Desde seu surgimento no cenário psicológico como tentativa
de constituição de uma alternativa às abordagens behavioristas e
psicanalíticas, a Psicologia Humanista norte-americana se encontra
enredada num dilema insolúvel, imposto pelo Positivismo à Psicologia. O
dilema imposto por esta escola filosófica aos cientistas psicológicos é
o da pretensa obrigação de escolher entre duas alternativas, porque não
dizer, catastróficas: devem eles distorcer a imagem de homem para
adequá-la ao método científico legado pela ciência moderna ou, então,
abandonarem a ciência moderna e criarem sua própria versão
idiossincrática de método de investigação, que se adeque a sua imagem de
ser humano.
A Psicologia Humanista herdou este dilema em um formato
particular, que acompanha a história da abordagem desde o seu
surgimento. Tendo se decidido programaticamente a não aceitar a
distorção da imagem de ser humano para adequá-lo ao método científico,
ela no entanto proclamou igualmente sua adesão ao projeto da ciência
moderna. Assim, a Psicologia Humanista historicamente não consegue se
decidir entre manter sua adesão ao método científico – que não se
adequa a forma como define seu objeto de pesquisa nem a maioria de seus
interesses principais de investigação – ou buscar transformar a imagem
de ciência que pratica para adequá-la à sua imagem de ser humano.
Este artigo defende a tese de que apesar das sucessivas
declarações de princípios de seus dois principais nomes, Abraham Maslow
e Joseph Rychlak, o resultado da empreitada humanista na psicologia
moderna foi de fato o abandono do método científico. Começará por uma
breve definição deste movimento, suas raízes históricas, abordará suas
críticas ao modelo de Psicologia da primeira metade do século passado e
passará por sua definição do objeto de estudo desta disciplina. A partir
de mais cuidadosa descrição do dilema proposto, exporá então o
transtorno epistemológico provocado por este, a tentativa contemporânea
de solução de Joseph Rychlak e finalmente uma avaliação geral de sua
consistência com o projeto da ciência moderna.
História da
Psicologia Humanista
O movimento que desembocou no estabelecimento da Psicologia
Humanista teve seu início no ambiente acadêmico norte-americano do
pós-guerra. Os líderes do movimento humanista levantaram suas vozes
contra a imagem de homem e de método científico defendidas pelo
Behaviorismo - dominante no campo da Psicologia experimental - e contra
a imagem de homem e de método terapêutico da Psicanálise - dominantes no
campo da psicoterapia.
Como afirma De Carvalho (1990), a oposição ao Behaviorismo
foi a posição que, pelo caminho da negação, mais contribuiu para o
estabelecimento conceitual da Psicologia Humanista. Os Humanistas
caracterizam o Behaviorismo como uma teoria em que o homem é visto como
um ser inanimado, um organismo puramente reativo, "uma coisa passiva
perdida, sem responsabilidade por seu próprio comportamento" (p. 33).
Assim, o Behaviorismo veria o homem como um conjunto de respostas a
estímulos, ou seja, uma coleção de hábitos independentes. Frick (1973),
em sua obra Psicologia Humanística, ainda hoje referência
obrigatória para quem estuda o movimento, acusa o Behaviorismo de haver
buscado criar uma visão limitada do homem. Diz ele:
Esta escola de
Psicologia concebe o homem como uma máquina complexa, com seu sistema
fechado de funções parciais e regularidade estática. O Homem está
construído sobre uma organização hierárquica de estímulo-resposta, que
leva a padrões previsíveis de hábitos, e reforço é a palavra chave para
o desenvolvimento da personalidade (p. 17).
Os humanistas se rebelam contra o Behaviorismo se opondo a
quatro pontos fundamentais. Primeiro, não concordam com a pesquisa com
animais como acesso a uma compreensão adequada do ser humano. Como disse
Bugental (1963), o ser humano não é um rato branco maior, assim uma
Psicologia baseada em dados animais excluiria aquilo que deveria ser o
objeto primeiro da Psicologia: os processos e experiências distintamente
humanos. Segundo, os humanistas exigem que os temas de pesquisa da
Psicologia não sejam escolhidos por sua adequação ao método
experimental, e sim por sua importância para o ser humano e relevância
para o conhecimento psicológico. Terceiro, opõem à concepção reativa e
mecanicista behaviorista do ser humano uma concepção proativa da
natureza humana: os humanistas argumentam que a motivação humana é
intencional e auto-motivada. Por último, estes afirmam que ainda que
fosse possível ao Behaviorismo realizar um catálogo completo dos
comportamentos humanos possíveis, isto não ofereceria uma descrição
adequada da natureza humana pois, seguindo a sentença gestaltista, a
pessoa é mais do que a soma de cada comportamento isolado. Para os
humanistas, o homem é um todo único e indivisível, é uma gestalt.
Mas a Psicologia Humanista não se constituiu somente como
uma reação ao Behaviorismo, mas também como uma reação à Psicanálise,
que era considerada por esta determinista, reducionista e dogmática. O
foco das críticas dos psicólogos humanistas era de novo a imagem de
Homem, desta vez, a admitida pela Psicanálise. Segundo eles, a visão da
natureza humana em Freud era pessimista, fatalista e excessivamente
centrada no lado negro do ser humano. Como diz De Carvalho
(1990), os humanistas argumentavam que para Freud "nada além de
destruição, incesto e assassinato poderia se seguir se uma natureza
básica humana encontrasse expressão completa" (p. 34). Assim, ainda
segundo De Carvalho, para Freud, a pessoa permaneceria para sempre
fixada em emoções originadas de traumas da infância. O homem não seria
nada além de um produto de poderosas pulsões de fundo biológico, que se
manifestariam de acordo com a história do passado de cada um.
Outra acusação que o humanismo fazia de modo geral à
Psicanálise foi formulada originalmente por aquele que é o nome mais
representativo do movimento, Abraham Maslow. Ele a acusa de estudar
somente indivíduos perturbados: neuróticos e psicóticos. Como disse
Maslow (1963), "o estudo de espécimes aleijados, enfezados, imaturos e
patológicos só pode produzir uma Psicologia mutilada e uma filosofia
frustrada" (p. 234). A Psicologia deveria portanto se voltar para o
estudo das qualidades e características positivas do Homem, como a
alegria, o altruísmo, a fruição estética, a satisfação ou o êxtase.
Enfim, psicólogos deveriam estudar o homem sadio, não a psicopatologia.
Apesar de conceder à obra freudiana um valor relativo por proporcionar
uma revolucionária visão da motivação humana, os humanistas como Frick
(1973) consideram que a Psicanálise estabeleceu fundamentos teóricos
responsáveis pela disseminação de uma visão pessimista do ser humano e
de suas possibilidades.
A oposição feita pelo movimento da Psicologia Humanista ao
Behaviorismo e à Psicanálise teve como influências anteriores principais
as obras do neuropsiquiatra Kurt Goldstein, da Psicologia da Gestalt e
de alguns dos primeiros teóricos da personalidade. Goldstein exerceu
poderosa influência sobre os psicólogos humanistas através de obras como
The Organism (1934) e Human Nature in the light of
psychopathology (1940), baseadas em sua pesquisa sobre a capacidade
de reorganização do cérebro humano após lesões cerebrais, feita com
soldados feridos em combate. Nelas, Goldstein introduz conceitos que
seriam assimilados e desenvolvidos por psicólogos humanistas, como os de
auto-atualização e tendência ao crescimento, assim como sua visão
holista do organismo humano. Ele enfatiza em suas obras a visão de que o
Organismo é um todo unificado, afetado em sua totalidade pelo o que quer
que aconteça em qualquer uma de suas partes.
Outra influência importante da Psicologia Humanista é a
Psicologia da Gestalt. Da mesma forma que Goldstein, a Gestalt considera
o homem como uma unidade irredutível onde tudo está relacionado com
tudo, e o todo é mais do que a soma de suas partes. É esse espírito
holista da Gestalt (assim como sua concepção do comportamento humano
como intencional) que foi assimilado pelo movimento.
Finalmente, não poderia deixar de citar os teóricos da
personalidade e suas obras que, segundo Smith (1990), com sua rejeição
às premissas mecanicistas do Behaviorismo e biológico-reducionistas da
Psicanálise clássica, foram a base da qual emergiu a Psicologia
Humanista: Gordon Allport (1937) Personality: A Psychological
Interpretation, Henry Murray (1938) Explorations in Personality
e Gardner Murphy (1947) Personality: A Biosocial Approach to
Origins and Structure.
Existem grandes resistências em se apontar um teórico como
fundador da Psicologia Humanista, tal como foram Watson para o
Behaviorismo e Freud para a Psicanálise. Mas o fato é que não se pode
falar do surgimento da auto-denominada Terceira Força em
Psicologia sem atribuir o papel principal a Abraham Maslow, autor de
obras clássicas como Motivation and Personality (1963) e
Toward a Psychology of Being (1968).
De Carvalho (1990) nos relata que no fim dos anos 40,
Maslow era reconhecido como um talentoso psicólogo experimental, mas que
devido a seus objetos de pesquisa não-convencionais começava a ser
marginalizado pela comunidade acadêmica, tendo por exemplo dificuldades
de publicar seus trabalhos no jornal da American Psychological
Association (APA).
Maslow estava acompanhado nessa discriminação por mais
algumas pessoas que se batiam contra o establishment
behaviorista. Então começou a compilar uma lista de correspondência com
essas pessoas que em 1954 atingia 125 nomes. O objetivo dessa rede de
correspondência era a troca de trabalhos mimeografados entre eles, de
modo a divulgar entre si seus trabalhos. Maslow (1968) batizou
posteriormente sua própria lista de correspondência de Rede
Eupsiquiana. Eis o que ele fala sobre esta:
Chamo-lhe Rede
Eupsiquiana porque todos estes grupos, organizações e revistas estão
interessados em ajudar o indivíduo para uma condição mais plenamente
humana, a sociedade a evoluir no sentido da sinergia e da saúde, e todas
as sociedades e todos os povos tornarem-se um mundo e uma espécie (p.
275).
No começo dos anos 60, com a ajuda de Anthony Sutich,
Maslow vai transformar essa lista de correspondência na lista dos
primeiros assinantes do Journal of Humanistic Psychology (JHP), e
poucos anos depois, na lista dos membros fundadores da American
Association for Humanistic Psychology (AAHP). Formando um conselho
editorial que tinha como membros, além de Abraham Maslow, Kurt
Goldstein, Rollo May, Lewis Mumford, Erich Fromm, Andras Angyal e Clark
Moustakas; com Sutich como editor, o primeiro número do JHP saiu na
primavera de 1961. Logo se concluiu que os assinantes daquele jornal
precisavam de uma associação própria, a AAHP, que com James Bugental
como presidente nasceu na Filadélfia no verão de 1963, num encontro que
teve 75 participantes.
O encontro seguinte da AAHP em setembro de 1964 já se
realizou com cerca de 200 participantes, até que a emergência da
Psicologia Humanista no cenário da ciência psicológica se concretizou
com uma conferência realizada em novembro do mesmo ano, na cidade de Old
Saybrook, Connecticut. Participaram dessa conferência os nomes mais
conhecidos entre os rebeldes contra o establishment:
Maslow, Allport, Bugental, Carl Rogers, May, Moustakas, Murphy e Murray
entre outros.
Até essa conferência, a AAHP era pouco mais que um grupo de
protesto, dividido como afirma Bugental (1963) em duas posições
distintas. Um queria definir a Psicologia Humanista somente em termos do
que ela não é. Outro reivindicava uma declaração de princípios com
definições programáticas propositivas. A primeira declaração da AAHP foi
uma tentativa de conciliação entre os dois grupos, adotando-se o artigo
de Bugental (1963) Humanistic Psychology: A New Breakthrough como
declaração da própria associação. Nele encontramos cinco postulados: (a)
uma pessoa é mais que a soma de suas partes; (b) Nós somos afetados por
nossas relações com outras pessoas; (c) O ser humano é consciente; (d) O
ser humano possui livre-arbítrio; (e) O ser humano tem intencionalidade.
Uma questão que não pode deixar de ser abordada neste breve
histórico do surgimento da Psicologia Humanista, é a da sua relação com
o Existencialismo. De Carvalho (1990) aponta para a inadequação de se
ver a Psicologia Humanista como uma importação para os Estados Unidos do
Existencialismo europeu. Segundo ele, os principais proponentes da
Psicologia Humanista tomaram contato com o Existencialismo somente no
final dos anos 50, quando seus pensamentos já estavam formados. Talvez
isso possa ser questionado, uma vez que através das obras The Meaning
of Anxiety (1950) e Man's Search for Himself (1953), Rollo
May, um dos principais nomes do movimento, tenha introduzido as idéias
de Sören Kierkegaard e Martin Heidegger no pensamento psicológico
norte-americano. Mas o importante aqui é ressaltar que as duas correntes
de pensamento psicológico tem diferenças fundamentais. Psicólogos
humanistas como Maslow (1963) por exemplo, criticam os traços
anticientíficos e antibiológicos do Existencialismo, e principalmente
sua tendência ao niilismo desesperado (que ele atribui entre outros a
Nietzsche, considerando-o precursor do Existencialismo), à glorificação
do nada (Sartre) e à vivência da vida como absurdo sem sentido (Camus,
Sartre).
Mas a crítica principal dos psicólogos humanistas como um
todo ao Existencialismo, se dirige a Sartre e sua proposição de que não
existe qualquer essência ou realidade no conceito de natureza humana,
resultado do postulado de que no ser humano a existência precede a
essência. Os psicólogos humanistas acreditam que há uma essência
comum à espécie humana, e em geral também crêem que essa essência está
alicerçada numa base biológica.
Outro aspecto desta questão que merece citação aqui, é o da
difusão da Logoterapia (ou Análise Existencial) de Viktor Frankl no
mesmo período do surgimento da Psicologia Humanista. Em Fundamentos
antropológicos da psicoterapia (1978) e Em busca de sentido: um
psicólogo no campo de concentração (1991) (obra clássica com muitas
diferentes edições a partir de sua publicação logo após o término da
segunda guerra) entre outros trabalhos, Frankl expressa posições muito
semelhantes em termos de imagem de homem e de críticas à Psicanálise e
ao Behaviorismo. Progressivamente, Frankl e os Humanistas se esforçaram
por aparar as arestas de suas posições e se aproximarem teoricamente.
Esses esforços surtiram muitos efeitos, de modo que, no fim de sua vida,
década de noventa, Frankl fazia parte do conselho editorial do órgão
mais tradicional do movimento, o JHP, e se tornou conhecido como um dos
principais nomes do que já vinha sendo generalizadamente denominado
psicoterapia existencial-humanista.
O grande problema da Psicologia Humanista ainda hoje
permanece sendo sua aparente vocação para a indefinição em relação à
Psicologia científica, além de sua confusão conceitual. Fazendo piada
sobre este último aspecto, o behaviorista Michael Wertheimer (1978) nos
diz que se pedirmos a dois humanistas para definir o que é a Psicologia
Humanista, obteremos pelo menos três definições mutuamente excludentes.
Joseph Rychlak é o maior pesquisador e formulador da Psicologia
Humanista contemporânea. Em Psychology of Rigorous Humanism
(1988), ele faz uma tentativa de trazer a Psicologia Humanista para os
moldes da Psicologia científica acadêmica, atacando a tradição lockeana
dentro da Psicologia e contrapondo-a a uma visão kantiana da mesma, onde
se reivindica o uso da teleologia na descrição do comportamento humano.
Mas como é possível conciliar uma investigação teleológica com o método
científico experimental?
Pressupostos
filosóficos da ciência moderna
É clara nos principais nomes da Psicologia Humanista
norte-americana a reivindicação da aderência de sua empreitada ao
projeto da ciência moderna. Numa frase famosa, Abraham Maslow
(1962/1968) assim expressa a profundidade de seu compromisso:
A ciência é o único
meio que dispomos para enfiar a verdade goela abaixo dos relutantes.
Somente a ciência pode superar as diferenças caracteriológicas no ser e
no crer. Somente a ciência pode progredir.(p.18)
Essa ciência que permitiria "enfiar a verdade goela abaixo
dos relutantes" é para ele a que permite ao menos uma aproximação do
conhecimento universalmente válido e empiricamente comprovável. É aquele
modo de obtenção de conhecimento que aspira a formular, mediante
linguagens rigorosas e apropriadas (e sempre que possível matemáticas),
leis universais que expliquem, ainda que probabilisticamente, fenômenos
da realidade objetiva. Este ideal de conhecimento descrito acima
pressupõe algumas crenças sobre o objeto do conhecimento e sobre nossa
capacidade de conhecer. Estabelecem-se aqui cinco, que para o tipo de
busca delimitado acima, são irredutíveis e necessárias. Antes porém,
quero aqui deixar claro que o objetivo deste trabalho não é a discussão
do conceito de ciência moderna, mas simplesmente a avaliação do quanto a
abordagem humanista da psicologia adere a esta visão tradicional de
ciência, que continua hoje majoritariamente aceita em disciplinas como a
Física ou a Biologia.
Voltando a questão das crenças que estão na base da ciência
moderna, comecemos pela primeira, que é a crença de que o objeto de
investigação existe independentemente da mente do observador. A isto
chamaremos Realismo Ontológico. A segunda destas é a crença na
estabilidade, pelo menos em alguns de seus aspectos, do objeto que se
estuda, a isto chamaremos Regularidade do Objeto; a terceira é a
crença de que através do método adequado, podemos vir a conhecer algo
sobre o objeto, a isto chamaremos Otimismo Epistemológico; a
quarta é a assunção das leis básicas da lógica clássica na formulação de
argumentos válidos, os Pressupostos Lógicos, e, por último e tão
fundamental quanto, a crença de que podemos representar adequada e
estavelmente o mundo através da linguagem, a isto chamaremos aqui,
Representacionismo.
È preciso destacar aqui o segundo dos pressupostos citados
acima, avaliando-o um pouco mais cuidadosamente. Admitimos que o objeto
tem que existir na realidade objetiva, de forma independente de nossas
crenças e vontade, pois caso contrário qualquer investigação deste seria
desprovida de sentido. Mas sua existência não basta para que ele possa
ser estudado pela ciência moderna. Uma vez que admitamos como
explicações científicas formulações de hipóteses causais, precisamos
necessariamente assumir que o objeto que está sendo contemplado com
estas hipóteses, em ao menos algum de seus aspectos, esteja submetido a
leis. A atividade científica se caracteriza, em suma, pela busca
racional da descoberta das leis que governam um objeto particular.
A crença na regularidade do objeto está vinculada por sua
vez ao determinismo e ao naturalismo, que estão na base da
ciência moderna desde Galileu Galilei. O determinismo está usualmente
identificado com o determinismo laplaceano, teoria que defende que nada
há no universo que não seja em tese rigorosamente previsível em
termos das leis básicas da Física. No entanto, é necessário ressaltar
que o determinismo laplaceano ou hard determinism (Robinson,
1985a) não é um pressuposto necessário da atividade científica moderna.
O que é necessário logicamente para a ciência moderna é somente o
pressuposto de que no mínimo em algum de seus aspectos o objeto
investigado esteja submetido a leis. Já o naturalismo é a crença num
universo que se reduz à natureza, governado por leis intemporais, fora
do jugo de forças sobrenaturais, da magia, dos deuses, do acaso ou do
caos. É também uma crença profunda de que as formas matemáticas governam
o mundo, de que a natureza é estável e governada por leis matemáticas, e
portanto, passíveis de descoberta. Para o naturalismo, a natureza fala a
linguagem da matemática, e portanto só pode ser conhecida através dessa
linguagem, ou seja, de questões que lhe são corretamente colocadas
através do método da experimentação, a aplicação à experiência das leis
da medida e da interpretação matemática.
Assim, este é o pano de fundo em cima do qual de delineará
o dilema que é o objeto deste artigo. A ciência moderna pressupõe o
princípio da regularidade do objeto, tanto quanto o de sua possível
quantificação. Mas, o objeto definido pelos humanistas como objeto da
Psicologia obedece estas características?
A imagem humanista
do objeto da Psicologia
Podemos recorrer ao principal proponente da Psicologia
Humanista, Abraham Maslow (1968), para começarmos a definir a imagem de
homem defendida por esta abordagem. Este coloca claramente alguns
pressupostos que fundamentam a Psicologia Humanista:
1 - Cada um de nós
tem uma natureza interna essencial, biologicamente alicerçada, a qual é,
em certa medida, “natural”, intrínseca, dada e, num certo sentido
limitado, invariável ou, pelo menos, invariante.
2 - A natureza
interna de cada pessoa é, em parte, singularmente sua e, em parte,
universal na espécie.
3 - É possível
estudar cientificamente essa natureza interna e descobrir a sua
constituição (não inventar, mas descobrir). (p. 27)
É importante esclarecer que o segundo postulado defende
implicitamente que o ser humano não é um ser absolutamente condicionado
pelos fatores biológicos, psicológicos e sociais que influenciam sua
constituição. Já o primeiro, garante um domínio de investigação no qual
em tese poderiam ser estabelecidas leis naturais. Mas como conciliar num
corpo de teorias científicas os efeitos resultantes do segundo postulado
sobre o comportamento com as leis implícitas no primeiro e terceiro?
Como predizer um comportamento auto-orientado?
A Psicologia Humanista propõe a realização de uma revolução
copernicana na abordagem do objeto de estudo da Psicologia. Como afirma
Amatuzzi (1989), a consideração do ser humano em termos de causa e
efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, por mais cabível,
correta ou verdadeira que possa ser, não dá conta do ser humano como um
todo em movimento. Ele argumenta que por mais que se tente explicar a
causa do comportamento humano, sempre ficará faltando a questão do
sentido que o se precisa dar à própria vida, sentido que humanistas como
Amatuzzi consideram como o maior desafio que se coloca para nós.
Sob o enfoque humanista, o ser humano aparece não como uma
resultante de uma série de coisas, mas como, fundamentalmente, o
iniciante de uma série de coisas. O Homem só aparece para o
humanismo na questão do sentido, não na questão da causa explicativa. O
enfoque explicativo se refere ao Homem como resultado, como passado. Não
se refere ao Homem presente, desafiado por questões de sentido. Aqui
temos a nova formulação de um velho conflito em Psicologia, e este é o
conflito apontado por muitos autores, dentre eles Gordon Allport (1975),
entre as tradições lockeana e leibniziana no pensamento psicológico, ou
Joseph Rychlak (1975), para quem somente o termo leibniziana é
substituído pelo termo kantiana. Como defende Allport
(1955/1975), para a tradição lockeana o Homem é considerado um ser
passivo, um receptáculo de impressões sensoriais que irá constituir seu
intelecto. Esta é a teoria da white paper de Locke, que faz seu o
axioma aristotélico nihil est in intelectu quod prius non fuerit in
sensu (nada há no intelecto que antes não tenha passado pelos
sentidos). Assim o Homem seria um ser passivo atuando e se constituindo
de acordo com os estímulos recebidos, sendo por eles portanto,
governado.
Leibniz iria ironicamente, no combate aberto a essa visão
de Homem, completar essa sentença com o acréscimo nisi intellectus
ipse (a não ser o próprio intelecto), ou seja, no mínimo, antes
daquilo que passou pelos sentidos, está na mente a própria capacidade de
assimilar e relacionar o material que é fornecido por estes, capacidade
essa que não pode ser dada pelos mesmos. Isto pode parecer óbvio, mas
até hoje é motivo de disputa para muitos psicólogos. Partindo de sua
concepção de mônada, Leibniz qualifica o ser humano como livre, ativo e
orientado propositivamente. O ser humano é um foco de atividade
do universo, e não um mero objeto sofrendo a influência pura e simples
das leis físicas.
Assim, o enfoque humanista rompe com a tradição
mecanicista-newtoniana e cerra fileiras ao lado da tradição leibniziana
da Psicologia (e de universo) e considera o ser humano como
autoconsciente, auto-orientado e criativo, em suma, possuidor de
livre-arbítrio. Como afirma De Carvalho (1990), a respeito da visão da
Psicologia Humanista sobre a natureza do ser humano, ela se caracteriza
pela visão da pessoa como being-in-the-process-of-becoming, ou
seja, como ser em processo de tornar-se. A pessoa em seu pleno
funcionamento é proativa, autônoma, orientada por escolhas, adaptável e
mutável, em suma, é um ser num processo de contínua transformação. O ser
humano para os humanistas é um organismo único, com a habilidade para
direcionar, escolher, e alterar os motivos que guiam o projeto de seu
curso de vida.
O dilema da
Psicologia Humanista
Temos aqui o problema central do posicionamento da
Psicologia Humanista como ciência, uma vez que o princípio da
regularidade do objeto, de pelo menos algumas de suas características, é
pressuposto fundamental para a ciência moderna. Ou seja, a atividade
científica não pode prescindir daquilo que justamente a caracteriza: a
descoberta de funções na natureza, de relações estáveis de causa e
efeito ou sistemas retro-alimentativos estáveis. Uma vez que um ser
humano livre e criativo não permitiria o estabelecimento de tais
relações, como fica a Psicologia em relação à ciência moderna?
Tal é o estatuto ontológico do objeto da Psicologia segundo
os humanistas. Partindo disto, os humanistas propõe que em última
análise o sentido da experiência humana deva ser o verdadeiro
objeto de estudo da Psicologia. Eles propõem que o objetivo final ideal
da Psicologia Humanista é uma completa descrição do que significa estar
vivo como ser humano e da variedade de experiências que lhe são
possíveis. O problema é que tal tipo de objeto não só é ilimitado, como
pouco claro e também inquantificável. Mas o que os humanistas argumentam
é que as alternativas de abordagens, tanto do Behaviorismo quanto da
Psicanálise, apresentam, como disse Maslow (1963), uma Psicologia
mutilada, inumana e estéril, cujos temas de pesquisa têm pouco ou nenhum
significado para o ser humano.
Os humanistas exigem que os temas de pesquisa da Psicologia
não sejam escolhidos por sua adequação ao método experimental, e sim por
sua relevância para o ser humano e o conhecimento psicológico. Desta
forma todos os aspectos da experiência singularmente humana se tornam
temas de pesquisa para o psicólogo humanista. Entre eles podemos
destacar o amor, ódio, medo, angústia, esperança, felicidade, humor,
amizade, altruísmo, sentido da vida, responsabilidade, o morrer,
criatividade, sentimento estético, sonhos, empatia, metas, meditação,
experiências paranormais, experiências místicas, experiências
culminantes, valores e sentimento moral. A maioria destes temas de
pesquisa não se encontra de forma alguma nos compêndios tradicionais de
Psicologia, porque não são passíveis de definição operacional,
quantificação precisa e manipulação laboratorial, ou ainda muitas das
vezes, sequer passíveis de reprodução.
Aqui começamos a entrar nas conseqüências epistemológicas
da posição ontológica da Psicologia Humanista. Temos diante de nós duas
questões. A primeira é a da dificuldade de quantificação do objeto da
Psicologia. O comportamento humano, objeto de estudo do Behaviorismo, já
apresenta muitas dificuldades de quantificação. O objeto de estudo da
Psicologia Humanista, sendo os processos e experiências distintamente
humanos, apresenta dificuldades maiores ainda. Como já foi exposto, a
ciência moderna, à qual a Psicologia Humanista pretende estar aderida,
depende em alguma medida da quantificação dos fenômenos que estuda. Mas
o objeto da Psicologia Humanista (o significado da experiência humana),
não é passível de quantificação, ele somente possui aspectos
qualitativos. Por isso, os humanistas respondem não à pergunta de
se será realmente possível que algum dia o objeto de estudo da
Psicologia vá se prestar à quantificação e matematização.
A segunda dessas questões é acerca da complexidade do
objeto de estudo da Psicologia Humanista. De qualquer ângulo que se
analise, o objeto de estudo da Psicologia é mais complexo que os objetos
de outras ciências. Se partirmos de um ponto de vista materialista,
reducionista, chegaríamos à conclusão que é preciso ter um conhecimento
profundo de química para entender a ação dos neurotransmissores, ação
cuja compreensão por sua vez, é necessária para se compreender o
funcionamento neural, o que, por sua vez, é necessário para se entender
o altamente complexo funcionamento cerebral, que por último seria a
razão última do comportamento humano. A maneira pela qual podemos
avaliar a complexidade de uma ciência, é através do número de variáveis
intervenientes que atuam na determinação de alguma conseqüência sobre o
objeto de seu estudo. Se ao pensarmos de uma forma reducionista já
podemos ter uma idéia do nível de complexidade do objeto da Psicologia,
que dirá se adotarmos uma perspectiva humanista, para a qual o ser
humano é livre e proativo, experimenta a emergência de processos
criativos e questões de sentido. Tal objeto, parece nos conduzir à
impossibilidade de investigação científica.
Em vista de todas essas características admitidas no objeto
de estudo, uma solução escolhida por muitos humanistas foi a rejeição ao
método experimental. Wertz (1998) por exemplo, chega a afirmar que a
Psicologia Humanista só pode denominar-se científica através do
surgimento da Fenomenologia de Husserl, que procurou reformular o
significado do conceito de ciência para a Psicologia. Porém, a
apropriação da filosofia de Husserl pela Psicologia Humanista é na maior
parte do tempo superficial e confusa, e parece indicar que esta
abordagem não compreende o sentido e o lugar da Fenomenologia como
teoria do conhecimento fundante, que antecede a própria Filosofia da
Ciência e não tem nada a oferecer diretamente a uma abordagem empírica
do fenômeno psicológico.
No entanto, a declaração transcrita acima de Wertz (1998)
sugere mais uma vez o dilema humanista, uma vez que os principais nomes
do movimento como Maslow ou Rychlak defendem firmemente a manutenção do
método experimental como o teste de hipóteses por excelência da
Psicologia. O dilema é: deve a Psicologia Humanista alterar o
significado do termo ciência para adequar o seu objeto a ele, ou limitar
o escopo de suas investigações para adequá-las a ciência moderna?
Cabe aqui lembrar a crítica efetuada por um importante representante do
humanismo na Psicologia, Amadeo Giorgi (1978), à Psicologia Moderna
representada então pelo Behaviorismo. Cabe no entanto aqui o
esclarecimento de que Giorgi nunca pertenceu à tradição experimental da
Psicologia Humanista norte americana. Em obra na qual tenta (e não
consegue) estabelecer o estatuto epistemológico da Psicologia como
Ciência Humana e que tem como subtítulo, Uma abordagem de base
fenomenológica, Giorgi (1985) considera que o psicológico é
irredutível ao objetivo. A pesquisa objetiva (fundamentos fisiológicos,
lógicos e sociais do psicológico) é necessária mas não suficiente para
compreender o psicológico. Este é “para-objetivo” (1985, p.55), no
entanto, legitima a investigação objetiva de suas relações com o
físico, o lógico e o social. Para Giorgi o psicológico deve ser
entendido em sua relação com o objetivo, não com
especificações objetivas, pois é irredutível. Não é surpresa no
entanto que Giorgi não dê indicações epistemológicas e metodológicas
claras de como isto poderia ser feito (de fato, não especifica sequer
sua posição ontológica). Ele pergunta em sua obra, criticando o caráter
dogmático que a Psicologia como ciência positiva assumiu:
Não seria possível
que a Psicologia tenha adotado uma concepção errada de Ciência para
imitar? Não será possível que a Psicologia não tenha ainda esclarecido
os seus objetivos segundo as suas próprias condições? De qualquer forma,
não deveria a Psicologia pelo menos levantar a questão abertamente, e
então, ou responder negativamente ou admitir que uma outra concepção de
Psicologia é igualmente possível ou até mesmo preferível? (1978, p.19)
Que concepção
epistemológica então?
Depois de respondermos à questão ontológica sobre a
regularidade do objeto do conhecimento, temos que nos deparar com a
questão do método que dispomos para investigá-lo. Caso admitíssemos a
possibilidade de fenômenos únicos, irrepetíveis no universo, e
quiséssemos, ao invés de descobrir as leis que os regem, os compreender
em sua individualidade, o que poderíamos fazer com os instrumentos da
ciência moderna? Uma coisa são as ocorrências de casos particulares de
uma lei geral, da qual eles são somente a expressão; outra, são
singularidades, casos únicos, irrepetíveis e não submetidos em todos os
seus aspectos a leis físicas. Esta pergunta, que foi a pergunta básica
de Wilhelm Dilthey (1833-1911), maior influência filosófica da
Psicologia Humanista, é que será abordada agora aqui, e que levanta a
questão da distinção entre a abordagem nomotética e a abordagem
idiográfica nas ciências humanas.
O principal foco da dispersão teórica na Psicologia é o
problema da natureza do objeto de estudo, o modelo antropológico a ser
adotado. Essa questão é a da relativa autonomia ou não do ser humano
face aos condicionamentos biológicos, psicológicos e sociais a que ele
está exposto. É, portanto, a já citada questão do velho conflito
apontado por Allport (1975), entre as tradições lockeana e leibniziana,
ou ainda por Rychlak (1988) entre as tradições lockeana e kantiana no
pensamento psicológico. A adoção de uma posição alinhada a uma dessas
tradições irá, evidentemente, condicionar o modelo de todas as pesquisas
feitas por quem a adote em Psicologia.
De modo geral, o tipo de pesquisa pode então ser concebido
de dois modos básicos: ela pode ser uma pesquisa de caráter
nomotético ou de caráter idiográfico. A pesquisa psicológica
nomotética visa à obtenção de teorias e hipóteses de aplicação
geral. Esta pretensão se sustenta na crença ontológica da regularidade
do objeto, ou seja, que existam relações funcionais estáveis entre
variáveis antecedentes e variáveis conseqüentes. Já a pesquisa
idiográfica parte da posição ontológica que assume a relativa
autonomia do objeto da Psicologia, o ser humano, frente aos
condicionamentos que lhe são impostos. Esta orientação de pesquisa
pretende que o objetivo da investigação psicológica seja a busca de
compreensão do significado da experiência humana, e não a busca de
teorias e hipóteses de aplicação generalizada.
Em suma, a perspectiva nomotética busca explicar as
causas do comportamento, enquanto a perspectiva idiográfica busca
compreender os motivos de sua expressão. Trata-se de uma escolha
entre explicar e compreender. Esta distinção de tipos de pesquisa
psicológica foi formulada pela primeira vez por Wilhelm Dilthey (1945),
que julga que as diferenças entre o objeto de pesquisa das ciências
humanas e o das ciências físicas pedem diferentes métodos de
investigação e orientação. Com essas diferenças ele não estava querendo
dizer unicamente que o ser humano é racional e livre e que entidades
físicas não são. Ele estava querendo antes de qualquer coisa expor o
fato de que fenômenos físicos são externos à experiência do investigador
e independentes uns dos outros; enquanto os fenômenos psicológicos são
interiores à experiência do cientista e inextrincavelmente
inter-relacionados uns aos outros. É antes de tudo por causa dessa
inextrincável inter-relação que Dilthey afirma que o fenômeno humano
precisa ser descrito e entendido em suas interconexões plenas de
sentido. Assim, ele parte dessa distinção entre os objetos de pesquisa
das ciências físicas e das ciências humanas para explicar a origem das
duas orientações básicas de pesquisa na Psicologia, as quais ele
denomina explicativa e compreensiva.
Dilthey (1945) denomina explicativa ou
construtiva, aquela abordagem de pesquisa importada das ciências
físicas, que visa à construção de um sistema de hipóteses com um número
limitado de elementos determinados, exatos, sem ambigüidades, além de
leis ou princípios universais regendo suas conexões, combinações e
organização última. As predições que podem portanto ser feitas sobre as
relações entre variáveis são submetidas a testes de verificação cujas
inferências possam suportar as hipóteses gerais. Os postulados do
sistema, suas combinações, os princípios e processos governando suas
interconexões e organização e as predições dessas relações funcionais,
são todas construções hipotéticas.
Assim, explicativa é a abordagem do fenômeno humano pela
ciência moderna, com seus métodos nomotéticos de investigação.
Dilthey (1945) considera que é um erro fundamental adotar essa abordagem
primariamente, quando não exclusivamente, na Psicologia, uma vez que as
experiências vividas são dadas em sua unidade, como um todo
significativo. Assim, os métodos através dos quais estudamos a vida
psicológica, a história e a sociedade devem ser diferentes daqueles que
usamos para estudar a natureza. Uma outra dificuldade que o humanista
Wertz (1998) baseando-se em Dilthey vê na abordagem explicativa em
ciências humanas é que sempre se podem elaborar diferentes hipóteses
para explicar os dados empíricos colhidos. Além disso, tudo o que se
pode estabelecer com eles tem validade probabilística, e deduzir deles
qualquer coisa em relação a uma pessoa real é uma ação baseada numa
indução que não tem sustentação lógica.
Assim, segundo Wertz (1998), o conhecimento explicativo em
Psicologia tem os seguintes limites: a certeza que ele estabelece
é sempre probabilística, sempre se pode construir teorias e explicações
alternativas para dar conta dos dados empíricos, e principalmente, as
questões principais que são aquelas relativas à natureza do fenômeno
humano não podem ser resolvidas de uma maneira convincente nem
significativa. O conhecimento adquirido dessa forma, acreditam os
humanistas, permanece estéril e incompleto.
Uma última observação necessária é a lembrança de que a
estrutura de uma explicação (dedutivo-nomológica) leva à predição. Se
soubermos as leis da natureza e pudermos controlar as condições do
experimento, podemos prever (deduzir) com certeza seu resultado. Logo,
se o resultado não sai como o previsto, sabemos que necessariamente ou
alguma das leis consideradas é falsa ou alguma das condições necessárias
não foram controladas. É por isso que esta forma de explicação é o ideal
moderno de explicação científica.
Seguindo com a posição de Dilthey, agora sobre a abordagem
compreensiva da Psicologia, podemos afirmar que algumas das
características da vida mental encontradas por ele em sua análise foram
sua unidade estrutural, seu desenvolvimento teleológico, a centralidade
da motivação e sentimentos e que membros dessa variedade de
constituintes da vida mental (como por exemplo representações e
sentimentos) não podem ser reduzidos um ao outro ou derivados uns dos
outros, embora estejam sempre envolvidos em interconexões intrínsecas.
Assim, Dilthey (1945) rejeita a explicação dedutivo-nomológica em
Psicologia porque a consideração do ser humano em termos de causa e
efeito, antecedente e conseqüente, parte e todo, não daria conta deste
em seu significado antropológico superior. Por mais que se tente
explicar a causa do comportamento humano, sempre ficará faltando
a questão do sentido, ou seja, a questão fundamentalmente humana.
E sentido e significado não se explicam, podemos apenas tentar
compreendê-los.
Assim o evento psicológico não poderia ser explicado,
somente compreendido, pois teria um caráter de singularidade e sentido
que não é captado por qualquer tipo de tentativa explicativa
nomológico-dedutiva. Além de seguir a linha de Brentano denunciando o
caráter excessivamente especulativo do associacionismo, que seria
baseado em um conjunto muito extenso de hipóteses especulativas sem
qualquer suporte empírico ou experimental (Penna, 1991), Dilthey
enfatiza sua crítica do caráter mutilador da abordagem explicativa, que
perde o que os fenômenos humanos têm de específico: seu significado.
Dilthey define significado como sendo o modo peculiar de relação que,
dentro da vida, guardam as partes com o todo. Penna (1991) expõe a
diferença entre a abordagem explicativa e a abordagem compreensiva tal
qual Dilthey a vê, através de uma metáfora sobre um quadro.
Explicativamente, podemos abordar o fenômeno de um quadro acumulando
dados sobre o seu peso, dimensões, material de que são feitas a tela e a
moldura, tipo de tintas utilizadas, etc. Nada disso no entanto nos
revelará sua verdadeira razão de ser, seu sentido. Para termos essa
revelação, precisamos adotar uma atitude compreensiva. Todos os
fenômenos psicológicos e humanos portanto se caracterizariam por suas
relações de sentido, e não físico-causais, portanto, teriam que ser
abordados por um método diferente.
Portanto, para Dilthey (1945) a hermenêutica deveria ser o
método de investigação das ciências humanas (ciências do espírito).
Originalmente um método surgido para a interpretação de textos canônicos
(a Bíblia), a hermenêutica foi sendo adotada em Filologia, Direito,
História até chegar a sua forma contemporânea que surge da obra do
filósofo Hans-Georg Gadamer. Ela consiste numa tentativa de transformar
a hermenêutica, palavra que designa qualquer técnica de interpretação,
num método geral de interpretação. Para a hermenêutica o significado de
qualquer produção cultural humana (inclusive suas ações) nunca pode ser
entendido sem considerar a rede de significações relacionadas no seu
ambiente cultural.
Para que a abordagem compreensiva, seja hermenêutica ou de
qualquer outra natureza, possa ser considerada científica, teríamos que
reformular o significado deste conceito, abandonando o característico da
ciência moderna. Isso se dá porque, segundo este, a atividade científica
se caracteriza pela descoberta de funções na natureza que revelam poder
preditivo, e uma abordagem compreensiva não tem qualquer semelhança com
este ideal de conhecimento, é retrospectiva e interpretativa.
Em suma, a polaridade existente entre as perspectivas
explicativa e compreensiva (chamadas por Smith, 1978, de causal e
interpretativa) se caracteriza pela distinção de Dilthey entre
ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften e
Geisteswissenschaften), no contraste metodológico de Max Weber entre
explicação e compreensão, no contraste entre causas e razões, entre
causas eficientes e causas finais (teleológicas), entre comportamento e
ação no sentido que tem essas palavras para o senso comum, entre os
termos comportamento e conduta, conforme definidos por Krüger (1994). É,
como conclui Smith (1978), o contraste entre uma explicação causal, que
tradicionalmente nasce de um ponto de vista exterior à pessoa que é o
sujeito do comportamento, e a compreensão interpretativa,
tradicionalmente oriunda de um ponto de vista interno à perspectiva da
pessoa, plena de sentimentos, significados e valores.
Que métodos então?
A influência de Dilthey, presente mesmo nos principais
formuladores do movimento, como Maslow e Rychlak, contrasta com a
determinação destes em se proclamarem aderidos à ciência moderna. Em
virtude desta indefinição epistemológica básica sobre a natureza de suas
investigações psicológicas, proliferaram na Psicologia Humanista em seus
vinte primeiros anos de história os mais diversos métodos de pesquisa.
James Barrell, Chris Aanstoos, Anne Richards e Mike Arons (1987) em seu
artigo Human Science Research Methods, que inventaria a pesquisa
humanista até a metade da década de oitenta, consideraram a maioria das
pesquisas em Psicologia Humanista guiada por quarto métodos: o
experimental, o fenomenológico, o hermenêutico e o que
denominam psicológico perceptual, oriundo da prática clínica
individual, ou seja, uma variação do método clínico.
Embora sejam métodos de pesquisa muito diferentes, todos na
pesquisa humanista têm três características em comum, que não se
encontram nos métodos tradicionais de pesquisa psicológica. A primeira é
que todos, mesmo o método “experimental”, orientam seus esforços no
sentido de uma abordagem compreensiva para a pesquisa psicológica,
focalizando-a na experiência humana plena de significado. A segunda
dessas características, é que o campo onde se efetuam suas pesquisas é o
da vida no contexto real do mundo e sociedade. A terceira, é a busca
pelo esclarecimento dos sentidos e significados vividos pela perspectiva
do próprio sujeito da experiência humana. Estes tipos de utilização
foram a resposta metodológica da Psicologia Humanista a uma ciência
psicológica que, segundo ela, objetificava e desumanizava o homem para
poder estudá-lo.
Muitos psicólogos humanistas que utilizam estes métodos
acima citados pretendem ter desenvolvido abordagens capazes de
compreender a vida psicológica plena de sentido e significado tal como
ela se apresenta nos contextos do mundo real. O problema é que não
precisamos de muitos argumentos para concluir que o método
fenomenológico, rigorosamente falando, não tem qualquer identidade de
objetivos com o método científico moderno, muito menos o hermenêutico,
que aqui é utilizado como nada mais que um método de interpretação de
discursos. Já o método clínico, só se integra à pesquisa científica
nomotética quando seus resultados são abordados como estudo de casos,
onde se buscam padrões gerais nos dados que possam instruir pesquisas
experimentais ou ex-post-facto posteriores, auxiliando na criação de
hipóteses a serem testadas.
É evidente que o método fenomenológico, o método
hermenêutico e o método clínico (com as ressalvas feitas), são métodos
que somente se integram a uma abordagem compreensiva de Psicologia, que
não se integra à ciência moderna à qual autores como Maslow e Rychlak
dizem pertencer. Resta então compreendermos como é que os humanistas em
geral acreditam usar o método experimental para tão inusuais objetivos,
para formarmos um quadro adequado de sua indefinição metodológica geral.
James Barrell era na década de oitenta uma das maiores
autoridades em método experimental aplicado à Psicologia Humanista. Já
havia supostamente o aplicado, em conjunto com uma série de
colaboradores, no estudo de diversos problemas humanos tais como
stress, dor, ciúmes, percepção temporal, ansiedade, motivação e
emoções humanas. Barrell & Price (1980) nos dizem que o objetivo do
método experimental é a clareza das conclusões, e embora comece com a
experiência direta, conclui com uma compreensão dos fatores que formam a
estrutura de uma determinada experiência. A ênfase dessa abordagem
humanista sobre o método experimental seria sobre a
auto-consciência. Ainda segundo ele, como expõe em outro artigo seu (Barrell
e outros, 1987, p.427), essa abordagem consiste em quatro estágios: (1)
relatar uma experiência imediata ou revivida, (2) escrevê-la em primeira
pessoa em tempo verbal presente, (3) fazer um certo número desses
relatos para um determinado tipo de experiência, e (4) Perguntar para si
mesmo o que há de comum entre estas descrições.
A meta desta suposta pesquisa experimental é clarificar a
estrutura essencial de um determinado sentimento, para que se descubra
como a pessoa cria essa experiência sem ter consciência desse
processo. Uma vez que se entenda como esse tipo de sentimento é
criado, o espectro de escolhas conscientes da pessoa na vida é
expandido, aumentando sua liberdade relativa a tais experiências. Como
afirma Barrell (1987), a abordagem experimental em Psicologia Humanista
aponta para a importância do retorno às nossas próprias experiências
diretas e sentidos vividos. A questão experimental inclui portanto ambos
o quê e o como da experiência; tanto o significado quanto
o processo da experiência.
Não é preciso diante destas observações de Barrell
continuar com uma descrição desta estranha utilização do que ele chama
de método experimental. Elas são o suficiente para evidenciar porque
este procedimento não corresponde ao que psicólogos experimentais
chamariam de experimento, ou que cientistas externos à Psicologia
chamariam de ciência moderna. A confusão de objetivos é evidente (de
leis para compreensão) e é compartilhada por grande parte das supostas
pesquisas “experimentais” humanistas dos primeiros anos do movimento.
Por conta deste tipo de ingênua distorção do método experimental, assim
como da mais coerente (mas contrária ao espírito original da Psicologia
Humanista) multiplicação de métodos idiográficos de investigação na
abordagem, Joseph Rychlak procurou uma refundação da Psicologia
Humanista, iniciada por seu artigo de 1975 Psychological Science as a
Humanist Views It, e levada a termo em suas obras The Psychology
of Rigorous Humanism, de 1988, e Logical Learning Theory, de
1994.
Psicologia
Humanista contemporânea: Rychlak e a forma atual do dilema
O norte-americano Joseph Rychlak, é o maior herdeiro da
tradição empírica da Psicologia Humanista americana, um dos maiores
nomes do Construtivismo e da Filosofia da Psicologia de nossos dias.
Entre as principais crenças expostas em sua definição das assunções
epistemológicas e ontológicas da Psicologia Humanista estão (1988,
p.501-505):
1) A natureza da Teoria é diferente da natureza do
Método. Obter a primeira do segundo é impossível em princípio.
Este princípio se refere à idéia popperiana de que nenhum método nos
proporciona uma teoria, ele apenas a coloca em teste.
2) Todas as assunções ontológicas, epistemológicas e
metodológicas em Psicologia devem valer tanto para o objeto do
experimento quanto para o experimentador. Ou seja, uma vez que a
investigação em Psicologia sempre envolve algum nível de circularidade,
não podem ser toleradas contradições teóricas na aplicação dos mesmos
pressupostos utilizados para o sujeito do experimento ao experimentador.
3) Existem N explicações possíveis para cada padrão de
fatos observados, experimentalmente ou de qualquer outra forma. Ou
seja, mais uma crença popperiana de que as teorias explicativas
possíveis para qualquer lei científica são sempre infinitas.
4) No campo da teoria explicativa, as causas formais e
finais devem ser readmitidas em seu pleno direito. Ou seja, para a
Psicologia Humanista o conceito de agency, ou do sujeito proativo
e orientado a metas, é central e sem ele nenhuma Psicologia digna do
nome pode ser construída.
Assim, como afirma Rychlak (1975) em seu clássico artigo
Psychological Science As a Humanist Views It, o humanismo é uma
descrição teórica do comportamento em termos de causas formais e causas
finais, mais do que em termos de causas materiais e causas eficientes,
como no Behaviorismo e na Psicologia Fisiológica. Quanto ao
Cognitivismo, acredita Rychlak (1988) que seu grande mérito foi ter
reintroduzido o campo das causas formais na explicação psicológica
científica, mas que ele falharia como humanismo por não aceitar, da
mesma forma como toda a Psicologia de matriz lockeana não o faz, as
causas finais como legítimas fontes de explicação científica.
Uma vez que Rychlak (1988) identifica o Cognitivismo com a
teoria mediacional que o antecedeu e com algumas teses da inteligência
artificial, sua conclusão é que esta abordagem adere à mesma matriz
conceitual lockeana do Behaviorismo. As teorias mediacionais falham em
oferecer um genuíno resgate da causa final no domínio da explicação
psicológica por três motivos. Primeiro, porque os mediadores (sinais,
codificadores, regras, modelos) são inputs e portanto foram causados
eficientemente no organismo; sendo assim (segundo) uma meta genuinamente
produzida pelo próprio organismo de forma independente da causação
ambiental e genética não tem lugar (a liberdade é um mito); então
(terceiro), isto resulta num meio exclusivamente demonstrativo de
descrever o curso dos comportamentos. Para Rychlak portanto, o
Cognitivismo é um Behaviorismo mediacional. Para uma crítica a esta tese
de Rychlak, remeto o leitor a artigo anterior (Castañon, 2007) em que
abordo o problema da adesão do Cognitivismo a teses filosoficamente
humanistas.
Rychlak (1988) acredita que o Cognitivismo afirma
equivocadamente ter resolvido o problema do comportamento humano
orientado a metas, ou seja, pró-ativo, e com isso solucionado a questão
teleológica em Psicologia. Está se referindo aqui à famosa obra de
Miller, Galanter e Pribram (1960), um dos marcos fundadores do
Cognitivismo: Plans and the Structure of Behavior. Para estes
autores, podemos definir um plano de maneira rigorosa como um processo
hierárquico de seqüências de operações a serem executadas por um
organismo, da mesma forma como um programa para um computador. Este nós
conhecemos hoje como TOTE (test-operate-test-exit), um modelo
cibernético de auto-regulação orientada a metas, ou feedback. A
diferença aqui para Rychlak é que temos um modelo formal para dar conta
do fenômeno da intencionalidade do comportamento, não uma legítima
aceitação da causa final. Temos causas formais e eficientes dando conta
de uma formulação aceitável de parte dos aspectos pró-ativos do
comportamento. Para os autores cognitivistas citados, intenção é uma
parte incompleta de um plano cuja execução já tenha começado. Rychlak
questiona esta visão da atividade finalista humana, pois em sua visão
esta deveria dar conta não da hierarquia de um plano de ação, mas da
própria definição dessa hierarquia e desse plano. Caso
remetêssemos a questão a planos e hierarquias maiores, estaríamos sempre
somente transferindo o problema da legítima causalidade final para mais
atrás, até termos que nos deparar com as metas e finalidades
irredutíveis (por exemplo, o plano de ir à faculdade, faz parte de uma
meta mais elevada de terminar o doutorado, que faz parte de um plano
mais extenso de formação profissional, que faz parte de uma meta mais
básica de investigar profundamente certos problemas, que por sua vez
precisa ser explicada sempre por uma hierarquia superior de metas).
Se um organismo está somente executando planos, então em
qual sentido podemos falar de explicação teleológica? Só podemos falar
de teleologia quando formulamos estes planos, comparamos
planos diferentes e os escolhemos. A execução, assim como a
execução de um programa, pode ser pensada em termos de feedback e
causação eficiente, mas esta não é a questão para Rychlak (1988). Não
teríamos aqui qualquer revolução em relação à imagem mecanicista de
homem herdada do Behaviorismo. O comportamento continua a ser visto como
explicado em termos de causa eficiente (impulsos neuronais) guiada pela
causa formal do padrão do plano do programa (meta cognitiva). Mas onde
está a verdadeira questão da pró-atividade, que é a escolha de
planos e a decisão de executar o plano? Na imagem de homem do
Cognitivismo como a vê Rychlak, em nenhum lugar.
Para não continuar nesta que seria segundo ele uma
lastimável situação, Rychlak (1994) propõe para a Psicologia sua própria
teoria. Em Logical Learning Theory (LLT), a mais importante obra
da Psicologia Humanista contemporânea, Rychlak apresenta a forma final
de sua LLT e o resultado acumulado de décadas de pesquisa em seu
suporte. Uma das alegações centrais da LLT é que o ser humano raciocina
de duas formas básicas: a demonstrativa, sem questionamento das
premissas assumidas, e a dialética, quando a indefinição entre premissas
opostas e comparação entre elas. Para Rychlak (1994), é o pensamento
dialético, que lida com as premissas que escolheremos para interpretar a
realidade e as informações que receberemos, que é a raiz da liberdade
subjetiva humana. É ao raciocinar dialeticamente que fazemos escolhas
primevas sobre planos, metas e pressupostos. Essa é a interpretação de
Rychlak da Psicologia kantiana:
Nós não podemos
evitar nossos óculos mentais – Kant referiu-se a estes como as
categorias do entendimento – e experimentar a realidade do numeno
(a coisa-em-si) diretamente. Nós podemos inferir que a dimensão
numenal de coisas em si mesmas existe independentemente de nossa
capacidade de conceituação, mas nós nunca podemos conhecer a realidade
numenal exceto como nós a experimentamos através de nossos óculos
(categorias), por seus padrões (predicados) nossos inputs
sensoriais, os fazendo significantes e conseqüentemente cognoscíveis. O
modelo kantiano é pro forma ao invés de tabula rasa, por
causa de seu pressuposto de que os óculos emprestam significado a vida
desde seu começo. Assim, o significado sempre se atribui dos níveis mais
altos de abstração aos níveis visados abaixo. (p.29)
Portanto, lembrando o conceito kantiano de dialética
transcendental, Rychlak (1994) defende que idéias podem ser
formuladas numa esfera transcendente, assim sendo capazes de rearranjar
a realidade, ainda que em detrimento do sujeito por causa das distorções
resultantes. Uma vez que o noumeno é incognoscível, o que
recebemos dos sentidos é informação. Este input que nos vem
através das sensações não é somente ordenado pela formas cognitivas, mas
pode potencialmente ter seu significado alterado por ele.
Para não nos desviarmos do objetivo deste artigo, cabe aqui
somente uma breve conclusão sobre a visão que Rychlak apresenta do
Cognitivismo e outra sobre a forma que o dilema humanista toma em sua
obra. Não é legítima a conceituação do Cognitivismo como uma mera teoria
mediacional, para isso, teríamos que identificá-lo totalmente com
somente uma de suas correntes, o computacionalismo, que advoga a tese da
IA forte (Castañon, 2007). Quando o Cognitivismo trata metas e
propósitos como causas formais, em sua forma de crenças sobre a ordem
hierárquica de ações a serem efetuadas para a consecução de uma meta, o
faz não negando a ordem de causalidade final, mas negando que
tal tipo de causalidade possa ser abordada de uma forma
científica com conseqüências preditivas. De fato, é nisso que
fracassa a LLT. Se é verdade que raciocinamos dialeticamente e
criativamente, também é verdade que neste campo, nenhuma predição
comportamental pode ser feita, e sem predição, não há ciência moderna.
Assim, a obra de Rychlak não oferece solução para este problema, e a
nova forma que o dilema humanista ganha em sua obra é a tentativa de
agregar a causalidade finalista à explicação psicológica, submetendo
hipóteses sobre esta a experimentos. O problema, é que podemos colocar
em teste estes planos uma vez construídos, mas não seu momento de
criação e escolha. Assim, podemos investigar a causalidade final do
comportamento humano somente depois que está constituída enquanto causa
formal, enquanto meta e hierarquia de metas. Isto não significa a
negação da existência de uma fonte legítima de causalidade final.
Significa a constatação de que tal tipo de explicação não é compatível
com a abordagem nomotética da ciência moderna, não tendo como ser
investigada por esta.
Conclusão
A alternativa oferecida por Rychlak (1994) para a resolução
do dilema humanista é de fato uma não-alternativa. Ao querer
reintroduzir o domínio da legítima causalidade final na explicação
científica, ele está mantendo a imagem humanista de ser humano mas
renunciando à ciência moderna. A explicação científica nomotética só
suporta causas materiais, eficientes e formais, e isto por uma razão
muito simples: só suposições a respeito destes tipos de causas são
falsificáveis. Caso fosse reintroduzida a causa final no domínio da
explicação psicológica científica, estaríamos renunciando a um dos
critérios centrais da ciência moderna, a falsificabilidade. Todos os
comportamentos humanos seriam explicáveis em termos finalistas,
quaisquer que fossem, e como disse Popper (1975), aquilo que explica
qualquer coisa, não prevê coisa nenhuma. Aquilo que não prevê nada
não é falsificável, e portanto não é científico. Como argumentou Popper
(1975) sobre as formas adlerianas e freudianas da Psicanálise, todos os
comportamentos humanos podem ser explicados retrospectivamente em termos
de vontade de prazer ou vontade de poder. Portanto, se qualquer
comportamento possível e imaginável pode ser explicado com base nestes
tipos de finalidade, eles não tem finalidade nenhuma: não prevêem nada e
não informam nada sobre o mundo.
Outro exemplo do caos provocado quando explicações
finalistas são inadvertidamente tomadas por explicações científicas são
os atuais abusos da Psicologia Evolucionista, que pretende explicar a
presença de toda e qualquer característica e comportamento do ser humano
em função de uma finalidade adaptativa magicamente transformada em causa
formal (informação) e eficiente nos genes. Hoje, o código genético é o
flogisto universal da Psicologia Evolucionista: qualquer característica
ou aptidão humana é facilmente atribuída a um gene. A teoria da
Evolução, uma forma peculiar de teoria finalista, leva em última análise
à afirmação de que toda ação humana é motivada por uma finalidade
adaptativa. Como afirma Daniel Robinson (1985b), você pode até explicar
a criação das geometrias não-euclidianas e das fugas de Bach com base em
“pressões seletivas”, o problema é que isso não é muito convincente.
A adoção de uma concepção de método científico não deve
estar orientada pelo desejo de enquadrar como científico o método
que utilizamos para pesquisar nosso objeto de estudo. Ela deve estar
orientada pela percepção de que esta abordagem de método seria a mais
adequada para embasar nossa busca por conhecimento universal
empiricamente falsificável. O conjunto do conhecimento humano não é só
composto pela ciência experimental, e qualquer uma de suas áreas tem seu
valor intrínseco e características insubstituíveis. Mas o fato é que há
uma espécie de conhecimento que o ser humano se acostumou a denominar
ciência, a ciência moderna, com suas características nomotéticas de
universalidade e falsificabilidade. Atribuir o termo ciência a outras
formas de conhecimento humano não irá alterar o fato de que há um
conjunto de conhecimentos, dentro do espectro geral do conhecimento
humano, que possui essas características distintivas, e que continuará a
ser almejado em virtude de suas extremas capacidades preditivas e
pragmáticas. A Psicologia Humanista almejava esta forma de conhecimento,
mas fracassou em manter seu projeto de Psicologia dentro do projeto mais
amplo da ciência moderna.
Quando nos submetemos à falsa opção oferecida pelo
Positivismo, mesmo que rejeitando a princípio a degradação da imagem de
seu humano como a Psicologia Humanista, entramos num beco sem saída.
Ficar entre destruir a imagem de ser humano para adaptá-la a ciência ou
destruir a imagem da ciência para adaptá-la ao ser humano, é um dilema
que não tem solução. No primeiro caso ficamos com uma imagem degradada
da condição humana, e um objeto que não se assemelha ao que é revelado
em nossas próprias experiências subjetivas. No segundo caso, como afirma
o humanista Rychlak (2004), temos outra catástrofe: a Psicologia rejeita
o método científico e assim rejeita seu status científico, como também
tudo o que o método científico tem a oferecer para legislar sobre
teorias rivais.
Não se trata aqui também da outra forma que este mesmo
dilema ganha de setores da Psicologia Humanista, que consiste em
escolher ou mesmo em dividir a Psicologia em uma ciência nomotética e
uma ciência idiográfica. O sentido não é questão da ciência, é questão
da filosofia. A distinção de Dilthey entre ciências naturais e humanas (Naturwissenschaften
e Geisteswissenschaften), o contraste metodológico de Max Weber
entre explicação e compreensão, entre causas e razões, separa não o
campo entre dois tipos de ciência, mas sim o campo onde a ciência pode
atuar do campo que é domínio exclusivo da Filosofia. Como afirma
Robinson (1985b) a própria idéia de uma ciência do singular é um
contra-senso. Toda ciência só se estabelece com o estabelecimento de
leis universais. Toda ciência é nomotética. A investigação do individual
pode se valer de técnicas surgidas das ciências nomotéticas, mas ainda
sim é sempre interpretativa e filosófica. Diz Robinson (1985b) sobre
como a Psicologia deve lidar com seus aspectos idiográficos:
O que é proposto aqui
não são os significados pelos quais alguma nova ‘ciência’ pode ser
criada para suportar tópicos idiográficos, mas a aplicação de
verdadeiros e testados métodos não-científicos de análise para estes
problemas psicológicos que são nomoteticamente inexplicáveis.(p.73)
Esta tese é em parte considerada pelo próprio Rychlak
(1993), que não vê mais como se pensar uma disciplina psicológica
científica isolada da Filosofia. Ele propõe para o campo a importação do
princípio da complementaridade, de Niels Bohr. Para ele, uma vez
que o fenômeno psicológico é multicausado, não existe possibilidade de
reduzi-lo a uma única esfera de causalidade, a um único nível de
explicação (físico, biológico, lógico ou social):
‘Explicar’ deriva do
latim planare, que significa aplainar ou nivelar. Um princípio
psicológico de complementaridade tornará evidente que uma explicação
teórica deve ser reduzida (nivelada) para qualquer um dos quatro níveis
evidentes [Physikos, Bios, Socius, and Logos],
cada um dos quais com status igual. Nós não estamos falando de quatro
níveis de explicação aqui. Os níveis não são ordenados em hierarquia de
dependência. Complementar não é reduzir um nível a outro. (Rychlak,1993,
p.939)
Assim, creio que a tarefa que se impõe a todos aqueles
psicólogos que não estão dispostos a renunciar ao método científico e
muito menos a uma imagem humanista do ser humano é a criação de uma
solução epistemológica para a complementaridade destes níveis de
análise, assim como para a abordagem científica e a abordagem filosófica
dos fenômenos psicológicos. Se há alguma esperança de unidade futura
para a Psicologia, ela está em conseguirmos definir uma fronteira
legítima entre estes dois tipos de investigação. Em um fenômeno
multicausado como o psicológico, sempre haverá disputas de
interpretações quanto ao nível determinante na causação do
comportamento, portanto, a unidade da Psicologia nunca poderá acontecer
nas interpretações metafísicas de seus resultados empíricos. Se a
Psicologia um dia se tornar uma disciplina unificada, acredito que sua
unidade estará talvez somente no consenso em relação ao método que
devemos utilizar para investigar uma parte de seus problemas. Se um dia
esta utopia se realizasse, não seria mais necessário falar em uma
Psicologia Humanista científica, somente em uma Psicologia científica
única, e uma das interpretações filosóficas complementares desta: uma
Psicologia Humanista filosófica.
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Nota sobre o autor
Gustavo Arja Castañon é graduado em Psicologia
pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ e em Filosofia pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. É mestre em Psicologia
Social pela UERJ e doutor em Psicologia pela UFRJ. Atualmente ministra
cursos nas graduações em Psicologia das universidades Estácio de Sá e
Católica de Petrópolis, e cursa o Mestrado em Lógica e Metafísica da
UFRJ, tendo se dedicado nos últimos dez anos a investigações de
Epistemologia da Psicologia. Endereço para contato:
gustavocastanon@hotmail.com.
Data de recebimento: 12/06/2006
Data de aceite: 30/10/2007
Memorandum 12, abril/2007
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP
ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/castanon01.htm