Mahfoud, M. e Massimi, M. (2008). Música, corpo sensível e corpo social no barroco brasileiro. Memorandum, 12, 61-74. Retirado em       /  /  , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/mahfoudmassimi01.htm

Música, corpo sensível e corpo social
no barroco brasileiro
 

Music, sensitive body and social body in brazilian barroco

Miguel Mahfoud

Universidade Federal de Minas Gerais
B
rasil

 Marina Massimi
Universidade de São Paulo
Brasil

Resumo
O artigo analisa a utilização e a importância da música como forma expressiva e simbólica para a elaboração da experiência psíquica, na visão de mundo barroca presente na cultura brasileira. Analisa comparativamente duas pesquisas conduzidas em dois diversos domínios – história cultural e fenomenologia da cultura – apreendendo o típico dinamismo psicológico de uma comunidade rural brasileira de tradições barrocas. A abordagem comparativa permite evidenciar a atualidade de elementos barrocos tomados para a elaboração da experiência na referida comunidade em termos de: vivência psicológica e espiritual suscitada pela música; estrutura retórica da composição musical; lugares comuns inerentes à visão de mundo de referência. A música é vivenciada como elemento fundamental da relação entre o universo de sentido pessoal e aquele proposto pela cultura, tendendo a estabelecer conexões precisas entre vivências sensoriais, cultura local e constituição do corpo social, inseridos num horizonte de totalidade mitológico-religioso.

Palavras-chave: psicologia e cultura; retórica e cultura barroca; fenomenologia social.

Abstract
The article analyses music`s utilization and importance as an expressive and symbolic way to the elaboration of psychic experience, in the barroco`s world vision present in Brazilian culture. It analyses comparatively two researchs led in two diferent dominions – cultural history and cultural phenomenology – catching the typical psychological dynamism of a rural Brazilian community of barroco tradition. The comparative approach allows to evidence the present situation of barroco elements taken to the elaboration of experience in the referred community in terms of: psychological and spiritual living brought by the music; the rhetorical structure of the musical composition; common places intrinsical to the world’s vision reference. Music is lived as a fundamental element of the relations between the personal sense’s universe and the one which is proposed by the culture, tending to establish precise connections between sensorial living, local culture and the social body constitution, inserted in a mythological-religious total horizon.

 

Keywords: psychology and culture; barroco rhetoric and culture; social phenomenology.

 

O artigo aborda – no âmbito da cultura brasileira – a música como forma expressiva e simbólica na visão de mundo barroca. Consideramos que, no caso brasileiro, tal visão deva ser examinada numa perspectiva histórica de longa duração, tomando suas características em um longo arco temporal: desde o período colonial (entre século XVI e XIX) e sua presença atual em vários âmbitos da sociedade brasileira. Propomos analisar as características desta visão de mundo e sua permanência em comunidades tradicionais brasileiras. Para tanto, realizamos análise comparativa conduzindo a pesquisa em dois domínios: o da história cultural e o da fenomenologia da cultura. O tópico comum às duas investigações é o tema da música e de sua importância para a elaboração da experiência.

O objeto da investigação histórica é um sermão pregado na cidade do Rio de Janeiro no século XVII, cujo tema é a música e o canto, concebidos como expressões das relações sociais e da relação entre Deus e homens. Trata-se do Sermão que pregou o Padre Mestre Manoel Carneiro da Companhia de Jesus no Colégio do Rio de Janeiro em o segundo dia das Quarenta Horas no ano de 1667 (Carneiro, 1668). O objeto da pregação é o canto de duas vozes: Deus e o homem cantam alternadamente o mesmo canto na cena do mundo. O canto, porém, é caracterizado por um desafino e por um desacordo entre as duas vozes. A eficácia da metáfora nessa pregação funda-se no fato de que ela destina-se a um público de ouvintes concebidos (na antropologia barroca) como membros do corpo político e social e como corpos sensíveis, sendo que na concepção do barroco, os sentidos remetem imediatamente ao universo intencional, cognitivo (imaginação, memória e reflexão), afetivo e volitivo próprios do sujeito da experiência. A escolha do topos musical è típica do universo barroco onde palavra e música são meios de comunicação poderosos cuja finalidade comum é delectare, docere et movere (Ávila, 1994 e 2006; Battistini, 2000; Jori, 1998).

A pesquisa fenomenológica examina as elaborações da experiência na comunidade rural tradicional de Morro Vermelho (distrito de Caeté, Minas Gerais, fundado em 1704) através de uma entrevista com José Leal, 70 anos, líder reconhecido da comunidade, com primeiro grau de escolaridade, casado, pai de cinco filhos, sindicalista rural, diretor e fundador da Associação da Cavalhada de Nossa Senhora de Nazareth, diretor da banda musical (Corporação musical Santa Cecília), músico e compositor (1). O tema da entrevista é a composição de sua autoria do arranjo musical de um canto destinado a acompanhar a liturgia penitencial realizada em Morro Vermelho no último dia do milênio: o dia 31 de dezembro do ano 2000. O arranjo musical de José Leal tem a intenção de “ajudar” a liturgia penitencial e aumentar a eficácia dela. Sua particularidade é á de que na banda os instrumentos de contraponto tocam como se fossem instrumentos de melodia de modo tal que a associação do mi-bemol e si-bemol provoque uma sensação de dissonância, utilizando-se também do trítono. Acompanhando o desenvolvimento da celebração, a música vai paulatinamente se alterando para recompor a harmonia, cada instrumento voltando a tocar sua partitura original, em correspondência com o gesto de absolvição e experiência de perdão dos participantes-ouvintes.

Apresentamos a seguir resultados da análise comparativa guiada por três objetivos: 1. identificar os diversos sentidos elaborados a partir da vivência musical relatada; 2. comparar as estruturas retóricas utilizadas, em ambos os casos, na elaboração da experiência apresentada; 3. identificar presença de topoi (lugares comuns) da visão de mundo barroca.


1. A vivência da música

Tanto o sermão como a entrevista referem-se a um tipo de vivência da música que pretende ter características universais. A música é concebida como expressão do princípio ordenador e permanente, ou seja, da forma da realidade, sendo, portanto, não apenas metáfora ou sinal.

No relato de José Leal, a música é definida como linguagem universal, compreendida pelos seres humanos de todos os povos e de todos os tempos: existe desde a criação do mundo e permanecerá como linguagem eterna celeste. É a expressão mais próxima do fundamento da realidade: 

Antes da construção da torre de Babel, todos falavam uma língua só. Essa era a intenção dos homens: tiveram a idéia de fazer a torre para ir até o céu. E aquilo não agradou a Deus Pai. Deus resolveu confundir a linguagem. Então a hora que os que estavam em cima desceram aqui embaixo já não entenderam os que os de baixo falavam, aonde veio a diversificação das línguas, onde tem a nossa que é portuguesa, né? Tem francesa, tem alemã, tem grega, né? E outras línguas mais, né? Mas a única palavra que ficou e que também é universal é a música. Que a música, ela é universal. Quer dizer, a língua antes da torre de babel também era universal, mas depois da construção da torre só ficou universal as notas musicais. (...) Se eu chegar na França, por exemplo, eu não vou saber qual é a língua dos franceses. Mas se eu chegar lá, no meio da banda, a mesma música que eles tiverem tocando eu toco. Se eu chegar na Inglaterra também eu toco, se eu chegar na Espanha eu toco, etc. Porque a música é universal desde a criação do mundo e continua até hoje.

 

O sermão de Carneiro define a música e seus efeitos como figura e atuação do próprio Deus enquanto forma formadora:
 

É a voz de Deus voz formada porque esta letra cantou Deus antigamente por Davi [i.e., salmos] e no tempo presente a torna a cantar hoje no sacramento. É a voz do homem eco repetido, porque cantando Deus nos séculos passados essa letra, a ouvimos hoje por Davi, ou por qualquer outro homem repetida: Cantabiles mihi erant justificationes tuae. (...) Ensinai-nos como Mestre de Capela a compor os defeitos desse eco com os primores dessa voz. (Carneiro, 1668, p.4)

 

Esse fundamento é caracterizado por uma ordem expressa pelos números. José Leal identifica tal fundamento através dos números em diversos âmbitos de realidade e da tradição, inclusive na música:

 

Tenho feito uma análise sobre a nota si. Que eu sempre falo em três e em sete. Então eu descobri que tudo o que é fundamental é baseado no três. (...) O próprio Deus falou pra Abraão - como prova de que o que Deus fala Ele nunca deixa nós enganado - : “Você vai trazer uma novilha de três anos, um cordeiro de três anos...”. Então, só aí já tem o três como prova de que a conversa era de validade total. (...) Eu falei com você que o sete é perfeição. Você pode perceber que na terra é família e no céu é as estrelas, que tanto família tem sete letras como estrela também tem sete letras. E aí tá o si no meio também: que o si é a sétima nota musical. Então, fechando: três é fundamental e sete é perfeição.

 

A mesma relevância dos números três e sete é apresentada por Carneiro referindo-se ao fundamento último e à totalidade: 

A três tempos costumam reduzir os músicos toda a consonância e harmonia da solfa: ao primeiro chamam tempo perfeito; ao segundo, tempo imperfeito e ao terceiro, tempo de permeio. (...) Só o sétimo dia foi para a solfa divina tempo perfeito porque só nele achou Deus a perfeição toda junta. (Carneiro, 1668, p.6)

 

Para ambos, a forma da realidade se atualiza num dinamismo composto por tensão. A perfeição não é fruto de equilíbrio harmônico, uma vez que cada um, a partir de suas imperfeições se volta a ela através de um posicionamento pessoal.

José Leal se refere a essa tensão como decisão e afirma que no próprio gesto de tocar o instrumento pode-se participar de uma tensão entre a perfeição e seu oposto, configurando decisão e criatividade na participação na história social e até mesmo mítica e cósmica: 

Deus quer nós é puro. Deus não quer nós meio-termo não. Ele quer nós é decidido mesmo.

 

Passei à última nota que a gente dá num instrumento de metal, que é o fá sustenido, que é as três chaves fechadas. Então (...) passei pra baixo da terra, que no significado das notas inferiores é abaixo na escala, e que pode significar também o abismo, que é tão falado. (...) As pessoas falam assim: “Mas por quê que Zé chegou ali?”. Bom, se fecha as três chaves, que dá um sentido também lá como a leitura que tem no Apocalipse, uma visão que São João teve dos novos céus, da nova terra, inclusive ele fala da Nova Jerusalém que é um cidade santa, (...) também fala que o anjo tinha uma chave na mão que fechou o maligno no abismo. Aí é um dos sentidos que me veio a inspiração de fazer uma confissão comunitária auxiliada com as notas musicais.

 

A tensão também é apresentada por Carneiro (1668) como fazendo parte da relação entre o imperfeito e a perfeição, enquanto aquele busca sintonia formadora: 

Se as vossas vozes não são compassadas, compassai com a ternura de um sustenido as vossas vozes, porque a divina misericórdia se obriga muito de um sustenido. Se as vossas vozes não sabem formar as entoações, remediai como bons músicos as vossas desentoações com aquele divino passo da garganta. (Carneiro, 1668, p.16)

 

Música como fundamento da realidade, expresso pelos números, atualizado em movimentos de tensão são elementos atribuídos à música pela tradição barroca, explicitamente ancorada na filosofia ocidental. A concepção formulada por Pitágoras, Platão e retomada por Agostinho de Hipona (354-430), no tratado De musica (388-391/ s/d), evidencia a correspondência entre o simbolismo do som e a harmonia do mundo, fundada na afinidade das matrizes numéricas da ordem cósmica e da ordem musical. Tal formulação proporciona um modelo da harmonia do Ser que, originado pela filosofia grega, difunde-se no Ocidente integrando as dimensões religiosas, espirituais, psicológicas e estéticas da prática musical. Permanece viva mesmo no período da modernidade e do racionalismo. A idéia daquela correspondência e de um caráter intrinsecamente analógico do mundo foi alimentada pela convergência de considerações aritméticas, geométricas, musicais e astronômicas, chegando a ter ampla influência até o Renascimento (Sequeri, 2005).

A consciência do poder ordenador da música é um topos presente na Idade Moderna. Todavia, sua harmonia não é mais entendida como uma forma puramente linear e preestabelecida de uma ordem absoluta e sim como harmonia das partes realizada pela composição dos elementos – composição esta virtualmente passível de infinitas realizações. A harmonia do conjunto é portanto expressão da criatividade que inventa novas formas de combinação dos elementos, onde emerge a importância da diversidade e da liberdade. A partir do Renascimento, a assembléia vocal torna-se uma comunidade humana onde o acordo entre as partes diversas é obtido por meio de um novo ideal de harmonia e de consonância: a perfeição do conjunto brota da qualidade das relações de atração que podem realizar-se de muitos modos, inclusive dentre eles em tensão ou contraste. A perfeição não acontece mais como correspondência uniforme mas como tensão compositiva entre os diferentes elementos (Sequeri, 2005) (2).


2.    Analogias entre estruturas retóricas

Nesta fase da pesquisa comparativa pretendemos evidenciar as duas propostas de elaboração da experiência formuladas por Carneiro e José Leal, apreendendo mais sua estrutura fundante do que propriamente seus conteúdos. Da análise emergem estruturas de elaboração da experiência em que podemos identificar elementos típicos da retórica barroca. Com efeito, ambos buscam atualizar na experiência dos destinatários as três vivências visadas pela retórica: deletare, movere e docere (3).

Apresentamos a seguir os elementos similares evidenciados pela análise: a função do proponente; os destinatários visados e a circunstância; objetivos; movimento musical e presentificação do significado da composição; condições para o desejado estabelecimento da sintonia; limites e possibilidades da retórica.


2. 1. A função do proponente

No sermão analisado, o proponente é o pregador: é ele quem compõe o sermão de modo tal que o destinatário possa também ele ouvir, perceber e discernir a música divina e o canto humano. O pregador tem de a função de intermediar, de ser porta-voz do Mestre Capela, possibilitando assim sua eficácia interventiva e formadora, convidando à decisão pessoal de articulação coral da própria voz à divina advertida na experiência.

A proposta é formulada pelo pregador jesuíta segundo o método inaciano da compositio loci (4), uma complexa operação psíquica ensinada na segunda semana dos Exercícios Espirituais: o sujeito é conduzido a formar no seu interior, através da mediação dos sentidos internos, a representação de um lugar onde é possível seu envolvimento, em primeira pessoa, com o evento imaginado ou lembrado, uma experiência que em seguida se torna objeto de reflexão. O interior pessoal torna-se então o lugar de um acontecimento. Através das palavras do pregador recriam-se cenários imaginários como o do evento musical proposto por Carneiro.

Diretor da banda e compositor, José Leal relata que convocara a banda, reconhecendo nesse gesto uma ação misteriosa para além de sua própria intenção. Com efeito, afirma ser ele próprio instrumento - convocado como auxiliador da ação de Deus na história. Ao mesmo tempo, José Leal coloca-se como a autoridade que a banda deve seguir por vários motivos: o seu conhecimento musical, o fato de ser regente há muito tempo e o fato de ele ter ensinado música aos demais componentes. Por outro lado, reconhece que ele mesmo - quem concebeu o arranjo musical - depende do apoio da banda para realizar o efeito pretendido. Afirma assim que a autoridade do diretor e mestre da banda serve para colocar e realizar (“desenvolver, implantar”) a idéia: (“planejei uma coisa e não podia apresentar”). Ainda afirma que seu papel tem três dimensões, pois diz “sou meio médico, sou meio advogado, sou meio padre”. Ser “meio de tudo” é característica essencial de sua função: Seu objetivo é auxiliar a comunidade no sentido de “melhorar o povo” colocando uma “nova perspectiva”.

Coloca para si mesmo um objetivo análogo ao da retórica: “melhorar” o auditório e é nesta perspectiva que explicita seu lugar como auxiliar de um ritual religioso. José Leal explicita vários âmbitos compreendidos pelo seu ato de “auxiliar”: evidenciar, “mostrar” detalhes que podem estar carregados de significado; indicar a direção do processo musical, ordenando as experiências. Para ele, “simbolizar é mostrar para o povo”.

Na visão da retórica tradicional, quem propõe uma prática retórica sabe que a eficácia e a realização do objetivo visado vêm a depender também do destinatário. Pois esta é apenas um meio, um auxílio, uma arte. Leal, em seu relato coloca a consciência do limite do gesto por ele proposto: sabe que o movimento pessoal sugerido pelo arranjo musical vem a depender também da disposição interior dos receptores: é preciso da decisão de cada um dos participantes para que ocorra a completa realização do gesto assim como proposto.

Ainda na perspectiva da tradição retórica, a palavra/gesto a serem propostos têm uma conotação ética, ou seja um compromisso com a verdade. No caso de Leal, sua performance artística visa proporcionar um auxilio que se utiliza do recurso sensorial do som tendo também uma conotação ética: “fazer coisas boas e agradáveis ao público é uma ética”. A sensação prazerosa (o agradável) possui um peso moral, ético. Esta dimensão, segundo ele, é inerente ao próprio papel de músico: “é a característica do músico mesmo, pois o músico é aquela pessoa que não pensa em apresentar mal”.


2.2. Os destinatários visados e a circunstância

Na construção retórica deve sempre ser considerado o destinatário – fisicamente presente ou imaginativamente representado – pois a articulação do discurso/gesto depende também do perfil específico desse.

No sermão de Carneiro, a destinatária é a população do Rio de Janeiro. O fato de ter sido pregado em 1667, na Igreja do Colégio Jesuíta, daquela cidade permite esboçar hipóteses acerca de seus significados sociais e políticos. Em consonância com a visão antropológica barroca e com a teoria política vigente na época, os ouvintes são concebidos como membros do corpo político-social e como corpos sensíveis (enfatizando que o conhecimento da realidade se estrutura a partir dos sentidos).

Cabe agora compreender melhor o contexto do sermão, enfocando as relações existentes, naquele período, entre os jesuítas e o corpo político social da cidade. Trata-se de relações permanentemente marcadas por tensões profundas, particularmente acirradas naquele ano de 1667, ligadas a questões fundiárias envolvendo todos os setores da sociedade (5). O conhecimento das características daquele contexto histórico permite a compreensão das críticas, explícitas no sermão, quanto ao clima de murmuração difundido na cidade e aos conflitos entre as partes do corpo social.

A ênfase do sermão à exigência da consonância remete à plasmabilidade do corpo pessoal e social dotado de sensibilidade, em seu processo contínuo de formação.

A circunstância em que a experiência musical é evocada no sermão é o rito das Quarenta Horas, cerimônia religiosa cujas origens remontam ao século XI, que assumiu sua forma moderna de exposição ininterrupta do sacramento eucarístico, com ênfase em apelos sensoriais e afetivos, de modo a atrair a sensibilidade popular (Dompnier, 1983).

Quanto à comunidade de Morro Vermelho, destinatária do arranjo musical de José Leal, também ela é concebida como corpo pessoal e social. A vivência de desafinação proposta tem o objetivo de solicitar a sensação e a decisão de quem a experimenta, no sentido de evidenciar que convém a todos a afinação, a sintonia, a consonância. Tal posicionamento é enfatizado como passo decisivo num processo de formação pessoal e comunitário naquele momento histórico concebido como fundamental para toda a humanidade: a mudança do milênio como processo de purificação dos tempos e dos povos, um reinício a partir de uma configuração mais adequada aos modelos formativos.


2.3. Movimento musical e a presentificação do significado da composição

José Leal propõe uma experiência sensorial musical que é uma forma de atuação do que está acontecendo naquele momento presente.

Enquanto os sons dos vários instrumentos não se compunham harmonicamente, (6) José Leal tocando bombardino dá um destaque particularmente importante à nota si, esta, por sua vez, associada à palavra se, sinônimo da atitude de decisão: “A nota si é nota e se é palavra decisiva ou indecisiva”. O posicionamento da pessoa tem conseqüências: dizer se significa afirmar que “a partir daqui pode acontecer uma coisa ou outra”. A experiência musical é uma forma de presentificação do caráter decisivo daquele momento da celebração penitencial e daquele momento histórico da mudança do milênio. Mantendo a nota si durante a execução, não dando fechamento à escala que terminaria em dó, enfatiza o caráter decisional mas dá destaque também ao gesto concreto que realiza para tocar aquela nota. Ou seja, mantendo as três chaves do instrumento fechadas, quer atuar a intenção daquela celebração de conservar fechadas as chaves que prendem o mal. Assim José Leal propõe um segundo nível de concordância entre o que está sendo executado musicalmente e o que estaria acontecendo naquele preciso momento histórico. Trata-se de uma metáfora e de uma realização.

Leal traça também uma relação entre as expressões escala musical e escada enfatizando que a execução musical vem a se somar com o acontecimento que quer acompanhar: 

Pensando nas notas musicais também, eu classifiquei começando pela escala, nós estamos em do médio, depois em dó médio, em dó grave, depois em dó médio e em dó agudo. Então, a gente desenvolveu também dentro dessa confissão comunitária, uma escada que subia, que é para a gente ir para o céu. Entende que o céu é alto, então a gente precisa de uma escada para subir. Então, na música a escala musical vem a ser como se fosse uma escada. A gente utilizou a escala para dar o sentido da coisa.

 

A experiência do mal ou da desordem é introduzida e superada a partir da utilização de um específico intervalo entre as notas que produz dissonância: o trítono, topos da música medieval e barroca, definido como diabolus in musicam, por introduzir a divisão na harmonia e promovendo desprazer (7). Trata-se de mais uma interessante relação entre o arranjo proposto e a tradição barroca.

Também Carneiro chega a explicitar que aquele momento de pregação pode ser tomado como o canto que ele estava descrevendo e propondo para elaboração da experiência de seus ouvintes. Qualidades e condições do canto (voz formada, eco repetido, tempos perfeito, imperfeito e de permeio) são tomadas como critérios para indicar as imperfeições na vida humana daquele específico auditório e ao mesmo tempo apontar caminho para uma formação pessoal que permita chegar à vivência de correspondências, entendidas como sintonia e ressonância recíprocas entre o divino e o humano. A vivência musical interna evocada pelo pregador é usada também para a compreensão do que estava acontecendo naquele preciso momento de formação pessoal e coletiva, com sua valência ética, política e religiosa.


2.4. Condições para o desejado estabelecimento da sintonia

Carneiro lista propriedades estruturais da música (como o compasso) e condições para que seja dada voz a ela (justamente, “voz compassada, entoada”, capaz de “dar valia às figuras) (8). O sermão mesmo se coloca como solicitação ao auditório para que se dê conta de descompassos, vozes destoadas (falta de correspondência entre vozes produz efeito de um murmúrio confuso) e usos inapropriados de figuração de realidades diversas (desengano), tudo isso visando uma tomada de posição consciente diante de limites e possibilidades em todos os campos de experiência pessoal e coletiva. Tal recurso retórico busca a efetiva formação dos ouvintes enquanto tematiza aquelas propriedades e condições.

Também José Leal explicita que a vivência sensorial de desafino provoca a atenção e promove movimentos pessoais em direção à sintonia. A vivência sensorial é ocasião de consciência da própria posição pessoal e da necessidade advertida em si mesmo de mudança. Tal vivência faz parte das condições de re-estabelecimento da sintonia, para José Leal. Ele indica que sem uma inicial sintonia, não se chega nem mesmo a perceber mudanças que estão efetivamente acontecendo à nossa volta, permanecendo somente a sensação de mal estar, a percepção de desarranjo, de falta de sentido. A inicial sintonia, ao invés, permite apreensão da realidade, de si mesmo e do movimento pessoal de participação à realidade e ao momento histórico com todo o seu caráter de valor que está emergindo. 

Eu falo que a gente tem que estar mais ou menos pronto. Mas aí não é como banda desafinada não; tem que ser como ser como bandas afinadas para a gente perceber. É percebendo estas mudanças que a gente vai vendo que a corrupção continua, a violência continua, mas que tão sendo corrigidos, né? As pessoas falam que a gente deve estar atento e ver. (...) A gente tem que esperar as observações deste novo milênio que nós estamos anunciados nele.

 

Para ele, a experiência sensorial estrutura-se em torno de qualidades opostas: desafinado x afinado. A audição deve provocar nos ouvintes reações opostas, de desgosto e gosto, que por sua vez possuem também uma dimensão ética: mau ou bom. O efeito visado é a surpresa, indicada pelos termos “provocar impacto”, “surpreender como um filme”, “estranhar”.

A proposta de José Leal de colocar em evidência – através de figuras experienciadas – a realidade pessoal e externa é um recurso retórico típico. Note-se que a atenção ligada à experiência mesma é apontada como condição de possibilidade para a formação dos sujeitos humanos e para a constituição de um mundo que lhe seja adequado e correspondente.

Note-se que em ambos os casos, a acentuação da sintonia se faz através da ênfase também na não-sintonia. De fato, incluir as contradições para chegar a uma experiência de totalidade é um recurso típico da visão de mundo barroca.
 

2.5. Limites e possibilidades da retórica

Na perspectiva de Leal, a experiência proposta através da execução musical tem, porém, um limite: faltou aos ouvintes a possibilidade de elaborar a experiência musical vivenciada, através de uma avaliação: 

Não comparando mal, os animais, principalmente o bovino, ele pasta e depois ele deita para remoer, né? o que ele pastou. (...) Nós não sentamos para ruminar; nós temos que ruminar. Ainda não teve uma ruminação dela para ver o sentido – quer dizer, o motivo – que faz a avaliação.

 

O que José Leal aponta como limitação do gesto proposto, na verdade, é tradicionalmente previsto na retórica barroca, que provocando sensações e elaborações deixa aos sujeitos a continuidade da elaboração da experiência, esperando que cheguem a tomadas de posições dali decorrentes. Nesse caso contemporâneo examinado, a avaliação considerada necessária permitiria a verdadeira compreensão da vivência completando-se assim o processo de formação e garantindo a eficácia do próprio gesto proposto.

No caso seiscentista examinado, o autor finaliza a proposta de elaboração da experiência – em que apontara a sintonia com a voz formada como condição de possibilidade para a formação das pessoas – expressando um pedido ao divino Mestre Capela para que isso de fato aconteça, deixando aos ouvintes a tarefa de fazer o mesmo. Só a efetiva aceitação por partes dos sujeitos desse convite permitiria a efetivação do processo de formação objetivado pelo sermão e cuidadosamente proposto pela retórica. Também aqui, a eficácia da retórica mesma fica dependente da ação livre e decidida dos sujeitos da experiência.


3.
    Experiência musical e lugar comum

A análise do sermão e da entrevista permitiu-nos identificar, nas elaborações de experiência propostas, a presença de alguns topoi da visão de mundo barroca. Abordamos a seguir os mais importantes:

3.1. O efeitos da música no corpo anímico

É topos tipicamente barroco a ênfase na referência aos efeitos que o som promove na pessoa em sua dimensão anímico-corporal e não às características estruturais da música. A ênfase recai no sujeito, sobretudo nas suas esferas afetiva e sensorial.

José Leal e de Carneiro compartilham a concepção de que a música deleita e move produzindo reações de prazer ou desprazer, doçura, gozo etc.

Carneiro coloca que pela música é possível modificar afetos particularmente profundos como o da tristeza associada à melancolia, podendo chegar até mesmo a curá-la: “nas cordas daquele instrumento se desfaziam os laços e desapareciam as ânsias de que padecia aquela alma” (Carneiro, 1668, p. 12).

Para mostrar que a concepção da música como modulação dos afetos é um tópico barroco citamos um exemplo da cultura brasileira do século XVIII, e especificamente do texto Compêndio Narrativo do Peregrino de América, onde o autor Nuno Marques Pereira explica os motivos pelos quais a música é benéfica para o bem estar da pessoa: 

é a música o que mais alegra o cérebro e o coração, porque é um gênero de contentamento espiritual, que alegra a alma; por cuja razão se une com o afeto recreativo do espírito, tanto que com a música se cura o dano que faz o veneno (Pereira, 1728/1939, vol.2, p. 44).

 

 Afirma inclusive que a música 

serve também para os melancólicos e aflitos de coração, como se está experimentando a cada passo; pois vemos que os trabalhadores se aliviam do trabalho cantando, os presos e os aflitos só cantando divertem as suas penalidades e aflições (Pereira,1728/1939, p. 45).

Ripa (1618/ 1992) apresentando os topoi e suas devidas representações, figura a música como mulher jovem e sentada, explicando que tal posição indica ser “a música um repouso especial do ânimo inquieto” e ainda afirma que “sem as consonâncias musicais não podemos alcançar as consonâncias interiores” (Ripa, p. 307; tradução nossa).


3.2. Forças conflitantes

Carneiro descreve o tempo musical permeio como composto de tempo perfeito e imperfeito contemporaneamente. Acresce a essa descrição a imagem de temporal e naufrágio. Este é um topos barroco para indicar que duas forças conflitantes mantidas unidas na pessoa acabam resultando em falência do sujeito assim como ventos em várias direções levam uma barca a se desgovernar e naufragar. A figuração da “má fortuna” (ou insucesso) é tipicamente representada como um naufrágio (Ripa, 1618/1992) e, no campo musical barroco, Vivaldi compôs a peça “Agitata da due venti” na ópera Griselda justamente enfatizando a tensão entre diversas forças opostas e a previsão de naufrágio pelo timoneiro.

 

3.3. Os contrastes harmonia e confusão, ordem e desordem, consonância e dissonância

Carneiro e José Leal apresentam o topos barroco da sintonia como resultante de uma tensão capaz de integrar numa totalidade complexa as diferenças, inclusive as oposições, sem eliminá-las nem reduzi-las. Ambos colocam que as possibilidades da harmonia, da dissonância e da composição das polaridades estão presentes na música bem como na história do mundo.

Na visão de mundo barroca o acoplamento das multiplicidades e das diferenças num único organismo evidencia a possibilidade da unidade orgânica da pluralidade. A música, por exemplo, pode torná-la perceptível. (Sequeri, 2005).

A dissonância é sentida como ruptura da harmonia, manifestação de falhas, de assimetrias, de excessos e de imperfeição, mas não eliminada. O trítono, por exemplo, tinha sido estigmatizado pela tradição musical ocidental que buscara eliminá-la por considerá-la expressão de elementos diabólicos em decorrência da concepção musical pitagórico-platônica que entendia a dissonância como falha cósmica e sendo absolutamente evitada, na Idade Média. A partir do século XVI, todavia, o trítono é assumido pela música que “rompe com a estaticidade da harmonia das esferas, o centro fixo, a recorrência infinita sobre o mesmo ponto, e cria a dialética permanente entre estabilidade e instabilidade” (Wisnik, 2006, p. 110). Na Idade Moderna, a retomada dos elementos rechaçados da escala diatônica permitiu grandes desenvolvimentos à música melódica e posteriormente polifônica e harmônica, justamente pela capacidade de expressar contrastes e conflitos, proporcionando uma nova imago mundi caracterizada por “uma perfeição defeituosa, uma ordem onde transam harmonia e perversão potencial, campo dramático sobre o qual a tonalidade se constituirá, mais tarde, fazendo desse conflito e de sua resolução, o seu elemento mobilizador” (Wisnik, 2006, p. 83).

 

3.4. O significado do número sete e do número três

José Leal e Carneiro referem-se o valor simbólico dos números sete – indicando perfeição. Ambos dão ênfase também ao número três, sendo que Leal chega a explicitar seu significado de “fundamento”.

Wisnik (2006) aponta o topos do número três associado à figura da divindade.

Quanto ao número sete, trata-se de mais um topos da cultura barroca herdado da tradição clássica e medieval fundada no conceito platônico da harmonia das esferas, apropriado e transmitido por Cícero (106 a.C.-43 a. C.) na obra Somnium Scipionis (51 a. C./ s/d) e por Agostinho  no Tratado sobre a música (388-391/ s/d). Este último estabeleceu relações entre medidas numéricas e ritmos e tempos musicais afirmando o número sete como símbolo privilegiado da harmonia do mundo. O número sete era interpretado tradicionalmente como uma harmonização entre o divino (número três) e o humano (número quatro) (Wisnik, 2006, p. 100).

No século XVII, Cesare Ripa (1618/1992) descreve uma representação do topos harmonia considerada ideal como “mulher linda e formosa, com uma lira dupla de quinze cordas na mão, na cabeça uma coroa com sete jóias iguais, a veste de sete cores, ornada de ouro e de várias jóias” (Ripa, 1618/1992, p. 27). A insistência no número sete associada a elementos musicais na descrição dos atributos da harmonia é clara.


Movimento final

Finalizando nosso percurso, acreditamos ter demonstrado que a abordagem comparativa utilizada ao analisarmos o sermão setecentista e a entrevista realizada recentemente em uma comunidade tradicional mineira, permitiu documentar a atualidade de elementos barrocos presentes na elaboração da experiência na sociedade contemporânea brasileira, em termos de: tipo de vivência suscitada pela música, estrutura retórica e lugares comuns recorrentes e inerentes à visão do mundo de referência.

Evidenciou-se assim que, naquele âmbito, a música é um elemento fundamental da relação entre o universo de sentido pessoal e aquele proposto pela cultura tendendo a estabelecer conexões precisas entre vivências sensoriais, cultura local e geral e constituição do corpo social, todos inseridos num horizonte de totalidade mitológico-religioso.

Segundo a abordagem fenomenológica, a sensação torna-se percepção na medida em que existe uma intencionalidade do sujeito que se manifesta na valoração da sensação, sendo este o primeiro momento cognitivo em que o pensamento se apóia para articular e atribuir significados gerais (Husserl, 1952/2002, 1913/2006; Ales Bello, 2004). Podemos assim considerar o arranjo musical e a referência à experiência musical do sermão como sendo recursos retóricos auxiliares do dinamismo de conhecimento e de tomada de posição pessoal diante da realidade.

Metodologicamente, a ênfase na estrutura da experiência – mais que no conteúdo – para se chegar a uma razoável segurança sobre a permanência de elementos barrocos na contemporaneidade demonstra sua grande utilidade. Assim se pode chegar a acolher os dados de conteúdo com segurança e rigor, podendo ser valorizados enquanto apoiados naquelas estruturas e não tomados a partir de simples coincidências ou aproximações ocasionais de dados.

 

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Notas

(1) A elaboração da experiência popular típica daquela comunidade rural pode ser conhecida através de Araújo e Mahfoud (2004), Mahfoud (2001), “Percorrendo as distâncias: memória e história”. No que tange às características barrocas atuais na comunidade cf. Mahfoud (2001), “Emoções e imagens sagradas numa festa popular brasileira de origem barroca”. Quanto ao tema da mudança do milênio elaborado pelo mesmo sujeito daquela comunidade, cf. artigos de: Mahfoud, Massimi, Safra. Em: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/n01po.htm.

(2) Afirma Sequeri: “penso sobretudo às possibilidades de elaboração integral da qualidade humana da percepção, oferecidas pela fenomenologia mais recente que se ocupa dos profundos nexos entre aisthesis  e consciência” (2005, p. 68).

(3) No De doctrina christiana, Agostinho retoma a definição dos objetivos da Retórica propostos por Cícero no De Oratore, ou seja “ut doceat, ut delectet, ut flectat”: instruir, agradar e convencer. Afirma que o primeiro objetivo se relaciona às idéias expostas no sermão, o segundo e o terceiro, à maneira com a qual estas idéias são expostas.

(4) Acerca da compositio loci ver o belíssimo livro de Perla Chinchilla Pawling (2004) De la compositio loci a la República de las letras.

(5) A cidade do Rio desde sua fundação em 1565 por Estácio de Sá (após duras batalhas do exército português contra franceses e tupinambás) sempre contou com o apoio e a presença física dos jesuítas. Inclusive, Anchieta e Nóbrega acompanharam diretamente estes eventos, ganhando do governo da metrópole, como recompensa, uma sesmaria de duas léguas para o Colégio da Companhia: esta sesmaria ocupava um extenso espaço de terra inicialmente maior do território destinado à construção da cidade (uma légua e meia). A partir do ano de 1642, quando a Câmara da cidade começou o processo jurídico para efetivar a posse da terra junto à Coroa, legitimando assim a existência da cidade e definindo os marcos de seus limites, travou-se uma discussão entre a Câmara e a Companhia de Jesus acerca da demarcação das terras. Apesar do rei D. João IV promulgar a provisão que ordenava a medição e demarcação das terras no dia 7 de janeiro de 1643, passaram-se vinte e cinco anos para que a provisão fosse efetivada, fato que ocorreu no dia 25 de maio de 1667. Neste ano – o mesmo em que Carneiro proferiu o sermão – ocorreu uma discussão entre a Companhia de Jesus e a Câmara acerca da demarcação das terras na região de São Cristóvão. Nesta ocasião, os jesuítas conseguiram obter que o processo de medição das terras fosse interrompido e que o próprio Ouvidor – Manuel Dias Raposo – fosse preso a mando do Governador. Diante do ocorrido, os vereadores da Câmara do Rio enviaram para Lisboa uma delegação de protesto chefiada pelo monge beneditino Mauro de Assunção, solicitando a libertação do Ouvidor. Outra tensão marcante no período foi a briga entre a Companhia e os senhores da terra acerca da escravatura dos índios. A atitude escravocrata dos colonos já tinha sido denunciada ao Rei em 1638 por um prelado do Rio – Lourenço Mendonça –, o qual encaminhara um relatório documentado acerca das prisões de mais de 60 mil índios aldeados destinados a serem vendidos a moradores de São Paulo e Rio de Janeiro. Além do mais, em 1660 os jesuítas tinham tomado o partido do Governador Salvador Côrrea de Sá e Benevides, contra o levante de comerciantes, militares e vereadores da cidade visando destituí-lo por causa de arbitrariedades cometidas. Tinha sido nomeado um Governador interino mas o Governador deposto formara uma tropa de paulistas e índios (estes cedidos pela Companhia de Jesus), marchara para o Rio atacando a cidade e logrando a vitória no confronto. A seguir decretara o enforcamento dos lideres da revolta. O procedimento de Côrrea de Sá e Benevides provocou a hostilidade dos moradores locais, os quais passaram a vincular a ele também os padres jesuítas por tê-lo apoiado. Por fim, para completar o quadro, os jesuítas estavam envolvidos numa batalha contra um grupo de moradores que exploravam os manguezais da baía de Guanabara, tais como lenhadores, donos de curtumes, carvoeiros, catadores de caranguejos, fornecedores de madeira etc. Os jesuítas defendiam a necessidade da preservação dos mesmos seja pela sua importância ambiental seja pela proteção natural que ofereciam a eventuais invasões. Por isto, lograram a inimizade desta parcela da população, cuja economia era ligada à exploração dos manguezais. Em suma, tratava-se de um momento histórico de grandes dificuldades, tensões e rupturas no que diz respeito às relações sociais da Companhia com o corpo social da cidade.

(6) “Na nossa escala nós começamos em dó. O dó grave, então a gente começou do, re, mi, fá, sol, lá, si, dó. Então, aí eu falei com os instrumentistas: agora vocês permanecem no dó. Então os instrumentos de metal permaneceu no dó médio e num sei mas me parece que a clarineta permaneceu no dó agudo. Então ficou os instrumentos no dó grave, médio; a clarineta no dó agudo.E eu fiquei no bombardino no si. Quer dizer, não cheguei a completar a escala. Porque pela minha referência n’so começamos pela escala dó, que a gente tá dando uma escala em dó maior. Então, aí, eu vim caindo na escala, eu fiquei no si, depois os instrumentos permaneceram no dó e eu dei sol, depois eles permaneceram no dó e eu dei o mi e assim por diante eu fui. Daí eu dei ré, cheguei no dó grave de novo. Quer dizer, dá a entender com essa confissão que os que ficaram no dó a intenção era o ir para o céu, ficou no céu. Porque eu classifiquei o dó da terra como o nosso pai, nós somos o pai da terra e lá no dó médio o pai do céu que é Deus. Eu não completei a escala porque eu fiquei no si e eu fui voltando para trás e cheguei até a terra de novo. Depois na escala musical tem as notas abaixo do dó que chamam notas inferiores: então eu passei por si e enquanto os instrumentos permaneciam no dó, depois eu passei por lá grave, passei por sol grave e passei a última nota que a gente dá num instrumento de metal que é o fa sustenido, que é as três chaves fechadas”. Enquanto as notas iam subindo tomando as notas mais graves, o instrumento de Leal fez o contrário, descendo a partir da nota si. Na intenção de Leal, este movimento não tem o sentido de descer no abismo: “não era no sentido de descer: eu vou para o inferno e você vai para o céu”. Pelo contrário: é uma descida cuja função é fechar o mal no buraco infernal e impedi-lo de subir na terra. Com efeito, o som do bombardino ao tocar as notas mais baixas, entrou em harmonia com os outros instrumentos, num movimento inverso, indo para baixo até chegar à nota mais graves possível. Leal segurou então a nota nos botões do instrumento, que ele denomina pelo termo “chaves”: “porque a chave são os botões do instrumento”, sendo que nesta palavra encontra outra associação de correspondência com a palavra do Apocalipse. “Fechada significa a última nota, daqui para cima não sai mais nada. Dá um sentido de que fechou tudo para baixo mesmo e que na minha concepção eu acredito que fica aí também o abismo que é falado”.

(7) O tritono é um intervalo de três tons, como aquele que temos entre a nota fa/si dividindo a oitava no meio: “a oitava dividida pelo trítono em duas partes iguais (dó-fá sustenido-dó, ou fá-si-fá) projeta as propriedades esquizantes do diabolus ( o que joga através, o que joga cortando, o que joga para dividir). Por causa do defeito que introduz na ordem escalar, a nota ‘si’, embora existisse na escala, não tinha nome durante a Idade Média: ela consiste propriamente no inominável, e assim como é contornada e desconversada na prática compositiva, é nomeada através dos complexos torneios de solmização, sistema de nomeação e de transposição de intervalos que se acopla ao cuidado de evitar o trítono. No universo cultural do Ocidente, portanto, a dissonância é representada pelo trítono e pela nota si, sendo que o trítono é a instabilidade e a “dissonância sentida como irredutível” (Wisnik, 2006, p. 108).

(8) Acessar o compasso significa ir no mesmo passo e no mesmo ritmo. A compasso é a divisão da pauta musical separada por barras, cada parte contendo um número de tempos indicada pelo numerador de uma fração localizada no inicio da pauta musica. As figuras musicais são equivalentes às metáforas. Reconhecer o valor de cada figura é reconhecer seu significado, ou seja a maneira como ela deve ser interpretada.

 

Nota sobre os autores

Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, Brasil. Especialista na área de História das Idéias psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contatos: Avenida Bandeirantes, 3900 – CEP 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail: mmassimi3@yahoo.com

Miguel Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade". Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG – Brasil. E-mail: mmahfoud@fafich.ufmg.br

 

Data de recebimento: 20/12/2006
Data de aceite: 30/11/2007

Memorandum 12, abril/2007
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/mahfoudmassimi01.htm

 

 

 

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