Brožek, J. e Massimi, M. (ed.). (2001) Curso de Introdução à Historiografia da Psicologia: apontamentos para um curso breve. Memorandum, 1, 72-78. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/ ~memorandum/artigos01/brozek01.htm.

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Curso de Introdução à
Historiografia da Psicologia:
Apontamentos para um curso breve
 
Introductory Course to 
Psychology's Historiography: 
notes for a brief course
 
 
Josef Brožek
Lehigh University, Bethlehem
United States of America
 
Editor
Marina Massimi
Departamento de Psicologia e Educação
FFCLRP-USP
Brasi
 

Iniciaremos nesta revista a publicação do curso de introdução à historiografia da psicologia ministrado pelo Professor Doutor Josef Brožek no curso de Psicologia da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras, da USP de Ribeirão Preto, em maio de 1996.

 

Preparei, no brasileiro, todos os documentos: para Ribeirão Preto, para São Paulo e para Rio de Janeiro. Com a sua ajuda, podemos transformar os meus apontamentos em comunicações que podem editar-se ‘na casa’, para o uso dos estudantes (e, quem sabe, dos colegas também).

Com abraço brasileiro.

JB

23 de abril de 1996.

 

Com efeito, no mês de maio de 1996, o Professor Josef Brožek, um dos mais significativos nomes da área de estudos históricos em psicologia, ministrou uma disciplina introdutória de historiografia da psicologia, para os alunos do primeiro ano de curso em psicologia, da Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto. Foi uma experiência inesquecível para todos: aquele senhor alto e simpático, que falava um correto português (recém aprendido com o objetivo de otimizar a possibilidade da visita ao Brasil), que recitava poesias e assobiava músicas no meio de primorosas lições, claras e profundas, fascinava estudantes e colegas com seu sorriso cativante e sua irresistível e intensa humanidade, e juntamente à sua competência histórica e historiográfica (trata-se de um dos pioneiros nos estudos em história da psicologia do mundo) era também o protagonista de uma aventurosa, dramática e belíssima história de vida.

É em agradecimento e homenagem a ele e cumprindo o desejo expresso no trecho de carta acima citado, que iniciaremos nesta revista a edição dos apontamentos do curso, assim como os recebemos dele, para que muitos além de nós possam aproveitar seu grande ensinamento, de cientista e de homem.

 
 

Introdução geral

13 de maio de 1996

Bom dia, amigos!

Este curso - curso intensivo ou “mini-curso” - representa um desafio singular para ambas as partes: para mim e para vocês. O tema - história e historiografia da psicologia - é um tema complexo. É impossível apresentar, mesmo que seja esquematicamente - o conteúdo inteiro da história da psicologia.

O meu desejo principal é ser útil. Para este propósito, preciso ter uma idéia mais clara dos interesses e necessidades de vocês. Vejamos:

Quais são as expectativas?

Façam o favor de indicar para quantos o interesse principal é de aprender mais a respeito dos seguintes tópicos:

1.                  1. as fontes de informação;
2.                  2. os métodos para estudar a história da psicologia;
3.                  3. os métodos de ensino da história da psicologia;
4.                  4. os métodos de pesquisa neste campo;
5.                  5. a redação de uma tese ou dissertação;
6.                  6. outros motivos de interesse a serem especificados;
7.                  7. o desejo de um encontro pessoal, sem formalidades.
 

Vocês podem escolher mais do que um desses itens!

Preparei os apontamentos para este curso duas vezes. É um fato curioso que as duas versões não mostrem nenhuma sobreposição. Por que? Uma versão - a versão que servirá como a base de nossos encontros da tarde - tem um teor geral e teorético. A outra versão - que apresentarei nas manhãs - é em grande medida mais específica, prática e autobiográfica. Não pretende mostrar qual seja a natureza da historiografia como ciência, mas aquilo que um historiador pode fazer e, de modo mais concreto, o que este historiador fez.

Acho que a combinação destas duas abordagens será ótima.

Um ponto importante: vocês podem interromper as palestras quando querem, seja com uma pergunta, seja com um comentário.

Espero que a discussão seja parte essencial das aulas.

Me agradará também encontrar-me com cada um dos participantes, pessoalmente, nas sessões de discussão individual.

Eu quero ser o mais possível útil para todos.

 

Todos, todos somos herdeiros. Os nossos conhecimentos, a nossa força (ou fraqueza) econômica, política, intelectual e moral - todas essas coisas nos vêm de gerações anteriores.

Nunca esquecerei o comentário de um professor de sociologia que dizia: nossa contribuição pessoal aos conhecimentos humanos é de peso tão leve que um pássaro pequenino poderia levá-la embora.

O estudo da história das ciências deve nos ensinar a virtude da modéstia. Além do mais, ajuda-nos a nos orientarmos de modo mais rápido e inteligente no presente e antecipar o futuro, mesmo que numa medida modesta.

Temos à disposição cinco dias para abordarmos um tema complexo. É um desafio espantoso, para o professor não menos do que para os que participam deste curso na qualidade de alunos. É claro que é impossível reproduzir o conteúdo da inteira história da psicologia. Será necessária uma escolha, e vocês todos participarão desta escolha.

 
 

De onde vêm as idéias para a pesquisa histórica?  

A pergunta é de importância crítica. Todavia, podemos começar... rindo! A que ou a quem eu devo a idéia da realização deste pequeno “dever escolar” para vocês?

A pergunta tem duas raízes:

1.                  1. uma falha... uma minha falha;
2.                  2. um sonho, ou, mais precisamente, um meio-sonho.

Explicarei tudo.

Um dia escrevi o esboço de apontamentos a respeito de uma palestra acerca do tema: “As origens das idéias para a pesquisa histórica”. No dia seguinte, reli os apontamentos e fiquei insatisfeito.

A idéia emergiu: Por que não pensar acerca desta questão junto com vocês? Mas de que maneira? Existem dois modos de abordar o problema:

1.                  1. como tarefa estritamente individual;
2.                  2. como possibilidade de diálogo entre os membros deste grupo.

Podemos esperar que a primeira abordagem - o trabalho completamente independente - produza um número maior de soluções e que a abordagem cooperativa produza idéias melhores.

Qual seria a sua escolha?

Por favor, coloquem por escrito o resultado de suas escolhas, no espaço de uma página, a ser entregue amanhã a tarde.

 
 

O que fazem os historiadores?

Os relatos de eventos passados representam reconstruções baseadas nos vestígios do que aconteceu. O historiador identifica os vestígios para poder depois coletá-los, organizá-los, analisá-los e interpretá-los. Descobre os documentos, fotografa, transcreve, tornado-os assim disponíveis para a análise. A recuperação dos documentos é uma valiosa contribuição aos nossos conhecimentos. Todavia, concordo com a observação de que os documentos constituem-se na “matéria prima”, dado crucial da historiografia, mas não se constituem propriamente na “história”. Tornam-se “história” por meio da análise e da interpretação.

 

Admito ser “alérgico” à aplicação da maioria dos grandes esquemas interpretativos já feitos, quer se trate dos esquemas da psico-história enraizada na psicanálise, ou dos esquemas “clássicos” dos marxistas soviéticos que reduzem a dinâmica do desenvolvimento da história da psicologia ao conflito entre o “idealismo” e o “materialismo”. Tive uma confrontação quente a esse respeito com os colegas soviéticos, no contexto da segunda reunião da sociedade psicológica soviética que teve lugar em Leningrado, em 1963.

Prefiro aderir fielmente aos dados e relacionar a explicação à análise da evidência. Concordo, porém, com o fato de que uma história sem explicação torna-se uma crônica, um conjunto de eventos enfileirados apresentados na ordem cronológica, enfiados no fio do tempo.

Há dois fatos de importância fundamental:

1.                1. é impossível registrar todos os fatos potencialmente relevantes;
2.                2. é indispensável escolher os vestígios para realizar um estudo aprofundado. Em contraste com a pesquisa psicológica random sampling, o escolher amostras ao acaso, neste caso não serve.

Como podemos distinguir entre o vestígio trivial e um dado significativo? Não existe uma regra universal. Às vezes, um dado relativamente isolado, pode ter significado grande, por exemplo a data de um manuscrito ou a morte de um autor. Quando procuramos a emergência de concepções maiores, duradouras, podemos sem perigo passar por cima de afirmações efêmeras, idiossincráticas.

A Historiografia requer a coordenação dos dados evidentes, tendo o objetivo de produzir um relato coerente de uma faceta do passado. Este relato fornece a interpretação, uma tentativa de explicação. O historiador busca as relações entre eventos.

Uma síntese histórica deve ter raízes nos fatos, mas é preciso ir além da “matéria prima”, para ver e apresentar os fatos numa determinada perspectiva.

 
 

História como conduta

Os acontecimentos que representam o passado estudado pelos historiadores representam, na maior parte, ações, coisas realizadas por um indivíduo ou por um grupo de indivíduos num tempo específico. Em outros termos, os eventos históricos representam formas de conduta. Como tais, os eventos são determinados, mesmo que tenham a ver com uma determinação complexa. Alguns fatores determinantes são localizados no passado próximo, outros são mais remotos no tempo; alguns são internos, outros são externos com respeito ao ator ou aos atores. Eles funcionam no quadro do desenvolvimento dos indivíduos (o que Hans Driesh denominou de “base histórica da reação”) e do Zeitgeist, a saber o espírito do tempo (ou às vezes de Ortsgeist = espírito do lugar).

Para nós, enquanto psicólogos, as realidades históricas básicas não são as guerras, o feudalismo, ou o Partido Democrático, nem a Renascença, a Idade da razão, ou a Revolução Industrial. Olhando para trás, percebemos a conduta de homens e mulheres concretos que vivem e escrevem no contexto de uma sociedade caracterizada pelas intenções, invenções e idéias.

Rigorosamente falando, a Psicologia científica não emergiu como resultado de um casamento poligâmico entre filosofia, biologia, física e fisiologia. Não, não se trata disto. Os atores eram homens específicos: tratava-se de Ernst Heinrich Weber, professor de anatomia e, mais tarde, de fisiologia, que começou a estudar, por volta de 1830, as relações entre a intensidade do estímulo e a intensidade das sensações (vide De pulsu, resorptione, auditu et tactu: Annotationes anatomicae et physiologicae, 1834). Tratava-se de Franciscus Cornelius Donders, fisiologista holandês, que estudou, por volta de 1865, a velocidade dos processos mentais. Hermann Ebbinghaus, sozinho, sem a ajuda de ninguém, com seus experimentos sobre a memória, criou um importante capítulo da “Nova Psicologia” (Ueber das Gedaechtnis, 1885). Psicofísica, Psicometria, Psicologia da Aprendizagem: eis as três colunas da Psicologia Experimental! Eis as realidades da história! Eis uma abordagem psicológica para a história: história de cientistas individuais.

Em sua abordagem ao estudo da história, o sociólogo dará ênfase ao papel de grupos, instituições, ideologias. Ambas as abordagens são válidas: ademais, uma complementa a outra.

 
 

Coletar e interpretar a evidência

A pesquisa histórica (PH) não difere de outros tipos de pesquisa:

PH = E (evidência) x T (teoria)

A evidência é coordenada e interpretada pela teoria. Este é um princípio, não uma receita - entendendo por receita a aplicação de um princípio geral à situação específica.

A pesquisa histórica envolve técnicas distintas da pesquisa em laboratório, na clínica, ou no campo social. Não é possível ministrar um questionário à Francis Galton, o primo versátil de Charles Darwin, nem fazer-lhe uma entrevista. Não podemos utilizar testes psicológicos para conhecer sua personalidade, pois ele morreu há muito tempo!

A pesquisa histórica pode exigir conhecimentos que ultrapassam as competências da psicologia contemporânea, acarretando a necessidade de uma formação mais ampla em humanidades e idiomas, tais como, alemão, francês, latim etc.. Os conhecimentos básicos essenciais para a formação do pesquisador em história podem incluir a física, a matemática, a biologia, a pedagogia, a geografia, a história geral do período objeto de nosso estudo, mas é claro que um indivíduo sozinho não pode estudar tudo isto! É bem verdade que poderíamos delimitar nossa pesquisa à história da psicologia de uma específica área lingüística, por exemplo Brasil ou Portugal, ou paises de idioma inglês. No início, é aconselhável escolher uma área geográfica e lingüística limitada, para podermos examinar o tema em profundidade.

Consideremos agora a história dos termos psicológicos. Esses, no tempo, mudam de sentido. É lamentável que não exista um vocabulário histórico de psicologia. O melhor que temos é uma obra alemã impressionante: Historisches Woerterbuch der Philosophie, no seu oitavo volume. Para fazermos um exemplo, ao consultar este vocabulário, podemos ficar surpreendidos ao encontrar a expressão “tempo fisiológico” (em holandês psysiologische tijd), mas na verdade trata-se de um antigo sinônimo de “tempo de reação”. Os problemas lingüísticos aumentam quando regressamos no tempo. Num relato acerca do progresso das ciências, por exemplo, elaborado pelo cientista francês De Maupertuis (em 1752), discute-se acerca de experimentos psicológicos. Mas qual o termo utilizado para designá-los? Em francês: Experiences metaphysiques - experiências metafísicas!

(Final da Parte I. Continua)

Nota sobre o autor: Josef Brožek é Professor de Psicologia e Pesquisador aposentado da Lehigh University, Bethelehem nos Estados Unidos. Nascido em 1913, na cidade de Melnik, na Bohemia, naturalizou-se americano em 1945. É PhD pela Charles University, em Praga, na Tchecoslovaquia. Assumiu diversos cargos universitários na Europa e EUA, desde 1936, entre eles no M.I.T. (Massachusetts Institute of Technology), de 1980-1981. Autor de vários trabalhos, destacam-se os relativos a Comportamento na Desnutrição e História da Psicologia. É um dos pioneiros da História da Psicologia Moderna como área de pesquisa.

Nota sobre a editora: Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contatos: mmarina@ffclrp.usp.br

 

Memorandum, Out/2001
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich. ufmg.br/~memorandum/artigos01/brozek01.htm

 

 

 

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