Loureiro, R. B.I. Baptista, M. (2007). A história da psicologia como disciplina de mestrado. Relato de uma experiência. Memorandum, 12, 143-151. Retirado em       /  /  , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/loureirobaptista01htm
 


A história da psicologia como disciplina
de mestrado:
relato de uma experiência

 History of psychology as a masters degree discipline: report of an experience

Ines Rosa Bianca Loureiro

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista
Universidade São Marcos – São Paulo
Brasil

Resumo
O artigo apresenta uma experiência de ensino de História de Psicologia em um curso de Mestrado em Psicologia. Inicia com um panorama histórico de como e por quais motivos a disciplina foi incluída no currículo do curso. Descreve sua programação, explicita seus objetivos, as ênfases de conteúdo, metodologia e bibliografia utilizada. Apresenta a avaliação que os alunos fizeram da disciplina ao final do semestre letivo, bem como o tipo de produção contida em seus trabalhos finais. Analisa todas essas informações a partir dos objetivos da disciplina e finaliza com uma breve reflexão sobre a concepção de história que fundamenta esta experiência didática.

Palavras-chave: história da psicologia; ensino de história da psicologia; pós-graduação em psicologia; experiência de ensino em pós-graduação.

Abstract
This paper is an account of a teaching experience of history of psychology within a Masters degree course in psychology. It presents a historical overview on the reasons why the discipline was included in the course-work degree. It describes the schedule, aims, content, methodology and bibliography used. In addition, it discusses the students’ course evaluation as well as their final assignment. Furthermore, it analyses all the aforementioned data in the light of the aims of the discipline. Finally, this paper briefly reflects on the concept of history that supports this pedagogic experience.

Keywords:history of psychology; teaching history of psychology; post graduation in psychology; teaching experience in postgraduate studies.

 

Introdução

O objetivo desse relato é trazer para discussão uma experiência que vem ocorrendo no Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos desde 1995: a inclusão no currículo da disciplina História da Psicologia. 

É interessante notar que no Brasil, a disciplina História da Psicologia só muito recentemente passou a fazer parte dos currículos de cursos de graduação em Psicologia. Schultz e Schultz na edição de 1981 de seu livro História da Psicologia Moderna mencionam que, nessa época, a maioria dos Departamentos de Psicologia das Faculdades dos EUA exigia que os estudantes cursassem a disciplina. Hilgard, Leary e McGuire (1998) mencionam a existência da disciplina em cursos de Pós-Graduação na década de 70, no mesmo país quando a ampliação da publicação de livros didáticos é cogitada como fator de apoio à consolidação dessa realidade. No Brasil, os primeiros currículos dos cursos regulares de graduação, desenvolvidos nas décadas de 60 e 70, principalmente nos estados de São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, não mencionam a existência dessa disciplina. Brožek e Massimi (1998) confirmam que até a data de seu artigo, a disciplina História da Psicologia não fazia parte dos currículos mínimos dos cursos de graduação em Psicologia. Também enfatizam a importância de, naquele momento, esse campo de ensino ser constituído, assim como a necessidade de produzir material que subsidiasse tal atividade.

Andery e Sério (1986) relatam sua experiência com essa disciplina no currículo do curso de graduação em Psicologia na PUC/SP nos anos de 1982-1984, explicitando os pressupostos nos quais se basearam, os conteúdos, método de ensino e avaliação do processo. A menção dos pressupostos deixa entrever uma importante preocupação com a contextualização histórica e social na produção e transmissão do conhecimento, preocupação partilhada por nós:

O conhecimento é histórica e socialmente determinado e, portanto, está relacionado às condições econômicas e sociais nas quais é produzido; que o conhecimento científico depende do método utilizado; que o método depende das condições históricas nas quais se desenvolve, ao mesmo tempo que depende de e contém uma determinada visão de homem, natureza e conhecimento; que a compreensão e análise crítica da psicologia hoje depende da compreensão de sua história enquanto um processo de produção de conhecimento, processo esse construído em íntima relação com as sociedades nas quais foi produzido e segundo as concepções filosófico-metodológicas que o informaram (Andery e Sério,1986, pp. 121-122).

Gomes (1996) também escreve sobre o ensino da História da Psicologia em cursos de graduação. Considera que tal experiência permite ao estudante entender as diferenças e semelhanças existentes no campo da Psicologia ao analisar as continuidades e rupturas que se dão ao longo da história. Para cumprir este objetivo, a História da Psicologia, segundo ele, deve contemplar as questões ontológicas, epistemológicas, metodológicas e axiológicas – posição com a qual estamos inteiramente de acordo.

No entender de Guedes (1996), a História da Psicologia é fundamental na formação de pesquisadores e psicólogos. Relata a criação do NEHPSI (Núcleo de Estudos em História da Psicologia) em 1982 para atender os alunos que se inscreviam no Doutorado na Psicologia Social da PUC/SP e descreve os diferentes formatos utilizados para dar conta dos objetivos propostos.

Desse levantamento sobre o ensino de História da Psicologia conclui-se que, apesar da importância que lhe é atribuída pelos pesquisadores e docentes da área, é uma disciplina relativamente recente e que está implantada, sobretudo, nos cursos de graduação em Psicologia.

O Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos, situada no bairro paulistano do Ipiranga, foi fundado em 1994. Derivou de uma experiência muito bem sucedida com o curso de graduação em Psicologia, iniciado em 1971, e após a promoção da Faculdade ao estatuto de Universidade. Desde seu início, o Mestrado dispôs-se a acolher alunos provenientes de outras áreas das Ciências Humanas desde que se justificasse o interesse por pesquisa no campo da Psicologia. Por isso, o grupo de professores responsável pelo Programa considerou que tais alunos precisariam de alguma forma ser introduzidos no campo da Psicologia. Uma apropriação mínima das tradições e percursos teórico-metodológicos específicos desse campo era imprescindível para que os discentes tivessem condições de elaborar projetos significativos no contexto em que se inseriam. Para os docentes/orientadores, era importante que o aluno pudesse demarcar suas próprias posições dentro do campo, bem como situar o significado de sua pesquisa a partir de uma visão histórica da Psicologia. Também foi levado em conta que poucos cursos de Graduação em Psicologia, entre os existentes na cidade de São Paulo naquela ocasião, dispunham de um currículo que contemplasse a disciplina História da Psicologia. 

Assim, em virtude de tais aspectos, introduziu-se na grade curricular do Mestrado uma disciplina de caráter fundamental (isto é, obrigatória para todos os alunos do Programa, independentemente da Linha de pesquisa à qual se vinculavam) denominada “História da Psicologia” (1995).

O fato de constituir-se como disciplina fundamental indica uma de suas principais funções no conjunto da concepção do Programa: possibilitar que todos os alunos possam identificar a origem de seus referenciais teóricos e reconhecê-los como pertencentes a um campo comum, qual seja, a própria Psicologia, evitando, assim que se criem nichos estanques e pretensamente autônomos formados pelos participantes de cada uma das Linhas de pesquisa. Desde o início, pois, a disciplina possui uma vocação dialógica e integradora, mesmo que tal diálogo se estabeleça a partir do reconhecimento e da assunção de diferenças significativas entre os referenciais teóricos e preferências metodológicas características de cada uma das três Linhas de pesquisa que compõem o Programa (1).

Após várias mudanças no conteúdo programático, constantemente reformulado pelos professores responsáveis pela disciplina chegou-se, em 2005, a uma proposta que nos parece contemplar os objetivos inicialmente estabelecidos. Para enfatizar o caráter básico da disciplina, tanto no sentido de uma referência teórica comum, quanto de fundamento para a interlocução entre as Linhas do Programa, a partir de 2000 ela passou a se chamar “Fundamentos Históricos da Psicologia”. 

No que se segue, apresentaremos o programa da disciplina, tal como foi concebido e ministrado em 2005; em seguida, comentaremos a avaliação dos alunos, delineada a partir da aplicação de um questionário, construído com questões abertas e fechadas, respondido ao término do semestre letivo; por fim, faremos algumas reflexões críticas sobre o formato atual da disciplina, bem como sobre os possíveis sentidos que “Fundamentos Históricos da Psicologia” podem assumir na formação de um mestrando.

 

1.    O formato da disciplina: ementa e módulos

Em termos de ementa, eis a versão atualmente em vigor: “A disciplina apresenta um panorama histórico e epistemológico da proveniência e dos desdobramentos dos saberes e práticas psicológicas”. Para isso, examina preliminarmente a constituição e a crise do sujeito moderno, enfocando marcos importantes da modernidade filosófica, como Descartes e Kant, e cultural como Iluminismo e Romantismo. Em seguida, aborda a problemática instaurada com o advento das ciências humanas e algumas das tendências teórico-metodológicas que tentam responder a essas questões: positivismo, fenomenologia, estruturalismo, materialismo histórico-dialético. A emergência da Psicologia como saber independente é o ponto de partida para uma discussão sobre a diversidade do campo, a irredutível multiplicidade de matrizes/escolas que o constituem, assim como dos possíveis critérios, epistemológicos e éticos, de balizamento nesse terreno. A seguir, a disciplina envereda por uma breve apresentação da história da psicologia no Brasil, privilegiando a progressiva diferenciação de seus saberes e práticas em relação a áreas adjacentes, como medicina e educação, sem descuidar da articulação com as demandas sócio-culturais e políticas da sociedade brasileira. Por fim, a disciplina objetiva apresentar recursos historiográficos e estratégias de contextualização para problemas de pesquisa em psicologia, discutindo algumas concepções de história e suas implicações epistêmicas e metodológicas.

A disciplina encontra-se organizada por módulos: Introdução: Apresentação da disciplina, da bibliografia e do cronograma.  Por que História da Psicologia?  Módulo 1) Constituição e crise do sujeito moderno. A modernidade filosófica e cultural: Descartes, Kant, Hegel; Iluminismo e Romantismo. A crise do sujeito moderno: Nietzsche, Marx, Freud - os mestres da suspeita. Módulo 2) O problema das ciências humanas. Algumas tendências teórico-metodológicas do século XIX-XX: positivismo; fenomenologia; estruturalismo; materialismo histórico-dialético. Módulo 3) A emergência da Psicologia. A diversidade do campo psicológico (matrizes/escolas: comportamentalismos, psicologias fenomenológicas- existenciais- humanistas, psicanálises; híbridos). Psicologia(s): da epistemologia à ética. Módulo 4) História da Psicologia no Brasil. As idéias psicológicas do século XVI ao XIX: campo religioso, médico, filosófico e educacional. Do século XIX a meados do XX: a psicologia nas faculdades de Medicina, Direito e nas Escolas Normais. Década de 60: regulamentação da profissão, institucionalização dos cursos regulares de formação, organização dos órgãos de classe. Módulo 5) Aprendiz de historiador: introdução às tendências contemporâneas em historiografia. Os problemas mais comuns: ilusão retrospectiva; continuidade X descontinuidade. Especialidades e novas abordagens.  Modelos mais utilizados no Programa: história oral e análise documental. Encerramento: “A história no meu projeto”.

A disciplina foi conduzida com base principalmente em aulas expositivas que procuravam integrar a discussão dos textos propostos como leituras obrigatórias e complementares. As “referências bibliográficas” desse artigo contêm os títulos indicados no início do semestre letivo.

 

2.    A repercussão entre os discentes

Um questionário avaliativo foi respondido na última aula da disciplina, antes da entrega do trabalho final, que, conforme estabelecido no Programa acontece na primeira semana do semestre letivo seguinte. Foi solicitado que o trabalho final articulasse os conteúdos da disciplina com o tema da dissertação. É importante esclarecer que em geral, os alunos aproveitam a disciplina de história para conceber e escrever algum ou alguns dos aspectos que precisam “historiar” em suas dissertações; não raro, recebemos aquele que seria o “capítulo histórico” da dissertação (nos casos em que isso se aplica).

Foram respondidos anonimamente 23 questionários de um total de 25 alunos inscritos. A preservação do anonimato nos pareceu fundamental para que as respostas pudessem expressar livremente as críticas e desaprovações em relação à disciplina e às professoras.  É com base, pois, nesse universo de 23 respondentes que tecemos os comentários abaixo. De modo geral, houve uma aprovação significativa do conjunto de aspectos envolvidos na avaliação da disciplina.

Os objetivos da disciplina foram alvo do primeiro item, que perguntava se os objetivos eram “adequados ou inadequados” e se foram atingidos “totalmente, parcialmente ou não foram atingidos”. 100% dos respondentes consideraram que foram adequados. Apenas um aluno respondeu que os objetivos foram “parcialmente atingidos”, tendo observado, no campo correspondente, que o aproveitamento parcial ocorreu devido a dificuldades pessoais na leitura da bibliografia indicada.

A metodologia de ensino foi avaliada apenas qualitativamente, na medida em que a solicitação era a de que fossem mencionados os aspectos positivos, os negativos e, caso necessário, oferecidas sugestões. A maior parte das respostas apontou aspectos positivos, referindo-se basicamente à boa didática das professoras, à qualidade da relação professoras/alunos, à adequação da escolha dos textos e dos recursos utilizados: exibição de pinturas, exemplos concretos de pesquisas históricas. Das cinco avaliações negativas, todas se referiram à questões de tempo: pouco tempo para o conjunto do programa, indicando a necessidade de “aumentar a carga horária”, “mais tempo para o curso” e/ou desproporção de duração entre a duração dos módulos, sugerindo que a parte referente às abordagens historiográficas fosse ampliada, bem como o item de encerramento, intitulado “a história no meu projeto”. Dentre as sugestões, destacou-se a de inserir a realização de trabalhos em pequenos grupos, de modo a contrabalançar o excesso de aulas expositivas.

Quanto à bibliografia, perguntou-se se era “adequada ou não adequada” e solicitou-se “comentários”. Todos os alunos avaliaram como adequada. Dentre os comentários, duas sugestões de inclusão de autores na bibliografia (Sennet, Marx) e duas de inclusão de mais textos de/sobre Nietzsche, autor até então desconhecido para a grande maioria dos alunos.

A avaliação do conteúdo programático foi proposta em uma dupla perspectiva. Primeiramente, os alunos deveriam avaliar se o mesmo foi “adequado” ou “inadequado”. A totalidade das respostas (100%) considerou o conteúdo adequado. Em seguida, foi solicitado que declarassem “que aspectos poderiam ser ampliados” e “que aspectos poderiam ser reduzidos”. Em relação à ampliação, houve dois pedidos para que se ampliasse o módulo sobre história e historiografia, assim como se estendesse a discussão sobre os projetos de pesquisa procurando “construir links com as dissertações”. Também apareceu uma sugestão de que se introduzisse a exibição de filmes para a ilustração de conteúdos. Outra importante sugestão relaciona conteúdo com o trabalho final, apontando que “o conteúdo sobre jeitos de fazer história é muito pequeno para subsidiar a realização do trabalho final”. Quanto aos aspectos a serem reduzidos, somente um aluno sugeriu reduzir os conteúdos relativos ao primeiro módulo - “muita filosofia!”.

O penúltimo campo do questionário perguntava: “Essa disciplina contribuiu para sua formação na pós-graduação? Explicite”. Vinte e dois alunos responderam que sim; o vigésimo terceiro respondeu: “ainda não; penso que dará suporte para a construção de um capítulo teórico”. A transcrição das respostas ilustra em que dimensões teria se dado a contribuição específica da disciplina:

a) concorreu para uma ampliação do conhecimento: três respostas explicitam a novidade do conteúdo “não tive nada disso na graduação”, “entrei em contato com temas desconhecidos, pude refletir sobre diferentes assuntos”, “acrescentou coisas que não tinha na formação anterior”; quatro enfatizam o aspecto da ampliação ou aprofundamento de conhecimentos prévios “proporcionou uma formação cultural mais ampla (...)”, “tornou mais claro aspectos psicológicos e filosóficos”, “ampliou o conhecimento sobre alguns autores e abriu horizontes para outros”, “aprofundou as diversas formas de construção do conhecimento”;

b) contribuiu para o projeto de pesquisa. Várias respostas foram dadas: “auxilia na organização, fundamentação e contextualização do trabalho de pesquisa”, “permite reflexão sobre o projeto; o tempo todo você faz reflexões sobre o propósito da pesquisa”; “essencial para o tema da pesquisa”, “possibilitou fazer links importantes”, “talvez seja a disciplina que mais contribuiu para a minha dissertação”;

c) motivos diversos: “contribui para refletir sobre o dogmatismo e ecletismo na psicologia”; “por eu não ser da Psicologia, os conteúdos foram muito úteis”.

A questão final: “Essa disciplina ajudou você em algum aspecto de seu projeto de pesquisa? Explicite”. Apenas um aluno respondeu que ajudou parcialmente, justificando: “meu projeto tem um recorte mais atual, não pretende aprofundar aspectos mais distantes da atualidade”. Dentre as respostas que assinalam a efetiva contribuição da disciplina para a pesquisa em andamento, destacam-se: a) onze que referem auxílio para a construção de capítulos (capítulo histórico genérico e/ou capítulos históricos específicos de cada dissertação); b) dois mencionam que a contextualização histórica permite a formação de “elos” entre capítulos e a ordenação do projeto de pesquisa; c) dois alunos mencionam que ampliaram a perspectiva de história da psicologia sendo que um dos quais frisou que a disciplina lhe permitiu “dispor de outros enfoques acerca da própria história da psicologia”; d) contribuições pontuais: conhecimento da micro-história,  conhecimento de novos autores (na psicologia e na epistemologia) que podem ajudar na dissertação.

 

Possíveis sentidos do ensino de história da psicologia nesse Mestrado

Um primeiro sentido evidente nas respostas é o de que a disciplina permite aos alunos graduados nessa área resignificar e/ou ampliar seu conhecimento sobre a Psicologia, assim como para os alunos provenientes de outros cursos, ser introduzido na mesma. Também foi atribuído à disciplina um efeito de ampliação dos horizontes culturais, por meio do contato com idéias e autores da Filosofia, Sociologia, da Arte e da própria História.

Outro sentido bastante evidente é o de que a disciplina permite ao aluno situar seu projeto no campo/contexto da psicologia contemporânea, ao mesmo tempo em que lhe possibilita identificar o percurso histórico das referências que está mobilizando: autores, temáticas, conceitos. Tal compreensão sobre a localização mais precisa de seu projeto no tempo e no espaço propicia melhores condições para que ele possa avaliar o alcance de sua contribuição ao campo. 

Há um último sentido relacionado com as peculiaridades de nosso Programa: como disciplina fundamental, Historia da Psicologia possibilita para todos os alunos o trânsito por conhecimentos específicos a cada uma das três linhas de pesquisa existentes no Mestrado. Nessa medida, contribui para o estabelecimento de uma solidariedade entre os alunos e entre as próprias linhas de pesquisa.

Vale destacar alguns aspectos que, apesar de minoritários, parecem-nos bastante significativos. Tomemos, por exemplo, as respostas que apontam a necessidade de enfatizar o “como fazer” (aspectos historiográficos) em detrimento dos aspectos filosóficos (“muita filosofia!”). Talvez pudéssemos reconhecer aqui a marca de uma demanda característica de estudantes de graduação, mas que também se faz presente no Mestrado: o anseio por conteúdos imediatamente “aplicáveis” aos temas de dissertação e/ou de caráter instrumental, de modo a auxiliar diretamente a realização da pesquisa e mesmo a realização do trabalho final da disciplina. A expectativa discente por uma maior “concretude” dos temas abordados replica-se também em algumas sugestões relativas ao formato das aulas, como o uso de filmes para ilustrar conteúdos.

A grande maioria dos discentes conseguiu estabelecer nexos entre os temas apresentados na disciplina e problemas/discussões atuais, externos ou internos ao campo da psicologia, pertinentes ou não às respectivas dissertações. No entanto, ainda encontramos vestígios de uma concepção de história como área que trata de “aspectos mais distantes da atualidade”. Ainda que pontual, o comentário nos alerta para a necessidade de continuar a desconstruir tal imagem estereotipada da história.

De modo geral, os dados aqui apresentados nos levam a concluir que o formato atual da disciplina atende os objetivos propostos: introdução no campo da Psicologia, apropriação das tradições teórico-metodológicas nele inscritas, possibilidade de demarcar posições próprias e de elaborar projetos significativos a partir de uma visão histórica do referido campo.

 

Considerações finais

Enquanto responsáveis por uma disciplina de história da psicologia que, ademais, inclui um módulo final sobre historiografia, caberia uma reflexão final sobre nosso próprio fazer, isto é, sobre o tipo de história estamos praticando.

Parece-nos que a disciplina propõe e transita entre perspectivas muito diferentes:

a) examina algumas das condições de possibilidade para o surgimento do sujeito psicológico, o sujeito moderno;

b) percorre certas problemáticas implicadas na constituição da psicologia como um saber alocado entre as ciências naturais e as ciências humanas. No que se refere a este tópico, privilegiamos a discussão sobre as ciências humanas, as transformações que provocaram nos modos de conceber e praticar ciência; algumas das grandes tendências do pensamento: positivismo, fenomenologia, estruturalismo, materialismo histórico-dialético, que floresceram a partir de tais problemas;

c) mapeia a emergência da psicologia como um saber independente e aponta a complexidade do campo, habitado por múltiplas correntes que não cessam de proliferar e de se complexificar;

d) o módulo sobre história da psicologia no Brasil talvez seja o que melhor se ajusta a uma concepção estrita de história: contexto delimitado, apresentação cronológica, distinção de âmbitos: saberes e práticas, período ante e após a regulamentação da profissão;

e) por fim, o módulo historiográfico –  “aprendiz de historiador” – é o momento mais “reflexivo” do curso, quando deixamos uma perspectiva sobre o sujeito, as ciências humanas, a psicologia, a psicologia no Brasil, para interrogar o próprio lugar de onde se olha e as múltiplas maneiras do “colocar-se em perspectiva”.

Em suma, ao longo do curso transita-se entre perspectivas e objetos diferentes, até desembocar em um módulo que aborda as possíveis formas de historiar um problema. Nesse módulo, aprende-se que boa parte da historiografia contemporânea compartilha o enfoque segundo o qual a história de um tema/problema não é a “recuperação” do passado de um objeto previamente dado, mas equivale à própria configuração e constituição do objeto de estudo.

No ensino da disciplina aqui descrita, pensamos praticar uma história multi- perspectiva, multi-objetal e multi-metodológica. Certamente é mais fácil identificar o que fazemos pelos traços negativos: procuramos nos afastar de uma perspectiva meramente internalista, assim como rejeitar aportes continuístas, lineares e naturalistas.

É possível que nosso esforço pudesse ser alinhado ao que genericamente se inclui sob a designação “abordagem social em história da psicologia”: “a compreensão histórica dessa área de conhecimento implica captá-la no bojo das relações que estabelece com o todo do qual faz parte, na dinâmica do movimento realizado no fluxo do tempo” (Antunes, in Brožek e Massimi, p. 365). No entanto, talvez seja mais prudente renunciar à tentativa de nomear o que fazemos sob uma única rubrica. Até porque é preciso lembrar que o contexto dessa história – uma disciplina com duração de 45 horas para mestrandos de psicologia com formações heterogêneas – impõe uma série de determinações referentes ao que e como fazer. Não se trata primordialmente de fazer história da psicologia, mas de ensiná-la; o propósito didático, as limitações de tempo, tudo isso incide fortemente nas ênfases, cortes e rumos da história por nós aqui delineada.

A título de reflexão final, talvez não fosse de todo descabido propor que o professor de história da psicologia está para o historiador da psicologia assim como o letrista de MPB está para o poeta. Já vai longe o tempo em que se avaliava a diferença entre ambos em termos de qualidade (um Chico Buarque ou Arnaldo Antunes bem o atestam...) ou de complexidade do ofício (pelo contrário, reconhece-se a necessidade de o letrista possuir atributos específicos, como um acurado senso de musicalidade). No entanto, é preciso cautela ao se tentar remeter o letrista aos mesmos critérios, gêneros e tradições mobilizados pela crítica em sua tarefa de tentar compreender e situar um poeta. Se é que isso é possível.

 

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Notas

(1) As três linhas que compunham o programa em 2005 eram: Identidade: Formação e Transformação; Constituição do Sujeito na Família e na Clínica; Desenvolvimento Humano e Processo Ensino- Aprendizagem. Em 2006 foi introduzida uma quarta linha de pesquisa: Saúde e Trabalho em Diferentes Contextos Institucionais.

 

Notas sobre autoras

Inês Rosa Bianca Loureiro (Coordenadora) – Doutora em Psicologia Clínica – PUC/SP. Principais temas de pesquisa: História e epistemologia da Psicanálise, Constituição da subjetividade moderna, Estética psicanalítica. E-mail: irblou@netpoint.com.br.

Marisa Todescan Dias da Silva Baptista é Doutora em Psicologia Social pela PUC/SP, Professora do Mestrado em Psicologia da Universidade São Marcos. Contatos: Rua Ática 186 – São Paulo / SP - CEP: 04634-040 – Brasil - marisa@stbnet.com.br - Fone:(55) (11) 5031 7673 / 5032 0045.

 

Data de recebimento: 28/07/2006
Data de aceite: 30/09/2007

Memorandum 12, abril/2007
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/loureirobaptista01.htm

 

 

 

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