Centofanti, R. (2003). O discriminacionismo afetivo de Radecki. Memorandum, 5, 94-104. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/centofanti01.htm.

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O discriminacionismo afetivo de Radecki

 The affective discriminationism of Radecki

 Rogério Centofanti
Brasil
 

Resumo

O artigo localiza e esclarece o conceito de discriminacionismo afetivo, termo utilizado por Waclaw Radecki, personagem da história da psicologia no Brasil, para identificar o que denominou ser o seu sistema psicológico. Radecki está associado ao Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas em Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro dos anos 20 do século passado. Citado em várias publicações, o discriminacionismo afetivo tornou-se objeto de mitificação, pelo fato de não ter sido até então elucidado.

Palavras-chave: Waclaw Radecki; laboratório de psicologia;   discriminacionismo afetivo.

Abstract

The article locates and explains the concept of affective discriminationism, term used by Waclaw Radecki, important character the history of Psyhology in Brazil, to identify what is designated as his own psychological system. Radecki is associated with the Laboratory of Psychology of the Colony of Psychopaths in Engenho de Dentro, Rio de Janeiro, during the 1920s. Mentioned in several publications, affective discriminationism is an object of mythicization, due to the fact that it has not been yet properly clarified.

Keywords: Waclaw Radecki; laboratory of psychology; affective discriminationism.

 

Introdução

Quando conclui o artigo que foi em 1982 publicado com o título de Radecki e a Psicologia no Brasil, um texto de natureza histórica, sabia que faltava esclarecer o significado de discriminacionismo afetivo, termo adotado por Waclaw Radecki para denominar o que afirmava ser o seu sistema. Deixei de fazê-lo, a época, por dois motivos. O primeiro foi o entusiasmo - fiquei preso ao que a investigação tinha de intrigante e reveladora em seus aspectos factuais. O segundo motivo é imperdoável - não tentei entender o discriminacionismo afetivo.

Dez anos depois, em seu importante livro História da Psicologia no Rio de Janeiro, Antonio Gomes Penna observa, coberto de razão, que não adiantei “palavra alguma sobre o que significou a perspectiva do mestre polonês” (Penna, 1992, p.17). Ao dizer isso, Penna tinha em vista o discriminacionismo afetivo.

Quem lê meu trabalho e o de Penna, encontra inúmeras referências e até mesmo histórias de desafetos criados em torno do discriminacionismo afetivo. Por outro lado, fica sem saber o que ele significava. Falamos sobre, mas não dissemos o que era!

Esse espaço vazio apenas serviu para que o conceito de discriminacionismo afetivo fosse mitificado.

Agora, vinte e um anos depois, quero livrar-me dessa sensação de que existem dedos apontados em minha direção acusando – “você deve”. Vou pagar! Logicamente que, a exemplo de qualquer outra atividade interpretativa, minha leitura está sujeita a equívocos e ilusões.

Como fonte de análise, ficarei inicialmente restrito nos limites dos dezessete fascículos do Resumo do Curso de Psicologia, publicados pela Imprensa Militar em 1928 e 1929, um excelente manual ou tratado de psicologia, que encontrei em um sebo no Rio de Janeiro. O curso, ministrado por Radecki, foi promovido pela Escola de Aplicação do Serviço de Saúde do Exército e os fascículos encadernados na forma de livro. O Resumo tinha uma finalidade instrucional e o pensamento do autor se revela entre as inúmeras apresentações conceituais dos grandes teóricos de seu tempo, relativas a uma imensa variedade de assuntos, em um plano de obra bem elaborado. Ao final, recorrerei também à tradução do Resumo para o castelhano, publicado na Argentina em 1933, onde recebeu o título de Tratado de Psicologia (resumido)

 

A localização do discriminacionismo afetivo

No Resumo do Curso de Psicologia, o termo discriminacionismo afetivo aparece uma única vez em todas as 447 páginas, no capítulo dedicado aos Problemas da psicologia individual e coletiva, inserido no subtítulo Problemas da psicologia individual (diferencial) (1). Não mereceu do autor nem mesmo um subtítulo especial. Surge ao pé da página 368, da seguinte forma:

assim, se chamo o meu sistema, exposto aqui, de discriminacionismo afetivo, instituo esta denominação, que inclui o reconhecimento da discriminação e da sensibilidade afetiva como processos básicos e primordiais, justamente pelo fato de serem mais numerosas as correlações que os rodeiam (Radecki, 1928-29, p.368).

A dificuldade de entendimento imediato fica por conta do significado que emprestamos aos termos utilizados por Radecki. A palavra sistema, por exemplo, conduz à idéia de que autor teria criado uma ordenação de dados e teorias, com pressupostos, definições e métodos específicos – um “sistema psicológico”.

Isso parece muito complicado – ainda mais se somarmos ao termo sistema o indicativo de que a discriminação e a sensibilidade afetiva são processos básicos e primordiais, com numerosas correlações. Se resolvermos entender por processo a sucessão de estados ou mudanças e, por correlação, uma relação entre duas ou mais variáveis, fica tudo aparentemente ainda mais complexo.

 
O que é discriminacionismo afetivo

O objeto do capítulo em que se localiza o termo discriminacionismo afetivo, é a aplicação prática dos dados fornecidos pela psicologia geral “sob a forma de interpretações psicológicas de determinado indivíduo” (Radecki, 1928-29, p.357). Afinal, se as leis da psicologia geral resumem o que há de constante no psiquismo, deixam “vasta margem às variantes individuais de cada função regida pela lei geral” (p.357). É a questão do universal e do particular!

A psicologia individual era, portanto, “uma projeção de todos os dados da psicologia geral através dos variados indivíduos humanos, projeção cuja necessidade se impôs em virtude da própria variabilidade” (p.357).

Ao sabor da psicologia de seu tempo, Radecki entende que a variabilidade humana estabelecia o caráter dos indivíduos – “a noção básica na psicologia individual é a de caráter” (p.358), sendo seu fim último a edificação de uma caracterologia.

A dificuldade de fundar uma caracterologia, na ótica do mestre polonês, residia no fato do conceito de caráter variar de um autor para outro, deixando como resultante “o poder do psicólogo de definir essas variações” (p.358). Além dessa divergência conceitual, os autores “também discordam no atribuir o papel primário ou secundário a tal grupo de funções psíquicas” (p.358). Ribot, de acordo com Radecki, privilegiava o sentir e o agir. Kant, segundo ele, reservava o termo caráter “para definir exclusivamente o modo individual de pensar” (p.359).

Diante das diferenças dos autores, conclui Radecki que as pretensões de eleger esta ou aquela função como primordial, “não passava, entretanto, de expressões do próprio gosto pessoal de determinado autor para aplicar o prisma, para ele mais cômodo, de encarar a individualidade” (p.360).

Como exemplos de variantes funcionais que o psicólogo poderia “procurar descrever e estudar geneticamente, cumprindo a primeira tarefa da psicologia individual” (p.266), estavam: uma sensibilidade sensorial maior ou menor, uma atenção mais concentrada ou dispersa, uma discriminação mais ou menos desenvolvida, uma memória mais ou menos durável, uma sensibilidade afetiva mais ou menos acurada etc.

O estudo das variantes funcionais, entretanto, não podia ser realizado “sem abordar o segundo e importantíssimo problema da psicologia individual: o da correlação funcional, isto é, o problema da fixa relação mútua de certas modalidades funcionais” (p.366). De acordo com Radecki, o estudo das correlações era um dos mais importantes assuntos da psicologia individual. A lógica é simples, embora a equação seja complexa. Apenas como exemplo: se um pesquisador escolhe a memória como variável funcional primária, resta saber como investigará suas correlações com as demais funções – pensamento, afetividade, memória etc.

Esse era, portanto, o desenho da psicologia individual – o estudo das variações dos processos psíquicos nos indivíduos e o estudo das correlações desses processos – “até que ponto os diferentes processos psíquicos podem ser independentes um do outro, e até que ponto eles se influenciam mutuamente” (p.367). A análise do mecanismo psíquico não poderia dispensar a análise correlata da função estudada. Mais um exemplo: procurar saber se a memória e a atenção são funções ou processos independentes e, sendo ou não, se é possível identificar correlações entre elas.

Na psicologia individual, o estudo das correlações consistia em “hierarquizar” determinadas funções psíquicas, sob o ponto de vista da importância psicológica. Assegurava Radecki que “a hierarquização das funções, baseada nas correlações” (p.368), resolveria o problema da procura pelo ponto central da investigação, eliminando a escolha arbitrária da maioria dos autores. Diz ele que “determinando as variantes funcionais e estabelecendo as leis correlativas” (p.369), o psicólogo estuda os processos psíquicos, em relação à variabilidade que representam através dos indivíduos.

Ao enunciar seu conceito de discriminacionismo afetivo, Radecki afirma que “limitei-me, portanto, a indicar caminhos metódicos de resolução do problema” (p.369) – o da investigação teórica e prática da psicologia individual.

O discriminacionismo afetivo era, pois, um sistema no sentido de que indicava um modo de ação para investigar e solucionar problemas de psicologia individual – como diz o próprio Radecki, é um método – o seu.

Se atentarmos à definição de discriminacionismo afetivo, veremos que Radecki privilegia a discriminação e a sensibilidade afetiva como funções ou processos básicos, pelo fato dessas duas funções estabelecerem um grande número de correlações com as demais funções ou processos. Pronto! Deciframos o enigma. A discriminação e a sensibilidade afetiva deveriam ser os pontos centrais na pesquisa e aplicação de uma psicologia do caráter – de uma caracterologia. Foram escolhidos por uma questão de hierarquia metodológica.


Por que discriminação?

Na esfera da vida intelectual, Radecki privilegia a discriminação como uma função básica dentre todas as demais funções cognitivas – associação, memória, juízo, raciocínio etc. Por que?

Se as sensações são processos receptores e fornecedores de material para a elaboração psíquica [para Radecki, os processos sensoriais têm um caráter pré-psíquico] e, a atenção um “lugar” para onde as impressões sensoriais são conduzidas, é o processo de discriminação que tem por efeito a formação de unidades psíquicas no indivíduo – “a unidade é o que se discrimina como unidade” (Radecki, 1928-29, p.68).

Se é por meio das sensações que o indivíduo recebe as impressões, é por intermédio da discriminação que ele “transforma as impressões recebidas em conteúdos intelectuais próprios” (p.69). A discriminação, portanto, depende exclusivamente do indivíduo que discrimina – é o processo que representa a função, cujo efeito “decide o caráter da mentalidade intelectual de cada indivíduo” (p.68).

A discriminação é um mecanismo imediato da consciência pela função de delimitar o campo focal, uma vez que “só um conteúdo pode ocupar o foco da consciência em um determinado momento” (p.70). Como o conteúdo discriminado preenche completamente o foco da consciência, os demais conteúdos “recuam para a franja” (p.71).

Diante dessa síntese, formada na consciência do indivíduo pelo processo de discriminação, parece claro que associação, memória, juízo e raciocínio tornam-se funções elaboradoras secundárias da vida intelectual. Afinal, só é possível associar, memorizar, ajuizar e raciocinar sobre conteúdos discriminados – presentes no campo da consciência.

Junto a recognição, apercepção e abstração, a discriminação é definida por Radecki enquanto uma função elaboradora primária da vida intelectual.

A consciência “de que o estado vivido não nos é estranho” (p.73) é atribuída por Radecki ao processo de recognição. A recognição desenvolve-se pela experiência e está acompanhada dos processos afetivos. Como serve de base à muitos fenômenos mnemônicos, está intimamente ligada à noção de personalidade.

A discriminação e a recognição, “complementando-se mutuamente durante a corrente ininterrupta de nossa consciência, decidem o preenchimento do foco a todo momento, elaborando as unidades psíquicas sucessivas” (p.76). Essa complementaridade determina a formação das representações, que expressam a realidade externa mediante os processos da consciência. Uma representação, diz Radecki, “é uma série de conteúdos focais, limitados em cada momento pela discriminação, e reconhecidos pela recognição” (p.82).

A abstração e a apercepção, junto à discriminação, “representam três lados do mesmo fenômeno da consciência imediata, que constitui a primeira elaboração das impressões sensoriais atuais ou passadas” (p.72).

A abstração diz respeito ao processo de saturação, pela consciência, “dos conteúdos abstraídos positivamente, em comparação com os conteúdos abstraídos negativamente” (p.71). O que é isso? A função de abstrair tem por finalidade “filtrar” o conteúdo que é “trazido” à consciência. Dessa forma, os conteúdos abstraídos positivamente são dotados de maior saturação, e compõem o limite focal do fenômeno discriminado. Os conteúdos abstraídos negativamente são dotados de menor saturação e, assim, repelidos para o segundo plano da consciência (franja).

A apercepção consiste no ato de por em foco os conteúdos da consciência, “que um momento antes se achavam fora dela” (p.72). A apercepção, portanto, é o “ato motor necessário para introduzir no foco o apercebido” (p.72).

Ora, a apercepção é um ato motor e a abstração um filtro – dois complementos, portanto, do processo de discriminação. A recognição é a manutenção afetiva de uma discriminação original. A representação é uma expressão da realidade externa mediatizada pela consciência e, portanto, limitada pela discriminação.

Assim sendo, mesmo dentre as funções elaboradoras primárias da vida intelectual, a discriminação é a função básica, primordial, e capaz de estabelecer um grande número de correlações, podendo ser privilegiada pelo fato de atender ao critério de hierarquia metodológica proposto por Radecki.


Por que sensibilidade afetiva?

A afetividade é, no discriminacionismo afetivo, um adjetivo da discriminação. A discriminação afetiva, enquanto síntese, é a função a ser colocada no topo da hierarquia metodológica, quando dos esforços de pesquisa e aplicação de uma psicologia do caráter. Afinal, o indivíduo que discrimina não tem vida intelectual independente de vida afetiva. A consciência tem um ingrediente de sensibilidade afetiva – sentimento e emoção – que ocorre, como já vimos, pelo processo de recognição, que se desenvolve pela experiência.

Não há, em relação à afetividade, a proposta de estabelecer uma hierarquia metodológica para fins de pesquisa, até mesmo porque “a consciência afetiva deve ser estudada e analisada em um outro nível, diferente do da consciência intelectual, nível em que não procuramos estabelecer gradações de clareza” (Radecki, 1928-29, p.218). Isso porque “a consciência afetiva não tem foco e nem franja” (p.217), diferentemente da consciência intelectual.

Não tendo a consciência afetiva foco e franja, “não se pode falar em representações dos sentimentos, porque a noção de representação está ligada com sucessivas revivescências focais” (p.224). Não sendo os sentimentos representáveis, “não se prestam também a uma definição conceitual” (p.232). O mesmo ocorre com a essência psicológica da emoção que “é tanto indefinível e irrepresentável como a consciência do prazer e desprazer” (p.259).


De volta aos problemas de psicologia individual

Avançando um pouco além do parágrafo em que Radecki anuncia o discriminacionismo afetivo, na qualidade de seu sistema, fica claro que a esperada classificação dos caracteres não será encontrada no Resumo:

não proponho nenhum um quadro de classificação dos caracteres porque uma tal proposta sobrepujaria a tarefa de um simples esboço dos problemas da psicologia individual, entrando na resolução desses problemas e me obrigaria também a discutir dezenas de classificações propostas por outros autores. Limitei-me, portanto, a indicar os caminhos metódicos de resolução do problema sem impor para isso formas rígidas (Radecki, 1928-29, p.369).

Não há nada de errado no fato de um autor limitar-se a indicar caminhos metodológicos para a resolução de um problema ou de deixar de propor um quadro com vistas a uma caracterologia, ainda mais em se tratando de um Resumo.

É, além do mais, uma posição adequada para um teórico que afirmava:

a psicologia individual, na época atual, não possui ainda qualquer sistema completo totalmente elaborado: ela está em franco período de contribuições parciais, recolhidas em milhares de trabalhos por centenas de pesquisadores. Entretanto, a criação de um sistema firme que possa ser universalmente aceito impõe-se. Sem incluir um tal sistema na metodologia dos estudos psicológicos, nunca poderão ser suficientemente explorados os dados da psicologia geral na ação prática (Radecki, 1928-29, p.373).

Para que o leitor tenha uma idéia da visão de Radecki quanto às possibilidades da edificação de uma psicologia unificada como ciência e profissão, passarei a ele a palavra, até mesmo para que se torne melhor conhecido:

a conciliação e o entendimento da psicologia com várias disciplinas de aplicação, como psiquiatria, psicotécnica, educação etc., poderão ser atingidos única e exclusivamente através da psicologia individual. A separação da psiquiatria, os freqüentes insucessos da psicotécnica, as dúvidas na metodologia da educação, só poderão ser evitados quando tentarmos colocar essas disciplinas na base psicológica, tanto da psicologia geral, como individual. Infelizmente, a onda do “prático” que invadiu o mundo fez com que, desprezando a ordem metodológica das aplicações, queiram saltar da pura teoria para a direta aplicação, omitindo os necessários intermediários científicos. Por causa disso, sente-se cada vez mais a necessidade de preencher as lacunas criadas pela aplicação apressada, e este preenchimento realizar-se-á pela elaboração sistemática dos dados da psicologia individual (Radecki, 1928-29, p. 373-374).

O que pode haver de mais atual neste momento em que teoria e prática parecem cada vez mais distanciadas?

A questão que permanece é a seguinte: se o discriminacionismo afetivo era apenas uma indicação de caminho metodológico para investigação e aplicação da psicologia individual, com vistas a criação de uma caracterologia, por que se tornou polêmico?


O retorno ao mito do discriminacionismo afetivo

Ao analisar os trabalhos dos colaboradores de Radecki, Penna (1992) faz referência à Psicologia da Vida Afetiva de Nilton Campos, até mesmo por esse livro apresentar-se como um ensaio crítico e analítico baseado no sistema do discriminacionismo afetivo de Radecki. Assinala Penna (1992) que, “todavia, nele, efetivamente, não se encontra uma exposição do que seria o discriminacionismo afetivo como sistema psicológico [e que espanta] o fato de que em nossa convivência durante dezoito anos com Nilton Campos jamais dele ouvimos qualquer comentário acerca desse sistema que, não obstante, lhe deveria ser conhecido” (p.17). Imagina, inclusive, que o conhecido rompimento de Nilton Campos com Radecki possa ter ocorrido por conta do discriminacionismo afetivo.

Ao analisar o trabalho de Antonio de Bulhões Pedreira, outro colaborador de Radecki, chama a atenção de Penna (1992) o fato dele declarar sua fundamentação no discriminacionismo afetivo, embora o autor não adiante “nenhuma informação capaz de nos esclarecer quanto ao seu conteúdo conceitual” (p.45).

Nos diversos artigos dos membros da “escola” de Radecki a que tive acesso, nada encontrei que lembrasse a indicação metodológica denominada discriminacionismo afetivo, inclusive porque os trabalhos não estão orientados para uma caracterologia.

Mesmo Jayme Grabois, assistente de Radecki com quem mantive vários encontros, nunca se mostrou muito à vontade quando perguntado sobre o discriminacionismo afetivo, limitando-se a afirmar que não aceitava o sistema desde que ingressou no laboratório.

Setores da igreja católica, que em 1932 insurgiram-se contra a proposta de Radecki criar um Instituto de Psicologia, usaram o discriminacionismo afetivo como sinônimo de psicologia materialista etc.

Lourenço Filho, embora reconhecesse os méritos de Radecki, dizia fazê-lo apesar da insistência com que o mestre polonês repisava os princípios do discriminacionismo afetivo, embora não julgasse a “doutrina” isenta de méritos.

Independentemente das motivações dessas pessoas, fica claro que Radecki empregava, em suas atividades cotidianas, o conceito de discriminacionismo afetivo muito além dos limites que encontramos no Resumo. Certamente fazia propaganda do conceito e parece não ter dúvida na suspeita levantada por Jacó-Vilela (2000), de que havia um autoritarismo de Radecki traduzido “na obrigação de seus colaboradores inscreverem” (p.46) o discriminacionismo em seus trabalhos.

Resta a hipótese de que havia uma outra dimensão do discriminacionismo afetivo, sobre a qual até mesmo os ex-assistentes silenciaram.

Vamos acompanhar Radecki na Argentina e Uruguai - países em que passou a residir e atuar depois que deixou o Brasil em 1932 - em busca de algumas respostas.


O discriminacionismo afetivo no Prata

Há novidades no Prata. O Resumo de Radecki, traduzido para o castelhano e intitulado de Tratado de Psicologia (resumido), recebeu um Anexo denominado Posición de la psicologia en el sistema de las ciencias (Posição da psicologia no sistema das ciências), inexistente na versão brasileira. No Anexo, com a erudição e esmerada lógica de costume, Radecki trata de assuntos relativos aos critérios de cientificidade, classificação das ciências, posição da psicologia em relação às demais ciências etc. No trato desses assuntos, o discriminacionismo afetivo entrará novamente em cena, agora com um novo vulto.

É um sistema de psicologia geral.

uma tentativa de organização sistemática de tudo que até agora foi colecionado como caudal fenomênico da psicologia, tentativa nascida no interior de pesquisas consecutivas de fenômenos psíquicos os mais variados, tentativa na qual o autor não ocultou nada de positivo das doutrinas e estudos monográficos até hoje existentes (Radecki, 1933, p.376).

Isso começa a fazer sentido. Como Radecki está tratando, agora, de aspectos de classificação das ciências e da posição da psicologia em relação às demais, o conceito original de discriminacionismo afetivo, até então apresentado como um método a ser empregado no campo da psicologia individual, avançou para um território mais amplo – o da psicologia geral. Faz também sentido a configuração de sua psicologia geral na arquitetura do Resumo – psicologia da vida intelectual, psicologia da vida afetiva e psicologia da vida ativa - cada qual dividida em funções ou processos psíquicos inerentes a cada uma dessas “vidas”, contendo os conceitos dos mais diversos teóricos relativos a cada função, finalizando, sempre, com a posição de Radecki sobre cada um deles.

O discriminacionismo afetivo é a proposta de organizar em um único sistema, tudo que fora produzido até então na psicologia, aproveitando os pontos passíveis de articulação das teorias, visando a concretização do ideal de uma psicologia unificada. No campo da psicologia individual, conforme apresentado no Brasil, o discriminacionismo afetivo é a forma de evitar que a classificação caracterológica fique por conta dos desentendimentos arbitrários dos diferentes autores. Agora, no campo da psicologia geral, o discriminacionismo afetivo é a forma de evitar que as doutrinas psicológicas, pela fragmentação, impeçam a constituição de uma unicidade científica. O discriminacionismo afetivo é o sistema que “tenta” viabilizar a unicidade.

Será isso? Vejamos!

A psicologia geral dos anos 30 do século passado representava, de acordo com Radecki, “uma variabilidade profunda”. Essa variabilidade fazia com que os psicólogos não adotassem um sistema geral e apreciassem o quadro dessa ciência “como um conjunto de pequenas correntes (...) que não se fundiram, todavia, em um leito comum” (1933, p.375).

Uma constatação que se mostra verdadeira até hoje – “a psicologia não cultiva nenhum um sistema universalmente aceito e consagrado”, sendo esse o motivo pelo qual “a evolução interna da psicologia difere muito da evolução de outras ciências, como por exemplo, a química” (p.375). Enquanto nas demais ciências

os estudos particulares ou trabalhos monográficos as completam, na psicologia ocorre o fenômeno oposto: cada trabalho particular ou monográfico provoca interpretações doutrinárias muito adiantadas, que se apresentam como pretensões de chave sistematizadora para o restante caudal da ciência (Radecki, 1933, p.375).

Vamos acompanhar Radecki analisando as “doutrinas” de seu tempo, pelas suas próprias palavras:

o behaviorismo de Watson e outros autores americanos, o formismo proposto por Köhler, Koffka e Wertheimer, o eidetismo estudado por Jaensch e seus adeptos, a psicanálise de Freud e seus numerosos partidários ortodoxos ou rebeldes, todas essas correntes – que na realidade não são mais que doutrinas, nascidas no fundo da observação parcial ou das restrições metodológicas – aspiram impor à totalidade da ciência, “novos” pontos de vista gerais, declarando sempre que a verdade de suas doutrinas deve fazer uma “revolução” completa em toda a psicologia, subordinando tudo o que não estudam ao que conhecem e, arbitrariamente, elevam ao primeiro plano da importância científica (Radecki, 1933, p.375).

Não poupa também os tratados de psicologia de autoria coletiva de sua época que, pretendendo manter uma “certa imparcialidade”, transformam-se numa “pura coleção de trabalhos sobre vários domínios da vida psíquica, sem nexo interno e até com contradições e confusões metodológicas”, simplesmente por falta de uma “sistematização interna”. Quando são tratados de psicologia produzidos por um único autor, “enfocam reduzido número de problemas, deixando em silêncio os domínios funcionais que o autor não selecionou como objeto de sua preocupação”, o que faz com que tais trabalhos se transformem “em exposição direta do partidarismo ou do doutrinarismo do autor”. (p.375).

As “relações primordiais” da psicologia com as demais ciências, pelo prisma do discriminacionismo afetivo, nasceram no terreno do objeto e do método. Sendo o “fenômeno psíquico” o objeto da psicologia, pertencendo portanto ao grupo dos “fenômenos vitais” (de onde psicologia da “vida” intelectual, afetiva e ativa), “coloca esta ciência no conjunto das disciplinas biológicas, subordinadas diretamente à biologia geral” (p.376).

No terreno do método, o emprego do empirismo e do racionalismo, enquanto abordagens de trabalho, fez com que “em certos pontos, a psicologia não emancipasse suficientemente seus estudos da influência da filosofia e das ciências formais: da lógica e da matemática” (p.379). Essa influência exigia cuidados pois

um sistema verdadeiramente psicológico, isto é, baseado nas premissas sistemáticas de origem exclusivamente psicológica, ainda que interpretando os dados psíquicos através de certas categorias filosóficas, lógicas ou matemáticas, nunca irá subordinar seu objeto de estudo a essas ciências; nunca colocará a psicologia na posição de ser parte da filosofia, lógica ou matemática (Radecki, 1933, p.379).

A vida psíquica, diz Radecki, “não pode e não deve ser reduzida a expressões de uma forma lógica ou filosófica” (p.379), pois tinha uma evolução mais rica do que as ciências formais poderiam conceber.

Para evitar a confusão metodológica do logicismo e do psicologismo, o discriminacionismo afetivo, enquanto sistema psicológico, procura orientar,

uma rigorosa distinção, cuidando de não introduzir contradições nas interpretações parciais dos vários domínios psíquicos, não satisfazendo-se em evitar contradições lógicas, mas cuidando, sobretudo, da compatibilidade fenomenológica de suas interpretações parciais. A harmonia lógica que disso resulta, não é um fim colimado art pour art, mas o resultado de uma severa seleção dos métodos interpretativos, puramente psicológicos (Radecki, 1933, p.380).

Nos métodos interpretativos ou analíticos, diz Radecki, a psicologia segue “muitos caminhos traçados pela química e pela física” (p.383). Como na física, a psicologia avançou da estática para o dinamismo, enquanto atributo dos fenômenos psíquicos vitais:

inicialmente em sua parte afetiva (Freudismo), estendendo-se gradualmente à interpretação dos processos intelectuais (parcialmente o formismo e totalmente o discriminacionismo afetivo). A vida psíquica é hoje concebida mais como um caso específico dos fenômenos energéticos (embora concebidos metodologicamente como intransformáveis em outras formas de energia), do que como um determinado conteúdo imaterial estático (Radecki, 1933, p. 383).

A metodologia da química influenciou a psicologia “sobretudo na busca do simples, do indivisível, do átomo”. Segundo Radecki, se o sensualismo e o associacionismo combateram com razão o atomismo psicológico, não ofereceram todavia “o substituto do átomo objetivo, que surgiu impropriamente na psicologia, como natural expressão da investigação analítica do simples” (p.384).

Nesse sentido, o discriminacionismo afetivo,

evitando o atomismo, teve o intento de resolver o problema com a introdução da unidade subjetiva dinâmica que, na interpretação da vida intelectual, facilita a análise dos fenômenos complexos, sem introduzir o caráter da objetividade, impróprio dos fenômenos psíquicos (Radecki, 1933, p.384).

As análises de Radecki prosseguem mas, para meus propósitos, creio que já temos elementos para concluir a análise que aqui nos propomos.


Desmitificando o discriminacionismo afetivo

Como vimos, o discriminacionismo afetivo foi uma proposta bem desenvolvida e, de fato, compreensível. Não posso assegurar que tenha encontrado seus elementos primordiais e, para dizer como Radecki, realizado as correlações devidas – mas o que encontrei parece suficiente para afirmar que esse sistema existiu e tem compreensibilidade.

O que parece claro é que essa concepção de Radecki não surgiu de uma hora para outra, depois que deixou o Brasil em 1932. Permeia o Resumo do início ao fim, o que permite imaginar que Radecki tinha ao menos um esboço dessa idéia enquanto produzia os textos, ou que foi perceber essa possibilidade quando se dedicou a tratar da temática da psicologia individual. Radecki escreveu em 1932, portanto ainda no Brasil, um artigo intitulado O discriminacionismo afetivo, a ser apresentado no Congresso Internacional de Psicologia que teria lugar em Copenhague [infelizmente, nunca tive acesso a esse texto].

Assim sendo, não há como pensar que o sistema fosse desconhecido de seus assistentes e de uma parcela significativa de figuras expressivas da psicologia brasileira de seu tempo.

Não contendo absurdos lógicos, fica difícil entender os motivos pelos quais, ainda que apenas para expressar discordâncias, o discriminacionismo afetivo não tenha sido, naquele tempo, motivo de discussões de natureza tipicamente intelectual.

Que Radecki não realizou o discriminacionismo afetivo, ainda que na condição de uma tentativa de organização sistemática, parece não restar dúvida. A ordenação de dados e teorias que pretendia unificar não foi efetivada. O elenco de pressupostos, definições e métodos de seu sistema, ainda que explicitados, ficaram devendo uma finalização, principalmente quando resolveu ampliar a extensão do discriminacionismo para um universo mais amplo.

Prova disso foi o esforço aqui demonstrado para localizar o conceito dentro de publicações, bem como a temerária aventura de deduzir seu alcance a partir de situações nem sempre muito definidas. Creio que, apenas pela leitura de trechos transcritos de Radecki, deve ter o leitor percebido que a ele não faltavam condições para teorizar e escrever. Fica a impressão que, na análise da relação da psicologia com as demais ciências, o termo discriminacionismo afetivo extrapolou os limites de ser um método com vistas a uma psicologia do caráter, embora a idéia central de criar uma unicidade teórica, metodológica e prática para a psicologia, estivesse presente na publicação brasileira.

Como a história da psicologia, diferentemente da própria ciência psicológica, tem a propriedade de ser acumulativa, pretende-se que este artigo sirva como abertura para que outro pesquisador, mais capacitado para lidar com teorias, sistemas, metasistemas etc., encontre na obra de Radecki um novo significado. Talvez o discriminacionismo afetivo tenha uma importância que até agora nenhum de nós foi capaz de descobrir. Talvez!

Independentemente dessa possibilidade, eu, que tenho Radecki e a experiência do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas em Engenho de Dentro muito bem definidos no meu campo focal afetivo, continuo com a avaliação que tinha há 21 anos:

Um homem intelectualmente bem formado, culto e inteligente, por motivos ainda desconhecidos, atravessa o Atlântico em companhia de sua mulher (Halina Radecka), buscando edificar uma nova vida. Chega a um país ao sul da América do Sul, nos anos 20 do século passado, onde a psicologia é ainda algo de novo que acontece na “metrópole”. Às custas de seu esforço pessoal, tendo por retaguarda um respeitável currículo, vai conquistando seus espaços na condição de professor, diretor de laboratório de psicologia experimental, chefe de equipe, palestrante, pesquisador e autor. Um estrangeiro, com hábitos extravagantes, insistindo que a formação teórica e metodológica deveria preceder à aplicação prática da psicologia diante de um público que ansiava em aplicar; empreendedor o bastante para tentar criar um Instituto de Psicologia quando psicologia era somente disciplina de Escola Normal; e que ainda dizia ser autor de um sistema psicológico próprio, certamente encontraria problemas. Disputas geradas por interesses e vaidade não é invenção recente.

Como nunca ouvi ou li qualquer crítica a Radecki, que não fosse em torno do discriminacionismo afetivo, sou levado a crer que a insistente propaganda de tal sistema foi a razão maior de suas dificuldades. Não duvido que “...a criação de um sistema firme que possa ser universalmente aceito impõe-se” (Radecki, 1928-29, p.373), a que já nos referimos em outro contexto, tivesse, no Brasil, a pretensão de ter o discriminacionismo afetivo como sinônimo.

Se é verdade que as teorias não são verdadeiras e nem falsas, mas férteis ou estéreis, o discriminacionismo afetivo mostrou-se estéril, não sendo capaz nem mesmo de convencer aos assistentes de Radecki, ficando no esquecimento. Seus principais assistentes escolheram outros caminhos: Nilton Campos o da fenomenologia e Jayme Grabois o da psicanálise.

Isso não tira os méritos de Radecki. Ainda considero, vinte e um anos depois da publicação de meu primeiro trabalho a seu respeito, que Radecki foi, em sua época, uma das figuras mais expressivas da história da psicologia neste país.

De qualquer forma, como um sistema unificado de psicologia continua por se fazer, Radecki nos deixou também este legado – o discriminacionismo afetivo como um indicativo dessa possibilidade.


Referências bibliográficas

Centofanti, R. (1982). Radecki e a psicologia no Brasil. Psicologia: Ciência e Profissão, 3 (1), 2-50.

Jacó-Vilela, A.M. (2000). Psicólogos estrangeiros no Brasil. Cadernos IPUB, VI (18), 7-52.

Penna, A.G. (1992). História da psicologia no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Imago.

Radecki, W. (1928-29). Resumo do curso de psicologia. Rio de Janeiro: Imprensa Militar.

Radecki, W. (1933). Tratado de psicología (resumido). Buenos Aires: Casa Editora Jocobo Peuser.
 

Nota

(1) Este mesmo texto é encontrado em Trabalhos de Psychologia, Laboratório de Psychologia na Colônia de Psychopatas em Engenho de Dentro, Rio de Janeiro: vol. II de 1929, p. 51-73, que foi extraído dos Annaes da Colônia de Psychopatas, Rio de Janeiro: vol. II de 1929.(volta)
 

Nota sobre o autor

Rogério Centofanti é bacharel em psicologia e consultor da Escola de Administração de Empresas de São Paulo – FGV. E-mail: centofanti@terra.com.br.

 

Data de recebimento: 24/08/2003
Data de aceite: 01/10/2003 

Memorandum, 5, out/2003
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos05/cenofanti01.htm

 

 

 

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