Castañon, G. A (2007). Psicologia humanista: a história de um dilema epistemológico. Memorandum, 12, 105-124. Retirado em       /  /  , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/castanon01.htm
 

Psicologia Humanista: a história de um dilema epistemológico

Humanistic Psychology: a history of an epistemological dilemma

Gustavo Arja Castañon
Universidade Estácio de Sá
Universidade Católica de Petrópolis
 Brasil

Resumo
A Psicologia Humanista norte-americana surgiu há cerca de cinqüenta anos, apresentando-se como uma terceira força capaz de fazer frente ao que julgava ser uma desumanização determinista da imagem de ser humano promovida pelo Behaviorismo e pela Psicanálise. Apresentando sua versão do objeto da Psicologia como dotado de um nível de liberdade, criatividade e pró-atividade, os principais representantes da Psicologia Humanista se recusaram a abandonar o método experimental, proclamando a sua abordagem como aderida à ciência moderna. Assim inauguraram um novo dilema, que tem acompanhado a história da Psicologia Humanista: deveria esta manter sua adesão ao método científico que não se adequa a seu objeto de pesquisa ou transformar a imagem de ciência que pratica para adequá-la à sua imagem de ser humano? Defende-se aqui tese de que a Psicologia Humanista, mesmo com as adesões proclamadas de Maslow e Rychlak, acabou por abandonar o método experimental para aderir a investigações finalistas.

Palavras-chave: psicologia humanista; ciência moderna; epistemologia da psicologia.

Abstract
The north american Humanistic Psychology appeared about fifty years ago, coming up as a third force capable to confront what was judged by them as a determinist dehumanization of the human being promoted by Behaviorism and Psychoanalysis. Presenting there version of the object of Psychology as endowed with an amount of freedom, creativity and pro-activity, the authors of Humanistic Psychology refused to abandon the experimental method, proclaiming there approach as modern science. Therefore, they inaugurate a new dilemma, that has accompanied the Humanistic Psychology history: would they be able to maintain their adhesion to scientific method to what their research object is not adapted or would they have to transform the image of science to adapt it to there human being image? This article defends that Humanistic Psychology, even with the proclaimed adhesions of Maslow and Rychlak, ended for abandoning the experimental method to adhere to finalists investigations.

Keywords: humanistic psychology; modern science; epistemology of Psychology.

 

Desde seu surgimento no cenário psicológico como tentativa de constituição de uma alternativa às abordagens behavioristas e psicanalíticas, a Psicologia Humanista norte-americana se encontra enredada num dilema insolúvel, imposto pelo Positivismo à Psicologia. O dilema imposto por esta escola filosófica aos cientistas psicológicos é o da pretensa obrigação de escolher entre duas alternativas, porque não dizer, catastróficas: devem eles distorcer a imagem de homem para adequá-la ao método científico legado pela ciência moderna ou, então, abandonarem a ciência moderna e criarem sua própria versão idiossincrática de método de investigação, que se adeque a sua imagem de ser humano.

A Psicologia Humanista herdou este dilema em um formato particular, que acompanha a história da abordagem desde o seu surgimento. Tendo se decidido programaticamente a não aceitar a distorção da imagem de ser humano para adequá-lo ao método científico, ela no entanto proclamou igualmente sua adesão ao projeto da ciência moderna. Assim, a Psicologia Humanista historicamente não consegue se decidir entre  manter sua adesão ao método científico – que não se adequa a forma como define seu objeto de pesquisa nem a maioria de seus interesses principais de investigação – ou buscar transformar a imagem de ciência que pratica para adequá-la à sua imagem de ser humano.

Este artigo defende a tese de que apesar das sucessivas declarações de princípios de seus dois principais nomes, Abraham Maslow e Joseph Rychlak, o resultado da empreitada humanista na psicologia moderna foi de fato o abandono do método científico. Começará por uma breve definição deste movimento, suas raízes históricas, abordará suas críticas ao modelo de Psicologia da primeira metade do século passado e passará por sua definição do objeto de estudo desta disciplina. A partir de mais cuidadosa descrição do dilema proposto, exporá então o transtorno epistemológico provocado por este, a tentativa contemporânea de solução de Joseph Rychlak e finalmente uma avaliação geral de sua consistência com o projeto da ciência moderna.

 

História da Psicologia Humanista

O movimento que desembocou no estabelecimento da Psicologia Humanista teve seu início no ambiente acadêmico norte-americano do pós-guerra. Os líderes do movimento humanista levantaram suas vozes contra a imagem de homem e de método científico defendidas pelo Behaviorismo - dominante no campo da Psicologia experimental - e contra a imagem de homem e de método terapêutico da Psicanálise - dominantes no campo da psicoterapia.

Como afirma De Carvalho (1990), a oposição ao Behaviorismo foi a posição que, pelo caminho da negação, mais contribuiu para o estabelecimento conceitual da Psicologia Humanista. Os Humanistas caracterizam o Behaviorismo como uma teoria em que o homem é visto como um ser inanimado, um organismo puramente reativo, "uma coisa passiva perdida, sem responsabilidade por seu próprio comportamento" (p. 33). Assim, o Behaviorismo veria o homem como um conjunto de respostas a estímulos, ou seja, uma coleção de hábitos independentes. Frick (1973), em sua obra Psicologia Humanística, ainda hoje referência obrigatória para quem estuda o movimento, acusa o Behaviorismo de haver buscado criar uma visão limitada do homem. Diz ele: 

Esta escola de Psicologia concebe o homem como uma máquina complexa, com seu sistema fechado de funções parciais e regularidade estática. O Homem está construído sobre uma organização hierárquica de estímulo-resposta, que leva a padrões previsíveis de hábitos, e reforço é a palavra chave para o desenvolvimento da personalidade (p. 17).

Os humanistas se rebelam contra o Behaviorismo se opondo a quatro pontos fundamentais. Primeiro, não concordam com a pesquisa com animais como acesso a uma compreensão adequada do ser humano. Como disse Bugental (1963), o ser humano não é um rato branco maior, assim uma Psicologia baseada em dados animais excluiria aquilo que deveria ser o objeto primeiro da Psicologia: os processos e experiências distintamente humanos. Segundo, os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia não sejam escolhidos por sua adequação ao método experimental, e sim por sua importância para o ser humano e relevância para o conhecimento psicológico. Terceiro, opõem à concepção reativa e mecanicista behaviorista do ser humano uma concepção proativa da natureza humana: os humanistas argumentam que a motivação humana é intencional e auto-motivada. Por último, estes afirmam que ainda que fosse possível ao Behaviorismo realizar um catálogo completo dos comportamentos humanos possíveis, isto não ofereceria uma descrição adequada da natureza humana pois, seguindo a sentença gestaltista, a pessoa é mais do que a soma de cada comportamento isolado. Para os humanistas, o homem é um todo único e indivisível, é uma gestalt.

Mas a Psicologia Humanista não se constituiu somente como uma reação ao Behaviorismo, mas também como uma reação à Psicanálise, que era considerada por esta determinista, reducionista e dogmática. O foco das críticas dos psicólogos humanistas era de novo a imagem de Homem, desta vez, a admitida pela Psicanálise. Segundo eles, a visão da natureza humana em Freud era pessimista, fatalista e excessivamente centrada no lado negro do ser humano. Como diz De Carvalho (1990), os humanistas argumentavam que para Freud "nada além de destruição, incesto e assassinato poderia se seguir se uma natureza básica humana encontrasse expressão completa" (p. 34). Assim, ainda segundo De Carvalho, para Freud, a pessoa permaneceria para sempre fixada em emoções originadas de traumas da infância. O homem não seria nada além de um produto de poderosas pulsões de fundo biológico, que se manifestariam de acordo com a história do passado de cada um.

Outra acusação que o humanismo fazia de modo geral à Psicanálise foi formulada originalmente por aquele que é o nome mais representativo do movimento, Abraham Maslow. Ele a acusa de estudar somente indivíduos perturbados: neuróticos e psicóticos. Como disse Maslow (1963), "o estudo de espécimes aleijados, enfezados, imaturos e patológicos só pode produzir uma Psicologia mutilada e uma filosofia frustrada" (p. 234). A Psicologia deveria portanto se voltar para o estudo das qualidades e características positivas do Homem, como a alegria, o altruísmo, a fruição estética, a satisfação ou o êxtase. Enfim, psicólogos deveriam estudar o homem sadio, não a psicopatologia. Apesar de conceder à obra freudiana um valor relativo por proporcionar uma revolucionária visão da motivação humana, os humanistas como Frick (1973) consideram que a Psicanálise estabeleceu fundamentos teóricos responsáveis pela disseminação de uma visão pessimista do ser humano e de suas possibilidades.

A oposição feita pelo movimento da Psicologia Humanista ao Behaviorismo e à Psicanálise teve como influências anteriores principais as obras do neuropsiquiatra Kurt Goldstein, da Psicologia da Gestalt e de alguns dos primeiros teóricos da personalidade. Goldstein exerceu poderosa influência sobre os psicólogos humanistas através de obras como The Organism (1934) e Human Nature in the light of psychopathology (1940), baseadas em sua pesquisa sobre a capacidade de reorganização do cérebro humano após lesões cerebrais, feita com soldados feridos em combate. Nelas, Goldstein introduz conceitos que seriam assimilados e desenvolvidos por psicólogos humanistas, como os de auto-atualização e tendência ao crescimento, assim como sua visão holista do organismo humano. Ele enfatiza em suas obras a visão de que o Organismo é um todo unificado, afetado em sua totalidade pelo o que quer que aconteça em qualquer uma de suas partes.

Outra influência importante da Psicologia Humanista é a Psicologia da Gestalt. Da mesma forma que Goldstein, a Gestalt considera o homem como uma unidade irredutível onde tudo está relacionado com tudo, e o todo é mais do que a soma de suas partes. É esse espírito holista da Gestalt (assim como sua concepção do comportamento humano como intencional) que foi assimilado pelo movimento.

Finalmente, não poderia deixar de citar os teóricos da personalidade e suas obras que, segundo Smith (1990), com sua rejeição às premissas mecanicistas do Behaviorismo e biológico-reducionistas da Psicanálise clássica, foram a base da qual emergiu a Psicologia Humanista: Gordon Allport (1937) Personality: A Psychological Interpretation, Henry Murray (1938) Explorations in Personality e Gardner Murphy (1947) Personality: A Biosocial Approach to Origins and Structure.

Existem grandes resistências em se apontar um teórico como fundador da Psicologia Humanista, tal como foram Watson para o Behaviorismo e Freud para a Psicanálise. Mas o fato é que não se pode falar do surgimento da auto-denominada Terceira Força em Psicologia sem atribuir o papel principal a Abraham Maslow, autor de obras clássicas como Motivation and Personality (1963) e Toward a Psychology of Being (1968).

De Carvalho (1990) nos relata que no fim dos anos 40, Maslow era reconhecido como um talentoso psicólogo experimental, mas que devido a seus objetos de pesquisa não-convencionais começava a ser marginalizado pela comunidade acadêmica, tendo por exemplo dificuldades de publicar seus trabalhos no jornal da American Psychological Association (APA).

Maslow estava acompanhado nessa discriminação por mais algumas pessoas que se batiam contra o establishment behaviorista. Então começou a compilar uma lista de correspondência com essas pessoas que em 1954 atingia 125 nomes. O objetivo dessa rede de correspondência era a troca de trabalhos mimeografados entre eles, de modo a divulgar entre si seus trabalhos. Maslow (1968) batizou posteriormente sua própria lista de correspondência de Rede Eupsiquiana. Eis o que ele fala sobre esta:

Chamo-lhe Rede Eupsiquiana porque todos estes grupos, organizações e revistas estão interessados em ajudar o indivíduo para uma condição mais plenamente humana, a sociedade a evoluir no sentido da sinergia e da saúde, e todas as sociedades e todos os povos tornarem-se um mundo e uma espécie (p. 275).

No começo dos anos 60, com a ajuda de Anthony Sutich, Maslow vai transformar essa lista de correspondência na lista dos primeiros assinantes do Journal of Humanistic Psychology (JHP), e poucos anos depois, na lista dos membros fundadores da American Association for Humanistic Psychology (AAHP). Formando um conselho editorial que tinha como membros, além de Abraham Maslow, Kurt Goldstein, Rollo May, Lewis Mumford, Erich Fromm, Andras Angyal e Clark Moustakas; com Sutich como editor, o primeiro número do JHP saiu na primavera de 1961. Logo se concluiu que os assinantes daquele jornal precisavam de uma associação própria, a AAHP, que com James Bugental como presidente nasceu na Filadélfia no verão de 1963, num encontro que teve 75 participantes.

O encontro seguinte da AAHP em setembro de 1964 já se realizou com cerca de 200 participantes, até que a emergência da Psicologia Humanista no cenário da ciência psicológica se concretizou com uma conferência realizada em novembro do mesmo ano, na cidade de Old Saybrook, Connecticut. Participaram dessa conferência os nomes mais conhecidos entre os rebeldes contra o establishment: Maslow, Allport, Bugental, Carl Rogers, May, Moustakas, Murphy e Murray entre outros.

Até essa conferência, a AAHP era pouco mais que um grupo de protesto, dividido como afirma Bugental (1963) em duas posições distintas. Um queria definir a Psicologia Humanista somente em termos do que ela não é. Outro reivindicava uma declaração de princípios com definições programáticas propositivas. A primeira declaração da AAHP foi uma tentativa de conciliação entre os dois grupos, adotando-se o artigo de Bugental (1963) Humanistic Psychology: A New Breakthrough como declaração da própria associação. Nele encontramos cinco postulados: (a) uma pessoa é mais que a soma de suas partes; (b) Nós somos afetados por nossas relações com outras pessoas; (c) O ser humano é consciente; (d) O ser humano possui livre-arbítrio; (e) O ser humano tem intencionalidade.

Uma questão que não pode deixar de ser abordada neste breve histórico do surgimento da Psicologia Humanista, é a da sua relação com o Existencialismo. De Carvalho (1990) aponta para a inadequação de se ver a Psicologia Humanista como uma importação para os Estados Unidos do Existencialismo europeu. Segundo ele, os principais proponentes da Psicologia Humanista tomaram contato com o Existencialismo somente no final dos anos 50, quando seus pensamentos já estavam formados. Talvez isso possa ser questionado, uma vez que através das obras The Meaning of Anxiety (1950) e Man's Search for Himself (1953), Rollo May, um dos principais nomes do movimento, tenha introduzido as idéias de Sören Kierkegaard e Martin Heidegger no pensamento psicológico norte-americano. Mas o importante aqui é ressaltar que as duas correntes de pensamento psicológico tem diferenças fundamentais. Psicólogos humanistas como Maslow (1963) por exemplo, criticam os traços anticientíficos e antibiológicos do Existencialismo, e principalmente sua tendência ao niilismo desesperado (que ele atribui entre outros a Nietzsche, considerando-o precursor do Existencialismo), à glorificação do nada (Sartre) e à vivência da vida como absurdo sem sentido (Camus, Sartre).

Mas a crítica principal dos psicólogos humanistas como um todo ao Existencialismo, se dirige a Sartre e sua proposição de que não existe qualquer essência ou realidade no conceito de natureza humana, resultado do postulado de que no ser humano a existência precede a essência. Os psicólogos humanistas acreditam que há uma essência comum à espécie humana, e em geral também crêem que essa essência está alicerçada numa base biológica.

Outro aspecto desta questão que merece citação aqui, é o da difusão da Logoterapia (ou Análise Existencial) de Viktor Frankl no mesmo período do surgimento da Psicologia Humanista. Em Fundamentos antropológicos da psicoterapia (1978) e Em busca de sentido: um psicólogo no campo de concentração (1991) (obra clássica com muitas diferentes edições a partir de sua publicação logo após o término da segunda guerra) entre outros trabalhos, Frankl expressa posições muito semelhantes em termos de imagem de homem e de críticas à Psicanálise e ao Behaviorismo. Progressivamente, Frankl e os Humanistas se esforçaram por aparar as arestas de suas posições e se aproximarem teoricamente. Esses esforços surtiram muitos efeitos, de modo que, no fim de sua vida, década de noventa, Frankl fazia parte do conselho editorial do órgão mais tradicional do movimento, o JHP, e se tornou conhecido como um dos principais nomes do que já vinha sendo generalizadamente denominado psicoterapia existencial-humanista.

O grande problema da Psicologia Humanista ainda hoje permanece sendo sua aparente vocação para a indefinição em relação à Psicologia científica, além de sua confusão conceitual. Fazendo piada sobre este último aspecto, o behaviorista Michael Wertheimer (1978) nos diz que se pedirmos a dois humanistas para definir o que é a Psicologia Humanista, obteremos pelo menos três definições mutuamente excludentes. Joseph Rychlak é o maior pesquisador e formulador da Psicologia Humanista contemporânea. Em Psychology of Rigorous Humanism (1988), ele faz uma tentativa de trazer a Psicologia Humanista para os moldes da Psicologia científica acadêmica, atacando a tradição lockeana dentro da Psicologia e contrapondo-a a uma visão kantiana da mesma, onde se reivindica o uso da teleologia na descrição do comportamento humano. Mas como é possível conciliar uma investigação teleológica com o método científico experimental?

 

Pressupostos filosóficos da ciência moderna

É clara nos principais nomes da Psicologia Humanista norte-americana a reivindicação da aderência de sua empreitada ao projeto da ciência moderna. Numa frase famosa, Abraham Maslow (1962/1968) assim expressa a profundidade de seu compromisso: 

A ciência é o único meio que dispomos para enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes. Somente a ciência pode superar as diferenças caracteriológicas no ser e no crer. Somente a ciência pode progredir.(p.18)

Essa ciência que permitiria "enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes" é para ele a que permite ao menos uma aproximação do conhecimento universalmente válido e empiricamente comprovável. É aquele modo de obtenção de conhecimento que aspira a formular, mediante linguagens rigorosas e apropriadas (e sempre que possível matemáticas), leis universais que expliquem, ainda que probabilisticamente, fenômenos da realidade objetiva. Este ideal de conhecimento descrito acima pressupõe algumas crenças sobre o objeto do conhecimento e sobre nossa capacidade de conhecer. Estabelecem-se aqui cinco, que para o tipo de busca delimitado acima, são irredutíveis e necessárias. Antes porém, quero aqui deixar claro que o objetivo deste trabalho não é a discussão do conceito de ciência moderna, mas simplesmente a avaliação do quanto a abordagem humanista da psicologia adere a esta visão tradicional de ciência, que continua hoje majoritariamente aceita em disciplinas como a Física ou a Biologia.

Voltando a questão das crenças que estão na base da ciência moderna, comecemos pela primeira, que é a crença de que o objeto de investigação existe independentemente da mente do observador. A isto chamaremos Realismo Ontológico. A segunda destas é a crença na estabilidade, pelo menos em alguns de seus aspectos, do objeto que se estuda, a isto chamaremos Regularidade do Objeto; a terceira é a crença de que através do método adequado, podemos vir a conhecer algo sobre o objeto, a isto chamaremos Otimismo Epistemológico; a quarta é a assunção das leis básicas da lógica clássica na formulação de argumentos válidos, os Pressupostos Lógicos, e, por último e tão fundamental quanto, a crença de que podemos representar adequada e estavelmente o mundo através da linguagem, a isto chamaremos aqui, Representacionismo.

È preciso destacar aqui o segundo dos pressupostos citados acima, avaliando-o um pouco mais cuidadosamente. Admitimos que o objeto tem que existir na realidade objetiva, de forma independente de nossas crenças e vontade, pois caso contrário qualquer investigação deste seria desprovida de sentido. Mas sua existência não basta para que ele possa ser estudado pela ciência moderna. Uma vez que admitamos como explicações científicas formulações de hipóteses causais, precisamos necessariamente assumir que o objeto que está sendo contemplado com estas hipóteses, em ao menos algum de seus aspectos, esteja submetido a leis. A atividade científica se caracteriza, em suma, pela busca racional da descoberta das leis que governam um objeto particular.

A crença na regularidade do objeto está vinculada por sua vez ao determinismo e ao naturalismo, que estão na base da ciência moderna desde Galileu Galilei. O determinismo está usualmente identificado com o determinismo laplaceano, teoria que defende que nada há no universo que não seja em tese rigorosamente previsível em termos das leis básicas da Física. No entanto, é necessário ressaltar que o determinismo laplaceano ou hard determinism (Robinson, 1985a) não é um pressuposto necessário da atividade científica moderna. O que é necessário logicamente para a ciência moderna é somente o pressuposto de que no mínimo em algum de seus aspectos o objeto investigado esteja submetido a leis. Já o naturalismo é a crença num universo que se reduz à natureza, governado por leis intemporais, fora do jugo de forças sobrenaturais, da magia, dos deuses, do acaso ou do caos. É também uma crença profunda de que as formas matemáticas governam o mundo, de que a natureza é estável e governada por leis matemáticas, e portanto, passíveis de descoberta. Para o naturalismo, a natureza fala a linguagem da matemática, e portanto só pode ser conhecida através dessa linguagem, ou seja, de questões que lhe são corretamente colocadas através do método da experimentação, a aplicação à experiência das leis da medida e da interpretação matemática.

Assim, este é o pano de fundo em cima do qual de delineará o dilema que é o objeto deste artigo. A ciência moderna pressupõe o princípio da regularidade do objeto, tanto quanto o de sua possível quantificação. Mas, o objeto definido pelos humanistas como objeto da Psicologia obedece estas características?

 

A imagem humanista do objeto da Psicologia

Podemos recorrer ao principal proponente da Psicologia Humanista, Abraham Maslow (1968), para começarmos a definir a imagem de homem defendida por esta abordagem. Este coloca claramente alguns pressupostos que fundamentam a Psicologia Humanista: 

1 - Cada um de nós tem uma natureza interna essencial, biologicamente alicerçada, a qual é, em certa medida, “natural”, intrínseca, dada e, num certo sentido limitado, invariável ou, pelo menos, invariante.

2 - A natureza interna de cada pessoa é, em parte, singularmente sua e, em parte, universal na espécie.

3 - É possível estudar cientificamente essa natureza interna e descobrir a sua constituição (não inventar, mas descobrir). (p. 27)

 

É importante esclarecer que o segundo postulado defende implicitamente que o ser humano não é um ser absolutamente condicionado pelos fatores biológicos, psicológicos e sociais que influenciam sua constituição. Já o primeiro, garante um domínio de investigação no qual em tese poderiam ser estabelecidas leis naturais. Mas como conciliar num corpo de teorias científicas os efeitos resultantes do segundo postulado sobre o comportamento com as leis implícitas no primeiro e terceiro? Como predizer um comportamento auto-orientado?

A Psicologia Humanista propõe a realização de uma revolução copernicana na abordagem do objeto de estudo da Psicologia. Como afirma Amatuzzi (1989), a consideração do ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, por mais cabível, correta ou verdadeira que possa ser, não dá conta do ser humano como um todo em movimento. Ele argumenta que por mais que se tente explicar a causa do comportamento humano, sempre ficará faltando a questão do sentido que o se precisa dar à própria vida, sentido que humanistas como Amatuzzi consideram como o maior desafio que se coloca para nós.

Sob o enfoque humanista, o ser humano aparece não como uma resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o iniciante de uma série de coisas. O Homem só aparece para o humanismo na questão do sentido, não na questão da causa explicativa. O enfoque explicativo se refere ao Homem como resultado, como passado. Não se refere ao Homem presente, desafiado por questões de sentido. Aqui temos a nova formulação de um velho conflito em Psicologia, e este é o conflito apontado por muitos autores, dentre eles Gordon Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana no pensamento psicológico, ou Joseph Rychlak (1975), para quem somente o termo leibniziana é substituído pelo termo kantiana. Como defende Allport (1955/1975), para a tradição lockeana o Homem é considerado um ser passivo, um receptáculo de impressões sensoriais que irá constituir seu intelecto. Esta é a teoria da white paper de Locke, que faz seu o axioma aristotélico nihil est in intelectu quod prius non fuerit in sensu (nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos sentidos). Assim o Homem seria um ser passivo atuando e se constituindo de acordo com os estímulos recebidos, sendo por eles portanto, governado.

Leibniz iria ironicamente, no combate aberto a essa visão de Homem, completar essa sentença com o acréscimo nisi intellectus ipse (a não ser o próprio intelecto), ou seja, no mínimo, antes daquilo que passou pelos sentidos, está na mente a própria capacidade de assimilar e relacionar o material que é fornecido por estes, capacidade essa que não pode ser dada pelos mesmos. Isto pode parecer óbvio, mas até hoje é motivo de disputa para muitos psicólogos. Partindo de sua concepção de mônada, Leibniz qualifica o ser humano como livre, ativo e orientado propositivamente. O ser humano é um foco de atividade do universo, e não um mero objeto sofrendo a influência pura e simples das leis físicas.

Assim, o enfoque humanista rompe com a tradição mecanicista-newtoniana e cerra fileiras ao lado da tradição leibniziana da Psicologia (e de universo) e considera o ser humano como autoconsciente, auto-orientado e criativo, em suma, possuidor de livre-arbítrio. Como afirma De Carvalho (1990), a respeito da visão da Psicologia Humanista sobre a natureza do ser humano, ela se caracteriza pela visão da pessoa como being-in-the-process-of-becoming, ou seja, como ser em processo de tornar-se. A pessoa em seu pleno funcionamento é proativa, autônoma, orientada por escolhas, adaptável e mutável, em suma, é um ser num processo de contínua transformação. O ser humano para os humanistas é um organismo único, com a habilidade para direcionar, escolher, e alterar os motivos que guiam o projeto de seu curso de vida.

 

O dilema da Psicologia Humanista

Temos aqui o problema central do posicionamento da Psicologia Humanista como ciência, uma vez que o princípio da regularidade do objeto, de pelo menos algumas de suas características, é pressuposto fundamental para a ciência moderna. Ou seja, a atividade científica não pode prescindir daquilo que justamente a caracteriza: a descoberta de funções na natureza, de relações estáveis de causa e efeito ou sistemas retro-alimentativos estáveis. Uma vez que um ser humano livre e criativo não permitiria o estabelecimento de tais relações, como fica a Psicologia em relação à ciência moderna?

Tal é o estatuto ontológico do objeto da Psicologia segundo os humanistas. Partindo disto, os humanistas propõe que em última análise o sentido da experiência humana deva ser o verdadeiro objeto de estudo da Psicologia. Eles propõem que o objetivo final ideal da Psicologia Humanista é uma completa descrição do que significa estar vivo como ser humano e da variedade de experiências que lhe são possíveis. O problema é que tal tipo de objeto não só é ilimitado, como pouco claro e também inquantificável. Mas o que os humanistas argumentam é que as alternativas de abordagens, tanto do Behaviorismo quanto da Psicanálise, apresentam, como disse Maslow (1963), uma Psicologia mutilada, inumana e estéril, cujos temas de pesquisa têm pouco ou nenhum significado para o ser humano.

Os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia não sejam escolhidos por sua adequação ao método experimental, e sim por sua relevância para o ser humano e o conhecimento psicológico. Desta forma todos os aspectos da experiência singularmente humana se tornam temas de pesquisa para o psicólogo humanista. Entre eles podemos destacar o amor, ódio, medo, angústia, esperança, felicidade, humor, amizade, altruísmo, sentido da vida, responsabilidade, o morrer, criatividade, sentimento estético, sonhos, empatia, metas, meditação, experiências paranormais, experiências místicas, experiências culminantes, valores e sentimento moral. A maioria destes temas de pesquisa não se encontra de forma alguma nos compêndios tradicionais de Psicologia, porque não são passíveis de definição operacional, quantificação precisa e manipulação laboratorial, ou ainda muitas das vezes, sequer passíveis de reprodução.

Aqui começamos a entrar nas conseqüências epistemológicas da posição ontológica da Psicologia Humanista. Temos diante de nós duas questões. A primeira é a da dificuldade de quantificação do objeto da Psicologia. O comportamento humano, objeto de estudo do Behaviorismo, já apresenta muitas dificuldades de quantificação. O objeto de estudo da Psicologia Humanista, sendo os processos e experiências distintamente humanos, apresenta dificuldades maiores ainda. Como já foi exposto, a ciência moderna, à qual a Psicologia Humanista pretende estar aderida, depende em alguma medida da quantificação dos fenômenos que estuda. Mas o objeto da Psicologia Humanista (o significado da experiência humana), não é passível de quantificação, ele somente possui aspectos qualitativos. Por isso, os humanistas respondem não à pergunta de se será realmente possível que algum dia o objeto de estudo da Psicologia vá se prestar à quantificação e matematização.

A segunda dessas questões é acerca da complexidade do objeto de estudo da Psicologia Humanista. De qualquer ângulo que se analise, o objeto de estudo da Psicologia é mais complexo que os objetos de outras ciências. Se partirmos de um ponto de vista materialista, reducionista, chegaríamos à conclusão que é preciso ter um conhecimento profundo de química para entender a ação dos neurotransmissores, ação cuja compreensão por sua vez, é necessária para se compreender o funcionamento neural, o que, por sua vez, é necessário para se entender o altamente complexo funcionamento cerebral, que por último seria a razão última do comportamento humano. A maneira pela qual podemos avaliar a complexidade de uma ciência, é através do número de variáveis intervenientes que atuam na determinação de alguma conseqüência sobre o objeto de seu estudo. Se ao pensarmos de uma forma reducionista já podemos ter uma idéia do nível de complexidade do objeto da Psicologia, que dirá se adotarmos uma perspectiva humanista, para a qual o ser humano é livre e proativo, experimenta a emergência de processos criativos e questões de sentido. Tal objeto, parece nos conduzir à impossibilidade de investigação científica.

Em vista de todas essas características admitidas no objeto de estudo, uma solução escolhida por muitos humanistas foi a rejeição ao método experimental. Wertz (1998) por exemplo, chega a afirmar que a Psicologia Humanista só pode denominar-se científica através do surgimento da Fenomenologia de Husserl, que procurou reformular o significado do conceito de ciência para a Psicologia. Porém, a apropriação da filosofia de Husserl pela Psicologia Humanista é na maior parte do tempo superficial e confusa, e parece indicar que esta abordagem não compreende o sentido e o lugar da Fenomenologia como teoria do conhecimento fundante, que antecede a própria Filosofia da Ciência e não tem nada a oferecer diretamente a uma abordagem empírica do fenômeno psicológico.

No entanto, a declaração transcrita acima de Wertz (1998) sugere mais uma vez o dilema humanista, uma vez que os principais nomes do movimento como Maslow ou Rychlak defendem firmemente a manutenção do método experimental como o teste de hipóteses por excelência da Psicologia. O dilema é: deve a Psicologia Humanista alterar o significado do termo ciência para adequar o seu objeto a ele, ou limitar o escopo de suas investigações para adequá-las a ciência moderna? Cabe aqui lembrar a crítica efetuada por um importante representante do humanismo na Psicologia, Amadeo Giorgi (1978), à Psicologia Moderna representada então pelo Behaviorismo. Cabe no entanto aqui o esclarecimento de que Giorgi nunca pertenceu à tradição experimental da Psicologia Humanista norte americana. Em obra na qual tenta (e não consegue) estabelecer o estatuto epistemológico da Psicologia como Ciência Humana e que tem como subtítulo, Uma abordagem de base fenomenológica, Giorgi (1985) considera que o psicológico é irredutível ao objetivo. A pesquisa objetiva (fundamentos fisiológicos, lógicos e sociais do psicológico) é necessária mas não suficiente para compreender o psicológico. Este é “para-objetivo” (1985, p.55), no entanto, legitima a investigação objetiva de suas relações com o físico, o lógico e o social. Para Giorgi o psicológico deve ser entendido em sua relação com o objetivo, não com especificações objetivas, pois é irredutível. Não é surpresa no entanto que Giorgi não dê indicações epistemológicas e metodológicas claras de como isto poderia ser feito (de fato, não especifica sequer sua posição ontológica). Ele pergunta em sua obra, criticando o caráter dogmático que a Psicologia como ciência positiva assumiu: 

Não seria possível que a Psicologia tenha adotado uma concepção errada de Ciência para imitar? Não será possível que a Psicologia não tenha ainda esclarecido os seus objetivos segundo as suas próprias condições? De qualquer forma, não deveria a Psicologia pelo menos levantar a questão abertamente, e então, ou responder negativamente ou admitir que uma outra concepção de Psicologia é igualmente possível ou até mesmo preferível? (1978, p.19)

Que concepção epistemológica então?

Depois de respondermos à questão ontológica sobre a regularidade do objeto do conhecimento, temos que nos deparar com a questão do método que dispomos para investigá-lo. Caso admitíssemos a possibilidade de fenômenos únicos, irrepetíveis no universo, e quiséssemos, ao invés de descobrir as leis que os regem, os compreender em sua individualidade, o que poderíamos fazer com os instrumentos da ciência moderna? Uma coisa são as ocorrências de casos particulares de uma lei geral, da qual eles são somente a expressão; outra, são singularidades, casos únicos, irrepetíveis e não submetidos em todos os seus aspectos a leis físicas. Esta pergunta, que foi a pergunta básica de Wilhelm Dilthey (1833-1911), maior influência filosófica da Psicologia Humanista, é que será abordada agora aqui, e que levanta a questão da distinção entre a abordagem nomotética e a abordagem idiográfica nas ciências humanas.

O principal foco da dispersão teórica na Psicologia é o problema da natureza do objeto de estudo, o modelo antropológico a ser adotado. Essa questão é a da relativa autonomia ou não do ser humano face aos condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais a que ele está exposto. É, portanto, a já citada questão do velho conflito apontado por Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana, ou ainda por Rychlak (1988) entre as tradições lockeana e kantiana no pensamento psicológico. A adoção de uma posição alinhada a uma dessas tradições irá, evidentemente, condicionar o modelo de todas as pesquisas feitas por quem a adote em Psicologia.

De modo geral, o tipo de pesquisa pode então ser concebido de dois modos básicos: ela pode ser uma pesquisa de caráter nomotético ou de caráter idiográfico. A pesquisa psicológica nomotética visa à obtenção de teorias e hipóteses de aplicação geral. Esta pretensão se sustenta na crença ontológica da regularidade do objeto, ou seja, que existam relações funcionais estáveis entre variáveis antecedentes e variáveis conseqüentes. Já a pesquisa idiográfica parte da posição ontológica que assume a relativa autonomia do objeto da Psicologia, o ser humano, frente aos condicionamentos que lhe são impostos. Esta orientação de pesquisa pretende que o objetivo da investigação psicológica seja a busca de compreensão do significado da experiência humana, e não a busca de teorias e hipóteses de aplicação generalizada.

Em suma, a perspectiva nomotética busca explicar as causas do comportamento, enquanto a perspectiva idiográfica busca compreender os motivos de sua expressão. Trata-se de uma escolha entre explicar e compreender. Esta distinção de tipos de pesquisa psicológica foi formulada pela primeira vez por Wilhelm Dilthey (1945), que julga que as diferenças entre o objeto de pesquisa das ciências humanas e o das ciências físicas pedem diferentes métodos de investigação e orientação. Com essas diferenças ele não estava querendo dizer unicamente que o ser humano é racional e livre e que entidades físicas não são. Ele estava querendo antes de qualquer coisa expor o fato de que fenômenos físicos são externos à experiência do investigador e independentes uns dos outros; enquanto os fenômenos psicológicos são interiores à experiência do cientista e inextrincavelmente inter-relacionados uns aos outros. É antes de tudo por causa dessa inextrincável inter-relação que Dilthey afirma que o fenômeno humano precisa ser descrito e entendido em suas interconexões plenas de sentido. Assim, ele parte dessa distinção entre os objetos de pesquisa das ciências físicas e das ciências humanas para explicar a origem das duas orientações básicas de pesquisa na Psicologia, as quais ele denomina explicativa e compreensiva.

Dilthey (1945) denomina explicativa ou construtiva, aquela abordagem de pesquisa importada das ciências físicas, que visa à construção de um sistema de hipóteses com um número limitado de elementos determinados, exatos, sem ambigüidades, além de leis ou princípios universais regendo suas conexões, combinações e organização última. As predições que podem portanto ser feitas sobre as relações entre variáveis são submetidas a testes de verificação cujas inferências possam suportar as hipóteses gerais. Os postulados do sistema, suas combinações, os princípios e processos governando suas interconexões e organização e as predições dessas relações funcionais, são todas construções hipotéticas.

Assim, explicativa é a abordagem do fenômeno humano pela ciência moderna, com seus métodos nomotéticos de investigação. Dilthey (1945) considera que é um erro fundamental adotar essa abordagem primariamente, quando não exclusivamente, na Psicologia, uma vez que as experiências vividas são dadas em sua unidade, como um todo significativo. Assim, os métodos através dos quais estudamos a vida psicológica, a história e a sociedade devem ser diferentes daqueles que usamos para estudar a natureza. Uma outra dificuldade que o humanista Wertz (1998) baseando-se em Dilthey vê na abordagem explicativa em ciências humanas é que sempre se podem elaborar diferentes hipóteses para explicar os dados empíricos colhidos. Além disso, tudo o que se pode estabelecer com eles tem validade probabilística, e deduzir deles qualquer coisa em relação a uma pessoa real é uma ação baseada numa indução que não tem sustentação lógica.

Assim, segundo Wertz (1998), o conhecimento explicativo em Psicologia tem os seguintes limites: a certeza que ele estabelece é sempre probabilística, sempre se pode construir teorias e explicações alternativas para dar conta dos dados empíricos, e principalmente, as questões principais que são aquelas relativas à natureza do fenômeno humano não podem ser resolvidas de uma maneira convincente nem significativa. O conhecimento adquirido dessa forma, acreditam os humanistas, permanece estéril e incompleto.

Uma última observação necessária é a lembrança de que a estrutura de uma explicação (dedutivo-nomológica) leva à predição. Se soubermos as leis da natureza e pudermos controlar as condições do experimento, podemos prever (deduzir) com certeza seu resultado. Logo, se o resultado não sai como o previsto, sabemos que necessariamente ou alguma das leis consideradas é falsa ou alguma das condições necessárias não foram controladas. É por isso que esta forma de explicação é o ideal moderno de explicação científica.

Seguindo com a posição de Dilthey, agora sobre a abordagem compreensiva da Psicologia, podemos afirmar que algumas das características da vida mental encontradas por ele em sua análise foram sua unidade estrutural, seu desenvolvimento teleológico, a centralidade da motivação e sentimentos e que membros dessa variedade de constituintes da vida mental (como por exemplo representações e sentimentos) não podem ser reduzidos um ao outro ou derivados uns dos outros, embora estejam sempre envolvidos em interconexões intrínsecas. Assim, Dilthey (1945) rejeita a explicação dedutivo-nomológica em Psicologia porque a consideração do ser humano em termos de causa e efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, não daria conta deste em seu significado antropológico superior. Por mais que se tente explicar a causa do comportamento humano, sempre ficará faltando a questão do sentido, ou seja, a questão fundamentalmente humana. E sentido e significado não se explicam, podemos apenas tentar compreendê-los.

Assim o evento psicológico não poderia ser explicado, somente compreendido, pois teria um caráter de singularidade e sentido que não é captado por qualquer tipo de tentativa explicativa nomológico-dedutiva. Além de seguir a linha de Brentano denunciando o caráter excessivamente especulativo do associacionismo, que seria baseado em um conjunto muito extenso de hipóteses especulativas sem qualquer suporte empírico ou experimental (Penna, 1991), Dilthey enfatiza sua crítica do caráter mutilador da abordagem explicativa, que perde o que os fenômenos humanos têm de específico: seu significado. Dilthey define significado como sendo o modo peculiar de relação que, dentro da vida, guardam as partes com o todo. Penna (1991) expõe a diferença entre a abordagem explicativa e a abordagem compreensiva tal qual Dilthey a vê, através de uma metáfora sobre um quadro. Explicativamente, podemos abordar o fenômeno de um quadro acumulando dados sobre o seu peso, dimensões, material de que são feitas a tela e a moldura, tipo de tintas utilizadas, etc. Nada disso no entanto nos revelará sua verdadeira razão de ser, seu sentido. Para termos essa revelação, precisamos adotar uma atitude compreensiva. Todos os fenômenos psicológicos e humanos portanto se caracterizariam por suas relações de sentido, e não físico-causais, portanto, teriam que ser abordados por um método diferente.

Portanto, para Dilthey (1945) a hermenêutica deveria ser o método de investigação das ciências humanas (ciências do espírito). Originalmente um método surgido para a interpretação de textos canônicos (a Bíblia), a hermenêutica foi sendo adotada em Filologia, Direito, História até chegar a sua forma contemporânea que surge da obra do filósofo Hans-Georg Gadamer. Ela consiste numa tentativa de transformar a hermenêutica, palavra que designa qualquer técnica de interpretação, num método geral de interpretação. Para a hermenêutica o significado de qualquer produção cultural humana (inclusive suas ações) nunca pode ser entendido sem considerar a rede de significações relacionadas no seu ambiente cultural.

Para que a abordagem compreensiva, seja hermenêutica ou de qualquer outra natureza, possa ser considerada científica, teríamos que reformular o significado deste conceito, abandonando o característico da ciência moderna. Isso se dá porque, segundo este, a atividade científica se caracteriza pela descoberta de funções na natureza que revelam poder preditivo, e uma abordagem compreensiva não tem qualquer semelhança com este ideal de conhecimento, é retrospectiva e interpretativa.

Em suma, a polaridade existente entre as perspectivas explicativa e compreensiva (chamadas por Smith, 1978, de causal e interpretativa) se caracteriza pela distinção de Dilthey entre ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften), no contraste metodológico de Max Weber entre explicação e compreensão, no contraste entre causas e razões, entre causas eficientes e causas finais (teleológicas), entre comportamento e ação no sentido que tem essas palavras para o senso comum, entre os termos comportamento e conduta, conforme definidos por Krüger (1994). É, como conclui Smith (1978), o contraste entre uma explicação causal, que tradicionalmente nasce de um ponto de vista exterior à pessoa que é o sujeito do comportamento, e a compreensão interpretativa, tradicionalmente oriunda de um ponto de vista interno à perspectiva da pessoa, plena de sentimentos, significados e valores.

 

Que métodos então?

A influência de Dilthey, presente mesmo nos principais formuladores do movimento, como Maslow e Rychlak, contrasta com a determinação destes em se proclamarem aderidos à ciência moderna. Em virtude desta indefinição epistemológica básica sobre a natureza de suas investigações psicológicas, proliferaram na Psicologia Humanista em seus vinte primeiros anos de história os mais diversos métodos de pesquisa. James Barrell, Chris Aanstoos, Anne Richards e Mike Arons (1987) em seu artigo Human Science Research Methods, que inventaria a pesquisa humanista até a metade da década de oitenta, consideraram a maioria das pesquisas em Psicologia Humanista guiada por quarto métodos: o experimental, o fenomenológico, o hermenêutico e o que denominam psicológico perceptual, oriundo da prática clínica individual, ou seja, uma variação do método clínico.

Embora sejam métodos de pesquisa muito diferentes, todos na pesquisa humanista têm três características em comum, que não se encontram nos métodos tradicionais de pesquisa psicológica. A primeira é que todos, mesmo o método “experimental”, orientam seus esforços no sentido de uma abordagem compreensiva para a pesquisa psicológica, focalizando-a na experiência humana plena de significado. A segunda dessas características, é que o campo onde se efetuam suas pesquisas é o da vida no contexto real do mundo e sociedade. A terceira, é a busca pelo esclarecimento dos sentidos e significados vividos pela perspectiva do próprio sujeito da experiência humana. Estes tipos de utilização foram a resposta metodológica da Psicologia Humanista a uma ciência psicológica que, segundo ela, objetificava e desumanizava o homem para poder estudá-lo.

Muitos psicólogos humanistas que utilizam estes métodos acima citados pretendem ter desenvolvido abordagens capazes de compreender a vida psicológica plena de sentido e significado tal como ela se apresenta nos contextos do mundo real. O problema é que não precisamos de muitos argumentos para concluir que o método fenomenológico, rigorosamente falando, não tem qualquer identidade de objetivos com o método científico moderno, muito menos o hermenêutico, que aqui é utilizado como nada mais que um método de interpretação de discursos. Já o método clínico, só se integra à pesquisa científica nomotética quando seus resultados são abordados como estudo de casos, onde se buscam padrões gerais nos dados que possam instruir pesquisas experimentais ou ex-post-facto posteriores, auxiliando na criação de hipóteses a serem testadas.

É evidente que o método fenomenológico, o método hermenêutico e o método clínico (com as ressalvas feitas), são métodos que somente se integram a uma abordagem compreensiva de Psicologia, que não se integra à ciência moderna à qual autores como Maslow e Rychlak dizem pertencer. Resta então compreendermos como é que os humanistas em geral acreditam usar o método experimental para tão inusuais objetivos, para formarmos um quadro adequado de sua indefinição metodológica geral.

James Barrell era na década de oitenta uma das maiores autoridades em método experimental aplicado à Psicologia Humanista. Já havia supostamente o aplicado, em conjunto com uma série de colaboradores, no estudo de diversos problemas humanos tais como stress, dor, ciúmes, percepção temporal, ansiedade, motivação e emoções humanas. Barrell & Price (1980) nos dizem que o objetivo do método experimental é a clareza das conclusões, e embora comece com a experiência direta, conclui com uma compreensão dos fatores que formam a estrutura de uma determinada experiência. A ênfase dessa abordagem humanista sobre o método experimental seria sobre a auto-consciência. Ainda segundo ele, como expõe em outro artigo seu (Barrell e outros, 1987, p.427), essa abordagem consiste em quatro estágios: (1) relatar uma experiência imediata ou revivida, (2) escrevê-la em primeira pessoa em tempo verbal presente, (3) fazer um certo número desses relatos para um determinado tipo de experiência, e (4) Perguntar para si mesmo o que há de comum entre estas descrições.

A meta desta suposta pesquisa experimental é clarificar a estrutura essencial de um determinado sentimento, para que se descubra como a pessoa cria essa experiência sem ter consciência desse processo. Uma vez que se entenda como esse tipo de sentimento é criado, o espectro de escolhas conscientes da pessoa na vida é expandido, aumentando sua liberdade relativa a tais experiências. Como afirma Barrell (1987), a abordagem experimental em Psicologia Humanista aponta para a importância do retorno às nossas próprias experiências diretas e sentidos vividos. A questão experimental inclui portanto ambos o quê e o como da experiência; tanto o significado quanto o processo da experiência.

Não é preciso diante destas observações de Barrell continuar com uma descrição desta estranha utilização do que ele chama de método experimental. Elas são o suficiente para evidenciar porque este procedimento não corresponde ao que psicólogos experimentais chamariam de experimento, ou que cientistas externos à Psicologia chamariam de ciência moderna. A confusão de objetivos é evidente (de leis para compreensão) e é compartilhada por grande parte das supostas pesquisas “experimentais” humanistas dos primeiros anos do movimento. Por conta deste tipo de ingênua distorção do método experimental, assim como da mais coerente (mas contrária ao espírito original da Psicologia Humanista) multiplicação de métodos idiográficos de investigação na abordagem, Joseph Rychlak procurou uma refundação da Psicologia Humanista, iniciada por seu artigo de 1975 Psychological Science as a Humanist Views It, e levada a termo em suas obras The Psychology of Rigorous Humanism, de 1988, e Logical Learning Theory, de 1994.

 

Psicologia Humanista contemporânea: Rychlak e a forma atual do dilema

O norte-americano Joseph Rychlak, é o maior herdeiro da tradição empírica da Psicologia Humanista americana, um dos maiores nomes do Construtivismo e da Filosofia da Psicologia de nossos dias. Entre as principais crenças expostas em sua definição das assunções epistemológicas e ontológicas da Psicologia Humanista estão (1988, p.501-505):

1) A natureza da Teoria é diferente da natureza do Método. Obter a primeira do segundo é impossível em princípio. Este princípio se refere à idéia popperiana de que nenhum método nos proporciona uma teoria, ele apenas a coloca em teste.

2) Todas as assunções ontológicas, epistemológicas e metodológicas em Psicologia devem valer tanto para o objeto do experimento quanto para o experimentador. Ou seja, uma vez que a investigação em Psicologia sempre envolve algum nível de circularidade, não podem ser toleradas contradições teóricas na aplicação dos mesmos pressupostos utilizados para o sujeito do experimento ao experimentador.

3) Existem N explicações possíveis para cada padrão de fatos observados, experimentalmente ou de qualquer outra forma. Ou seja, mais uma crença popperiana de que as teorias explicativas possíveis para qualquer lei científica são sempre infinitas.

4) No campo da teoria explicativa, as causas formais e finais devem ser readmitidas em seu pleno direito. Ou seja, para a Psicologia Humanista o conceito de agency, ou do sujeito proativo e orientado a metas, é central e sem ele nenhuma Psicologia digna do nome pode ser construída.

Assim, como afirma Rychlak (1975) em seu clássico artigo Psychological Science As a Humanist Views It, o humanismo é uma descrição teórica do comportamento em termos de causas formais e causas finais, mais do que em termos de causas materiais e causas eficientes, como no Behaviorismo e na Psicologia Fisiológica. Quanto ao Cognitivismo, acredita Rychlak (1988) que seu grande mérito foi ter reintroduzido o campo das causas formais na explicação psicológica científica, mas que ele falharia como humanismo por não aceitar, da mesma forma como toda a Psicologia de matriz lockeana não o faz, as causas finais como legítimas fontes de explicação científica.

Uma vez que Rychlak (1988) identifica o Cognitivismo com a teoria mediacional que o antecedeu e com algumas teses da inteligência artificial, sua conclusão é que esta abordagem adere à mesma matriz conceitual lockeana do Behaviorismo. As teorias mediacionais falham em oferecer um genuíno resgate da causa final no domínio da explicação psicológica por três motivos. Primeiro, porque os mediadores (sinais, codificadores, regras, modelos) são inputs e portanto foram causados eficientemente no organismo; sendo assim (segundo) uma meta genuinamente produzida pelo próprio organismo de forma independente da causação ambiental e genética não tem lugar (a liberdade é um mito); então (terceiro), isto resulta num meio exclusivamente demonstrativo de descrever o curso dos comportamentos. Para Rychlak portanto, o Cognitivismo é um Behaviorismo mediacional. Para uma crítica a esta tese de Rychlak, remeto o leitor a artigo anterior (Castañon, 2007) em que abordo o problema da adesão do Cognitivismo a teses filosoficamente humanistas.

Rychlak (1988) acredita que o Cognitivismo afirma equivocadamente ter resolvido o problema do comportamento humano orientado a metas, ou seja, pró-ativo, e com isso solucionado a questão teleológica em Psicologia. Está se referindo aqui à famosa obra de Miller, Galanter e Pribram (1960), um dos marcos fundadores do Cognitivismo: Plans and the Structure of Behavior. Para estes autores, podemos definir um plano de maneira rigorosa como um processo hierárquico de seqüências de operações a serem executadas por um organismo, da mesma forma como um programa para um computador. Este nós conhecemos hoje como TOTE (test-operate-test-exit), um modelo cibernético de auto-regulação orientada a metas, ou feedback. A diferença aqui para Rychlak é que temos um modelo formal para dar conta do fenômeno da intencionalidade do comportamento, não uma legítima aceitação da causa final. Temos causas formais e eficientes dando conta de uma formulação aceitável de parte dos aspectos pró-ativos do comportamento. Para os autores cognitivistas citados, intenção é uma parte incompleta de um plano cuja execução já tenha começado. Rychlak questiona esta visão da atividade finalista humana, pois em sua visão esta deveria dar conta não da hierarquia de um plano de ação, mas da própria definição dessa hierarquia e desse plano. Caso remetêssemos a questão a planos e hierarquias maiores, estaríamos sempre somente transferindo o problema da legítima causalidade final para mais atrás, até termos que nos deparar com as metas e finalidades irredutíveis (por exemplo, o plano de ir à faculdade, faz parte de uma meta mais elevada de terminar o doutorado, que faz parte de um plano mais extenso de formação profissional, que faz parte de uma meta mais básica de investigar profundamente certos problemas, que por sua vez precisa ser explicada sempre por uma hierarquia superior de metas).

Se um organismo está somente executando planos, então em qual sentido podemos falar de explicação teleológica? Só podemos falar de teleologia quando formulamos estes planos, comparamos planos diferentes e os escolhemos. A execução, assim como a execução de um programa, pode ser pensada em termos de feedback e causação eficiente, mas esta não é a questão para Rychlak (1988). Não teríamos aqui qualquer revolução em relação à imagem mecanicista de homem herdada do Behaviorismo. O comportamento continua a ser visto como explicado em termos de causa eficiente (impulsos neuronais) guiada pela causa formal do padrão do plano do programa (meta cognitiva). Mas onde está a verdadeira questão da pró-atividade, que é a escolha de planos e a decisão de executar o plano? Na imagem de homem do Cognitivismo como a vê Rychlak, em nenhum lugar.

Para não continuar nesta que seria segundo ele uma lastimável situação, Rychlak (1994) propõe para a Psicologia sua própria teoria. Em Logical Learning Theory (LLT), a mais importante obra da Psicologia Humanista contemporânea, Rychlak apresenta a forma final de sua LLT e o resultado acumulado de décadas de pesquisa em seu suporte. Uma das alegações centrais da LLT é que o ser humano raciocina de duas formas básicas: a demonstrativa, sem questionamento das premissas assumidas, e a dialética, quando a indefinição entre premissas opostas e comparação entre elas. Para Rychlak (1994), é o pensamento dialético, que lida com as premissas que escolheremos para interpretar a realidade e as informações que receberemos, que é a raiz da liberdade subjetiva humana. É ao raciocinar dialeticamente que fazemos escolhas primevas sobre planos, metas e pressupostos. Essa é a interpretação de Rychlak da Psicologia kantiana: 

Nós não podemos evitar nossos óculos mentais – Kant referiu-se a estes como as categorias do entendimento – e experimentar a realidade do numeno (a coisa-em-si) diretamente. Nós podemos inferir que a dimensão numenal de coisas em si mesmas existe independentemente de nossa capacidade de conceituação, mas nós nunca podemos conhecer a realidade numenal exceto como nós a experimentamos através de nossos óculos (categorias), por seus padrões (predicados) nossos inputs sensoriais, os fazendo significantes e conseqüentemente cognoscíveis. O modelo kantiano é pro forma ao invés de tabula rasa, por causa de seu pressuposto de que os óculos emprestam significado a vida desde seu começo. Assim, o significado sempre se atribui dos níveis mais altos de abstração aos níveis visados abaixo. (p.29)

 

Portanto, lembrando o conceito kantiano de dialética transcendental, Rychlak (1994) defende que idéias podem ser formuladas numa esfera transcendente, assim sendo capazes de rearranjar a realidade, ainda que em detrimento do sujeito por causa das distorções resultantes. Uma vez que o noumeno é incognoscível, o que recebemos dos sentidos é informação. Este input que nos vem através das sensações não é somente ordenado pela formas cognitivas, mas pode potencialmente ter seu significado alterado por ele.

Para não nos desviarmos do objetivo deste artigo, cabe aqui somente uma breve conclusão sobre a visão que Rychlak apresenta do Cognitivismo e outra sobre a forma que o dilema humanista toma em sua obra. Não é legítima a conceituação do Cognitivismo como uma mera teoria mediacional, para isso, teríamos que identificá-lo totalmente com somente uma de suas correntes, o computacionalismo, que advoga a tese da IA forte (Castañon, 2007). Quando o Cognitivismo trata metas e propósitos como causas formais, em sua forma de crenças sobre a ordem hierárquica de ações a serem efetuadas para a consecução de uma meta, o faz não negando a ordem de causalidade final, mas negando que tal tipo de causalidade possa ser abordada de uma forma científica com conseqüências preditivas. De fato, é nisso que fracassa a LLT. Se é verdade que raciocinamos dialeticamente e criativamente, também é verdade que neste campo, nenhuma predição comportamental pode ser feita, e sem predição, não há ciência moderna. Assim, a obra de Rychlak não oferece solução para este problema, e a nova forma que o dilema humanista ganha em sua obra é a tentativa de agregar a causalidade finalista à explicação psicológica, submetendo hipóteses sobre esta a experimentos. O problema, é que podemos colocar em teste estes planos uma vez construídos, mas não seu momento de criação e escolha. Assim, podemos investigar a causalidade final do comportamento humano somente depois que está constituída enquanto causa formal, enquanto meta e hierarquia de metas. Isto não significa a negação da existência de uma fonte legítima de causalidade final. Significa a constatação de que tal tipo de explicação não é compatível com a abordagem nomotética da ciência moderna, não tendo como ser investigada por esta.

 

Conclusão

A alternativa oferecida por Rychlak (1994) para a resolução do dilema humanista é de fato uma não-alternativa. Ao querer reintroduzir o domínio da legítima causalidade final na explicação científica, ele está mantendo a imagem humanista de ser humano mas renunciando à ciência moderna. A explicação científica nomotética só suporta causas materiais, eficientes e formais, e isto por uma razão muito simples: só suposições a respeito destes tipos de causas são falsificáveis. Caso fosse reintroduzida a causa final no domínio da explicação psicológica científica, estaríamos renunciando a um dos critérios centrais da ciência moderna, a falsificabilidade. Todos os comportamentos humanos seriam explicáveis em termos finalistas, quaisquer que fossem, e como disse Popper (1975), aquilo que explica qualquer coisa, não prevê coisa nenhuma. Aquilo que não prevê nada não é falsificável, e portanto não é científico. Como argumentou Popper (1975) sobre as formas adlerianas e freudianas da Psicanálise, todos os comportamentos humanos podem ser explicados retrospectivamente em termos de vontade de prazer ou vontade de poder. Portanto, se qualquer comportamento possível e imaginável pode ser explicado com base nestes tipos de finalidade, eles não tem finalidade nenhuma: não prevêem nada e não informam nada sobre o mundo.

Outro exemplo do caos provocado quando explicações finalistas são inadvertidamente tomadas por explicações científicas são os atuais abusos da Psicologia Evolucionista, que pretende explicar a presença de toda e qualquer característica e comportamento do ser humano em função de uma finalidade adaptativa magicamente transformada em causa formal (informação) e eficiente nos genes. Hoje, o código genético é o flogisto universal da Psicologia Evolucionista: qualquer característica ou aptidão humana é facilmente atribuída a um gene. A teoria da Evolução, uma forma peculiar de teoria finalista, leva em última análise à afirmação de que toda ação humana é motivada por uma finalidade adaptativa. Como afirma Daniel Robinson (1985b), você pode até explicar a criação das geometrias não-euclidianas e das fugas de Bach com base em “pressões seletivas”, o problema é que isso não é muito convincente.

A adoção de uma concepção de método científico não deve estar orientada pelo desejo de enquadrar como científico o método que utilizamos para pesquisar nosso objeto de estudo. Ela deve estar orientada pela percepção de que esta abordagem de método seria a mais adequada para embasar nossa busca por conhecimento universal empiricamente falsificável. O conjunto do conhecimento humano não é só composto pela ciência experimental, e qualquer uma de suas áreas tem seu valor intrínseco e características insubstituíveis. Mas o fato é que há uma espécie de conhecimento que o ser humano se acostumou a denominar ciência, a ciência moderna, com suas características nomotéticas de universalidade e falsificabilidade. Atribuir o termo ciência a outras formas de conhecimento humano não irá alterar o fato de que há um conjunto de conhecimentos, dentro do espectro geral do conhecimento humano, que possui essas características distintivas, e que continuará a ser almejado em virtude de suas extremas capacidades preditivas e pragmáticas. A Psicologia Humanista almejava esta forma de conhecimento, mas fracassou em manter seu projeto de Psicologia dentro do projeto mais amplo da ciência moderna.

Quando nos submetemos à falsa opção oferecida pelo Positivismo, mesmo que rejeitando a princípio a degradação da imagem de seu humano como a Psicologia Humanista, entramos num beco sem saída. Ficar entre destruir a imagem de ser humano para adaptá-la a ciência ou destruir a imagem da ciência para adaptá-la ao ser humano, é um dilema que não tem solução. No primeiro caso ficamos com uma imagem degradada da condição humana, e um objeto que não se assemelha ao que é revelado em nossas próprias experiências subjetivas. No segundo caso, como afirma o humanista Rychlak (2004), temos outra catástrofe: a Psicologia rejeita o método científico e assim rejeita seu status científico, como também tudo o que o método científico tem a oferecer para legislar sobre teorias rivais.

Não se trata aqui também da outra forma que este mesmo dilema ganha de setores da Psicologia Humanista, que consiste em escolher ou mesmo em dividir a Psicologia em uma ciência nomotética e uma ciência idiográfica. O sentido não é questão da ciência, é questão da filosofia. A distinção de Dilthey entre ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften e Geisteswissenschaften), o contraste metodológico de Max Weber entre explicação e compreensão, entre causas e razões, separa não o campo entre dois tipos de ciência, mas sim o campo onde a ciência pode atuar do campo que é domínio exclusivo da Filosofia. Como afirma Robinson (1985b) a própria idéia de uma ciência do singular é um contra-senso. Toda ciência só se estabelece com o estabelecimento de leis universais. Toda ciência é nomotética. A investigação do individual pode se valer de técnicas surgidas das ciências nomotéticas, mas ainda sim é sempre interpretativa e filosófica. Diz Robinson (1985b) sobre como a Psicologia deve lidar com seus aspectos idiográficos:

O que é proposto aqui não são os significados pelos quais alguma nova ‘ciência’ pode ser criada para suportar tópicos idiográficos, mas a aplicação de verdadeiros e testados métodos não-científicos de análise para estes problemas psicológicos que são nomoteticamente inexplicáveis.(p.73)

Esta tese é em parte considerada pelo próprio Rychlak (1993), que não vê mais como se pensar uma disciplina psicológica científica isolada da Filosofia. Ele propõe para o campo a importação do princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Para ele, uma vez que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade de reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a um único nível de explicação (físico, biológico, lógico ou social): 

‘Explicar’ deriva do latim planare, que significa aplainar ou nivelar. Um princípio psicológico de complementaridade tornará evidente que uma explicação teórica deve ser reduzida (nivelada) para qualquer um dos quatro níveis evidentes [Physikos, Bios, Socius, and Logos], cada um dos quais com status igual. Nós não estamos falando de quatro níveis de explicação aqui. Os níveis não são ordenados em hierarquia de dependência. Complementar não é reduzir um nível a outro. (Rychlak,1993, p.939)

Assim, creio que a tarefa que se impõe a todos aqueles psicólogos que não estão dispostos a renunciar ao método científico e muito menos a uma imagem humanista do ser humano é a criação de uma solução epistemológica para a complementaridade destes níveis de análise, assim como para a abordagem científica e a abordagem filosófica dos fenômenos psicológicos. Se há alguma esperança de unidade futura para a Psicologia, ela está em conseguirmos definir uma fronteira legítima entre estes dois tipos de investigação. Em um fenômeno multicausado como o psicológico, sempre haverá disputas de interpretações quanto ao nível determinante na causação do comportamento, portanto, a unidade da Psicologia nunca poderá acontecer nas interpretações metafísicas de seus resultados empíricos. Se a Psicologia um dia se tornar uma disciplina unificada, acredito que sua unidade estará talvez somente no consenso em relação ao método que devemos utilizar para investigar uma parte de seus problemas. Se um dia esta utopia se realizasse, não seria mais necessário falar em uma Psicologia Humanista científica, somente em uma Psicologia científica única, e uma das interpretações filosóficas complementares desta: uma Psicologia Humanista filosófica.

 

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Nota sobre o autor

Gustavo Arja Castañon é graduado em Psicologia pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Psicologia Social pela UERJ e doutor em Psicologia pela UFRJ. Atualmente ministra cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e Católica de Petrópolis, e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da UFRJ, tendo se dedicado nos últimos dez anos a investigações de Epistemologia da Psicologia. Endereço para contato: gustavocastanon@hotmail.com.

 

Data de recebimento: 12/06/2006
Data de aceite: 30/10/2007

Memorandum 12, abril/2007
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/castanon01.htm

 

 

 

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