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Memórias sobre o feminismo na
psicologia: para a construção de memórias futuras
Memories about feminism in psychology: for the construction of
future memories
Luísa Saavedra
Conceição Nogueira
Universidade do Minho
Portugal
Resumo
A
psicologia constituiu-se, ao longo dos anos, como um fórum
privilegiado para o estudo das diferenças entre homens e
mulheres, apoiando-se em explicações que vão desde o
domínio da biologia até às relações de poder entre os
géneros. Para uma clara compreensão dos estudos de género
e das posturas feministas na psicologia torna-se
necessário organizar a produção realizada ao longo dos
tempos. Com este objectivo em mente apresentam-se três
grandes períodos. O primeiro em que a figura feminina se
encontra ausente ou é concebida como inferior. Um segundo
período em que acede a um lugar de maior destaque, embora
os pressupostos tradicionais se mantenham. Finalmente, a
actualidade, em que novos horizontes se abrem,
questionando as perspectivas tradicionais, afirmando a
necessidade de acentuar a vertente social e política com
consequências ao nível da investigação e intervenção.
Palavras-chave:
psicologia da mulher; psicologia feminista;
essencialismo; relativismo; reflexividade. |
Abstract
Throughout the years, psychology has established
itself as a privileged forum for the study of
differences between men and women, sustained by
explanations that go from biology to gender relations
of power. In psychology, for a clear understanding of
gender studies and feminist approaches, it is
necessary to organize the achieved production in
chronological stages. With this aim in mind, three
long periods are presented. A first one, in which the
feminine figure is absent or considered as inferior. A
second period, during which she takes a more prominent
position, although the traditional principles are
maintained. Finally, the present time, in which new
horizons are opened up to us by questioning
traditional perspectives and asserting the need to
stress the social and the political dimension with
consequences on investigation and intervention levels.
Keywords:
psychology of women; feminist psychologist;
essentialism; relativism; reflexivity.
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Introdução
Desde que a
psicologia se passa a afirmar como ciência, a figura feminina, a masculina
e as suas relações foram alvo de diversas conceptualizações ontológicas,
epistemológicas e metodológicas.
Tendo em conta os
principais pontos de ruptura evidenciadas ao longo dos pouco mais de 100
anos da psicologia, consideraremos três grandes períodos no modo de
conceber a mulher, o homem e as suas relações. Um primeiro período é
marcado por uma figura feminina ausente ou por uma presença inferiorizada
correspondendo à época em que as mulheres, como investigadoras, são
praticamente ausentes no campo da psicologia. O segundo período coincide
com a segunda vaga feminista, em que as mulheres entram na academia e se
olham a si próprias como objecto e sujeito de estudo, considerando as suas
experiências e particularidades. As teorias e investigações geradas neste
período são nomeadas de “psicologia da mulher”, designação adoptada pela
Divisão 35 da American Psychological Association e pela British
Psychological Society, organização idêntica do Reino Unido (Unger,
1998; Wilkinson, 1997). O período actual terá tido o seu início nos finais
dos anos 80, inícios dos anos 90, e resulta da confluência de uma série de
perspectivas (desconstrucionismo, psicologia discursiva, analise de
discurso, construcionismo, construtivismo, pós-estruturalismo) que
genericamente se designam de movimento pós-moderno e que puseram em causa
os pressupostos positivistas-empiricistas em que assentaram os
pressupostos anteriormente assumidos.
O período
pré-feminista da psicologia: a figura feminina ausente ou desvalorizada
O primeiro período
dos estudos
sobre a mulher coincide com a afirmação da psicologia como ciência
moderna, em ruptura com a época medieval. Quando a cisão entre psicologia
e filosofia ocorre, a ciência psicológica segue um modelo
predominantemente biológico que impõe a utilização de métodos
experimentais e psicométricos para a avaliação das diferenças individuais
(Nogueira, 2000). A epistemologia dominante nesta recém-nascida ciência
orienta-se para a procura de um conhecimento objectivo, isento de valores
sociais, políticos e morais, assentando numa filosofia individualista que
encara as pessoas como racionais, livres e auto-determinadas (Gergen,
2001; Kahn & Yoder, 1989).
Galton (1869, em Santome, 1995) é um dos primeiros autores
a fazer referência às capacidades intelectuais das mulheres. Em “Hereditary
genius, its laws and consequences” afirma a superioridade intelectual
da aristocracia e dos membros distintos da sociedade por contraponto com a
inferioridade intelectual dos grupos economicamente desfavorecidos e das
mulheres: “se a esperteza das mulheres fosse superior à dos homens, os
empresários, no seu próprio interesse, empregá-las-iam sempre antes dos
homens, mas, como acontece o contrário é provável que a suposição oposta
seja verdadeira” (citado por Santomé, 1995, p. 39).
Nos finais do século XIX e princípios do século XX a
concepção da inferioridade intelectual da mulher encontra-se bastante
disseminada e é relativamente consensual. Os primeiros estudos, no âmbito
da psicologia, mostram também a grande proximidade desta ciência com a
biologia. Uma das principais preocupações é a comparação entre homens e
mulheres em domínios como a capacidade motora, aspectos detalhados da
fisiologia e anatomia cerebral, entre outros (Hall, 1904). A título
ilustrativo, refira-se que foi demonstrada a inferioridade do cérebro
feminino relativamente ao peso total, ao peso proporcional do lobo
frontal, à área do corpo caloso, à complexidade e configuração das
circunvoluções cerebrais e ao grau de desenvolvimento do córtex no feto (Wooley,
1910). Como se pensava que o tamanho e fisiologia do cérebro se
encontravam em íntima ligação com as capacidades cognitivas, esta era uma
das fundamentações para a inferioridade intelectual da mulher (Vieira,
2003).
No que diz respeito à capacidade motora, Helen Thompson
Wooley (1903) menciona que os estudos indicam a superioridade do homem
face à mulher na força, rapidez de movimento, grau de fadiga e precisão de
movimento, aspectos que parecem ser reflexo da maior força muscular
masculina. Em contrapartida, na coordenação motora as mulheres aparecem,
na maior parte dos estudos, como superiores. No domínio intelectual, a
maior parte dos autores apontam para uma superioridade das mulheres na
memória e no pensamento associativo e dos homens na criatividade. A
consciência social aparece mais saliente no sexo masculino e a consciência
religiosa no sexo feminino (Wooley, 1903).
As principais
fundamentações para estas diferenças, ainda que não consensuais, derivam
do processo de desenvolvimento da humanidade durante o qual ocorreu uma
divisão do trabalho entre os sexos tendo o homem assegurado o papel da
nutrição e a mulher, o da reprodução. Esta divisão fez com que a
fisiologia masculina se tornasse mais catabólica e a feminina mais
anabólica, o que está patente nas próprias células sexuais: a da mulher é
grande e imóvel - representando a alimentação acumulada - e a masculina
pequena e ágil - representando a energia em expansão. As diferenças
psicológicos e sociais entre os sexos podem ser deduzidas a partir deste
ponto de partida:
A mulher representa a conservação das
espécies - a preservação do passado adquirido pela raça. As suas
características são a continuidade, a paciência e a estabilidade. A sua
vida mental é dominada pela integração. Ela tem habilidade para as ideias
particulares e para a aplicação das generalizações já adquiridas, mas não
para a abstracção ou formação de novos conceitos. Como a mulher é
receptiva possui sentidos mais apurados e reflexos mais intensos do que o
homem. A sua tendência para acumular alimentos traz-lhe um maior
desenvolvimento das vísceras e como as emoções são ondas reflexas das
vísceras, a mulher é mais emocional do que o homem. O homem, pelo
contrário, representa a introdução a novos elementos. Os homens são
capazes de uma concentração da atenção mais intensa e prolongada. São
menos influenciados pelos sentimentos do que as mulheres. Têm maior poder
de abstracção e generalização (Wooley, 1903, p. 172).
Embora Helen
Thompson Wooley concorde que os resultados das investigações “encaixem”
adequadamente nas explicações avançadas pelos autores, salienta que a
teoria das bases biológicas para as diferenças entre os sexos não está
suficientemente fundamentada e que a velha questão sobre o papel da
hereditariedade e do meio deve ser levada em consideração. Desta forma,
ressalta os diferentes meios sociais e culturais em que ambos os sexos se
desenvolvem o que explicaria que rapazes e raparigas sejam socialmente
estimulados para diferentes actividades:
A mais provável interpretação dos factos é
que as necessidades de organização social conduziram, no passado, a uma
divisão do trabalho entre os sexos, cuja utilidade é evidente. Os ideais
sociais foram desenvolvidos em relação com as necessidades económicas e
persistem ainda (Wooley, 1903, p. 181).
Uma outra forma da ciência psicológica afirmar a
inferioridade intelectual das mulheres foi através da “teoria” da maior
variabilidade do sexo masculino, ou seja, de que nos homens estariam
presentes tanto os grandes génios como os grandes débeis intelectuais. Um
corolário desta teoria seria o de que as mulheres nunca poderiam chegar ao
mesmo nível que os homens e que teriam que se contentar com a
mediocridade. Em 1910, Thorndike (citado por Hollingworth, 1914b, p. 510)
afirmava: “se os homens diferem entre si em inteligência e energia através
de maiores extremos do que a mulher, os cargos mais elevados e de
liderança do mundo devem, inevitavelmente pertencer aos homens. Eles irão
merecê-los mais frequentemente”.
Helen Thompson
Wooley e Leta Stetter Hollingworth - aluna de Thornike e uma das pioneiras
no estudo das crianças sobredotadas - resistiram profundamente a estas
persectivas. Wooley (1903), argumenta que os rapazes são treinados para a
individualidade, para serem independentes na acção e no pensamento; são
encorajados a usar ferramentas e máquinas e a experimentar a mais diversa
série de actividades. As raparigas, em contrapartida, são ensinadas à
obediência, dependência e deferência. Na mesma linha de ideias,
Hollingworth (1914b, p. 529) afirma:
Mesmo que fosse
estabelecido que actualmente é maior a variabilidade dos traços
mentais dos homens isso apenas sugeriria, e não provaria, que existe maior
variabilidade inerente. Assim (a) a oportunidade e exercício dos
sexos tem sido diferente e desigual, (b) a variabilidade intelectual teve
um valor de sobrevivência para os homens mas para as mulheres teve pouco
ou nenhum valor – isto em virtude dos diferentes papéis desempenhados
pelos sexos na perpetuação das espécies [itálico da autora].
A ideia
profundamente disseminada de que as raparigas e mulheres sofrem de
inúmeros distúrbios físicos provocados pela menstruação (1)
leva um número considerável de homens a desaconselharem vivamente o
envolvimento do sexo feminino nas actividades académicas, porque se
suponha que existiria uma incompatibilidade entre a energia gasta durante
o período menstrual e aquela que seria necessária para a actividade
intelectual (2) (Vieira, 2003). Apesar disso,
no final do século XIX algumas escolas e Universidades começaram a aceitar
mulheres, tanto em estabelecimentos sexualmente mistos ou exclusivamente
para mulheres (Spence, Deaux & Helmreich, 1985). Os resultados obtidos
pelo sexo feminino no âmbito académico parecem, segundo Stanley Hall
(1904), ter sido um factor importante pois “forçaram as mentes mais
conservadoras a admitir que o seu intelecto não é inferior ao do homem”
(p. 612). O reduzido ingresso das mulheres nestes locais públicos
conduziu, no entanto, a uma preocupação cada vez mais acentuada com as
consequências negativos da escolarização feminina na maternidade.
Numerosos estudos fazem alusão aos efeitos nefastos da escolaridade na
redução do número de casamentos e de filhos dessas mulheres. Não é, por
isso, estranha a seguinte descrição da maternidade e do papel da mulher na
mesma:
o
corpo e alma da mulher foi feita para a maternidade e ela não poderá nunca
encontrar o verdadeira repouso sem ela. Quanto mais conhecemos o conteúdo
da mente da jovem mulher tanto mais claramente vemos que todas as coisas,
conscientes e inconscientes, apontam para a maternidade como o verdadeiro
objectivo da sua vida. Mesmo que ela não tenha consciência disso, toda a
sua natureza exige em primeiro lugar uma criança para amar, que dependa
dela para cuidar e, talvez um pouco menos, um homem que ela respeite e em
quem confie para lhe dar força e proteger no levar a cabo desta função
(Hall, 1904, p. 610).
Por volta dos anos 20, a inconsistência dos resultados
encontrados sobre as diferenças entre os sexos fez com que este domínio da
psicologia fosse um pouco “posto de lado”. (Morawski, 1987). De entre
aqueles que persistiram neste domínio de investigação, os mais bem
sucedidos foram sem dúvida Lewis Terman e Catherine Cox Miles (Morawski,
1987). O trabalho desenvolvido por este autor e autora, a partir de 1936,
tinha como principal objectivo identificar e medir atributos psicológicos
de homens e mulheres a fim de revelar incongruências entre o sexo
biológico e o sexo psicológico e identificar a homossexualidade ou
predizer problemas no ajustamento conjugal (Morawski, 1987). Este tipo de
investigação obteve grande popularidade e veio a dar origem a um conjunto
de estudos em que foram determinadas as características típicas de homens
e mulheres, mudando-se, assim, o centro da atenção das diferenças
intelectuais para as diferenças de personalidade entre os sexos. Parsons e
Bales (1955), baseando-se na orientação de papéis na família, associaram a
figura masculina à instrumentalidade e a feminina à expressividade. A
instrumentalidade caracteriza-se pela auto-determinada e pela orientação
para objectivos (independência, assertividade e capacidade de decisão). A
expressividade, em contrapartida, é definida a partir características
orientadas para o domínio interpessoal e emotivo (afabilidade,
sensibilidade para os outros, capacidade em responder emocionalmente e
necessidade de afiliação). Perfis idênticos de homens e mulheres foram
definidos por Bakan (1966) como agenticidade – para o sexo masculino – e
comunalidade - para o sexo feminino.
Esta área de investigação teve ainda continuidade nos
inícios dos anos 70. Em 1972, Broverman, Vogel, Broverman, Clarkson e
Rosenkrantz, seguindo uma linha de orientação idêntica, determinaram que
os homens eram vistos como independentes, agressivos, auto-confiantes,
activos, capazes de tomar decisões e com capacidade de liderança enquanto
as mulheres eram, geralmente, vistas pelo pólo oposto: dependentes,
subjectivas, passivas e ilógicas - características estas negativamente
avaliadas.
Assim, se nos finais
do século XIX e princípios do século XX as diferenças encontradas entre os
sexos foram fundamentalmente do foro cognitivo e fisiológico - e se
apoiavam em explicações biológicas - a partir dos anos 30 o foco volta-se
para a personalidade distintiva de homens e mulheres. Em qualquer dos
casos estas diferenças são consideradas estáveis, universais, situam-se no
indivíduo e remetem a mulher para uma posição de inferioridade. Desta
forma se justifica a sua ligação aos cuidados com os filhos e trabalhos
domésticos e lhe é negado o direito à educação e ao prosseguimento de
carreiras profissionais. Nesta fase, a psicologia serviu então para
“reforçar papéis sexuais normativos para as mulheres e justificar práticas
opressivas” (Wilkinson, 1997, p.253) baseando-se em explicações
individualistas, que minimizavam os contextos sociais e políticos.
A
psicologia da mulher: a afirmação da figura feminina
Com o desabrochar da segunda vaga feminista, nos anos 60,
os estudos acerca das mulheres, passaram a ter uma nova abordagem
assumindo-se uma mudança face aos pressupostos teóricos e metodológicos
acerca da representação do sexo feminino e da própria concepção de ciência
(Keller, 1996; Wilkinson, 1997). Introduzir questões feministas, no seio
da academia científica, implicou desafiar de forma radical quer o
conhecimento que se produzia quer o conhecimento que se disseminava. Por
isso se pode afirmar que o feminismo do século XX, para além dos efeitos
políticos e sociais, teve efeitos ao nível do conhecimento (Collin, 1991).
A crítica feminista da ciência surgiu em meados dos anos
70. Até essa altura, as feministas que trabalhavam na, ou sobre, a ciência
eram poucas. Segundo Evelyn Fox Keller (1996), uma nova crítica da ciência
começou a emergir de um número considerável de trabalhos feministas, que
sugeriam a existência de muitas distorções masculinas no exercício da
ciência. A segunda vaga do feminismo começou muito lentamente a analisar e
a contestar a ciência, a ver as conexões entre essa entidade denominada
"ciência" e os problemas centrais do movimento feminista. Nessa altura, as
preocupações diziam respeito, por um lado, às reivindicações de algo que
era negado às mulheres e, por outro lado, à necessidade de visibilidade e
de uma existência social e política (Rose, 1986). A necessidade de criar
um espaço de visibilidade e reconhecimento para o trabalho desta nova
geração de investigadoras conduziu à emergência da psychology of women,
que se institucionalizou com a criação da Divisão 35 (Psychology of
Women Division) no seio da APA, em 1974 e se afirmou, no seio da
comunidade científica, com a fundação das revistas Sex-roles, em
1975 e Psychology of Women Quarterly, em 1977 (Amâncio, 2001;Unger,
1998; Wilkinson, 1997).
Desde essa época, e num breve período de tempo, as
psicólogas feministas tornaram a sua presença conhecida através de
múltiplos esforços para rever e reconstruir a disciplina. Começaram por
denunciar as lacunas e mesmo as falsificações e generalizações abusivas de
um saber que identifica a masculinidade com o universal e exclui e
subordina as mulheres, seja como objecto seja como sujeito (Collin, 1991).
Se, até aos anos 70, a psicologia assumiu como dado adquirido que as
mulheres e os homens eram diferentes, sendo a ausência de diferenças
encontradas sistematicamente ignoradas (Maccoby & Jacklin, 1974;
Hare-Mustin & Marecek, 1990b), nos vinte anos que se seguem o grande
debate passa a ser analisar em que medida as mulheres são iguais ou
diferentes dos homens e o que suporta essa igualdade ou diferença. Nesses
anos os pressupostos teóricos e as investigações vão dividir-se entre:
argumentação para justificar a igualdade de características entre os
géneros, criticando a forma como a investigação foi conduzida;
argumentações para justificar as diferenças entre os géneros; valorização
das diferenças entre os géneros e destruição da associação entre o sexo e
género.
Na sequência da primeira linha de investigação, algumas estudiosas
argumentam que as diferenças entre os sexos derivam de investigações
deficientemente conduzidas ou análises estatísticas pouco cuidadosas (Carlson
& Carlson, 1960; Hare Mustin & Marecek, 1990c; Riger, 1992). As principais
críticas à investigação assentam na deficiência em enunciar a composição
sexual da amostra, na incapacidade em distinguir o significado de um
efeito do tamanho efeito, no enviesamento dos resultados no sentido de
encontrar dados positivos, em confundir diferenças entre os sexos com
diferenças dentro do mesmo sexo, no apoio em amostras reduzidas, com uma
generalização abusiva dos dados ou amostras excessivamente extensas em que
quaisquer dados se apresentam estatisticamente significativos (Carlson &
Carlson, 1960). Para provar o pouco rigor da investigação, Carlson e
Carlson (1960) analisam o Journal of Abnormal and Social Psychology
entre 1958 e 1960. Concluem que num total de 268 estudos, 38% usaram
exclusivamente o sexo masculino e 5% exclusivamente o sexo feminino.
Apenas 108 estudos mencionam serem as amostras constituídas pelos dois
sexos e em 65 deles o sexo dos sujeitos em análise não é identificado.
Por outro lado, algumas investigações vêm defender a ideia de que mesmo
quando se encontram diferenças entre os sexos, elas explicam menos de 5%
da variância sugerindo que os homens e as mulheres são mais semelhantes do
que diferentes (Maccoby & Jacklin, 1974).
A
par desta tendência de minimizar as diferenças entre os sexos, outras
autoras reforçam a existência de diferenças. Por um lado, existem
investigadoras que assumem as diferenças, embora não as considerando
desejáveis (Eagly, 1987) e, por outro, aquelas que as assumem com um
significado de superioridade feminina (Chadorow, 1978; Gilligan, 1982).
Para Alice Eagly (1987), o estatuto de inferioridade do sexo feminino
encontrado pela investigação, não seria intrínseco à mulher mas fruto da
socialização (Eagly, 1987). Esta conduziria ao desenvolvimento de
características que impediam a plena realização da mulher, tais como o
“medo de fracasso” (Horner, 1972), falta de assertividade, baixa
auto-estima e auto-eficácia (Betz & Hackett, 1983; Hackett, 1985). Esta
ênfase na socialização embora tendo tido o mérito de deslocar a atenção
dos aspectos biológicos entre os sexos para o condicionamento cultural e
estereótipos sociais, deixou por explicar a origem dos papéis do género, o
porquê da dominância masculina e se esta era meramente devida a uma falta
de competências que a mulher não teve oportunidade de adquirir (Amâncio,
1994; Hare-Mustin & Marecek, 1990b).
Ainda na mesma linha do reconhecimento das diferenças entre os sexos, mas
com metodologias qualitativas e com pressupostos distintos dos anteriores
Nancy Chodorow (1978) e Carol Gilligan (1982) procuram valorizar
positivamente os atributos femininos, advogando a necessidade de dar voz
às mulheres na afirmação da sua distintividade. Segundo Mednick (1989)
estas abordagens surgem numa época em que o movimento feminista se
encontra numa posição desfavorável em termos políticos. A viragem do
político e social para o nível individual foi a forma encontrada por
algumas feministas de lidar com esta desvantagem. Esta mudança do centro
das atenções, fomenta uma série de abordagens que acentuam a necessidade
da transformação pessoal através, por exemplo, do treino da assertividade
que, apoiando-se em perspectivas comportamentalistas e da aprendizagem
social, pretendiam socializar a mulher mudando estereótipos (Crawford,
1998). Tal como Mednick (1989), também Crawford (1998) chama a atenção do
treino da assertividade como uma defesa de ideais de independência e
individualidade que pressupõem uma deficiência.
Finalmente, num novo quadro de referência, as
investigadoras recusam-se a efectuar comparações entre os sexos
argumentando que o género não é determinante do funcionamento psicológico.
O conceito de androginia psicológica (Bem, 1974) defende a independência
entre o sexo biológico e as componentes psicológicas da personalidade e
propõe este conceito como o modelo ideal de saúde mental. A saúde mental
seria representada por uma flexibilidade de papéis sexuais na qual tanto
homens como mulheres poderiam exibir um leque de características
psicológicas apropriadas às situações nas quais se encontravam. Assim, as
mulheres poderiam ser assertivas, ou complacentes, poderosas ou
condescendentes, dependendo das circunstâncias. No entanto, tal como
anteriormente, esta perspectiva acentua as vertentes individuais da
opressão da mulher e assume o género em termos de qualidades internas e
persistentes. Definindo certos traços de personalidade estereotipados para
homens e para mulheres, acaba por ser perpetuado o mito de que os dois
sexos são realmente e “essencialmente” diferentes um do outro (Nogueira,
2001), descurando a complexidade e o dinamismo dos comportamentos que
nascem durante as interacções sociais, bem como as estruturas sociais das
desigualdades (Amâncio, 1994). Deste modo, como salienta Morawski (1987,
p. 50): "O construto de androginia situa-se numa abordagem convencional da
psicologia. Quer seja explicada através de esquemas do self e
cognitivos ou através da teoria do traço, a androginia adere aos canons
actuais da psicologia".
Em todas as perspectivas supramencionadas, os pressupostos explicativos
deixam de fora o sistema social, cultural e os factos históricos que
influenciam o sistema de crenças dos indivíduos, os seus valores e
comportamentos, atribuindo implicitamente as causas desses factores a
determinantes individuais estáveis (Amâncio, 1992, 1994; Riger, 1992,
Saavedra, 2005). Dando continuidade à tradição aristotélica na psicologia
de organizar o mundo em dualidades e dicotomias, que conduzem
inevitavelmente a comparações e contrastes, a grande questão permaneceu em
provar em que medida as mulheres eram iguais ou diferentes dos homens e
nas explicações que suportavam essa igualdade ou diferença (Hare-Mustin &
Marecek, 1990a, 1990c). A distinção entre "sexo" e "género", sugerida e
desenvolvida nesta época constituiu-se como uma importante tentativa de
separar o sexo biológico do social. No entanto, a força cultural do
essencialismo acabou por manter a distinção e as “diferenças sexuais”
deram lugar às “diferenças de género”. Estas novas diferenças são iguais
às antigas mas "vestidas" de outro modo, pois continuam a ser intrínseca
aos indivíduos, socialmente descontextualizadas e rapidamente biologizadas
(Nogueira, Neves & Barbosa, 2006). Por tudo isto se pode concluir que a
“psicologia da mulher” é suportada por projectos feministas assentes em
posturas empiricistas, cujo principal objectivo é colmatar as omissões e
distorções relativamente ao sexo feminino, minorando o enviesamento
androcêntrico presente tanto na psicologia como em outras áreas das
ciências sociais (Burman, 1998; Crawford, 1998; Llombart, 1998; Wilkinson,
1997). Mas apesar das muitas mudanças alcançadas a favor da situação da
mulher, qualquer uma destas perspectivas mantém os mesmos métodos e
instrumentos de investigação, “conspirando” com a psicologia dominante no
sentido de criar uma área de estudos sobre as mulheres independente e de
essencializar as categorias sociais e as identidades (Burman, 1998).
Em termos práticos,
a tendência para enfatizar as diferenças entre homens e mulheres mantém o
status quo e justifica as desigualdades de tratamento entre ambos.
Por outro lado, a tendência para minimizar as diferenças permitiu um maior
acesso das mulheres à educação e às oportunidades de emprego, mas
obscureceu o facto de que o tratamento igual dos dois sexos não permite,
necessariamente, o alcançar da igualdade (Riger, 1992).
A psicologia
feminista: a importância da mudança social
Tendo-se tornado relativamente clara, para um número considerável de
autores e autoras, a impossibilidade em determinar a “verdade” acerca das
diferenças ou semelhanças entre homens e mulheres, o foco da atenção
volta-se, a partir dos anos 90, para o próprio significado da diferença e
como estas são construídas pelos homens e pelas mulheres, tanto no
dia-a-dia como na investigação (Hare-Mustin & Marecek, 1990a, 1990b; Riger,
1992; Wilkinson, 1997). O género passa a ser concebido, ora como um
conjunto de princípios que organizam as relações entre homens e mulheres
num determinado contexto social e cultural (Marecek, 1995), ora como “um
princípio de organização social que estrutura relações de poder entre os
sexos” (Wilkinson, 1997, p. 261) ou ainda como performances através
das quais os homens e as mulheres se posicionam uns face aos outros e
constroem as suas subjectividades (Butler, 1990, Halloway, 1984 in Marecek,
1995).
Por oposição a uma visão essencialista do género, que
assume o desenvolvimento das mulheres como diferente do dos homens
resultando em diferenças essenciais que são estáveis e estruturantes da
personalidade, esta perspectiva de construção social do género assume que
as características que se atribuem a fêmeas e machos não são intrínsecas
aos indivíduos e determinadas pelo sexo, mas são construídas social e
situacionalmente. Nesta ordem de ideias até mesmo, as categorias
biológicas são socialmente construídas (Freud, 1994). A dicotomia
homem-mulher baseada em critérios biológicos cai facilmente por terra se
tivermos em conta a composição dos cromossomas sexuais, hormonas e
estrutura genital, que permitem defender a existência de mais de dois
sexos (Unger, 1979, 1990).
A perspectiva construcionista do género é enfatizada,
assim, como uma epistemologia claramente pós-empiricista. Em contraste com
uma visão essencialista, de índole biológica ou social o género passa a
ser olhado como uma construção social, um sistema de significados que se
constrói e se organiza nas interacções e que governa o acesso ao poder e
aos recursos (Crawford, 1995). Não é por isso um atributo individual, mas
uma forma de dar sentido às transacções: ele não existe nas pessoas mas
sim nas relações sociais (3). Enfatiza-se a
forma como as categorias sociais, ou os processos, são produzidos pelo uso
da linguagem (Gergen, 1982; 1994) e, contrariamente à epistemologia
positivista da realidade como "descoberta", é salientada a construção da
realidade (Burr, 1995) e a contextualização histórica e cultural dos
fenómenos psicológicos (Gergen, 1982).
As filosofias de tendência pós-modernista (Flax, 1990)
reconhecem a contradição como parte fundamental da realidade social e isso
é consistente com a argumentação de que as categorias como o sexo e o
género podem funcionar com definições distintas e em simultâneo numa
situação particular. Diferentes participantes, ou mesmo apenas um só
indivíduo, podem, no decorrer de uma interacção social, afirmar diferentes
perspectivas de género, dependendo dos aspectos salientes das categorias
no momento (Hare-Mustin & Marecek, 1990b).
Os processos relacionados com o género influenciam o
comportamento, os pensamentos e os sentimentos dos indivíduos, afectam as
interacções sociais e ajudam a determinar a estrutura das instituições
sociais. Como o género é uma ideologia dentro da qual as diferentes
narrativas são criadas, as distinções de género encontram-se disseminadas
na sociedade. Assim se explica que o discurso do género tenha construído a
masculinidade e a feminilidade como pólos opostos e tenha essencializado
as diferenças daí resultantes.
A partir do momento em que o género é encarado não como um
atributo dos indivíduos, mas como um sistema de significados, o processo
que cria as diferenças sexuais e a forma como se equaciona o poder pode
ser compreendido em termos de um sistema que funciona a três níveis:
societal, interpessoal e individual (Crawford, 1995).
A nível societal, o género pode compreender-se como um
sistema de relações de poder que justifica a violência contra as mulheres,
a mutilação genital ou o assédio sexual, isto é, um sistema que permite
que diferentes grupos de mulheres sejam controladas e discriminadas. O
poder conferido pelo género é difuso, subtil e multidimensional e
interfere com outros sistemas de classificação tais como a classe social,
a raça ou a orientação sexual. Ao nível interpessoal, o género interfere
nas relações interpessoais, relativamente à formação de impressões
associadas, por exemplo, a estereótipos; implica expectativas
diferenciadas assim como comportamentos diferenciados que frequentemente
são tomados como exemplo de traços estáveis de personalidade. Ao nível
individual o género implica a ideia de feminilidade e de masculinidade, a
importância da construção da(s) identidade(s) e, frequentemente, a
internalização da subordinação (Crawford, 1995; Crawford & Unger, 2000).
Assume-se, assim, que o género é uma invenção das
sociedades humanas, uma "peça de imaginação" com facetas multifacetadas,
que permite construir adultos, homens e mulheres, desde a infância. O
género conduz a "arranjos sociais", tais como a divisão das esferas da
vida em privado e público e permite, ainda, a criação de significado, isto
é, criar as estruturas linguísticas que modelam e disciplinam a nossa
imaginação (Hare-Mustin & Marecek, 1990b).
Estas novas formulações sobre o género são consequência de um conjunto de
novas teorias e perspectivas analíticas e metodológicas onde se incluem o
construcionismo social, o construtivismo, o desconstrucionismo, a
psicologia discursiva, a análise de discurso e o pós-estruturalismo, entre
outras, que separadamente ou cruzando-se entre si abriram novas questões e
tópicos de investigação para o feminismo e para a psicologia feminista (Hepburn,
2000). Dessas novas questões, três delas têm-se imposto como fonte
polarizadora de amplos debates no palco do feminismo, em geral, e da
psicologia feminista em particular. São elas: a designação de psicologia
da mulher versus psicologia feminista, o relativismo pós-moderno e
a diversidade da opressão das mulheres. Estas questões não são meramente
teóricas. As várias posturas assumidas face a cada uma delas têm profundas
implicações no modo de conceber e levar a cabo a investigação.
Psicologia da mulher
versus psicologia feminista
Uma das principais questões prendeu-se precisamente com a própria
designação da área de conhecimento. A designação de psicologia da mulher é
criticada por aquelas e aqueles que defendem o conceito de psicologia
feminista porque pressupõe uma visão essencialista ao sugerir que as
mulheres, como grupo unitário, partilham um conjunto de qualidades, traços
e capacidades, inatas ou adquiridas que, presumivelmente, lhes condiciona
o comportamento (Nogueira, 1999; Nogueira, Neves & Barbosa, 2006).
Efectivamente, muitas psicólogas investigam e escrevem acerca de mulheres
e de assuntos de mulheres sem se identificarem como feministas. Despida da
sua orientação, valor feminista e postura activista, a psicologia de
mulheres é pouco diferente da psicologia tradicional, apenas com a adição
de mulheres como tópico de estudo. Este posicionamento é, obviamente,
muito pouco crítico e pouco comprometedor em termos académicos.
Sob a influência das correntes de pensamento acima referidas,
genericamente designadas por movimento pós-moderno, algumas autoras
consideram que a designação de psicologia feminista deve ser reservada
para aquelas perspectivas em que o conceito de feminismo e sua ligação com
a área política e de mudança social está em evidência (e.g. Burman, 1998;
Llombart, 1998; Wilkinson, 1997). Para Wilkinson (1997) a psicologia
feminista caracteriza-se pela valorização da mulher como objecto de
estudo, e não apenas por comparação com o homem, e pelo assumir da
vertente política e a necessidade da mudança social. Define-se, então,
como “a teoria e a prática psicológica que é explicitamente influenciada
pelos objectivos políticos do movimento feminista” (Wilkinson, 1997,
p.247).
Assumindo-se como uma estratégia entre a psicologia e o feminismo, a
psicologia feminista não é uma área estável nem pretende ser,
obrigatoriamente, uma área de estudo dentro da psicologia, mas acima de
tudo um local de contestação e desafio (Burman, 1998). A necessidade de a
psicologia feminista se afirmar como área independente de conhecimento tem
dependido um pouco das próprias características do movimento feminista nos
diferentes países e de outras características dos mesmos (Parker, 1999).
Os custos para aquelas que se assumem como psicólogas feministas são,
contudo, elevados. Ao contrário da psicologia da mulher, a identificação
pessoal com uma psicologia feminista, pode colocar o/a investigador/a ou
académico/a no risco de isolamento, menor estatuto na comunidade académica,
exclusão das revistas principais e marginalização dentro da sua própria
profissão (Worell, 2000) (4).
O relativismo
pós-moderno
A
emergência das perspectivas genericamente designadas por pós-modernas
trouxe consigo algumas dúvidas acerca da compatibilidade de alguns
elementos destes trabalhos com os pressupostos políticos e morais do
feminismo. O relativismo epistemológico (5) foi
um dos principais alvos destes debates (Hepburn, 2000). Nesta linha de
ideias Wilkinson e Kitzinger (1995, p. 6) afirmam que o relativismo
pós-moderno, presente nas abordagens discursivas da psicologia, cria
dificuldades ao feminismo: “O compromisso discursivo com o relativismo
nega o terreno para um feminismo político”.
Não é, contudo, linear
a associação entre o relativismo e o pós-modernismo, tendo em conta que
este movimento não pode ser entendido como unitário (Rosenau, 1992).
Rosenau considera pelo menos duas orientações: o pós-modernismo céptico e
o pós-modernismo afirmativo. A perspectiva afirmativa recorre a métodos de
investigação que evidenciam as mensagens opressivas ocultas nos discursos
sociais, científicos e políticos (Burman, 1994; Hare-Mustin & Marecek,
1994; Parker, 1992). Em contrapartida, o pós-modernismo céptico tem dado
especial relevo ao relativismo moral, tendo dificuldade em assumir uma
posição inequívoca face à questão da justiça e mudança social, optando
frequentemente pelo silêncio nesta matéria (Prilleltensky, 1997;
Richardson & Fowers, 1997).
Para as perspectivas afirmativas o pós-modernismo céptico,
criticando todas as explicações e teorias definitivas, questionando todas
as “grandes narrativas”, todos os paradigmas existentes sejam eles
liberais, conservadores ou progressistas e defendendo a multiplicidade de
perspectivas torna-se de “um relativismo feroz, conduzindo ao niilismo e a
uma anomia social” (Kvale, 1992, p.8). Numa concepção afirmativa, o facto
de relativizarmos os acontecimentos e as teorizações não significa que
todas as concepções sejam moralmente idênticas, igualmente válidas e
igualmente úteis. Uma postura relativista levada ao extremo torna difícil
defender um projecto crítico seja ele na psicologia ou no feminismo (Gill,
1995). Daí que algumas feministas, tenham considerado que as críticas
efectuadas pelo relativismo ao realismo são pertinentes e importantes para
o feminismo, mas criaram um impasse de crítica que não abre caminho à
procura da justiça social e à igualdade. Como forma de ultrapassar este
impasse são propostos os conceitos de reflexividade (Gill, 1995) e de
realismo crítico (Parker, 1997). O primeiro, significa que o investigador
explicite e revele as suas posições e interpretações, em oposição à
reflexividade dos relativistas que não evidenciam a perspectiva do valor.
O último implica aceitar que existe uma realidade exterior independente da
nossa visão, embora seja difícil aceder a essa mesma realidade devido à
complexidade, de um conjunto de mecanismos físicos, sociais, económicos e
biológicos. É a complexidade destes mecanismos, que actuam diferentemente
e de forma conflituosa numa situação particular, que inviabilizam o
estabelecimento de uma relação de causa e efeito, ou seja, a
previsibilidade do comportamento humano. Pela mesma razão torna-se difícil
aprofundar o conhecimento sobre a realidade e a natureza humana (Parker,
1997).
Quer se trate do
realismo crítico, de uma reflexividade crítica ou de “um relativismo que
não tenha vergonha de ser político” (Nogueira, 2001, p. 233) o que se
evidencia é sempre a necessidade de existir uma ética em direcção à
justiça e emancipação que seja plenamente assumida pelo investigador ou
investigadora.
A diversidade na
opressão das mulheres
Admitir que a fonte da subordinação e opressão das mulheres
seja essencialmente o género ou as outras localizações das identidades
pessoais tem sido uma das maiores controvérsias na psicologia feminista
actual. A psicologia feminista foi originalmente desenvolvida por
psicólogas brancas da classe média. Contudo, o pós-estruturalismo e o
feminismo "negro" (Baumgardner & Richards, 2000; Collins, 1991) permitiram
conceber a heterogeneidade da categoria género, ou seja, de que as
mulheres não se definem apenas por relação aos homens, mas também em
relação a outras mulheres. Por outro lado, a literatura foi acentuando que
diferentes versões de feminilidade estão em íntima ligação com a origem
étnica, racial, orientação sexual e posição de classe (Saavedra, 2005;
Skeggs, 1997).
A
insistência do feminismo multicultural na diversidade das experiências das
mulheres, despoletou novas áreas de estudo e de investigação relativas à
pluralidade das identidades sociais e pessoais das mulheres. Contudo,
algumas feministas questionam se a tendência para salientar a diversidade
entre as mulheres permite que existam movimentos de libertação das
mulheres, pois sem esta concepção de unidade a política feminista pode
perder consistência. Ao mesmo tempo o considerar que existem mulheres que
oprimem outras, com base na sua classe social, raça e etnia, por exemplo,
poderá tornar difícil continuar a conceber a subordinação das mulheres
(Adams, 1996; Charles, 1996).
Outras feministas,
contudo, consideram que apesar das mulheres terem múltiplas identidades,
pode ser construído um certo sentido de unidade entre elas em certas
situações e em torno de certas questões que podem ser comuns, pelo menos
em determinados contextos histórico-sociais (Cowan, 1996; Davis, 1996,
Tavares, 2000; Young, 2003). O conceito de género como serialidade (Young,
2003) pode ser uma forma de ultrapassar esta aparente dificuldade e ao
mesmo tempo de refutar as características essencialistas sejam elas de
género, classe social ou raça. Segundo Young (2003), a colectividade
serial é o contrário da identificação típica de um grupo: “Cada um vai à
sua vida. Mas cada um está também consciente de um contexto serializado
dessa actividade num colectivo social cuja estrutura os constitui no
interior de certos limites e constrangimentos” (p. 125). Assim, continua a
autora: “ nas séries, os indivíduos estão isolados, mas não sozinhos.
Vêem-se a si próprios constituídos como um colectivo, como serializados,
pelos objectos e práticas através dos quais pretendem conseguir os seus
propósitos individuais” (p. 126).
Conclusão
Apesar da existência de conflitos internos, e de debates contínuos, a
psicologia feminista continua a crescer e a mostrar-se frutífera no
levantar de problemas e soluções alternativas construtivas assim como
abordagens inovadoras. Segundo Wilkinson (1996), a diversidade das
psicologias feministas, tanto ao nível dos temas de estudos como dos
métodos de investigação tem sido altamente positiva e a multiplicidade das
práticas de investigação em psicologia sugere a maturidade deste domínio.
Para Keller (1996) os conflitos que estas diferentes posições feministas
críticas acarretam, podem ser considerados como benefícios libertadores
para a própria ciência. A pluralidade preconizada pelo pós-modernismo
aliada a um posicionamento realista crítico poderá ser uma solução a
valorizar.
Os estudos feministas
permearam áreas substantivas da pesquisa psicológica e do conhecimento. O
activismo feminista deu origem e promoveu novas estruturas dentro das
associações da psicologia, um substantivo aumento do número de mulheres no
poder e na liderança. Muitas psicólogas feministas conseguiram lugares de
liderança nas suas instituições, departamentos e universidades. Apesar
destas figuras públicas poderem não promover as crenças feministas, as
suas políticas e acções reflectirão o seu compromisso.
Em suma, as psicólogas
feministas aspiram à promoção de uma disciplina aberta á mudança, que
valorize e promova a igualdade e a justiça social entre grupos e
indivíduos e que seja activa na insistência para o bem-estar, quer de
homens, quer de mulheres, de todos os grupos sociais.
Por isso, a
psicologia feminista abriu portas que não serão facilmente fechadas.
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Notas
(1) Leta Stetter Hollingworth (1914a)
demonstrou empiricamente que durante o período menstrual as mulheres não
se distinguem do sexo masculino nas capacidades intelectuais, perceptivas
ou motoras.
[volta]
(2) Estas perspectivas foram influenciadas
pelo principio da conservação da energia proposto por Helmholtz. Sendo
cada corpo um sistema fechado, os diversos órgãos teriam de disputar entre
si a quantidade de energia disponível e acreditava-se que a grande batalha
ocorria entre o cérebro e os órgãos reprodutores (Vieira, 2003).
[volta]
(3) Segundo Bohan (1993) a diferença entre
um modo de pensamento essencialista e um construcionista pode ser
ilustrado pelo exemplo que implica a diferença de se dizer que alguém é
amigável ou que uma conversação é amigável. Alguém ser amigável pressupõe
um traço de uma pessoa, uma componente essencial da personalidade. Numa
conversação amigável faz-se referência à natureza da interacção a ocorrer
entre as pessoas. Numa abordagem essencialista o género equivaleria à
ideia da pessoa amigável, enquanto numa perspectiva construcionista o
género é algo análogo à ideia de uma conversação amigável.
[volta]
(4) Foi o reconhecimento de tal situação de
marginalização que levou à criação da Revista Feminism & Psychology,
fundada em 1991, que, intencionalmente, não está filiado em nenhuma
instituição de psicologia (Wilkinson, 1997).
[volta]
(5)
Segundo Hepburn, autora que se assume e defende o relativismo (2000, p.
93), este “é uma forma mais ou menos sistemática de dúvida sobre a
possibilidade da objectividade e a fundamentação socialmente independente
do conhecimento, tais como dados, experiências, observações, realidade,
Deus, etc.”. [volta]
Nota sobre as autoras
Luísa Saavedra é Doutorada em Psicologia da Educação, no domínio dos Estudos de
Género e é docente do Departamento de Psicologia, do Instituto de Educação
e Psicologia da Universidade do Minho, Braga, Portugal. Investiga sobre as
questões de género desde 1995 e é autora do livro “Aprender a ser
Rapariga, aprender a ser rapaz: teorias e práticas da escola”, editado
pela Almedina e co-autora com Pedro Rosário e Maria do Céu Taveira de uma
investigação, publicada pela Universidade do Minho, Classe social no
feminino: percursos e (co)incidências. Contatos:
luisasaavedra@sapo.pt ou lsaavedra@iep.uminho.pt
Conceição Nogueira
é Doutorada em Psicologia Social, no domínio dos Estudos de Género e é
docente do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho, Braga,
Portugal. Lecciona as disciplinas de Intervenção Comunitária e Psicologia
e Diversidade nos cursos de graduação sendo coordenadora do Programa de
Doutorado em Psicologia Social Género e Sexualidade. É co-editora com
Lígia Amâncio do livro Gender, Management and Science, co-autora com Isabel Silva do
livro “Cidadania. Construção de novas práticas em contexto educativo” e
autora do livro “Um Novo Olhar Sobre as Relações sociais de género”,
editado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Contato: cnog@iep.uminho.pt
Data
de recebimento: 16/01/2006
Data de aceite: 08/05/2006
-
-
Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
-
ISSN 1676-1669
-
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/saavedragomes01.htm
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