Pacheco Filho, R. (2007). Articulações entre História e Epistemologia da Psicanálise: um estudo de caso. Memorandum, 12, 95-104. Retirado em       /  /  , da World Wide Web http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/pachecofilho01.htm

Articulações entre História e Epistemologia da Psicanálise: um estudo de caso

 Articulations between History and Epistemology of Psychoanalysis: a case study

Raul Albino Pacheco Filho
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil

Resumo
Em “The Structure of Scientific Revolutions”, Thomas Kuhn sustenta que foi com o auxílio de uma historiografia inovadora que ele chegou à sua nova imagem da Ciência, abalando as concepções tradicionalmente aceitas. Isto traz à luz a questão das relações entre esses dois campos de conhecimento: a História da Ciência, de um lado, a Epistemologia e a Filosofia da Ciência, de outro, além das articulações, diferenças e contribuições possíveis entre elas. O presente artigo aborda o trabalho de um importante autor do campo psicanalítico (Jean Laplanche), que alia a pesquisa do desenvolvimento histórico da teorização psicanalítica à investigação epistemológica e teórica das conexões entre os diferentes conceitos e entre eles e as proposições teóricas psicanalíticas. Pretende-se utilizar o trabalho deste autor, como exemplo para se refletir sobre as possibilidades de contribuição entre estudos em História da Psicanálise e em Filosofia e Epistemologia da Psicanálise.

Palavras-chave: psicanálise; psicologia; história; epistemologia; ciência.

Abstract
Thomas Kuhn, in his work “The Structure of Scientific Revolutions” (1962), states that to reach his new view of Science, which shook the conceptions traditionally accepted, he used the contributions of an innovative historiography. This brings to light the issue of the relationship between the History of Science, on the one hand, and Epistemology and Philosophy of Science on the other hand, and also the articulations, differences, and possible mutual contributions. This paper discusses the relevant work of an author from the psychoanalytic area, Jean Laplanche, who joins studies on the historical development of the psychoanalytical theorization, and the epistemological investigation of the connections among different concepts, and between those and the psychoanalytical theoretical propositions. In this paper, Laplanche’s work is used as an example to foster a reflection on possible mutual contributions of studies in History of Psychoanalysis and studies on the Philosophy and Epistemology of Psychoanalysis.

Keywords: Psychoanalysis; psychology; epistemology; history; science.
 

1. Introdução

Em “The Structure of Scientific Revolutions” (1962), Thomas Kuhn refere-se a uma revolução na historiografia da Ciência, segundo ele bem exemplificada pelo trabalho de Alexandre Koiré, que seria caracterizada pela busca de compreensão da ciência antiga na integridade histórica de sua época. A exposição a esse tipo de pesquisa teria sido responsável pela transformação radical das concepções de Kuhn sobre Ciência, que o conduziram às proposições trazidas em sua mencionada obra máxima, a respeito da natureza das atividades nos campos científicos.

O seu trabalho põe à mostra a diferença entre o empreendimento científico revelado por meio de suas fontes históricas e a concepção de Ciência apresentada pelas formulações dos filósofos da ciência tradicionais ou pelos manuais de metodologia científica por eles elaborados. Foi exatamente a percepção dessa diferença que o conduziu ao seu interesse pela História da Ciência, ao revelar-lhe que a caracterização da atividade científica apresentada pela Filosofia da Ciência não se harmonizava com os fatos ocorridos no campo científico, conforme as observações fornecidas pelos estudos históricos. E mesmo seus adversários parecem dispostos a admitir a relevância dos fatos históricos revelados pelas suas investigações:

Afiançarei, portanto, mais uma vez, que o que Kuhn descreveu existe, e precisa ser levado em consideração pelos historiadores da ciência. O fato de tratar-se de um fenômeno de que não gosto (porque o considero perigoso para a ciência), ao passo que Kuhn, aparentemente, não desgosta dele (porque o considera ‘normal’ ) é outro assunto. (Popper, 1979, p.65)

Embora ressaltando a diferença de objetivos entre os trabalhos em História da Ciência e os em Filosofia da Ciência, Kuhn acredita que os pensadores deste último campo poderiam beneficiar-se do contato com a produção dos historiadores da ciência: “sim, estou convencido de que muito do que se escreve sobre Filosofia da Ciência seria melhor se a História lhe preparasse antes o caminho.” (Kuhn, 1977, p.36) Este contato seria útil para os filósofos da ciência, ao reduzir a distância existente entre eles e o seu objeto.

É verdade que a Filosofia da Ciência busca apreender aspectos considerados essenciais da atividade científica. Para isso, procede a um processo de generalização, que, necessariamente, descarta tudo que seja considerado detalhe, particularidade, especificidade,ou idiossincrasia. Mas isso não significa que o conhecimento de como ocorreram historicamente os processos de produção de conhecimento científico constitua obstáculo ou impedimento a essa busca dos pontos essenciais da atividade científica. O conhecimento históricos poderia evitar, isto sim, que o delineamento filosófico do arcabouço estrutural do empreendimento científico distorcesse as características fundamentais do processo científico, como muitas vezes reclamam os historiadores da ciência: 

Para o historiador de mentalidade filosófica, parece que o filósofo da ciência se equivoca ao tomar, pelo todo, alguns dos elementos, forçando-os a desempenhar funções às quais não se adequam e que, de fato, não desempenham na realidade. (Kuhn, 1977, p. 38-39) 

Poderíamos dizer que um aspecto importante da História da Ciência é buscar compreender os problemas e as questões com os quais os cientistas se confrontaram no interior dos seus campos de conhecimento, em suas épocas históricas, de modo a se entender, o que é produzido cientificamente, como o oferecimento de propostas de soluções para esses enigmas. É a partir desta perspectiva que Kuhn traça a sua concepção de Ciência, como uma sucessão de períodos de ciência normal entrecortados por períodos de crise e de pesquisa extraordinária, que propiciariam a emergência de novos paradigmas e ocasionariam as revoluções científicas. 

Sem o acompanhamento adequado dessa atividade dos cientistas, de buscar solucionar os enigmas, as anomalias e os impasses gerados pelos paradigmas vigentes, os filósofos da ciência teriam uma visão míope e deturpada dos acontecimentos no campo das discussões científicas.

É certo que Kuhn nos lembra que, a partir da instalação de um paradigma hegemônico no campo de uma disciplina, os cientista não mais têm que construir seu campo desde os fundamentos, concentrando-se mais nos aspectos sutis e esotéricos dos fenômenos que interessam à sua comunidade. Em conseqüência, passam a escrever menos sobre as razões pelas quais se ocupam de seus objetos particulares, sentindo menos necessidade de apresentar justificativas constantes de suas opções teóricas e de suas escolhas metodológicas. Mas isso é algo posterior à dominância de um único paradigma, pois, antes disso, no período chamado por Kuhn de pré-paradigmático, cada cientista ver-se-ia forçado, conseqüentemente, a dedicar uma parcela dos seus esforços à discussão dos fundamentos do seu campo de estudo, revisando, a cada momento, os princípios filosóficos, metodológicos e epistemológicos subjacentes à sua posição teórica.

Isso põe em evidência uma certa analogia entre as atividades do historiador e do filósofo da ciência, de um lado, e, de outro, de parte da atividade dos cientistas nos períodos pré-paradigmático ou de crise em seu campo científico. A busca de solução para as anomalias e impasses existente no interior do campo convoca pelo menos uma parte da comunidade que o compõe a uma atividade que reúne aspectos histórico, epistemológico e teórico, na tentativa de determinar com maior clareza os problemas e questões responsáveis pela crise ou pelas divergências acentuadas nas propostas de solução. Nesse percurso, os próprios fundamentos que dão sustentação ao campo podem passar pela avaliação de alguns pesquisadores, nessa intensificação da busca de caracterização dos impasses existentes. É aí que uma caracterização histórica da crise e do desenvolvimento do campo pode mostrar a sua utilidade para o cientista, ao evidenciar as articulações entre as diferentes propostas de solução apresentadas ao longo do tempo e os problemas e enigmas que elas visavam resolver.

Em um trabalho anterior (Pacheco Filho, 1999), comparei as características do método de Freud para produzir conhecimento e os processos de validação científica das proposições teóricas, por ele utilizados, com a concepção de ciência de Thomas Kuhn, apresentada em “A estrutura das revoluções científicas”. Concluí que, pelo menos no caso da investigação freudiana, podemos encontrar as atividades de solução de enigmas e de resolução de ’quebra-cabeças, características da “ciência normal”. Propus, além disso, que a teorização freudiana não se esgota nos limites da chamada “ciência normal”, envolvendo também, e principalmente, uma “revolução científica” na investigação dos fenômenos psíquicos.

Em um livro intitulado “Novos fundamentos para a Psicanálise” (1987), Jean Laplanche propôs a necessidade de renovação dos fundamentos da Psicanálise, “a partir de uma crítica incessante dos chamados conceitos fundamentais” (1987, p. 10). Referindo-se ao seu trabalho desenvolvido desde 1969 na Université Paris VII, e publicado na série “Problématiques”, argumenta que “a partir destas problematizações radicais, violentas, é necessariamente uma nova temática, novos ordenamentos, novos conceitos ou um novo ordenamento dos conceitos que se desenham.” (1987, p. 9) E afirma que “chegou o momento de mostrar a sua articulação.” (1987, p. 9) O meu objetivo neste artigo é utilizar essa proposta de Laplanche, de renovação dos fundamentos da Psicanálise, como um exemplo para se refletir sobre a opinião de Kuhn a respeito das possibilidades de contribuição entre estudos em História da Ciência e em Filosofia da Ciência: aqui, no caso particular do campo psicanalítico (História da Psicanálise e Filosofia e Epistemologia da Psicanálise). Isto será feito buscando-se colocar em evidência a conexão entre a proposta de Laplanche e as suas investigações teóricas, epistemológicas e históricas sobre a evolução da produção teórica no campo psicanalítico. Adianto que não é minha intenção defender a proposta de Laplanche, mesmo porque tenho várias discordâncias em relação a ela. Meu interesse em abordá-la aqui tem esse objetivo de ilustrar com o estudo de um caso concreto as minhas reflexões referentes ao âmbito da História e da Epistemologia da Psicanálise.

 

2. Laplanche e sua proposta de “Novos fundamentos para a Psicanálise”

O que Laplanche pretende fundamentar de maneira nova é, indissociavelmente: a) uma Psicanálise, no sentido da cura; e b) os seus fundamentos do ser humano. Acredita que só possa ser fundador para a Psicanálise aquilo que também seja fundamental para o ser humano.

Mas como ele próprio caracteriza essa sua proposta de renovação dos fundamentos psicanalíticos? Não como um simples abandono das bases erigidas por Freud. A tarefa de inovação deveria exigir um recuo – uma regressão à fonte de origem –, como etapa do processo renovador. Tratar-se-ia de buscar novos fundamentos para a Psicanálise e não de se construir uma nova Psicanálise:

Para legitimar essa idéia de que seria possível (e necessário) renovar os fundamentos da Psicanálise, sem com isso lançar-se para o exterior dos limites das suas fronteiras, Laplanche recorre às palavras de Freud, no início de “As pulsões e seus destinos” (1). Ali, Freud argumenta que o processo científico em uma nova disciplina se inicia por uma descrição de fenômenos que, não sendo um empirismo cego, já apóia em idéias abstratas. Estas idéias, que só futuramente darão origem aos conceitos fundamentais da disciplina, seriam convenções, ainda que não arbitrariamente escolhidas: elas seriam determinadas por relações com os dados da experiência, ainda que intuídas, antes mesmo de serem comprovadas. Seria apenas em uma etapa posterior de desenvolvimento da disciplina, após um estudo aprofundado dos fenômenos, que se procederia ao exame, à modificação e à definição mais precisa dos seus conceitos fundamentais.

Já que a tarefa de renovar os fundamentos psicanalíticos obrigaria a um retorno à fonte freudiana, Laplanche propõe a questão do que seria esse “regresso a Freud”. E descarta de saída a alternativa de se tornar um freudiano ortodoxo. Também não pretende “levar Freud a dizer o que se quer” (Laplance, 1987, p. 24), o que, segundo ele, seria a via de um “determinado lacanismo” (idem). Prefere falar em “regresso sobre Freud”, para ressaltar que não se pode voltar a ele sem se pôr a própria obra em questão, de modo a se efetuar sobre ela um certo trabalho.

E uma das etapas desse trabalho é a crítica dos fundamentos que Freud, mas também Lacan, foram buscar em domínios científicos vizinhos exógenos, como a Biologia, a Física, a Antropologia e a Lingüística. Importados e deslocados dos campos originais em que foram criados, e com os quais mantém vinculações significativas e sólidas, esses conceitos perderiam suas significâncias e consistências. Limitar-se-iam, então, a inadequadas ficções do tipo ‘como se’.

Além de inadequada, essa importação seria desnecessária, tendo em vista a existência de um domínio próprio da Psicanálise. Esse domínio é que precisaria ser posto em relevo, mediante uma separação entre a Psicanálise e esses outros campos conexos: separação fundadora, como o gesto que criou a situação psicanalítica.

Os fundamentos da Psicanálise deveriam remeter às condições de origem (ao originário) do inconsciente, da pulsão sexual e do aparelho da alma. E essa situação originária não poderia (e não deveria) ser conceptualizada como um ‘mito’. Ainda que os fundamentos da Psicanálise devam diferenciar-se dos de uma Psicologia do Desenvolvimento, eles deveriam referir-se necessariamente a uma história e a uma gênese: a do inconsciente e da sexualidade.

Essa gênese do originário consistiria no modo pelo qual a sexualidade viria a suprir uma auto-conservação deficitária, no caso específico do ser humano. Mas a sexualidade não viria para substituir integralmente todo o desenvolvimento psicológico da criança. Laplanche o ilustra pela imagem de um templo arcaico, em pedra, construído sobre bases ainda mais antigas de tijolos crus. Esmagada a base de tijolos, a recuperação do edifício requereria a substituição dos alicerces, por exemplo pela injeção de concreto. aí estaria a alegoria para o processo pelo qual as pulsões sexuais reinvestiriam e substituiriam, no ser humano, aspectos da vida anteriormente investidos pelas pulsões de auto-conservação. Aí estaria o sentido legítimo em que se poderia atribuir à Psicanálise o termo ‘pansexualismo’, sem que lhe coubesse como merecida, necessariamente, a pretensão de se arrogar a exclusividade no conhecimento do humano. Pansexualismo seria essa troca ou recuperação de alicerces, da auto-conservação pela sexualidade: um estado ou movimento da realidade humana e não uma aberração teórica ou epistemológica pretendida por Freud.

 

3. Os fundamentos da Psicanálise: a situação originária do inconsciente e da sexualidade

Depois de proceder ao que denomina “desentulho epistemológico do terreno” (Laplanche, 1987, p. 95), denunciando o que para ele seria uma confusão de campos entre Psicanálise e Psicologia, e fazendo a crítica de uma alegada precariedade dos conceitos fundamentais estabelecidos por Freud, Laplanche propõe aquilo que, segundo ele, deveria constitui a base fundamental da teorização psicanalítica: a sua ‘teoria da sedução generalizada’. Destaque-se que não parece ser sua intenção oferecer a alegação da precariedade dos fundamentos freudianos como munição para uma crítica que minimize a relevância essencial da obra de Freud. Sua concepção de desenvolvimento do conhecimento pressupõe um avanço necessariamente sustentado por uma crítica incessante dos conceitos fundamentais da disciplina, buscando-se reordenações teóricas amplas mais favoráveis e coerentes com as aquisições propiciadas pelo próprio progresso do conhecimento no campo.

É a partir da concepção buscada em determinados momentos da teorização freudiana, de que o inconsciente não se encontra estabelecido desde o início da vida da criança, sendo o produto do recalcamento originário, que Laplanche irá postular sua origem na relação sexualizante da criança com o adulto. Seria a sedução, portanto, o fato gerador momentoso, responsável pela existência do próprio objeto de estudos da Psicanálise. Mas, para colocá-la no seu devido lugar e concebê-la no interior de um enquadre teórico apropriado, seria necessário fazê-la evoluir para além das proposições freudianas anteriores a setembro de 1897, chamadas por Laplanche de teoria da sedução restrita e também para além dos desenvolvimentos freudianos posteriores, que implicaram em uma espécie de recalcamento e desmembramento da sedução, como teoria.

Nesse percurso, seria eliminada a restrição freudiana ao patológico, presente na teoria anterior a 1897, como também os posteriores recurso inconvenientes a um biomorfismo, a um antropomorfismo e a um mecanicomorfismo (sem incorrer, além do mais, no lingüisticomorfismo lacaniano). A sedução originária pretendida por Laplanche, descreveria o confronto entre uma criança, de um lado, e um adulto, de outro, que lhe proporia mensagens significantes enigmáticas.  O enigma encerrado nessas mensagens seria derivado do desconhecimento, por parte do próprio adulto, do seu sentido, já que decorreria de efeitos do seu inconsciente, cuja inscrição ele desconheceria: “Estas mensagens enigmáticas suscitam um trabalho de domínio e de simbolização difícil, ou impossível, que necessariamente deixa atrás dele restos inconscientes, fueros, dizia Freud: aquilo que chamamos os objectos-fontes da pulsão”. (Laplanche, 1987, p. 135-136).

O recalcamento originário seria então um movimento que clivaria do psiquismo um inconsciente primordial, tornado ele mesmo um ‘isso’, responsável pela constituição dos primeiros objetos-fontes da pulsão. Isso aconteceria em pelo menos dois tempos, de acordo com a proposição freudiana do “nachträlich”: o “a posteriore” (après-coup). No primeiro tempo, ocorreria uma primeira inscrição de significantes enigmáticos, ainda não recalcados, na criança, sendo esse enigma decorrente do fato de os gestos auto-conservativos do adulto serem portadores de mensagens sexuais inconscientes para este último. Em um segundo tempo ocorreria uma re-atualização destes significantes perigosos e traumatizantes, que mobilizaria a criança em uma tentativa de proceder à sua ligação, à sua simbolização. Do fracasso desse empreendimento é que surgiria o recalcamento de um resto impossível de simbolizar.

 

4. Mudanças na teoria psicanalítica requeridas pelo estabelecimento dos novos fundamentos

Essa ampliação, proposta por Laplanche, da teoria da sedução (a caracterização do originário da sexualidade e do inconsciente) implicaria em transformações de outros aspectos fundamentais da teorização psicanalítica. Em primeiro lugar, requereria uma reconceptualização da teoria das instâncias psíquicas: a tópica. Os dois tempos do recalcamento originário definiriam o surgimento do ‘eu’. No primeiro tempo, ele consistiria em um ‘eu-corpo’, que coincidiria com o todo do indivíduo. No segundo tempo, é que surgiria o eu como instância psíquica: uma parte do conjunto das instâncias psíquicas, à imagem da totalidade do conjunto.

Um segundo âmbito da teorização psicanalítica, que sofreria modificações, seria o da teoria das pulsões: “trata-se de reconsiderar as distinções propostas por Freud, atribuindo-lhes um significado preciso” (Laplanche, 1987, p. 145). As duas teorias freudianas das pulsões, correspondentes às oposições entre auto-conservação e sexualidade e entre pulsões de vida e de morte, deveriam ser articuladas aos diferentes momentos da gênese do sujeito humano, ao invés de serem entendidas como alternativas antitéticas. Antes de mais nada, dever-se-ia expurgar do conceito de pulsão sexual “o caráter de ser mítico” (idem, p. 148) e as referências a uma teoria biologicizante, privilegiando-se, no lugar disso, uma teorização que dá toda a prioridade às representações e principalmente à inscrição de significantes enigmáticos. A fonte da pulsão sexual seria constituída pelos restos inconscientes do recalcamento originário: o objeto-fonte, aproximadamente correspondente àquilo que Freud denominava representação-coisa. E a separação da pulsão sexual do âmbito da auto-conservação dever-se-ia exatamente à sedução e não a um movimento endógeno próprio da auto-conservação.

Quanto à divergência entre pulsão de vida e de morte, deveria ser desligada das referências à vida e morte do indivíduo biológico. Pulsão de vida e de morte seriam dois aspectos da pulsão sexual. A primeira referir-se-ia à pulsão dirigida a um objeto total e totalizante, mantendo-se ligada (referência à Bindung freudiana) a partir dessa vinculação. Já a pulsão de morte, corresponderia a um objeto parcial, que mal poderia ser propriamente denominado um objeto. O processo primário corresponderia ao modo próprio de funcionamento da pulsão de morte e o processo secundário ao modo de funcionamento da pulsão de vida, havendo, contudo, no modo efetivo de operação dessas forças no psiquismo, uma série complementar que corresponderia a estados intermediários entre a dispersão absoluta e a união propiciada pelo eu ou pelo objeto (processos, estes, descobertos com o narcisismo).

E o terceiro âmbito da teorização psicanalítica, que exigiria articulação à nova teorização laplanchiana, seria o da clínica: o da tarefa prática da cura. Mas não disponho de espaço e tempo suficientes para uma caracterização apropriada  dessas implicações.


5. O sentido da proposta laplanchiana de novos fundamentos à luz das concepções kuhnianas de Ciência

Chegou o momento de tentarmos compreender o sentido e a dimensão da proposta laplanchiana de novos fundamentos para a Psicanálise, a partir da caracterização dos campos científicos empreendida por Thomas Kuhn em “A estrutura das revoluções científicas”. A concepção de Kuhn dos acontecimentos nos domínios da Ciência supõe uma sucessão do que ele denomina períodos de ciência normal, entrecortados por períodos de crise e pesquisa extraordinária; estes propiciariam a emergência de novos paradigmas, que ocasionariam as revoluções científicas. As revoluções científicas consistiriam nesses episódios extraordinários, em que investigadores extraordinários conduziriam a comunidade da disciplina a um novo conjunto de compromissos de investigação, que subverteriam a tradição de pesquisa da área ditada pelo paradigma anteriormente vigente. Eles implicariam transformações radicais, tanto da concepção do universo em estudo e dos objetos de pesquisa, quanto das regras que ditam a prática científica na disciplina.

E, talvez, a questão mais importante que nos venha à mente seja sobre a extensão da transformação intencionada por Laplanche. Pretenderia ele restringir-se aos limites da chamada ‘ciência normal’, na qual os empreendimentos de investigação teriam sua direção organizada pelo paradigma vigente no campo (no caso, o paradigma freudiano)? Ou suas propostas apontariam na direção das metas mais ambiciosas das ‘revoluções científicas’, visando conduzir a comunidade psicanalítica a um novo conjunto de compromissos de investigação, que subverteriam a tradição de pesquisa até então ditada pelo paradigma freudiano? E, neste último caso, qual a extensão da radicalidade de sua proposições? Estaríamos ainda no interior das fronteiras do campo criado por Freud, ou se trataria da criação de um novo campo, completamente distinto do que foi gerado pela teorização freudiana? Seria, a insistência de Laplanche em manter o nome de Psicanálise (“Novos fundamentos para a Psicanálise”), apenas uma reticência inapropriada, quando se considera adequadamente a dimensão real das mudanças propostas? aí estão algumas das questões essenciais, sobre as quais eu gostaria de refletir.

Antes de qualquer outra coisa, importa considerar que o próprio Kuhn supõe que mudanças na teoria possam ser realizadas dentro dos limites da ‘ciência normal’. Em certas circunstâncias, são requeridas melhores articulações para as diferentes partes do paradigma, que o aperfeiçoe por meio da elaboração de versões melhor desenvolvidas, mais uniformes, mais amplas, ou menos equívocas. Essas mudanças na teoria podem implicar apenas pequenos ajustes, ou mesmo transformações de maior substância, sem que, necessariamente, se extrapole os limites do paradigma.

Se nos perguntarmos sobre os critérios kuhnianos para se distinguir entre as transformações que constituem mudanças de paradigma, daquelas que representam apenas aperfeiçoamentos do paradigma vigente, ainda que modificações profundas, teremos de refletir sobre as considerações kuhnianas a respeito da “incomensurabilidade” das tradições científicas normais, pré e pós-revolucionárias (Kuhn, 1962, p. 188). E aqui devemos ter claro que estas minhas considerações sobre o alcance e a radicalidade das proposições laplanchianas constituem apenas um exercício de antecipação. Apenas o contraste entre as realizações de pesquisadores dirigidos pelo paradigma freudiano, de um lado, e pesquisadores dirigidos pelo paradigma laplanchiano, de outro, poderia, com segurança, permitir afirmações sobre a incomensurabilidade entre os dois conjuntos de fundamentos para a Psicanálise.

Para Kuhn, no caso de paradigmas incomensuráveis, em competição, não seria possível definir-se um conjunto de problemas científicos, cujas soluções oferecidas pelos competidores pudessem ser comparadas. Também não se conseguiria obter um conjunto definido de padrões científicos para a resolução desses problemas, que fosse aceito pelos adeptos dos diferentes paradigmas competidores. Eles discordariam em relação ao conjunto de problemas cuja solução é considerada relevante e também em relação aos conceitos, padrões e procedimentos empregados na obtenção de evidências para a solução desses problemas. Nas palavras de Kuhn: “em um sentido que sou incapaz de explicar melhor, os proponentes dos paradigmas competidores praticam seus ofícios em mundos diferentes” (Kuhn, 1962, p. 190).

Não me parece que Laplanche se desloque para um mundo diferente daquele que abriga a teorização freudiana. É bem verdade que o seu “regresso sobre Freud”, para efetuar um trabalho de transformação da teoria, implica em mudanças substantivas. Sua reconsideração revê o próprio modo pelo qual se origina a pulsão sexual, o inconsciente e as instâncias psíquica, operando transformações na teoria das pulsões, da tópica e no modo de se conduzir o processo analítico. Contudo, deve-se ressaltar o modo pelo qual Laplanche argumenta em favor de suas propostas, apontando os elementos da teorização freudiana que envolvem contradições e lacunas não resolvidas. Um exemplo é o modo pelo qual ele se propõe a denunciar as confusões que haveria, nos textos de Freud, entre os domínios da auto-conservação e da sexualidade. Confusões essas que conduziriam a teorização a conceptualizar a criança, no início da vida, como uma mônada fechada sobre si mesma: um tipo de idealismo, ou solipsismo biológico, que as páginas iniciais de “Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental” (Freud, 1911) permitiriam pôr em completa evidência. Suas propostas são oferecidas exatamente como alternativas que poderiam solucionar esses ‘buracos’ e ‘fraturas’ da teorização freudiana, sem, no entanto, se afastar do universo instaurado pelas concepções psicanalíticas: os domínios do inconsciente e da sexualidade.

Aliás, a proposta de Laplanche visaria inclusive delimitar mais precisamente os domínios da Psicanálise, ao realizar duas condições por ele consideradas necessárias para permitir sua separação de outros corpos de conhecimento: a) pelo expurgo de conceitos e fundamentos inapropriados, importados de outras disciplinas, como a Biologia, a Física e a Antropologia; b) pela separação do seu objeto em relação ao de outras disciplinas, aí incluídas a Antropologia, as Ciências sociais e a Psicologia.

É verdade que discordo do modo pelo qual é traçada, em seu texto, essa delimitação de fronteiras entre a Psicanálise e as demais disciplinas: principalmente, a Psicologia. Mas não disponho de espaço e tempo suficientes, aqui, para a análise desse tema específico, que deixo para outra ocasião. O que importa para a análise da questão da comensurabilidade entre as teorias de Freud e Laplanche é o fato de os seus novos fundamentos para a Psicanálise constituírem também uma fundamentação do que é originário do ser humano. Fundamentos, esses, que põem em relevo aqueles aspectos trazidos como essenciais pela teorização psicanalítica. Os conceitos freudianos principais ganham novos ordenamentos e articulações, é verdade. Mas, comparecem na nova teoria. Inconsciente, pulsão sexual, ego, id, pulsão de vida, pulsão de morte, auto-conservação, narcisismo e demais componente principais do universo freudiano também compartilham do mesmo status no interior das teorizações laplanchianas. Complexo de Édipo, Complexo de Castração e certos ‘fantasmas originários’ perderiam a posição de bases universais das constituição do sujeito. Mas, no âmbito restrito da cultura burguesa capitalista, continuariam a desfrutar da sua posição de relevância.

Finalmente, a concepção do processo psicanalítico por Laplanche também não me parece afastá-lo do universo inaugurado por Freud. Pelo contrário, parece-me, antes, uma reafirmação da importância da articulação entre a prática clínica e as proposições da teoria. Importância, essa, onipresente nas formulações freudianas. Em Freud, a teoria nunca é concebida como um simples ornamento intelectual, considerado de menor importância para os propósitos da condução do processo analítico. Muito pelo contrário, o percurso de construção da Psicanálise é por ele sedimentado a partir de um trabalho de íntima imbricação entre os desenvolvimentos teóricos e as inovações da prática clínica. Mudanças em um desses aspectos refletiam-se em reconceptualizações imediatas e substanciais no outro. E é exatamente neste sentido que vai a proposta de Laplanche, ao afirmar que “o progresso teórico e o progresso prático vão exatamente a par.” (Laplanche, 1987, p. 157) Contrário a um movimento de descrédito da teoria, que diz observar na atualidade, Laplanche atribui, a uma espécie de “imperialismo pretensamente clínico”, uma divergência entre os caminhos da prática e da teoria. Divergência, esta, que, na clínica, conduz à busca de receitas de ação que minimizem a angústia da falta de objetivos e de direção na condução da cura. “Em nome do regresso à clínica, o que procura impor-se é um terrorismo de conceitos implícitos, freqüentemente derivados do senso comum ou banalizados por ele (...) ‘O meu reino por um cavalo!’ ‘Todo o Freud por uma receita!’” (idem, p. 16-17)

Tudo isso me leva a concordar com a avaliação que o próprio Laplanche apresenta da sua proposta: “ligo novidade a fundamento e não à psicanálise; para mim, não se trata de uma nova psicanálise. (...) Mas trata-se de pôr em questão e de renovar explicitando-o, o que a fundamenta” (idem, p. 11)
 

6. A busca de novos fundamentos e a história dos desenvolvimentos teóricos no campo psicanalítico: articulações

Minhas últimas considerações destinam-se a salientar o que acredito ser uma importante contribuição implícita na proposta laplanchiana, que extrapola o valor específico das suas novas teorizações. Refiro-me à sua busca de apoio em uma base de trabalho contínuo, árduo e consistente, realizado ao longo de um extenso período de tempo, sozinho ou em colaboração, de estudo, avaliação e revisão da teorização freudiana e da de outros autores do interior do campo psicanalítico. Um trabalho que congrega um aspecto histórico, sobre como ocorreu o desenvolvimento da teoria, e um aspecto epistemológico, das articulações entre os diferentes conceitos psicanalíticos e também das articulações entre eles e as proposições da teoria. E que também não deixa de lado a consideração de outras teorias do campo psicanalítico e mesmo de dados e evidências factuais trazidas pela Psicanálise e por outras disciplinas.

Laplanche explicita claramente as aporias teóricas ou as contradições entre fatos e teoria, que suas proposições visam corrigir. E, independentemente das minhas discordâncias em relação a vários aspectos de sua proposta de renovação dos fundamentos da Psicanálise, eu acredito que essa sua visualização clara dos problemas e das necessidades de aperfeiçoamento no campo psicanalítico com a sinalização dos principais focos em que é necessário trabalhar, seja a indicação de uma via bastante apropriada para a busca de soluções. Manifesto, portanto, minha concordância com a proposta apresentada por Thomas Kuhn em “As relações entre a História e a Filosofia da Ciência” (1977, p.27-45), sobre a relevância dos trabalhos em História da Ciência para os empreendimentos dos filósofos da ciência. E argumento que esse ponto de vista também deva ser aplicado ao âmbito aqui abordado, do campo da Psicanálise.

 

Referências Bibliográficas

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Laplanche, J. (1988). Novos Fundamentos para a Psicanálise. Lisboa, (E. Brandão tradutor), Edições 70, 1988. (Original publicado em 1987).

Pacheco Filho, R. A. (1999) O método de Freud para produzir conhecimento: revolução na investigação dos fenômenos psíquicos? In: Guedes, Maria do Carmo e Campos, Regina Helena de Freitas (orgs.) Estudos em História da Psicologia. (pp. 40-48). São Paulo, EDUC.

Popper, K. A Ciência normal e seus perigos. In: Lakatos, I. e Musgrave, A. A crítica e o desenvolvimento do conhecimento. São Paulo, Cultrix – Editora da USP, 1979, p. 65. (Original publicado em:  

Notas 

(1) Na Edição Standard Brasileira das obras de Freud, a tradução inadequada deste texto é “Os instintos e suas vicissitudes” (1915).

Nota sobre o autor: Raul Albino Pacheco Filho é coordenador do Núcleo de Pesquisa  Psicanálise e Sociedade do Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. É também Professor Titular da Faculdade de Psicologia da mesma universidade. É membro do Grupo de Trabalho em História da Psicologia da ANPEPP. Endereço para correspondência: Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Social da PUC-SP, Rua Ministro Godói, 969, 4º andar, sala 4E-10, Perdizes, CEP: 05015-901, São Paulo (SP), fone/fax: (011) 3670-8520, e-mail: raulpachecofilho@uol.com.br.

 

Data de recebimento: 31/07/2006
Data de aceite: 30/10/2007

Memorandum 12, abril/2007
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP

ISSN 1676-1669
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/a12/pachecofilho01.htm

 

 

 

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