Cardoso, R.M. (2006). A infância e a adolescência abandonadas: laudos em processos do judiciário mineiro (1968-1984). Memorandum, 11, 71-84. Retirado em / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/cardoso01.htm

A infância e a adolescência abandonadas: laudos em processos do judiciário mineiro (1968-1984)
 

Abandoned childhood and adolescence: report of experts in judiciary of Minas Gerais (1968-1984)

Roselane Martins Cardoso
Universidade
Fundação Mineira de Educação e Cultura - FUMEC
Brasil
 

Resumo
O presente artigo apresenta uma análise de relatórios, laudos e pareceres profissionais constantes de processos judiciais envolvendo crianças e adolescentes em situação de abandono, nos anos de 1968 a 1984, em Belo Horizonte, capital do estado de Minas Gerais, Brasil. Nessa análise procurou-se traçar tanto um panorama da situação de abandono de crianças e adolescentes, conforme aparecem nos documentos, quanto identificar idéias psicológicas relacionadas ao tratamento de crianças e adolescentes no âmbito da justiça em Belo Horizonte. Ao final, levantam-se alguns temas para o estudo da participação da psicologia no trato das questões relativas a crianças e adolescentes em Minas Gerais.

Palavras-chave: História da psicologia jurídica; criança e adolescente; menoridade; história da infância; abandono.

Abstract
This paper presents an analysis of reports of experts in lawsuits about abandoned children and adolescents from 1968 to 1984. This analysis aims at describing a view of the abandoned children and recognizing psychological ideas about the treatment of this situation in the judiciary instances of Belo Horizonte, Minas Gerais. The question regarding the participation of psychologists in the judiciary instances is emphasized.

 Keywords: History of forensic psychology; child and adolescent; childhood history; abandonment; under age.

 

Introdução

Este trabalho apresenta a análise de relatórios e laudos sobre o atendimento de crianças e adolescentes em situação de abandono. Os laudos e relatórios foram identificados a partir de uma pesquisa mais ampla (1) que efetuou o levantamento de fontes para a história da interface entre a psicologia e o direito em Belo Horizonte. Essa pesquisa procurou encontrar contribuições da psicologia ou de outras áreas que continham idéias psicológicas, para o tratamento e a condução de situações que chegavam a Justiça entre os anos de 1930 e 1990. Levantamos, assim, laudos, relatórios e pareceres de profissionais diversos, referentes a ações variadas, como interdição, guarda de menores, separação de casais, adoção, abandono e ocorrências relativas a menores em situação de risco.

A pesquisa foi realizada entre os meses de março de 2004 a fevereiro de 2005, em Belo Horizonte, com a coleta de dados efetuada no Arquivo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJMG) e na Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Minas Gerais.

No presente artigo, analisaremos apenas os relatórios e laudos referentes ao tratamento dispensado a crianças e adolescentes em situações de exposição, abandono e adoção, no período entre 1968 e 1984, procurando relacionar o conteúdo destes laudos à literatura acerca da criança e adolescência abandonadas, apresentada adiante.

Nosso objetivo aqui será identificar a presença de idéias oriundas da psicologia em tais laudos e traçar um panorama da situação de abandono tal como está representada, através destes documentos, nos processos judiciais que chegavam ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais. Para isso, será necessário entender como tais processos judiciais se inserem no contexto mais amplo da história do atendimento a crianças e adolescentes em situação irregular. Assim, em um primeiro momento, procuramos traçar um panorama das representações sobre a infância no Ocidente, a partir da modernidade, passando pelas políticas públicas de proteção e tratamento da infância abandonada no Brasil. A partir daí, então, nossos dados serão relacionados a este contexto.

A história da infância e a representação de criança no mundo ocidental

 

A história social da infância é a história das representações sobre a criança, elaborada e modificada em contextos sócio-culturais e históricos diversos. É certo que a idéia de infância como uma fase do desenvolvimento humano, com características distintas, somente surgiu com a era moderna. Esta história é contada por Ariés (1981) que mostra como, a partir das mudanças ocorridas na família, a noção de infância passou a ocupar um lugar especial na mente das pessoas. A criança passa a, progressivamente, se transformar em cidadã, com direitos e necessidades próprios.

Javeau (2005) propõe a existência de três campos semânticos para o tema, reservando o conceito de criança para caracterizar o aspecto psicológico, o conceito de infância para designar o aspecto demográfico e as crianças para o sentido antropológico. Aqui, no entanto, utilizaremos os termos criança e infância como complementares, designando tanto uma etapa do desenvolvimento humano quanto os seres específicos que a representa.

Segundo Ariés, até por volta do século XII parecia não haver, no mundo ocidental, lugar para a infância. Esta era algo sem importância e não valia a pena nem se lamentar a morte de uma criança, acontecimento corriqueiro no período. Não se apegava a algo tão fugidio, pois poucas crianças sobreviviam e eram necessários muitos nascimentos para que apenas algumas “vingassem”. A infância era, assim, ignorada como etapa de vida. Até crescer, era apenas uma miniatura de adulto. A idéia de puberdade ou adolescente não se impunha claramente e a infância possuía uma longa duração, sendo sinônimo de dependência. Assim, só se saia da infância ao cessar a dependência. A criança não era um ser particularizado nem fazia parte de uma categoria geral e abstrata.

No período medieval as crianças eram, em sua maioria, aprendizes de tarefas domésticas e tinham por função servir aos adultos. A pratica corrente era de se entregar as crianças para outras famílias a fim de serem educadas em algum oficio. Os mestres transmitiam aos filhos de outras famílias o conhecimento do trabalho e seus valores:

Nessas condições, a criança desde muito cedo escapava a sua própria família, mesmo que voltasse a ela mais tarde, depois de adulta, o que nem sempre acontecia. A família não podia, portanto, nessa época, alimentar um sentimento existencial profundo entre pais e filhos (Ariés, 1981, p. 231).

Por volta do século XVIII as primeiras manifestações de um sentimento novo sobre a infância começam a se delinear. A partir dos séculos XVII e XVIII, a consciência comum passou a descobrir que a alma da criança também era mortal. (Ariés, 1981). Foi no século XVII que a burguesia passou a usar a palavra infância no sentido moderno. Durante esse século e o seguinte o vocabulário francês começou a separar as várias fases da infância e dar-lhes um nome.

Foi também nesse período que a criança passou a ganhar um espaço privilegiado no seio da família, que se reuniu em torno dela. Aqui, a criança nobre ou burguesa não se vestia mais como um adulto. Possuía agora um traje reservado à sua idade, que a distinguia dos mais velhos. Essa prática refletia a preocupação com a especificidade das crianças, distinguindo-as do mundo adulto.

Segundo Ariés, o sentimento de infância não deve ser confundido com afeição à criança, mas é determinado pela consciência de uma particularidade da infância, que distingue a criança do adulto. Essa consciência não existia no período medieval e foi se formando aos poucos ao longo dos séculos seguintes. Inicialmente aparece a “paparicação”, a brincadeira com a criança pequena, vista como um divertimento para o adulto, presente até os nossos dias. Esse sentimento deu lugar ao apego, expresso mais tarde pelo interesse psicológico e pela preocupação moral com as crianças. Assim, para Áries, existem dois sentimentos, a paparicação e a preocupação com a formação da criança. O primeiro teve sua origem no meio familiar e o segundo, ao contrario, veio de uma fonte externa à família, da Igreja ou da Justiça, e dos moralistas do século XVII, preocupados com os costumes e com a disciplina.

Esses moralistas haviam se tornado sensíveis ao fenômeno outrora negligenciado da infância, mas recusavam-se a considerar as crianças como brinquedos encantadores, pois viam nelas frágeis criaturas de Deus que era preciso ao mesmo tempo preservar e disciplinar. Esse sentimento, por sua vez, passou para a vida familiar. (Ariés, 1981, p. 163-164).

Assim, a família transformou-se na medida mesmo em que modificava suas relações com a criança. O clima sentimental em relação à criança se tornou semelhante ao atual. Os pais passaram a desejar não se afastar dos filhos pequenos e mantê-los o mais perto possível. Progressivamente, o cuidado com os filhos começou a ocupar um lugar privilegiado na mente das pessoas. Se antes a morte de uma criança era vista com naturalidade, agora ninguém se conformava com a perda de um filho pequeno, que jamais poderia ser substituído por outro. Daí a preocupação cada vez mais freqüente com a saúde, a higiene, que preservariam e salvariam a vida de varias crianças.

Donzelot (1980) mostra como esse novo sentimento de infância determinou um interesse pelo bem estar e o futuro dos infantes. Uma preocupação com crianças abandonadas e com a alta mortalidade infantil aparece, então. Ganha força a idéia de que milhares de crianças poderiam ser salvas se lhes fosse dedicada uma atenção especial. Lamentava-se que 90% das crianças abandonadas morressem antes de poderem ser úteis ao Estado. A causa da alta mortalidade dessas crianças é apontada por Donzelot como a dificuldade em se encontrar nutrizes adequadas. As crianças pobres eram enviadas para locais tão distantes de sua casa de origem, que a entrega dessas crianças as nutrizes se constituía, na prática, em um abandono disfarçado. Com base nisso é que médicos e administradores das cidades passaram, a partir do século XVIII a propor a conservação das crianças em sua própria família e sua criação pela mãe. (Donzelot, 1980).

No Brasil, da mesma forma, essa preocupação com a infância se faz notar. A nova visão é introduzida por influência dos colonizadores portugueses, principalmente através dos padres jesuítas.

Em Portugal, no inicio do século XVII, uma preocupação com a infância abandonada se faz sentir com o aprimoramento de leis que buscavam recolher as crianças nas ruas e dar melhores condições de vida aos enjeitados. (Del Priori, 1991).

No Brasil, os padres jesuítas foram os responsáveis pelos primeiros modelos de representação da infância. A idéia da infância estava, para os jesuítas, ligada às imagens do menino Jesus e da criança mística. O mito da criança santa e a devoção ao menino Jesus, que se expandiu no século XVII pelo Brasil, ajudou a formar uma imagem docilizada, inocente e afável da criança. Apesar desta visão, para os jesuítas o tratamento dispensado às crianças (notadamente aos indiozinhos que pretendiam catequizar) deveria ser baseado na disciplina do castigo e do trabalho. Caso contrario, as crianças não seriam levadas ao caminho da fé e da moral, pretendido pelos catequistas. Assim é que a infância é percebida pelos padres como um momento oportuno para a renúncia à cultura autóctone, uma vez que a cultura indígena ainda não tinha sido completamente incorporada pelos pequenos indiozinhos. (Del Priori, 1991).

O trabalho dos jesuítas, então, se orientava por uma visão da infância como um momento da vida na qual é possível a influência externa, pela idéia da criança como um ser em desenvolvimento, passível de transformação.

No período colonial brasileiro, a organização familiar dominante era a família patriarcal, conforme descrita por Freyre (1961). Ela é encontrada nas grandes unidades agrárias de produção do Brasil Colônia, centrada na figura do chefe de família, baseada na autoridade do pai e na submissão da mulher e dos filhos. Possui um caráter eminentemente econômico ao agregar parentes, filhos ilegítimos, escravos e empregados.

Nesta família patriarcal, os filhos eram vistos como mais um dos membros, sem destaque especial. A criança desempenhava um papel secundário, não sendo vista em sua especificidade, apenas na sua relação com o pai (relação de hierarquia). As relações afetivas não possuíam a dimensão que adquiririam mais tarde e o cuidado direto com os filhos era encargo das amas-de-leite. A criança era tratada como um aprendiz do adulto, e seu ensinamento consistia em levá-la a ocupar o lugar do pai (ou da mãe, no caso das meninas). A criança como individuo particular, subjetivo, não existia nesse contexto.

Freyre (1961) afirma que, nas sociedades patriarcais, a infância é curta, uma vez que o que é valorizado é o homem adulto. Por isso a criança é mantida isolada do mundo dos grandes e vista como um ser inferior. Mesmo assim o autor faz referencia a diferentes fases do desenvolvimento desta criança. O menino, no dizer de Freyre,

até certa idade era idealizado em extremo. Identificado com os próprios anjos do céu. Criado como anjo: andando nu em casa como um Meninozinho Deus. (...) Mas essa adoração do menino era antes dele chegar a idade teleológica da razão. Dos seis ou sete anos aos dez, ele passava a menino-diabo. Criatura estranha que não comia na mesa nem participava de modo nenhum das conversas da gente grande (...). E porque se supunha essa criatura estranha, cheio do instinto de todos os pecados, com a tendência para a preguiça e a malicia, seu corpo era o mais castigado dentro da casa. (Freyre, 1961, p. 68).

Daí a necessidade de que essa criança guardasse, dos mais velhos, uma distância característica dos escravos, dos subservientes. Essa distância era, via de regra, garantida por castigos e humilhações.

Com o advento da industrialização vem a decadência do patriarcalismo rural. A família patriarcal vai se tornando cada vez mais nuclearizada e destituída de suas funções econômicas. Assim, a forma dominante de família no Brasil passa a ser a família conjugal nuclear, composta pelo casal e filhos, onde as relações afetivas ganham importância. O poder do pai se restringe e a criança passa a ser confinada ao espaço doméstico. È o momento, também, que a escolarização passa a ganhar maior relevo na formação da criança.

Nesse momento é que começam a aparecer mais firmemente, seguindo uma tendência européia, os primeiros discursos de especialistas sobre a educação e o cuidado com as crianças, dando corpo ao assim chamado Movimento Higiênico. A sociedade procurará regular, cada vez mais, o espaço familiar, coerente com uma idéia de família voltada para as relações afetivas, cujo compromisso maior é com os filhos (Costa, 1989).

A lei e as políticas publicas para a menoridade no Brasil

Seguindo a tendência de se procurar conservar e proteger a infância é que se tem notícia de mecanismos estatais de recolhimento de crianças expostas no Brasil já no século XVIII. Foi em 1775 que se regulamentou de forma mais definida a questão. O Alvará que trata do assunto é considerado a lei mais importante desse século sobre o assunto. Foi a partir dele que se criaram as Rodas dos Expostos nas Misericórdias em várias cidades do Brasil. (Mello e Souza, 1991).

A Roda dos Expostos foi uma instituição que objetivava recolher as crianças abandonadas. O intuito último era salvar a vida de inúmeros recém-nascidos que, de outra forma, estariam perdidos para a sociedade. A Roda existiu na França e em Portugal e foi trazida para o Brasil no século XVIII. Seu mecanismo permitia que as mães pudessem abandonar seus filhos de forma a não serem identificadas. A instituição cuidaria de recolher e proporcionar às crianças um tratamento adequado. A existência da Roda mostra que o abandono de crianças nesse período era encarado com resignação e até naturalidade, visto ser aceito pelos governantes, conforme atesta Leite (1991). Isso revela também

Uma certa indiferença ao valor da criança até o inicio do século XVIII, quando as escolas começaram a descobri-las e a classe médica passou a insistir na necessidade da criação dos filhos pelas mães, pois cada criança achada (depois de abandonada) era uma criança perdida. (Leite, 1991, p. 99).

Com essas mudanças nas concepções de infância, desenvolve-se uma preocupação em torno da criança pobre ou abandonada, sujeito de proteção por parte de mecanismos oficiais. Era preciso impedir que crianças continuassem a encontrar a morte devido às condições de insalubridade existentes então.

As condições de vida das crianças das classes populares começam a ser preocupação oficial. No século XIX, em São Paulo, grande número de crianças exercia ofícios em fabricas, sob condições desumanas de trabalho. Em 1917, o movimento operário passa a exprimir sua preocupação com o elevado numero de crianças feridas ou mortas em acidentes de trabalho. (Moura, 1991)

A infância pobre, nesse momento, se torna alvo de cuidados, mas também de receios. A criança pobre ou abandonada passa a ser considerada em situação de perigo já que não recebe os cuidados adequados por parte da família. Os pobres se tornam objeto de preocupação por parte de vários setores da sociedade e, nesse contexto, a assistência à infância desvalida ganha relevo. (Rizzini, 1993).

Como resultado da preocupação em proteger a família e cuidar para que a vida das crianças não se perca é que surgem as primeiras leis especificas de proteção à infância no Brasil. È importante ressaltar, neste ponto, que a legislação brasileira faz uma diferenciação entre a criança abandonada ou carente e a criança como membro de uma família.

A lei sempre procurou enfocar mais explicitamente a criança abandonada, ou supostamente abandonada pelas famílias pobres, tratando, por outro lado, das questões relativas a criança em família como um assunto privado. Como aponta Malheiros (1994):

Quanto aos filhos, à luz do direito, cumpre aos pais estabelecer a educação que melhor lhes convier, desde que preserve os direitos mínimos (...), o direito somente intervém, nestas situações, em circunstancias graves, como no caso de crueldade e violência física ou psíquica, quando os pais podem ter suspenso o pátrio-poder ou até perdê-lo. (Malheiros, 1994, pp. 73-74).

Nossa sociedade buscou, assim, proteger e recuperar crianças expostas ou em risco, deixando para as famílias a tarefa de cuidar daquelas que se encontravam dentro do espaço privado. Desta forma é que as representações de infância nas leis brasileiras são marcadas, em grande parte, pela idéia da criança abandonada ou marginalizada. Por outro lado, a criança como parte de uma família é objeto de referencia apenas em algumas leis que regem relações familiares, como o Código Civil de 1916. Sobre este aspecto, vale a pena citar Jasmin (1986):

O termo menor, compreendido nessa perspectiva jurídica, deve se diferenciar de outras denominações correntes que se refiram àqueles que são crianças, particularmente da noção de filho. Esta distinção entre menor e filho evidencia a descontinuidade entre relações judiciais e relações afetivas, o que aponta para a despersonalização contida na primeira expressão, dado que em oposição à relação privada pai-filho, supostamente afetiva, a relação menor-juiz de menores é essencialmente jurídica e publica. Esta nova definição concorda com o pressuposto de que o Direito do Menor deve atuar numa área que não seja confundida com a dos órgãos de assistência social nem com aquela definida pelo Direito de Família que “versa, sobretudo sobre o direito dos pais sobre os filhos” (Jasmin, 1986, p. 99).

A partir de 1990 a tendência é de se retirar da lei o conceito de menor, considerado estigmatizante, e utilizar os termos criança e adolescente. Mas, até essa data, cujo marco na legislação é o Estatuto da Criança e do Adolescente, a legislação brasileira distinguia claramente os “filhos” dos “menores”.

 Mais do que isso, o antigo Código Civil, de 1916, fazia uma diferenciação entre filhos naturais, adulterinos e incestuosos, adotados, legítimos ou ilegítimos, numa clara preocupação em se definir precisamente a origem da criança no meio familiar. Neste momento a monogamia aparece como um elemento essencial na preservação da família, daí a necessidade de se determinar a origem das crianças. Nesse contexto, o pátrio poder é exercido exclusivamente pelo pai. Pátrio poder, neste momento, significa um conjunto de direitos do pai sobre os filhos e não dos filhos em relação aos adultos. Lá, a autoridade do pai está garantida, tanto sobre os filhos quanto sobre a mulher. Uma mudança no poder paterno só ocorrerá em 1962, com o Estatuto da mulher casada, onde o pátrio poder passa a ser exercido pelo pai, com a colaboração da mulher. Mas, mesmo assim, em caso de divergências entre o casal, o pai ainda detém o poder de decisão. Com a Constituição Federal de 1988, a idéia de igualdade entre os cônjuges faz com que o pátrio poder seja entendido como uma atribuição de ambos os genitores, sem distinção. (Cardoso, 1996). Uma última modificação foi introduzida pelo Novo Código Civil de 2005, que mudou a denominação pátrio poder para poder familiar.

As políticas públicas voltadas para o menor, desta forma, seguiram essa distinção expressa nas leis. O menor objeto de políticas era o menor exposto, marginalizado, carente, infrator. A situação do abandono, que nos interessa aqui, é descrita por Passeti (2000) como resultado das mudanças ocorridas no país a partir da industrialização e do empobrecimento da população. A pobreza foi vista como um meio propício para a violência. A associação pobreza – violência justificou, segundo o autor, as políticas públicas voltadas para as crianças, cujo objetivo era impedir a alegada delinqüência latente dos pobres:

Desta forma, a integração dos indivíduos na sociedade, desde a infância, passou a ser tarefa do Estado por meio de políticas sociais especiais destinadas às crianças e adolescentes provenientes de famílias desestruturadas, com o intuito de reduzir a delinqüência e a criminalidade. (Passeti, 2000, p. 348).

Segundo o autor, até os anos 20 o atendimento aos menores em situação de risco era feito por instituições religiosas, de caridade. A partir daí cedeu lugar às ações governamentais, através de políticas sociais. Tais políticas passam por um período de maior expansão entre as duas ditaduras, ou seja, do Estado Novo, de 1937 a 1945, e a Militar, de 1964 a 1984. Para Passeti:

Uma história de internações para crianças e jovens provenientes das classes sociais mais baixas, caracterizados como abandonados e delinqüentes pelo saber filantrópico privado e governamental – elaborado, entre outros, por médicos, juizes, promotores, advogados, psicólogos, padres, pastores, assistentes sociais, sociólogos e economistas – deve ser anotada como parte da história da caridade com os pobres e a intenção de integrá-los à vida normalizada. Mas também deve ser registrada como componente da história contemporânea da crueldade. (Passeti, 2000, p. 350).

É a história da participação da psicologia na elaboração destas políticas sociais que nos interessa aqui e vem nos ocupando em trabalhos anteriores (Castro, 1996; Cardoso, 1996, 2003, 2004).

Método

O estudo teve início com a consulta à literatura existente acerca do tema estudado, notadamente sobre a História da Infância e do abandono de crianças no Brasil.

A pesquisa mais ampla buscou levantar fontes para a construção da história da psicologia jurídica em Belo Horizonte, entre os anos de 1930 e 1990. A pesquisa de campo realizada no Arquivo do Tribunal de Justiça de Minas Gerais efetuou a consulta a todos os processos que cobriam o período que nos interessava. Assim, nosso interesse era identificar, fotocopiar e catalogar qualquer documento que contivesse referências a idéias psicológicas, fossem eles laudos, comunicados, pareceres ou relatórios constantes de processos judiciais. Como se tratava de um arquivo ainda inexplorado pela psicologia, as fontes deveriam primeiramente ser “construídas”, para uma posterior análise.

Desta forma, na pesquisa mais ampla, foram consultados um total de 754 processos judiciais, a partir dos quais se levantou um número de 65 documentos para compor nossas fontes. A amostra foi recolhida de forma aleatória, ou seja, na medida em que apareciam na consulta a todos os processos. De posse de todos os documentos levantados, a equipe procedeu à classificação das fontes, com base no tipo (interdição, criança e adolescente, separação judicial, guarda de menor) e na data do documento. Os documentos foram scanneados e organizados em um cd para posterior consulta.

Do total de 65 documentos, utilizou-se, para o presente artigo, apenas aqueles que se referiam a crianças e adolescentes e que continham, de forma explicita ou não, alguma referência a conteúdos psicológicos (20 documentos). Poucos documentos, dentre os referentes à criança e adolescentes, continham referências explicitas, por isso optamos por selecionar também aqueles que se referiam de forma implícita a alguma idéia oriunda da Psicologia, como o relacionamento familiar ou a descrição de comportamentos, por exemplo.

A amostra de 20 documentos reúne pareceres, relatórios e laudos, referentes a um período compreendido entre os anos de 1969 e 1884. De posse das fontes, efetuamos uma análise dos documentos, conforme modelo de análise de conteúdo proposto por Bauer (2004).

Os documentos foram classificados da seguinte forma, no que se refere ao período histórico:

Década de 60 – 6 documentos

Década de 70 – 5 documentos

Década de 80 – 9 documentos

A análise levantou, a partir da leitura do material, algumas categorias, com base no objetivo da pesquisa mais ampla, ou seja, identificar a participação da psicologia em processos judiciais. As categorias definidas para esta fase da pesquisa foram: História de vida do sujeito ao qual se refere o relatório, Descrição que o relatório faz do sujeito, Direitos do sujeito, Resultados do Laudo, Relacionamento familiar, Idéias psicológicas constantes nos relatórios. A cada categoria corresponderam unidades de análise (frases e palavras) retiradas do corpo dos documentos e as categorias levantadas foram relacionadas com a literatura existente acerca do campo estudado.

Resultados
O abandono de crianças e adolescentes em laudos e relatórios no Tribunal de Justiça em Belo Horizonte

Os laudos ou relatórios analisados neste artigo, em número de 20 no total, são uma pequena amostra de um período que cobre o final dos anos sessenta (1968, data do primeiro laudo) até meados dos anos oitenta (1984, data do último laudo). Neste capítulo, dos processos vinculados a Varas de Menores, ou Juizado de Menores, estão os casos de adoção, abandono e ocorrências referentes a crianças e adolescentes. A maior parte diz respeito a casos de abandono e adoção. Não foram encontrados laudos assinados por psicólogos ou psiquiatras, neste período. Dado o grande número de processos judiciais consultados, podemos pensar que avaliações psicológicas ou psiquiátricas relativas à menoridade, no período, eram, de fato, raras. Como vimos, a maior parte dos laudos psicológicos e psiquiátricos do período coberto pela pesquisa de fontes se concentrava nos processos de interdição, onde eram peças de praxe, previstas em lei (CPC) e que serão objetos de um artigo próprio.

No caso presente, relativo a situação de abandono de menores, os estudos são assinados por assistentes sociais em sua maioria e, em menor número, por pedagogos e comissários de menores. Desta forma, optamos por analisar separadamente estes relatórios, buscando algum conteúdo psicológico presente neles, e, além disso, procurando traçar um panorama da situação da infância abandonada em Minas Gerais, da forma como ela aparecia nos laudos constantes dos processos judiciais.

O abandono de crianças e adolescentes é a tônica presente em todos os documentos analisados. Fica muito evidente como a situação de pobreza, nestes casos, se relaciona diretamente ao abandono, equação demonstrada por Passeti (2000). A situação de pobreza da mãe da criança aparece como o principal motivo gerador do abandono. Assim, temos, do lado da mãe que abandona, um quadro bastante preciso: mãe solteira, empregada domestica, sem residência, dependendo de favores alheios, em alguns casos expulsa de casa.

Curioso constatar que a mãe aparece em todos os relatórios como a pessoa responsável pelo abandono, em alguns casos apenas ela é citada como a responsável pela exposição da criança, sendo que o pai não aparece ou apenas é mencionado para informar que é desaparecido ou falecido. Aqui não se fala da família desestruturada, mas de mulheres que são, em sua maioria, solteiras, também elas abandonadas por suas próprias famílias.

Vejamos alguns exemplos que caracterizam a mãe que abandona o filho, retirados dos relatórios analisados:

“A mãe do menor é solteira natural de perto da cidade de Congonhas do Campo”.

“... quando esta na cidade trabalha como empregada doméstica em pensões”.

“... foi entregue ao casal com 3 dias de nascido, pela própria mãe, que estava desabrigada com o filho.”

“Era solteira e seus familiares expulsaram-na de casa”.

“... mãe – solteira, 20 anos, doméstica, analfabeta”.

“Mãe não tem casa e vive no emprego”.

“... pois não tinha onde ficar por que sendo sua genitora mãe solteira e empregada domestica... era difícil encontrar emprego que os patrões aceitassem com a criança”.

“... constatando abandono e irresponsabilidade da mãe, que é alcoólatra inveterada”.

“A mãe da menor não possui residência”.

“... foram tomadas varias providências no sentido de se identificar e localizar a mãe da menor, porém, em vão”.

“Filiação: Maria (mãe solteira)”.

“... o menor é filho de D... solteira e empregada doméstica a qual não tinha condições de criar o filho”.

“... trata-se de menor, que está sendo sacrificado pelo problema sócio-economico da mãe, que é solteira e não tem condições materiais para mantê-lo”.

“M.M. juiz, acreditamos que a mãe da menor é irresponsável, não possuindo requisitos para permanecer com a filha”.

A presença do pai não é marcada; ele está sempre ausente. Sua ausência é evidenciada por algumas frases retiradas dos relatórios, que aparecem com uma freqüência muito menor do que aquelas que fazem referência às mães:

“... pai do menor – desaparecido há mais de um ano”.

“... pai: ignorado”.

É tudo o que aparece sobre os pais das crianças nestes relatórios. A mãe da criança é a protagonista do abandono, que se justifica, quase sempre, pela pobreza desta.

Este aspecto do abandono aparece no trabalho de Kosminsky (1991), que entrevistou internos em uma unidade da FEBEM de São Paulo. Os relatos mostram histórias de condições precárias de vida, falta de moradia, de alimentação, brigas, alcoolismo, separação dos pais:

Ganho insuficiente e excesso de trabalho impedem a mãe de manter os filhos. O caminho indicado é a internação das crianças. (...) A figura do pai aparece, geralmente, esmaecida, quase como uma personagem distante no passado, de quem se ouviu falar que existe. (Kosminsky, 1991, pp. 165-166).

É um tema que merece a atenção de pesquisas futuras, o da ligação das mulheres com a história do abandono de crianças em nosso meio e da ausência quase absoluta do pai. Há, porém, que se ter cuidado com essas indagações a respeito da mulher, e se registrar apenas uma constatação. Como atesta Adorno (1991), citando estudo de Alba Zaluar no Rio de Janeiro, a tese da “desorganização familiar” cai por terra na maior parte das famílias envolvidas com criminalidade pesquisadas pela autora, mostrando que, naquele caso, trata-se, na verdade, de famílias chefiadas por mulheres:

...o que se nota, como padrão geral, é uma diminuição da importância da figura masculina em favor da expansão do papel feminino. Longe de ser uma característica apensa do proletariado urbano brasileiro, a chamada família matrifocal é, sem duvida, uma realidade na organização social dos trabalhadores pobres. (Adorno, 1991, p. 196).

Outro aspecto importante que se depreende dos relatórios se refere aos motivos apresentados para a adoção, quando a criança está sendo recebida por uma família substituta. Os motivos, via de regra, se ligam a aspectos como caridade, solidariedade, compaixão.

Algumas frases caracterizam bem estas motivações:

“Ele comentou com os familiares que estava com muita pena dela”.

“D. ... e seu marido condoídos com a situação da criança resolveram cria-la”.

“... motivados pelo programa de televisão” Adote um filho”.

“Depois ficou com dó da criança”.

“... resolveram ficar com o menor movidos por uma solidariedade humana pois reconheceram que a criança era carenciada.”

Em alguns casos percebe-se que o profissional procura justificar a necessidade da adoção deixando implícita uma idéia de que se trata de um último recurso, não devido à vontade dos adotantes, mas a uma necessidade da criança. Ou seja, o papel afetivo e as motivações internas dos adotantes não ficam evidenciados nestes laudos, sendo ofuscados pela idéia de caridade, solidariedade e compaixão. Percebe-se, nos relatórios analisados, que os motivos relacionados ao afeto não eram um tópico para discussão por parte do profissional. Ele próprio parecia fornecer todos os dados que convencessem o juiz de que a criança precisava da caridade dos outros e que eles somente estavam adotando por este motivo. A caridade ainda era, com efeito, neste período, um conteúdo importante na resposta da sociedade aos menores abandonados.

Apesar de a caridade ser a motivação inicial para a adoção, são os vínculos afetivos com a criança os principais motivos que os profissionais apresentam para que a criança seja, de fato, adotada ou fique sob a guarda dos requerentes:

“... está bem desenvolvido e com ótimo aspecto, gordo, sadio, satisfeito, está dentro das características da família e completamente integrado”.

“Dispensam ao menor proteção de verdadeiros pais, enquanto a mãe encontra desaparecida, jamais o reclamou e os outros parentes não manifestaram nenhum interesse por sua sorte”.

“... quase 18 anos, vem recebendo todo carinho e amor da família que a acolheu e a quer como legitimo membro”.

“... chama os requerentes de pais e todos são doidos com ele”.

“o menor completou 8 anos de idade, está plenamente adaptado à família onde vem recebendo carinho e proteção desde o nascimento. Tem as mesmas características físicas dos adotantes e os reconhece como seus legítimos pais.”

“... dispensaram-lhe muitos cuidados durante os dias que estava doente, então foram apegando-se ao menor.”

“... constatando-se estar a menina muito bem protegida, tratada como se fosse membro legitimo da família, da qual recebia muito carinho e amor.”

Outros casos, porém, mostram que há motivos para se retirar a guarda, tais motivos se referem ou a abandono material de criança, ou a dificuldades apresentadas pela própria criança que sugerem uma desadaptação à família que a adotou.

“Sr... quer internar o menor alegando problemas de conduta”.

“O casal e suas filhas já tentaram dialogar com ele mas só recebem respostas agressivas, principalmente quando é interpelado por D...”.

Os casos de internação aqui ilustrados cobrem um período de menos de vinte anos e coincide com o período descrito por Passeti (2000) como dominado pelo SAM, o Serviço de Assistência aos Menores, que foi extinto em 1964 e substituído pela Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM). Segundo ele,

Desde o Código de Menores de 1927 até a Política Nacional do Bem-Estar do Menor que ficou consagrada no Código de Menores de 1979 (...), foram mais de sessenta anos usando da prática de internação para crianças e jovens, independentemente de tratar-se de regime político democrático ou autoritário. Em certos momentos, a ênfase esteve na correção de comportamentos, noutros, na educação para a integração social. No passado enfatizava-se o atendimento especializado, agora tecia-se loas ao interdisciplinar. Entretanto, esses deslocamentos criaram, sem sombras de duvidas, um diversificado setor de empregos para especialistas e construtores civis, atingindo-se ou não as metas pretendidas com os internos. (Passeti, 2000, p. 358).

A história da assistência aos menores passou, segundo o autor, por uma fase de filantropia, praticada por instituições de caridade privadas, seguindo por uma fase onde a correção e a educação especializada era a tônica até chegar em um período em que esta foi substituída pelo saber interdisciplinar.

Crítico do sistema de internações, Passeti considera que ele não integra os menores, nem os educa, mas representa um novo círculo de vítimas formado por condenados pela justiça. Para ele, assim como a prisão para adultos não os recupera, ela não deveria servir de exemplo para a educação de jovens. Crianças e adolescentes vivem, sob estas condições, um percurso de vida marcado pela institucionalização, que acaba por transforma-los em seres marginais:

Crianças e jovens infratores ou abandonados, provenientes das situações de pobreza passam a ser identificados como “menores” e o complexo institucional de controle para inimputáveis se expande justificando o atendimento para os menores de idade pobres e perigosos, os pequenos bandidos. (Passeti, 2000, p. 363).

É esse percurso vivido pelos adolescentes e crianças nestas instituições, no período enfocado, que fica claro em alguns exemplares de relatórios por nós recolhidos.

Um “estudo de transferência”, datado de 1980, faz um relato minucioso desta trajetória de um adolescente, na época com 18 anos de idade. Esse adolescente iniciou sua história de internação no ano de 1975, aos 13 anos. Não se trata, neste caso, de pessoa abandonada, pelo menos não legalmente, uma vez que constam, do estudo, os nomes de ambos os genitores e a mãe é apontada como a responsável. O motivo do pedido de transferência aparece como “vadiagem, furtos, problemas de comportamento”. Aos 13 anos foi internado na FEBEM, no ano seguinte registra-se a sua primeira fuga e seu retorno posterior. Aos 14 anos a mãe havia sido informada que o menor não se adaptava ao internato, mas não houve resposta da família. Ainda aos 14 anos registra-se a ocorrência do primeiro caso de furto que se repete por mais três vezes no ano seguinte e novamente em 1978. Em 1979 o menor foi apreendido por furto e assalto a mão armada. Em 1980, nova fuga

... após ocorrência dentro do Pavilhão de Segurança da Escola. Juntamente com um grupo de colegas movimentou uma rebelião dentro da cela, quando o Monitor que encontrava-se de plantão, imobilizado por um revolver que conseguiram furtar do próprio monitor, dando fuga a todos os alunos que lá encontravam-se e desejavam ir embora.

A associação das palavras escola e aluno com Pavilhão de Segurança, cela, rebelião, é digna de nota aqui. Curiosa a associação que se fez entre escola e prisão neste período, mostrando uma relação ambígua entre o imperativo de se educar tais crianças e adolescentes e a necessidade de puní-los, mantendo-os prisioneiros de um sistema carcerário. A conclusão do responsável pelo estudo é clara:

 

Considerando a falta de condições do aluno para adaptar-se ao ambiente da Escola de Origem, e a dificuldade em realizar junto ao aluno um trabalho a nível individual devido a suas constantes fugas, de se efetuar um controle sobre as mesmas.

Considerando a sua última ocorrência.

Considerando não ter participado das atividades educativas desenvolvidas na Escola, somos de parecer que o aluno... seja transferido para outro estabelecimento de recuperação, de ambiente fechado, onde possa receber um tratamento adequado a sua possível recuperação.

O profissional não aponta qual seria tal tratamento adequado, deixando claro, no entanto, a incompetência daquela instituição para lidar com o problema e mais, que a solução para o caso se encontra na prisão.

Outro documento apresenta a ficha de “Entrevista Social”, referente a um adolescente de 16 anos de idade, encaminhado por furto. Aqui aparece a associação de problemas de comportamento com prisão. A linguagem do sistema penitenciário é tomada de empréstimo para se tratar de adolescentes em situação de risco. A família do menino é composta pela mãe e quatro irmãos. Aqui também, o pai é desaparecido. A mãe é descrita como doente mental, sendo internada com freqüência no Hospital Galba Veloso. Desta forma, a incapacidade da família para cuidar do filho é atestada. O menino já estava internado em uma escola em Juiz de Fora e estava passando férias na casa de uma irmã, quando ocorreu o furto.

Neste documento, aparece a idéia de que as crianças institucionalizadas da FEBEM acabam por ser levadas a assumir a identidade estigmatizada que lhe é imposta. Nesse processo, descrito por Kominsky (1991) o estigma do “futuro marginal” é assimilado ao longo do processo de socialização destas crianças e ampliado quando a criança está na FEBEM. Ou seja, o menor é sempre visto em seus aspectos negativos, ou culpabilizado por sua condição ou vitimizado pelo abandono e passa a, ele mesmo, incorporar tal identidade.

Assim é que, apesar da assistente social que assina a ficha do “aluno” deixar claro, no seu relatório, uma certa visão positiva deste, ao final do processo, a sentença judicial reforça o estigma.

A visão positiva, aqui, aparece em algumas frases como:

“Durante a entrevista mostrou-se dócil, amável e acessível”.

“O menor pareceu-nos acessível e demonstrou desejo de retornar a FEBEM para continuar a estudar”.

O juiz despacha, neste caso, da seguinte forma, e conclui o processo:

“Retornar o menor à FEBEM, pelo CERT, de onde é foragido”.

Aqui, a palavra foragido não deixa dúvidas sobre a identidade que se quer formar neste adolescente.

Por fim, que idéias psicológicas aparecem nestes laudos? Já ressaltamos, anteriormente, que não encontramos laudos assinados por psicólogos ou psiquiatras, relacionados à situação de crianças e adolescentes em risco. É uma constatação que poderia incomodar, é certo, uma vez que vários dos problemas tratados nestes relatórios tocam intimamente aspectos psicológicos. Mas sabemos que a presença de psicólogos neste campo, somente para falar do caso do Tribunal de Justiça, apenas se fez presente, de forma mais abrangente, a partir dos anos oitenta, o que esclarece nossos achados. A existência de assistentes sociais no meio judiciário é uma tradição muito mais antiga do que a de psicólogos. No entanto, a presença das idéias da psicologia não era novidade no período referente aos laudos analisados. É esta presença que nos interessa compreender mais de perto. Que idéias, oriundas da psicologia, apareciam em tais relatórios?

Alguns trechos dos laudos nos mostram que é a partir dos anos 80 que os profissionais começam a fazer referências explícitas a aspectos declaradamente psicológicos dos casos estudados. Se antes o conteúdo dos laudos se vinculava mais à necessidade de educar estes jovens e crianças, aos poucos a idéia da patologia parece ir ganhando terreno. Assim, as idéias psicológicas parecem ter sua penetração neste campo pela via da patologização da infância e adolescência. Evidentemente, é necessário um levantamento de fontes mais completo do que o realizado aqui, mas nossos dados nos levam a formular tal hipótese. Ou seja, as referências explícitas a tratamento psicológico ou a doença mental, nas questões envolvendo crianças e adolescentes, começam a aparecer com mais freqüência nos laudos a partir de 1980.

Nos laudos representativos da década de 80 encontramos referências diretas ao aspecto psicológico, que, neste caso, se reduzia à psicopatologia:

“Trata-se de menor com problema de excepcionalidade, um caso de debilidade mental...”.

“... com problema de comportamento como fugas constantes de casa”.

No entanto, idéias de cunho psicopatológico e educativo conviviam lado a lado, uma vez que, neste laudo, a solução para o caso, é educativa:

“... achamos viável o seu encaminhamento a uma das escolas da FEBEM, visto o mesmo ter chance de aprendizagem, pois apesar de ser uma criança intelectualmente difícil, e apresentar debilidade mental é bastante comunicativo, alegre e de fácil contato pessoal”.

Coerente com a constatação anterior percebe-se que aspectos psicológicos são objeto de referência pelos profissionais em poucos momentos. Aparece com maior freqüência a partir dos anos oitenta, como resultado, talvez, de uma maior consolidação da própria profissão de psicólogo na área e, também, como resultado da ênfase legal em uma atuação interdisciplinar no campo das políticas sociais para “menores” (Passeti, 2000). Como até 1979, o papel da assistência social, muito vinculado ainda à filantropia, era dominante, a presença de idéias que refletissem a tendência a se considerar o menor como objeto de tratamento, de intervenção, que a Psicologia poderia representar, e, de fato, passou a representar depois, ainda era tímida.

Alguns atestados começam a aparecer juntamente com os estudos realizados por assistentes sociais. Tais atestados querem mostrar que os “menores” em questão possuíam alguma psicopatologia. Assim, em 1979 encontramos um exemplo de um atestado que afirma:

“... atesto para os devidos fins que encontra-se em tratamento especializado, devido apresentar sintomatologia compatível com “transtorno de personalidade”, devendo permanecer no instituto onde (...), por se haver adaptado bem ao meio e estar apresentando melhora do quadro psíquico.”

Em 1982 aparece uma “síntese informativa” que reproduz trechos de um laudo de psiquiatra do ambulatório do CERT, que atendeu a criança em questão em 1980. O relatório aponta para uma situação onde os aspectos psicológicos são o principal fator concorrente:

“Menor portadora e déficit intelectual grave. Não mantem contato produtivo. Ri e canta primitivamente o tempo todo, mexendo com os objetos que a cercam. Sem controle esfincteriano. Por vezes, balbucia alguma palavra, à guisa de comunicação”.

Assim, a maior presença das idéias psicológicas nos textos analisados, a partir dos anos 80, parece refletir uma tendência da legislação sobre o menor de se encarar o problema do abandono e da delinqüência como um assunto passível de tratamento psicológico, médico, pedagógico, ou seja, interdisciplinar. Até então, era assunto predominantemente de caridade e filantropia, marcas de uma concepção de Serviço Social que dominava até então.

Discussão

Os documentos analisados são apenas uma pequena amostra do que contém o Arquivo por nós explorado. Este artigo não apresenta, como já dito, a análise dos documentos referentes aos processos de interdição onde está registrada, com maior clareza, idéias oriundas do conhecimento psicológico. No entanto, mostram a necessidade de investigações que explorem a questão da participação da psicologia no campo das intervenções sobre a criança e a adolescência em Minas Gerais.

É de se notar que não se tenha encontrado um numero maior de participação de psicólogos ou de idéias mais explicitamente psicológicas nos documentos aqui analisados. A ausência da psicologia neste meio é marcante. Mas será mesmo uma ausência?

Quando a psicologia se faz presente, aparece para reforçar a idéia de que os “menores” tratados ali são portadores de alguma doença mental, numa clara aceitação da psicologia, neste meio, como referenciada à patologia mental. Aqui cabe a questão de como de fato se deu a participação de psicólogos neste campo? Ao menos no que se refere ao tratamento dispensado ao “menor” a partir dos anos oitenta, levantamos a hipótese, como já dito, de que esta participação se deu preferencialmente pela via da patologia, buscando relacionar o “menor infrator” a algum distúrbio patológico. Se ainda hoje, alguns estudos se dedicam a buscar a patologia mental em adolescentes em conflito com a lei (termo contemporâneo que substitui o antigo menor infrator), outros, porém, buscam encontrar novos parâmetros para o tratamento da questão, que passa, necessariamente, por uma discussão sobre o comprometimento social do psicólogo em sua atuação na área. É este hiato, na história da psicologia jurídica, entre uma categoria de estudos e outra que nos parece necessário estudar mais de perto.

Assim, é importante destacar a escassez de estudos que exploram esta fase recente de nossa história em Belo Horizonte e outras cidades do estado. Os próprios arquivos da FEBEM de Minas Gerais, que se encontram atualmente encaixotados em um depósito do Centro de Recuperação do Horto (2), estão à espera de ser analisados para que se possa traçar, com maior clareza, a recente história da participação da psicologia no tratamento à criança e ao adolescente em situação de risco. O Arquivo do TJMG, por seu lado, também está à espera de uma exploração aprofundada, justificada pelo imenso número de dados ali existente e pela riqueza do material que esta pesquisa apenas faz vislumbrar.

No que se refere ao estudo da história da psicologia, entendemos que, ao pensar o passado, estamos sempre preparando o futuro.

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Notas

 

(1) Agradecemos à Universidade FUMEC, que financiou a pesquisa com recursos da FUNADESP e ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais, que autorizou a coleta dos dados, principalmente a Bernardo, Adonides e Reginaldo, funcionários do Arquivo do TJMG. A coleta dos dados foi realizada pelos alunos do curso de psicologia da FUMEC, bolsistas de iniciação cientifica e membros da equipe responsável pela pesquisa: Juliana de Toledo Pedrosa, Marta Santos Sales, Dulcinéia Alves dos Santos. Agradecemos ainda a Cíntia Caroline Cobucci, que coletou dados específicos na Faculdade de Medicina da UFMG, e ao apoio de Rogério Vieira Lincoln, Kelly Álvarez e Márcia Bahia. [volta]

 

(2) Informação obtida por nós na Secretaria Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente, em meados de 2004. [volta]

 

Nota sobre a autora

Roselane Martins Cardoso é psicóloga judicial do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, professora de Psicologia Social e Metodologia da Pesquisa no curso de Psicologia da Universidade FUMEC, mestre em Psicologia pela Universidade Federal de Minas Gerais, Doutoranda em Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais. Contato: Rua Adorino Ferreira, 37 – CEP 30855310 – Belo Horizonte, MG, Brasil. E-mail: lanemartins@hotmail.com

 

Data de recebimento: 22/01/2006
Data de aceite: 28/04/2006

 
Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/cardoso01.htm

 

 

 

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