Saavedra, L. e Nogueira, C. (2006). Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção  de  memórias  futuras.  Memorandum,  11,  113-127.  Retirado  em          / / , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/saavedranogueira01.htm

Memórias sobre o feminismo na psicologia: para a construção de memórias futuras

Memories about feminism in psychology: for the construction of future memories

Luísa Saavedra
Conceição Nogueira
Universidade do Minho
Portugal

 

Resumo
A psicologia constituiu-se, ao longo dos anos, como um fórum privilegiado para o estudo das diferenças entre homens e mulheres, apoiando-se em explicações que vão desde o domínio da biologia até às relações de poder entre os géneros. Para uma clara compreensão dos estudos de género e das posturas feministas na psicologia torna-se necessário organizar a produção realizada ao longo dos tempos. Com este objectivo em mente apresentam-se três grandes períodos. O primeiro em que a figura feminina se encontra ausente ou é concebida como inferior. Um segundo período em que acede a um lugar de maior destaque, embora os pressupostos tradicionais se mantenham. Finalmente, a actualidade, em que novos horizontes se abrem, questionando as perspectivas tradicionais, afirmando a necessidade de acentuar a vertente social e política com consequências ao nível da investigação e intervenção.

Palavras-chave: psicologia da mulher; psicologia feminista; essencialismo; relativismo; reflexividade.

Abstract
Throughout the years, psychology has established itself as a privileged forum for the study of differences between men and women, sustained by explanations that go from biology to gender relations of power. In psychology, for a clear understanding of gender studies and feminist approaches, it is necessary to organize the achieved production in chronological stages. With this aim in mind, three long periods are presented. A first one, in which the feminine figure is absent or considered as inferior. A second period, during which she takes a more prominent position, although the traditional principles are maintained. Finally, the present time, in which new horizons are opened up to us by questioning traditional perspectives and asserting the need to stress the social and the political dimension with consequences on investigation and intervention levels.

Keywords: psychology of women; feminist psychologist; essentialism; relativism; reflexivity.

 

Introdução

Desde que a psicologia se passa a afirmar como ciência, a figura feminina, a masculina e as suas relações foram alvo de diversas conceptualizações ontológicas, epistemológicas e metodológicas.

Tendo em conta os principais pontos de ruptura evidenciadas ao longo dos pouco mais de 100 anos da psicologia, consideraremos três grandes períodos no modo de conceber a mulher, o homem e as suas relações. Um primeiro período é marcado por uma figura feminina ausente ou por uma presença inferiorizada correspondendo à época em que as mulheres, como investigadoras, são praticamente ausentes no campo da psicologia. O segundo período coincide com a segunda vaga feminista, em que as mulheres entram na academia e se olham a si próprias como objecto e sujeito de estudo, considerando as suas experiências e particularidades. As teorias e investigações geradas neste período são nomeadas de “psicologia da mulher”, designação adoptada pela Divisão 35 da American Psychological Association e pela British Psychological Society, organização idêntica do Reino Unido (Unger, 1998; Wilkinson, 1997). O período actual terá tido o seu início nos finais dos anos 80, inícios dos anos 90, e resulta da confluência de uma série de perspectivas (desconstrucionismo, psicologia discursiva, analise de discurso, construcionismo, construtivismo, pós-estruturalismo) que genericamente se designam de movimento pós-moderno e que puseram em causa os pressupostos positivistas-empiricistas em que assentaram os pressupostos anteriormente assumidos.

O período pré-feminista da psicologia: a figura feminina ausente ou desvalorizada

 

O primeiro período dos estudos sobre a mulher coincide com a afirmação da psicologia como ciência moderna, em ruptura com a época medieval. Quando a cisão entre psicologia e filosofia ocorre, a ciência psicológica segue um modelo predominantemente biológico que impõe a utilização de métodos experimentais e psicométricos para a avaliação das diferenças individuais (Nogueira, 2000). A epistemologia dominante nesta recém-nascida ciência orienta-se para a procura de um conhecimento objectivo, isento de valores sociais, políticos e morais, assentando numa filosofia individualista que encara as pessoas como racionais, livres e auto-determinadas (Gergen, 2001; Kahn & Yoder, 1989).

Galton (1869, em Santome, 1995) é um dos primeiros autores a fazer referência às capacidades intelectuais das mulheres. Em “Hereditary genius, its laws and consequences” afirma a superioridade intelectual da aristocracia e dos membros distintos da sociedade por contraponto com a inferioridade intelectual dos grupos economicamente desfavorecidos e das mulheres: “se a esperteza das mulheres fosse superior à dos homens, os empresários, no seu próprio interesse, empregá-las-iam sempre antes dos homens, mas, como acontece o contrário é provável que a suposição oposta seja verdadeira” (citado por Santomé, 1995, p. 39).

Nos finais do século XIX e princípios do século XX a concepção da inferioridade intelectual da mulher encontra-se bastante disseminada e é relativamente consensual. Os primeiros estudos, no âmbito da psicologia, mostram também a grande proximidade desta ciência com a biologia. Uma das principais preocupações é a comparação entre homens e mulheres em domínios como a capacidade motora, aspectos detalhados da fisiologia e anatomia cerebral, entre outros (Hall, 1904). A título ilustrativo, refira-se que foi demonstrada a inferioridade do cérebro feminino relativamente ao peso total, ao peso proporcional do lobo frontal, à área do corpo caloso, à complexidade e configuração das circunvoluções cerebrais e ao grau de desenvolvimento do córtex no feto (Wooley, 1910). Como se pensava que o tamanho e fisiologia do cérebro se encontravam em íntima ligação com as capacidades cognitivas, esta era uma das fundamentações para a inferioridade intelectual da mulher (Vieira, 2003).

No que diz respeito à capacidade motora, Helen Thompson Wooley (1903) menciona que os estudos indicam a superioridade do homem face à mulher na força, rapidez de movimento, grau de fadiga e precisão de movimento, aspectos que parecem ser reflexo da maior força muscular masculina. Em contrapartida, na coordenação motora as mulheres aparecem, na maior parte dos estudos, como superiores. No domínio intelectual, a maior parte dos autores apontam para uma superioridade das mulheres na memória e no pensamento associativo e dos homens na criatividade. A consciência social aparece mais saliente no sexo masculino e a consciência religiosa no sexo feminino (Wooley, 1903).

As principais fundamentações para estas diferenças, ainda que não consensuais, derivam do processo de desenvolvimento da humanidade durante o qual ocorreu uma divisão do trabalho entre os sexos tendo o homem assegurado o papel da nutrição e a mulher, o da reprodução. Esta divisão fez com que a fisiologia masculina se tornasse mais catabólica e a feminina mais anabólica, o que está patente nas próprias células sexuais: a da mulher é grande e imóvel - representando a alimentação acumulada - e a masculina pequena e ágil - representando a energia em expansão. As diferenças psicológicos e sociais entre os sexos podem ser deduzidas a partir deste ponto de partida:

A mulher representa a conservação das espécies - a preservação do passado adquirido pela raça. As suas características são a continuidade, a paciência e a estabilidade. A sua vida mental é dominada pela integração. Ela tem habilidade para as ideias particulares e para a aplicação das generalizações já adquiridas, mas não para a abstracção ou formação de novos conceitos. Como a mulher é receptiva possui sentidos mais apurados e reflexos mais intensos do que o homem. A sua tendência para acumular alimentos traz-lhe um maior desenvolvimento das vísceras e como as emoções são ondas reflexas das vísceras, a mulher é mais emocional do que o homem. O homem, pelo contrário, representa a introdução a novos elementos. Os homens são capazes de uma concentração da atenção mais intensa e prolongada. São menos influenciados pelos sentimentos do que as mulheres. Têm maior poder de abstracção e generalização (Wooley, 1903, p. 172).

Embora Helen Thompson Wooley concorde que os resultados das investigações “encaixem” adequadamente nas explicações avançadas pelos autores, salienta que a teoria das bases biológicas para as diferenças entre os sexos não está suficientemente fundamentada e que a velha questão sobre o papel da hereditariedade e do meio deve ser levada em consideração. Desta forma, ressalta os diferentes meios sociais e culturais em que ambos os sexos se desenvolvem o que explicaria que rapazes e raparigas sejam socialmente estimulados para diferentes actividades:

A mais provável interpretação dos factos é que as necessidades de organização social conduziram, no passado, a uma divisão do trabalho entre os sexos, cuja utilidade é evidente. Os ideais sociais foram desenvolvidos em relação com as necessidades económicas e persistem ainda (Wooley, 1903, p. 181).

Uma outra forma da ciência psicológica afirmar a inferioridade intelectual das mulheres foi através da “teoria” da maior variabilidade do sexo masculino, ou seja, de que nos homens estariam presentes tanto os grandes génios como os grandes débeis intelectuais. Um corolário desta teoria seria o de que as mulheres nunca poderiam chegar ao mesmo nível que os homens e que teriam que se contentar com a mediocridade. Em 1910, Thorndike (citado por Hollingworth, 1914b, p. 510) afirmava: “se os homens diferem entre si em inteligência e energia através de maiores extremos do que a mulher, os cargos mais elevados e de liderança do mundo devem, inevitavelmente pertencer aos homens. Eles irão merecê-los mais frequentemente”.

Helen Thompson Wooley e Leta Stetter Hollingworth - aluna de Thornike e uma das pioneiras no estudo das crianças sobredotadas - resistiram profundamente a estas persectivas. Wooley (1903), argumenta que os rapazes são treinados para a individualidade, para serem independentes na acção e no pensamento; são encorajados a usar ferramentas e máquinas e a experimentar a mais diversa série de actividades. As raparigas, em contrapartida, são ensinadas à obediência, dependência e deferência. Na mesma linha de ideias, Hollingworth (1914b, p. 529) afirma:

Mesmo que fosse estabelecido que actualmente é maior a variabilidade dos traços mentais dos homens isso apenas sugeriria, e não provaria, que existe maior variabilidade inerente. Assim (a) a oportunidade e exercício dos sexos tem sido diferente e desigual, (b) a variabilidade intelectual teve um valor de sobrevivência para os homens mas para as mulheres teve pouco ou nenhum valor – isto em virtude dos diferentes papéis desempenhados pelos sexos na perpetuação das espécies [itálico da autora].

A ideia profundamente disseminada de que as raparigas e mulheres sofrem de inúmeros distúrbios físicos provocados pela menstruação (1) leva um número considerável de homens a desaconselharem vivamente o envolvimento do sexo feminino nas actividades académicas, porque se suponha que existiria uma incompatibilidade entre a energia gasta durante o período menstrual e aquela que seria necessária para a actividade intelectual (2) (Vieira, 2003). Apesar disso, no final do século XIX algumas escolas e Universidades começaram a aceitar mulheres, tanto em estabelecimentos sexualmente mistos ou exclusivamente para mulheres (Spence, Deaux & Helmreich, 1985). Os resultados obtidos pelo sexo feminino no âmbito académico parecem, segundo Stanley Hall (1904), ter sido um factor importante pois “forçaram as mentes mais conservadoras a admitir que o seu intelecto não é inferior ao do homem” (p. 612). O reduzido ingresso das mulheres nestes locais públicos conduziu, no entanto, a uma preocupação cada vez mais acentuada com as consequências negativos da escolarização feminina na maternidade. Numerosos estudos fazem alusão aos efeitos nefastos da escolaridade na redução do número de casamentos e de filhos dessas mulheres. Não é, por isso, estranha a seguinte descrição da maternidade e do papel da mulher na mesma:

o corpo e alma da mulher foi feita para a maternidade e ela não poderá nunca encontrar o verdadeira repouso sem ela. Quanto mais conhecemos o conteúdo da mente da jovem mulher tanto mais claramente vemos que todas as coisas, conscientes e inconscientes, apontam para a maternidade como o verdadeiro objectivo da sua vida. Mesmo que ela não tenha consciência disso, toda a sua natureza exige em primeiro lugar uma criança para amar, que dependa dela para cuidar e, talvez um pouco menos, um homem que ela respeite e em quem confie para lhe dar força e proteger no levar a cabo desta função (Hall, 1904, p. 610).

Por volta dos anos 20, a inconsistência dos resultados encontrados sobre as diferenças entre os sexos fez com que este domínio da psicologia fosse um pouco “posto de lado”. (Morawski, 1987). De entre aqueles que persistiram neste domínio de investigação, os mais bem sucedidos foram sem dúvida Lewis Terman e Catherine Cox Miles (Morawski, 1987). O trabalho desenvolvido por este autor e autora, a partir de 1936, tinha como principal objectivo identificar e medir atributos psicológicos de homens e mulheres a fim de revelar incongruências entre o sexo biológico e o sexo psicológico e identificar a homossexualidade ou predizer problemas no ajustamento conjugal (Morawski, 1987). Este tipo de investigação obteve grande popularidade e veio a dar origem a um conjunto de estudos em que foram determinadas as características típicas de homens e mulheres, mudando-se, assim, o centro da atenção das diferenças intelectuais para as diferenças de personalidade entre os sexos. Parsons e Bales (1955), baseando-se na orientação de papéis na família, associaram a figura masculina à instrumentalidade e a feminina à expressividade. A instrumentalidade caracteriza-se pela auto-determinada e pela orientação para objectivos (independência, assertividade e capacidade de decisão). A expressividade, em contrapartida, é definida a partir características orientadas para o domínio interpessoal e emotivo (afabilidade, sensibilidade para os outros, capacidade em responder emocionalmente e necessidade de afiliação). Perfis idênticos de homens e mulheres foram definidos por Bakan (1966) como agenticidade – para o sexo masculino – e comunalidade - para o sexo feminino.

Esta área de investigação teve ainda continuidade nos inícios dos anos 70. Em 1972, Broverman, Vogel, Broverman, Clarkson e Rosenkrantz, seguindo uma linha de orientação idêntica, determinaram que os homens eram vistos como independentes, agressivos, auto-confiantes, activos, capazes de tomar decisões e com capacidade de liderança enquanto as mulheres eram, geralmente, vistas pelo pólo oposto: dependentes, subjectivas, passivas e ilógicas - características estas negativamente avaliadas.

Assim, se nos finais do século XIX e princípios do século XX as diferenças encontradas entre os sexos foram fundamentalmente do foro cognitivo e fisiológico - e se apoiavam em explicações biológicas - a partir dos anos 30 o foco volta-se para a personalidade distintiva de homens e mulheres. Em qualquer dos casos estas diferenças são consideradas estáveis, universais, situam-se no indivíduo e remetem a mulher para uma posição de inferioridade. Desta forma se justifica a sua ligação aos cuidados com os filhos e trabalhos domésticos e lhe é negado o direito à educação e ao prosseguimento de carreiras profissionais. Nesta fase, a psicologia serviu então para “reforçar papéis sexuais normativos para as mulheres e justificar práticas opressivas” (Wilkinson, 1997, p.253) baseando-se em explicações individualistas, que minimizavam os contextos sociais e políticos.

A psicologia da mulher: a afirmação da figura feminina

Com o desabrochar da segunda vaga feminista, nos anos 60, os estudos acerca das mulheres, passaram a ter uma nova abordagem assumindo-se uma mudança face aos pressupostos teóricos e metodológicos acerca da representação do sexo feminino e da própria concepção de ciência (Keller, 1996; Wilkinson, 1997). Introduzir questões feministas, no seio da academia científica, implicou desafiar de forma radical quer o conhecimento que se produzia quer o conhecimento que se disseminava. Por isso se pode afirmar que o feminismo do século XX, para além dos efeitos políticos e sociais, teve efeitos ao nível do conhecimento (Collin, 1991).

A crítica feminista da ciência surgiu em meados dos anos 70. Até essa altura, as feministas que trabalhavam na, ou sobre, a ciência eram poucas. Segundo Evelyn Fox Keller (1996), uma nova crítica da ciência começou a emergir de um número considerável de trabalhos feministas, que sugeriam a existência de muitas distorções masculinas no exercício da ciência. A segunda vaga do feminismo começou muito lentamente a analisar e a contestar a ciência, a ver as conexões entre essa entidade denominada "ciência" e os problemas centrais do movimento feminista. Nessa altura, as preocupações diziam respeito, por um lado, às reivindicações de algo que era negado às mulheres e, por outro lado, à necessidade de visibilidade e de uma existência social e política (Rose, 1986). A necessidade de criar um espaço de visibilidade e reconhecimento para o trabalho desta nova geração de investigadoras conduziu à emergência da psychology of women, que se institucionalizou com a criação da Divisão 35 (Psychology of Women Division) no seio da APA, em 1974 e se afirmou, no seio da comunidade científica, com a fundação das revistas Sex-roles, em 1975 e Psychology of Women Quarterly, em 1977 (Amâncio, 2001;Unger, 1998; Wilkinson, 1997).

Desde essa época, e num breve período de tempo, as psicólogas feministas tornaram a sua presença conhecida através de múltiplos esforços para rever e reconstruir a disciplina. Começaram por denunciar as lacunas e mesmo as falsificações e generalizações abusivas de um saber que identifica a masculinidade com o universal e exclui e subordina as mulheres, seja como objecto seja como sujeito (Collin, 1991).

Se, até aos anos 70, a psicologia assumiu como dado adquirido que as mulheres e os homens eram diferentes, sendo a ausência de diferenças encontradas sistematicamente ignoradas (Maccoby & Jacklin, 1974; Hare-Mustin & Marecek, 1990b), nos vinte anos que se seguem o grande debate passa a ser analisar em que medida as mulheres são iguais ou diferentes dos homens e o que suporta essa igualdade ou diferença. Nesses anos os pressupostos teóricos e as investigações vão dividir-se entre: argumentação para justificar a igualdade de características entre os géneros, criticando a forma como a investigação foi conduzida; argumentações para justificar as diferenças entre os géneros; valorização das diferenças entre os géneros e destruição da associação entre o sexo e género.

Na sequência da primeira linha de investigação, algumas estudiosas argumentam que as diferenças entre os sexos derivam de investigações deficientemente conduzidas ou análises estatísticas pouco cuidadosas (Carlson & Carlson, 1960; Hare Mustin & Marecek, 1990c; Riger, 1992). As principais críticas à investigação assentam na deficiência em enunciar a composição sexual da amostra, na incapacidade em distinguir o significado de um efeito do tamanho efeito, no enviesamento dos resultados no sentido de encontrar dados positivos, em confundir diferenças entre os sexos com diferenças dentro do mesmo sexo, no apoio em amostras reduzidas, com uma generalização abusiva dos dados ou amostras excessivamente extensas em que quaisquer dados se apresentam estatisticamente significativos (Carlson & Carlson, 1960). Para provar o pouco rigor da investigação, Carlson e Carlson (1960) analisam o Journal of Abnormal and Social Psychology entre 1958 e 1960. Concluem que num total de 268 estudos, 38% usaram exclusivamente o sexo masculino e 5% exclusivamente o sexo feminino. Apenas 108 estudos mencionam serem as amostras constituídas pelos dois sexos e em 65 deles o sexo dos sujeitos em análise não é identificado.

Por outro lado, algumas investigações vêm defender a ideia de que mesmo quando se encontram diferenças entre os sexos, elas explicam menos de 5% da variância sugerindo que os homens e as mulheres são mais semelhantes do que diferentes (Maccoby & Jacklin, 1974).

A par desta tendência de minimizar as diferenças entre os sexos, outras autoras reforçam a existência de diferenças. Por um lado, existem investigadoras que assumem as diferenças, embora não as considerando desejáveis (Eagly, 1987) e, por outro, aquelas que as assumem com um significado de superioridade feminina (Chadorow, 1978; Gilligan, 1982). Para Alice Eagly (1987), o estatuto de inferioridade do sexo feminino encontrado pela investigação, não seria intrínseco à mulher mas fruto da socialização (Eagly, 1987). Esta conduziria ao desenvolvimento de características que impediam a plena realização da mulher, tais como o “medo de fracasso” (Horner, 1972), falta de assertividade, baixa auto-estima e auto-eficácia (Betz & Hackett, 1983; Hackett, 1985). Esta ênfase na socialização embora tendo tido o mérito de deslocar a atenção dos aspectos biológicos entre os sexos para o condicionamento cultural e estereótipos sociais, deixou por explicar a origem dos papéis do género, o porquê da dominância masculina e se esta era meramente devida a uma falta de competências que a mulher não teve oportunidade de adquirir (Amâncio, 1994; Hare-Mustin & Marecek, 1990b).

Ainda na mesma linha do reconhecimento das diferenças entre os sexos, mas com metodologias qualitativas e com pressupostos distintos dos anteriores Nancy Chodorow (1978) e Carol Gilligan (1982) procuram valorizar positivamente os atributos femininos, advogando a necessidade de dar voz às mulheres na afirmação da sua distintividade. Segundo Mednick (1989) estas abordagens surgem numa época em que o movimento feminista se encontra numa posição desfavorável em termos políticos. A viragem do político e social para o nível individual foi a forma encontrada por algumas feministas de lidar com esta desvantagem. Esta mudança do centro das atenções, fomenta uma série de abordagens que acentuam a necessidade da transformação pessoal através, por exemplo, do treino da assertividade que, apoiando-se em perspectivas comportamentalistas e da aprendizagem social, pretendiam socializar a mulher mudando estereótipos (Crawford, 1998). Tal como Mednick (1989), também Crawford (1998) chama a atenção do treino da assertividade como uma defesa de ideais de independência e individualidade que pressupõem uma deficiência.

Finalmente, num novo quadro de referência, as investigadoras recusam-se a efectuar comparações entre os sexos argumentando que o género não é determinante do funcionamento psicológico. O conceito de androginia psicológica (Bem, 1974) defende a independência entre o sexo biológico e as componentes psicológicas da personalidade e propõe este conceito como o modelo ideal de saúde mental. A saúde mental seria representada por uma flexibilidade de papéis sexuais na qual tanto homens como mulheres poderiam exibir um leque de características psicológicas apropriadas às situações nas quais se encontravam. Assim, as mulheres poderiam ser assertivas, ou complacentes, poderosas ou condescendentes, dependendo das circunstâncias. No entanto, tal como anteriormente, esta perspectiva acentua as vertentes individuais da opressão da mulher e assume o género em termos de qualidades internas e persistentes. Definindo certos traços de personalidade estereotipados para homens e para mulheres, acaba por ser perpetuado o mito de que os dois sexos são realmente e “essencialmente” diferentes um do outro (Nogueira, 2001), descurando a complexidade e o dinamismo dos comportamentos que nascem durante as interacções sociais, bem como as estruturas sociais das desigualdades (Amâncio, 1994). Deste modo, como salienta Morawski (1987, p. 50): "O construto de androginia situa-se numa abordagem convencional da psicologia. Quer seja explicada através de esquemas do self e cognitivos ou através da teoria do traço, a androginia adere aos canons actuais da psicologia".

Em todas as perspectivas supramencionadas, os pressupostos explicativos deixam de fora o sistema social, cultural e os factos históricos que influenciam o sistema de crenças dos indivíduos, os seus valores e comportamentos, atribuindo implicitamente as causas desses factores a determinantes individuais estáveis (Amâncio, 1992, 1994; Riger, 1992, Saavedra, 2005). Dando continuidade à tradição aristotélica na psicologia de organizar o mundo em dualidades e dicotomias, que conduzem inevitavelmente a comparações e contrastes, a grande questão permaneceu em provar em que medida as mulheres eram iguais ou diferentes dos homens e nas explicações que suportavam essa igualdade ou diferença (Hare-Mustin & Marecek, 1990a, 1990c). A distinção entre "sexo" e "género", sugerida e desenvolvida nesta época constituiu-se como uma importante tentativa de separar o sexo biológico do social. No entanto, a força cultural do essencialismo acabou por manter a distinção e as “diferenças sexuais” deram lugar às “diferenças de género”. Estas novas diferenças são iguais às antigas mas "vestidas" de outro modo, pois continuam a ser intrínseca aos indivíduos, socialmente descontextualizadas e rapidamente biologizadas (Nogueira, Neves & Barbosa, 2006). Por tudo isto se pode concluir que a “psicologia da mulher” é suportada por projectos feministas assentes em posturas empiricistas, cujo principal objectivo é colmatar as omissões e distorções relativamente ao sexo feminino, minorando o enviesamento androcêntrico presente tanto na psicologia como em outras áreas das ciências sociais (Burman, 1998; Crawford, 1998; Llombart, 1998; Wilkinson, 1997). Mas apesar das muitas mudanças alcançadas a favor da situação da mulher, qualquer uma destas perspectivas mantém os mesmos métodos e instrumentos de investigação, “conspirando” com a psicologia dominante no sentido de criar uma área de estudos sobre as mulheres independente e de essencializar as categorias sociais e as identidades (Burman, 1998).

Em termos práticos, a tendência para enfatizar as diferenças entre homens e mulheres mantém o status quo e justifica as desigualdades de tratamento entre ambos. Por outro lado, a tendência para minimizar as diferenças permitiu um maior acesso das mulheres à educação e às oportunidades de emprego, mas obscureceu o facto de que o tratamento igual dos dois sexos não permite, necessariamente, o alcançar da igualdade (Riger, 1992).

A psicologia feminista: a importância da mudança social

Tendo-se tornado relativamente clara, para um número considerável de autores e autoras, a impossibilidade em determinar a “verdade” acerca das diferenças ou semelhanças entre homens e mulheres, o foco da atenção volta-se, a partir dos anos 90, para o próprio significado da diferença e como estas são construídas pelos homens e pelas mulheres, tanto no dia-a-dia como na investigação (Hare-Mustin & Marecek, 1990a, 1990b; Riger, 1992; Wilkinson, 1997). O género passa a ser concebido, ora como um conjunto de princípios que organizam as relações entre homens e mulheres num determinado contexto social e cultural (Marecek, 1995), ora como “um princípio de organização social que estrutura relações de poder entre os sexos” (Wilkinson, 1997, p. 261) ou ainda como performances através das quais os homens e as mulheres se posicionam uns face aos outros e constroem as suas subjectividades (Butler, 1990, Halloway, 1984 in Marecek, 1995).

Por oposição a uma visão essencialista do género, que assume o desenvolvimento das mulheres como diferente do dos homens resultando em diferenças essenciais que são estáveis e estruturantes da personalidade, esta perspectiva de construção social do género assume que as características que se atribuem a fêmeas e machos não são intrínsecas aos indivíduos e determinadas pelo sexo, mas são construídas social e situacionalmente. Nesta ordem de ideias até mesmo, as categorias biológicas são socialmente construídas (Freud, 1994). A dicotomia homem-mulher baseada em critérios biológicos cai facilmente por terra se tivermos em conta a composição dos cromossomas sexuais, hormonas e estrutura genital, que permitem defender a existência de mais de dois sexos (Unger, 1979, 1990).

A perspectiva construcionista do género é enfatizada, assim, como uma epistemologia claramente pós-empiricista. Em contraste com uma visão essencialista, de índole biológica ou social o género passa a ser olhado como uma construção social, um sistema de significados que se constrói e se organiza nas interacções e que governa o acesso ao poder e aos recursos (Crawford, 1995). Não é por isso um atributo individual, mas uma forma de dar sentido às transacções: ele não existe nas pessoas mas sim nas relações sociais (3). Enfatiza-se a forma como as categorias sociais, ou os processos, são produzidos pelo uso da linguagem (Gergen, 1982; 1994) e, contrariamente à epistemologia positivista da realidade como "descoberta", é salientada a construção da realidade (Burr, 1995) e a contextualização histórica e cultural dos fenómenos psicológicos (Gergen, 1982).

As filosofias de tendência pós-modernista (Flax, 1990) reconhecem a contradição como parte fundamental da realidade social e isso é consistente com a argumentação de que as categorias como o sexo e o género podem funcionar com definições distintas e em simultâneo numa situação particular. Diferentes participantes, ou mesmo apenas um só indivíduo, podem, no decorrer de uma interacção social, afirmar diferentes perspectivas de género, dependendo dos aspectos salientes das categorias no momento (Hare-Mustin & Marecek, 1990b).

Os processos relacionados com o género influenciam o comportamento, os pensamentos e os sentimentos dos indivíduos, afectam as interacções sociais e ajudam a determinar a estrutura das instituições sociais. Como o género é uma ideologia dentro da qual as diferentes narrativas são criadas, as distinções de género encontram-se disseminadas na sociedade. Assim se explica que o discurso do género tenha construído a masculinidade e a feminilidade como pólos opostos e tenha essencializado as diferenças daí resultantes.

A partir do momento em que o género é encarado não como um atributo dos indivíduos, mas como um sistema de significados, o processo que cria as diferenças sexuais e a forma como se equaciona o poder pode ser compreendido em termos de um sistema que funciona a três níveis: societal, interpessoal e individual (Crawford, 1995).

A nível societal, o género pode compreender-se como um sistema de relações de poder que justifica a violência contra as mulheres, a mutilação genital ou o assédio sexual, isto é, um sistema que permite que diferentes grupos de mulheres sejam controladas e discriminadas. O poder conferido pelo género é difuso, subtil e multidimensional e interfere com outros sistemas de classificação tais como a classe social, a raça ou a orientação sexual. Ao nível interpessoal, o género interfere nas relações interpessoais, relativamente à formação de impressões associadas, por exemplo, a estereótipos; implica expectativas diferenciadas assim como comportamentos diferenciados que frequentemente são tomados como exemplo de traços estáveis de personalidade. Ao nível individual o género implica a ideia de feminilidade e de masculinidade, a importância da construção da(s) identidade(s) e, frequentemente, a internalização da subordinação (Crawford, 1995; Crawford & Unger, 2000).

Assume-se, assim, que o género é uma invenção das sociedades humanas, uma "peça de imaginação" com facetas multifacetadas, que permite construir adultos, homens e mulheres, desde a infância. O género conduz a "arranjos sociais", tais como a divisão das esferas da vida em privado e público e permite, ainda, a criação de significado, isto é, criar as estruturas linguísticas que modelam e disciplinam a nossa imaginação (Hare-Mustin & Marecek, 1990b).

Estas novas formulações sobre o género são consequência de um conjunto de novas teorias e perspectivas analíticas e metodológicas onde se incluem o construcionismo social, o construtivismo, o desconstrucionismo, a psicologia discursiva, a análise de discurso e o pós-estruturalismo, entre outras, que separadamente ou cruzando-se entre si abriram novas questões e tópicos de investigação para o feminismo e para a psicologia feminista (Hepburn, 2000). Dessas novas questões, três delas têm-se imposto como fonte polarizadora de amplos debates no palco do feminismo, em geral, e da psicologia feminista em particular. São elas: a designação de psicologia da mulher versus psicologia feminista, o relativismo pós-moderno e a diversidade da opressão das mulheres. Estas questões não são meramente teóricas. As várias posturas assumidas face a cada uma delas têm profundas implicações no modo de conceber e levar a cabo a investigação.

Psicologia da mulher versus psicologia feminista

Uma das principais questões prendeu-se precisamente com a própria designação da área de conhecimento. A designação de psicologia da mulher é criticada por aquelas e aqueles que defendem o conceito de psicologia feminista porque pressupõe uma visão essencialista ao sugerir que as mulheres, como grupo unitário, partilham um conjunto de qualidades, traços e capacidades, inatas ou adquiridas que, presumivelmente, lhes condiciona o comportamento (Nogueira, 1999; Nogueira, Neves & Barbosa, 2006). Efectivamente, muitas psicólogas investigam e escrevem acerca de mulheres e de assuntos de mulheres sem se identificarem como feministas. Despida da sua orientação, valor feminista e postura activista, a psicologia de mulheres é pouco diferente da psicologia tradicional, apenas com a adição de mulheres como tópico de estudo. Este posicionamento é, obviamente, muito pouco crítico e pouco comprometedor em termos académicos.

Sob a influência das correntes de pensamento acima referidas, genericamente designadas por movimento pós-moderno, algumas autoras consideram que a designação de psicologia feminista deve ser reservada para aquelas perspectivas em que o conceito de feminismo e sua ligação com a área política e de mudança social está em evidência (e.g. Burman, 1998; Llombart, 1998; Wilkinson, 1997). Para Wilkinson (1997) a psicologia feminista caracteriza-se pela valorização da mulher como objecto de estudo, e não apenas por comparação com o homem, e pelo assumir da vertente política e a necessidade da mudança social. Define-se, então, como “a teoria e a prática psicológica que é explicitamente influenciada pelos objectivos políticos do movimento feminista” (Wilkinson, 1997, p.247).

Assumindo-se como uma estratégia entre a psicologia e o feminismo, a psicologia feminista não é uma área estável nem pretende ser, obrigatoriamente, uma área de estudo dentro da psicologia, mas acima de tudo um local de contestação e desafio (Burman, 1998). A necessidade de a psicologia feminista se afirmar como área independente de conhecimento tem dependido um pouco das próprias características do movimento feminista nos diferentes países e de outras características dos mesmos (Parker, 1999). Os custos para aquelas que se assumem como psicólogas feministas são, contudo, elevados. Ao contrário da psicologia da mulher, a identificação pessoal com uma psicologia feminista, pode colocar o/a investigador/a ou académico/a no risco de isolamento, menor estatuto na comunidade académica, exclusão das revistas principais e marginalização dentro da sua própria profissão (Worell, 2000) (4).

O relativismo pós-moderno

A emergência das perspectivas genericamente designadas por pós-modernas trouxe consigo algumas dúvidas acerca da compatibilidade de alguns elementos destes trabalhos com os pressupostos políticos e morais do feminismo. O relativismo epistemológico (5) foi um dos principais alvos destes debates (Hepburn, 2000). Nesta linha de ideias Wilkinson e Kitzinger (1995, p. 6) afirmam que o relativismo pós-moderno, presente nas abordagens discursivas da psicologia, cria dificuldades ao feminismo: “O compromisso discursivo com o relativismo nega o terreno para um feminismo político”.

Não é, contudo, linear a associação entre o relativismo e o pós-modernismo, tendo em conta que este movimento não pode ser entendido como unitário (Rosenau, 1992). Rosenau considera pelo menos duas orientações: o pós-modernismo céptico e o pós-modernismo afirmativo. A perspectiva afirmativa recorre a métodos de investigação que evidenciam as mensagens opressivas ocultas nos discursos sociais, científicos e políticos (Burman, 1994; Hare-Mustin & Marecek, 1994; Parker, 1992). Em contrapartida, o pós-modernismo céptico tem dado especial relevo ao relativismo moral, tendo dificuldade em assumir uma posição inequívoca face à questão da justiça e mudança social, optando frequentemente pelo silêncio nesta matéria (Prilleltensky, 1997; Richardson & Fowers, 1997).

Para as perspectivas afirmativas o pós-modernismo céptico, criticando todas as explicações e teorias definitivas, questionando todas as “grandes narrativas”, todos os paradigmas existentes sejam eles liberais, conservadores ou progressistas e defendendo a multiplicidade de perspectivas torna-se de “um relativismo feroz, conduzindo ao niilismo e a uma anomia social” (Kvale, 1992, p.8). Numa concepção afirmativa, o facto de relativizarmos os acontecimentos e as teorizações não significa que todas as concepções sejam moralmente idênticas, igualmente válidas e igualmente úteis. Uma postura relativista levada ao extremo torna difícil defender um projecto crítico seja ele na psicologia ou no feminismo (Gill, 1995). Daí que algumas feministas, tenham considerado que as críticas efectuadas pelo relativismo ao realismo são pertinentes e importantes para o feminismo, mas criaram um impasse de crítica que não abre caminho à procura da justiça social e à igualdade. Como forma de ultrapassar este impasse são propostos os conceitos de reflexividade (Gill, 1995) e de realismo crítico (Parker, 1997). O primeiro, significa que o investigador explicite e revele as suas posições e interpretações, em oposição à reflexividade dos relativistas que não evidenciam a perspectiva do valor. O último implica aceitar que existe uma realidade exterior independente da nossa visão, embora seja difícil aceder a essa mesma realidade devido à complexidade, de um conjunto de mecanismos físicos, sociais, económicos e biológicos. É a complexidade destes mecanismos, que actuam diferentemente e de forma conflituosa numa situação particular, que inviabilizam o estabelecimento de uma relação de causa e efeito, ou seja, a previsibilidade do comportamento humano. Pela mesma razão torna-se difícil aprofundar o conhecimento sobre a realidade e a natureza humana (Parker, 1997).

Quer se trate do realismo crítico, de uma reflexividade crítica ou de “um relativismo que não tenha vergonha de ser político” (Nogueira, 2001, p. 233) o que se evidencia é sempre a necessidade de existir uma ética em direcção à justiça e emancipação que seja plenamente assumida pelo investigador ou investigadora.

A diversidade na opressão das mulheres

Admitir que a fonte da subordinação e opressão das mulheres seja essencialmente o género ou as outras localizações das identidades pessoais tem sido uma das maiores controvérsias na psicologia feminista actual. A psicologia feminista foi originalmente desenvolvida por psicólogas brancas da classe média. Contudo, o pós-estruturalismo e o feminismo "negro" (Baumgardner & Richards, 2000; Collins, 1991) permitiram conceber a heterogeneidade da categoria género, ou seja, de que as mulheres não se definem apenas por relação aos homens, mas também em relação a outras mulheres. Por outro lado, a literatura foi acentuando que diferentes versões de feminilidade estão em íntima ligação com a origem étnica, racial, orientação sexual e posição de classe (Saavedra, 2005; Skeggs, 1997).

A insistência do feminismo multicultural na diversidade das experiências das mulheres, despoletou novas áreas de estudo e de investigação relativas à pluralidade das identidades sociais e pessoais das mulheres. Contudo, algumas feministas questionam se a tendência para salientar a diversidade entre as mulheres permite que existam movimentos de libertação das mulheres, pois sem esta concepção de unidade a política feminista pode perder consistência. Ao mesmo tempo o considerar que existem mulheres que oprimem outras, com base na sua classe social, raça e etnia, por exemplo, poderá tornar difícil continuar a conceber a subordinação das mulheres (Adams, 1996; Charles, 1996).

Outras feministas, contudo, consideram que apesar das mulheres terem múltiplas identidades, pode ser construído um certo sentido de unidade entre elas em certas situações e em torno de certas questões que podem ser comuns, pelo menos em determinados contextos histórico-sociais (Cowan, 1996; Davis, 1996, Tavares, 2000; Young, 2003). O conceito de género como serialidade (Young, 2003) pode ser uma forma de ultrapassar esta aparente dificuldade e ao mesmo tempo de refutar as características essencialistas sejam elas de género, classe social ou raça. Segundo Young (2003), a colectividade serial é o contrário da identificação típica de um grupo: “Cada um vai à sua vida. Mas cada um está também consciente de um contexto serializado dessa actividade num colectivo social cuja estrutura os constitui no interior de certos limites e constrangimentos” (p. 125). Assim, continua a autora: “ nas séries, os indivíduos estão isolados, mas não sozinhos. Vêem-se a si próprios constituídos como um colectivo, como serializados, pelos objectos e práticas através dos quais pretendem conseguir os seus propósitos individuais” (p. 126).

Conclusão

Apesar da existência de conflitos internos, e de debates contínuos, a psicologia feminista continua a crescer e a mostrar-se frutífera no levantar de problemas e soluções alternativas construtivas assim como abordagens inovadoras. Segundo Wilkinson (1996), a diversidade das psicologias feministas, tanto ao nível dos temas de estudos como dos métodos de investigação tem sido altamente positiva e a multiplicidade das práticas de investigação em psicologia sugere a maturidade deste domínio. Para Keller (1996) os conflitos que estas diferentes posições feministas críticas acarretam, podem ser considerados como benefícios libertadores para a própria ciência. A pluralidade preconizada pelo pós-modernismo aliada a um posicionamento realista crítico poderá ser uma solução a valorizar.

Os estudos feministas permearam áreas substantivas da pesquisa psicológica e do conhecimento. O activismo feminista deu origem e promoveu novas estruturas dentro das associações da psicologia, um substantivo aumento do número de mulheres no poder e na liderança. Muitas psicólogas feministas conseguiram lugares de liderança nas suas instituições, departamentos e universidades. Apesar destas figuras públicas poderem não promover as crenças feministas, as suas políticas e acções reflectirão o seu compromisso.

Em suma, as psicólogas feministas aspiram à promoção de uma disciplina aberta á mudança, que valorize e promova a igualdade e a justiça social entre grupos e indivíduos e que seja activa na insistência para o bem-estar, quer de homens, quer de mulheres, de todos os grupos sociais.

Por isso, a psicologia feminista abriu portas que não serão facilmente fechadas.

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Notas

(1) Leta Stetter Hollingworth (1914a) demonstrou empiricamente que durante o período menstrual as mulheres não se distinguem do sexo masculino nas capacidades intelectuais, perceptivas ou motoras. [volta]

(2) Estas perspectivas foram influenciadas pelo principio da conservação da energia proposto por Helmholtz. Sendo cada corpo um sistema fechado, os diversos órgãos teriam de disputar entre si a quantidade de energia disponível e acreditava-se que a grande batalha ocorria entre o cérebro e os órgãos reprodutores (Vieira, 2003). [volta]

(3) Segundo Bohan (1993) a diferença entre um modo de pensamento essencialista e um construcionista pode ser ilustrado pelo exemplo que implica a diferença de se dizer que alguém é amigável ou que uma conversação é amigável. Alguém ser amigável pressupõe um traço de uma pessoa, uma componente essencial da personalidade. Numa conversação amigável faz-se referência à natureza da interacção a ocorrer entre as pessoas. Numa abordagem essencialista o género equivaleria à ideia da pessoa amigável, enquanto numa perspectiva construcionista o género é algo análogo à ideia de uma conversação amigável. [volta]

(4) Foi o reconhecimento de tal situação de marginalização que levou à criação da Revista Feminism & Psychology, fundada em 1991, que, intencionalmente, não está filiado em nenhuma instituição de psicologia (Wilkinson, 1997). [volta]

(5) Segundo Hepburn, autora que se assume e defende o relativismo (2000, p. 93), este “é uma forma mais ou menos sistemática de dúvida sobre a possibilidade da objectividade e a fundamentação socialmente independente do conhecimento, tais como dados, experiências, observações, realidade, Deus, etc.”. [volta]

Nota sobre as autoras

Luísa Saavedra é Doutorada em Psicologia da Educação, no domínio dos Estudos de Género e é docente do Departamento de Psicologia, do Instituto de Educação e Psicologia da Universidade do Minho, Braga, Portugal. Investiga sobre as questões de género desde 1995 e é autora do livro “Aprender a ser Rapariga, aprender a ser rapaz: teorias e práticas da escola”, editado pela Almedina e co-autora com Pedro Rosário e Maria do Céu Taveira de uma investigação, publicada pela Universidade do Minho, Classe social no feminino: percursos e (co)incidências. Contatos: luisasaavedra@sapo.pt ou lsaavedra@iep.uminho.pt

Conceição Nogueira é Doutorada em Psicologia Social, no domínio dos Estudos de Género e é docente do Departamento de Psicologia da Universidade do Minho, Braga, Portugal. Lecciona as disciplinas de Intervenção Comunitária e Psicologia e Diversidade nos cursos de graduação sendo coordenadora do Programa de Doutorado em Psicologia Social Género e Sexualidade. É co-editora com Lígia Amâncio do livro Gender, Management and Science, co-autora com Isabel Silva do livro “Cidadania. Construção de novas práticas em contexto educativo” e autora do livro “Um Novo Olhar Sobre as Relações sociais de género”, editado pela Fundação Calouste Gulbenkian. Contato: cnog@iep.uminho.pt

 

Data de recebimento: 16/01/2006
Data de aceite: 08/05/2006

 
Memorandum 11, out/2006
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a11/saavedragomes01.htm

 

 

 

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