: cabeça e pensamentos no ar, voltados para a eternidade e ramos, os membros, fincados na terra. O resultado dessa dinâmica para D. Viçoso, como ele deixa claro na Notícia sobre a Selecta Catholica de 1846, é a geração do caos e da violência da sociedade. Se a alma humana é dotada de aspectos que a capacitam para o conhecimento e percepção de si, para a percepção do mundo externo e para o reconhecimento do mundo metafísico, as filosofias que ressaltam somente um ou outro aspecto operam uma redução da capacidade de conhecimento própria da natureza humana.

Além da atitude filosófica que reduz a capacidade de conhecimento do homem à experiência sensível, também as teorias que colocam os sentimentos como o fator principal a que os homens devem ter atenção para dirigir suas escolhas, ações e religiosidade são criticadas como um dos absurdos da época.  Do mesmo modo que a razão autônoma é frágil, o sentimento é insuficiente para criar uma sociedade justa que se encaminha para o progresso.

Segundo D. Viçoso, os graves males de uma sociedade guiada por idéias materialistas, racionalistas e panteístas são que os homens não sabem mais sua utilidade, perdendo a noção do seu fim último. Crendo-se igual aos animais que terminam com a morte, os seres humanos não vêem sentido na vida e não têm motivos para praticar o bem ou viver adequadamente em sociedade, já que não são mais capazes de entender a utilidade de praticar o bem quando isso contraria os seus instintos mais imediatos. Para os redatores da Selecta, semelhante atitude equivale à perda da felicidade na vida presente e provoca um desastre para a prosperidade da sociedade, pois culmina no desaparecimento da benevolência entre os homens e dos fundamentos da moral pública. Assim, a ordem pública perde seu elemento principal que é estar fundamentada no infinito.

Vendo diante de si a perspectiva de uma sociedade desordenada, o bispo lazarista acreditava na urgência de promover a fé de modo que a sociedade se tornasse verdadeiramente cristã. Portanto, era imperioso que as idéias católicas começassem a se espalhar.

Antepondo-se às teorias materialistas e racionalistas, a Selecta Catholica afirma a idéia de um corpo social harmonioso e a importância dada à não-redução das capacidades que são próprias da natureza humana em sua aventura de conhecimento e de relacionamento com o mundo. Esses conceitos nascem da herança cristã, uma tradição de enormes desdobramentos em toda a cultura ocidental, o que se constitui em um ponto central para compreendermos como D. Viçoso, Pe. João Antônio dos Santos e aqueles que os rodeavam concebiam a sociedade e suas relações com o monarca ou a Igreja e o próprio homem, a fisiologia do seu corpo, suas virtudes e vícios e as relações morais entre seres humanos.

A possibilidade de que a concepção de corpo social dos primeiros tempos do pensamento cristão, consolidada no medievo, estivesse presente no século XIX é corroborada por Kantorowicz (1998) que afirma que essa interpretação da sociedade cristã permaneceu válida até o início dos tempos modernos.

Referências bibliográficas

Abbagnano, N., Visalberghi, A. (1995). Historia de la pedagogia. México; Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica. (Original publicado em 1964).

Aristóteles (1992). Ética a Nicômacos. 2 ed. (M. Gama Kury, Trad.). Brasília: Ed. Universidade de Brasília. (Original de séc. IV a.C.).

Assis, R. M. (1998). Ordem e fineza do amor: uma contribuição à história das idéias psicológicas na cultura luso-brasileira do período colonial. Dissertação de Mestrado, Faculdade de Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto, SP.

Bonald, L. D. (1859). Oeuvres Philosophiques: Recherches Philosophiques sur lês premiers objets des connaissances morales. Retirado em 22/02/2006 de http://gallica.bnf.fr/ark:/12148/bpt6k23498r.

Camello, M. J. O. (1986). Dom Antônio Ferreira Viçoso e a reforma do clero em Minas Gerais no século XIX. Tese de Doutorado, Departamento de História da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP. 2 vol.s.

Chartier, A. M., Hebrard, J. (1995). Discursos sobre a leitura (1880 – 1980) (M. M. Galhardo, Trad.) São Paulo: Ática. (Original publicado em 1988).

Daniel–Rops, H. (2001). A Igreja dos tempos clássicos: a era dos grandes abalos (H. Ruas, Trad.). São Paulo: Quadrante. (Original publicado em 1984).

Kantorowicz, E. H. (1998). Os dois corpos do rei: um estudo sobre teologia política medieval (C. Knipel Moreira, Trad.). São Paulo: Companhia das Letras.

Massimi, M. (1989). A Psicologia em instituições de ensino brasileiras do século XIX. Tese de doutorado, Instituo de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.

Massimi, M. (2003, agosto). Conceitos de saúde mental na história da psicologia. Em XXI Encontro Anual Helena Antipoff e II Encontro Interinstitucional de Pesquisadores em História da Psicologia, Belo Horizonte, Universidade Federal de Minas Gerais.

Moreira, G. A. (1992). Dom Viçoso e suas reformas: estudo sobre a reforma do clero em Minas Gerais no século XIX, acenos sobre seus efeitos no Brasil e alguns aspectos sociais do governo de Dom Viçoso. Dissertação de Mestrado, Pontifícia Universitas Gregoriana, Roma.

Pallares-Burke, M. L. (1995). The Spectator: o teatro das luzes: diálogo e imprensa no século XVIII. São Paulo: Hucitec.

Pallares-Burke, M. L. (1996). Nísia Floresta, o Carapuceiro e outros ensaios de tradução cultural. São Paulo: Hucitec.

Pécora, A. (1994). O teatro do sacramento. São Paulo: Edusp; Campinas: Editora da Unicamp.

Pimenta, S. G. (1920). Vida de D. Antônio Ferreira Viçoso: Bispo de Mariana, Conde da Conceição pelo Padre Silvério Gomes Pimenta Mariana, Typographia Archiepiscopal.

Platão (1988). Diálogos: a república. (C. A. Nunes, Trad.). Belém: Universidade Federal do Pará. (Original de séc. IV a.C.).

Rodrigues, C. M. (2005). A Ordem: uma revista de intelectuais católicos (1934–1945). Belo Horizonte: Autêntica; Fapesp.

Notas

(1) Antônio Ferreira Viçoso nasceu em Portugal no ano de 1787. Em 1811 entrou para a Congregação da Missão, fundada por São Vicente de Paulo. Em 1819, ao formar-se padre, foi enviado para o Brasil em missão catequética. Em 1844, D. Viçoso é sagrado bispo de Mariana, onde permanece até 1875, data de sua morte.

Além de sua participação na fundação do Colégio do Caraça, o bispo envolveu-se ativamente em diversas experiências educacionais importantes em Minas Gerais como a abertura do Colégio da Providência para instrução feminina, criação de orfanatos para meninos e meninas, reforma do Seminário de Mariana, além de intensa correspondência com a Superiora do Convento das Macaúbas, uma das primeiras instituições voltadas para a educação feminina em Minas Gerais. Além destas, Antônio Viçoso, antes de ser sagrado bispo, dirigiu o Seminário de Jacuecanga, no Rio de Janeiro, fundou o Colégio de Campo Belo da Farinha Podre (Campina Verde) no Triângulo Mineiro e foi Superior Geral da Congregação da Missão no Brasil. [volta]

(2) O Pe. João Antônio dos Santos era natural de Diamantina, filho de uma das famílias tradicionais que se destacavam no meio político da cidade. De 1835 a 1842 estudou no Colégio do Caraça. Transferiu-se para Congonhas do Campo em 1842, época em que o Pe. Antônio Viçoso dirigia o Seminário da cidade e lá estudou filosofia e teologia. Assim que foi ordenado padre por D. Antônio Viçoso, foi indicado para ser reitor do Seminário de Mariana. Em 1846, época em que era o principal responsável pela edição da Selecta Catholica, João Antônio foi membro do Cabido de Mariana. Em 1848, viajou para Roma para completar seus estudos. Em seu retorno, instalou-se em Diamantina onde organizou, junto com seu irmão, o Ateneu São Vicente de Paulo, um colégio de instrução secundária. Em 1864 tornou-se bispo de Diamantina, fundando na cidade o Seminário Episcopal de Diamantina e o Colégio Nossa Senhora das Dores para instrução feminina, a cargo das Irmãs de Caridade. Durante o seu bispado houve a publicação do jornal O Jequitinhonha, com a sua colaboração. [volta]

Nota sobre a autora

Raquel Martins de Assis, mestre em Psicologia pela USP e doutora em Educação pela UFMG, é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais e trabalha com pesquisas em História da Psicologia e História da Psicologia da Educação no Brasil. Contato: raamart@yahoo.com.br

 

Data de recebimento: 03/05/2006
Data de aceite: 19/10/2006

 
Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/assis02.htm

 

 

 

 Português  English Envie seu comentário sobre este artigo e sobre a revista Memorandum. Clique aqui

Indique este artigo