Não
mereceu do autor nem mesmo um subtítulo especial. Surge ao pé da página
368, da seguinte forma:
assim,
se chamo o meu sistema, exposto aqui, de discriminacionismo afetivo,
instituo esta denominação, que inclui o reconhecimento da discriminação e
da sensibilidade afetiva como processos básicos e primordiais, justamente
pelo fato de serem mais numerosas as correlações que os rodeiam (Radecki,
1928-29, p.368).
A
dificuldade de entendimento imediato fica por conta do significado que
emprestamos aos termos utilizados por Radecki. A palavra sistema,
por exemplo, conduz à idéia de que autor teria criado uma ordenação de
dados e teorias, com pressupostos, definições e métodos específicos – um
“sistema psicológico”.
Isso
parece muito complicado – ainda mais se somarmos ao termo sistema o
indicativo de que a discriminação e a sensibilidade afetiva são
processos básicos e primordiais, com numerosas correlações. Se
resolvermos entender por processo a sucessão de estados ou mudanças
e, por correlação, uma relação entre duas ou mais variáveis, fica
tudo aparentemente ainda mais complexo.
O que é discriminacionismo afetivo
O
objeto do capítulo em que se localiza o termo discriminacionismo afetivo,
é a aplicação prática dos dados fornecidos pela psicologia geral “sob a
forma de interpretações psicológicas
de determinado indivíduo” (Radecki, 1928-29, p.357). Afinal, se as leis da
psicologia geral resumem o que há de constante no psiquismo, deixam “vasta
margem às variantes individuais de cada função regida pela lei geral”
(p.357). É a questão do universal e do particular!
A
psicologia individual era, portanto, “uma projeção de todos os dados da
psicologia geral através dos variados indivíduos humanos, projeção cuja
necessidade se impôs em virtude da própria variabilidade” (p.357).
Ao sabor
da psicologia de seu tempo, Radecki entende que a variabilidade humana
estabelecia o caráter dos indivíduos – “a noção básica na psicologia
individual é a de caráter” (p.358), sendo seu fim último a edificação de
uma caracterologia.
A
dificuldade de fundar uma caracterologia, na ótica do mestre polonês,
residia no fato do conceito de caráter variar de um autor para outro,
deixando como resultante “o poder do psicólogo de definir essas variações”
(p.358). Além dessa divergência conceitual, os autores “também discordam
no atribuir o papel primário ou secundário a tal grupo de funções
psíquicas” (p.358). Ribot, de acordo com Radecki, privilegiava o sentir e
o agir. Kant, segundo ele, reservava o termo caráter “para definir
exclusivamente o modo individual de pensar” (p.359).
Diante
das diferenças dos autores, conclui Radecki que as pretensões de eleger
esta ou aquela função como primordial, “não passava, entretanto, de
expressões do próprio gosto pessoal de determinado autor para aplicar o
prisma, para ele mais cômodo, de encarar a individualidade” (p.360).
Como
exemplos de variantes funcionais que o psicólogo poderia “procurar
descrever e estudar geneticamente, cumprindo a primeira tarefa da
psicologia individual” (p.266), estavam: uma sensibilidade sensorial maior
ou menor, uma atenção mais concentrada ou dispersa, uma discriminação mais
ou menos desenvolvida, uma memória mais ou menos durável, uma
sensibilidade afetiva mais ou menos acurada etc.
O estudo das variantes funcionais,
entretanto, não podia ser realizado “sem abordar o segundo e
importantíssimo problema da psicologia individual: o da correlação
funcional, isto é, o problema da fixa relação mútua de certas modalidades
funcionais” (p.366). De acordo com Radecki, o estudo das correlações era
um dos mais importantes assuntos da psicologia individual. A lógica é
simples, embora a equação seja complexa. Apenas como exemplo: se um
pesquisador escolhe a memória como variável funcional primária, resta
saber como investigará suas correlações com as demais funções –
pensamento, afetividade, memória etc.
Esse
era, portanto, o desenho da psicologia individual – o estudo das variações
dos processos psíquicos nos indivíduos e o estudo das correlações desses
processos – “até que ponto os diferentes processos psíquicos podem ser
independentes um do outro, e até que ponto eles se influenciam mutuamente”
(p.367). A análise do mecanismo psíquico não poderia dispensar a análise
correlata da função estudada. Mais um exemplo: procurar saber se a memória
e a atenção são funções ou processos independentes e, sendo ou não, se é
possível identificar correlações entre elas.
Na
psicologia individual, o estudo das correlações consistia em
“hierarquizar” determinadas funções psíquicas, sob o ponto de vista da
importância psicológica. Assegurava Radecki que “a hierarquização das
funções, baseada nas correlações” (p.368), resolveria o problema da
procura pelo ponto central da investigação, eliminando a escolha
arbitrária da maioria dos autores. Diz ele que “determinando as variantes
funcionais e estabelecendo as leis correlativas” (p.369), o psicólogo
estuda os processos psíquicos, em relação à variabilidade que representam
através dos indivíduos.
Ao
enunciar seu conceito de discriminacionismo afetivo, Radecki afirma que
“limitei-me, portanto, a indicar caminhos metódicos de resolução do
problema” (p.369) – o da investigação teórica e prática da psicologia
individual.
O
discriminacionismo afetivo era, pois, um sistema no sentido de que
indicava um modo de ação para investigar e solucionar problemas de
psicologia individual – como diz o próprio Radecki, é um método – o
seu.
Se
atentarmos à definição de discriminacionismo afetivo, veremos que Radecki
privilegia a discriminação e a sensibilidade afetiva como funções ou
processos básicos, pelo fato dessas duas funções estabelecerem um grande
número de correlações com as demais funções ou processos. Pronto!
Deciframos o enigma. A discriminação e a sensibilidade afetiva deveriam
ser os pontos centrais na pesquisa e aplicação de uma psicologia do
caráter – de uma caracterologia. Foram escolhidos por uma questão de
hierarquia metodológica.
Por que discriminação?
Na
esfera da vida intelectual, Radecki privilegia a discriminação como uma
função básica dentre todas as demais funções cognitivas – associação,
memória, juízo, raciocínio etc. Por que?
Se as
sensações são processos receptores e fornecedores de material para a
elaboração psíquica [para Radecki, os processos sensoriais têm um caráter
pré-psíquico] e, a atenção um “lugar” para onde as impressões sensoriais
são conduzidas, é o processo de discriminação que tem por efeito a
formação de unidades psíquicas no indivíduo – “a unidade é o que se
discrimina como unidade” (Radecki, 1928-29, p.68).
Se é por
meio das sensações que o indivíduo recebe as impressões, é por intermédio
da discriminação que ele “transforma as impressões recebidas em conteúdos
intelectuais próprios” (p.69). A discriminação, portanto, depende
exclusivamente do indivíduo que discrimina – é o processo que representa a
função, cujo efeito “decide o caráter da mentalidade intelectual de cada
indivíduo” (p.68).
A
discriminação é um mecanismo imediato da consciência pela função de
delimitar o campo focal, uma vez que “só um conteúdo pode ocupar o foco da
consciência em um determinado momento” (p.70). Como o conteúdo
discriminado preenche completamente o foco da consciência, os demais
conteúdos “recuam para a franja” (p.71).
Diante
dessa síntese, formada na consciência do indivíduo pelo processo de
discriminação, parece claro que associação, memória, juízo e raciocínio
tornam-se funções elaboradoras secundárias da vida intelectual. Afinal, só
é possível associar, memorizar, ajuizar e raciocinar sobre conteúdos
discriminados – presentes no campo da consciência.
Junto a
recognição, apercepção e abstração, a discriminação é definida por Radecki
enquanto uma função elaboradora primária da vida intelectual.
A
consciência “de que o estado vivido não nos é estranho” (p.73) é atribuída
por Radecki ao processo de recognição. A recognição desenvolve-se pela
experiência e está acompanhada dos processos afetivos. Como serve de base
à muitos fenômenos mnemônicos, está intimamente ligada à noção de
personalidade.
A
discriminação e a recognição, “complementando-se mutuamente durante a
corrente ininterrupta de nossa consciência, decidem o preenchimento do
foco a todo momento, elaborando as unidades psíquicas sucessivas” (p.76).
Essa complementaridade determina a formação das representações, que
expressam a realidade externa mediante os processos da consciência. Uma
representação, diz Radecki, “é uma série de conteúdos focais, limitados em
cada momento pela discriminação, e reconhecidos pela recognição” (p.82).
A
abstração e a apercepção, junto à discriminação, “representam três lados
do mesmo fenômeno da consciência imediata, que constitui a primeira
elaboração das impressões sensoriais atuais ou passadas” (p.72).
A
abstração diz respeito ao processo de saturação, pela consciência, “dos
conteúdos abstraídos positivamente, em comparação com os conteúdos
abstraídos negativamente” (p.71). O que é isso? A função de abstrair tem
por finalidade “filtrar” o conteúdo que é “trazido” à consciência. Dessa
forma, os conteúdos abstraídos positivamente são dotados de maior
saturação, e compõem o limite focal do fenômeno discriminado. Os conteúdos
abstraídos negativamente são dotados de menor saturação e, assim,
repelidos para o segundo plano da consciência (franja).
A
apercepção consiste no ato de por em foco os conteúdos da consciência,
“que um momento antes se achavam fora dela” (p.72). A apercepção,
portanto, é o “ato motor necessário para introduzir no foco o apercebido”
(p.72).
Ora, a
apercepção é um ato motor e a abstração um filtro – dois complementos,
portanto, do processo de discriminação. A recognição é a manutenção
afetiva de uma discriminação original. A representação é uma expressão da
realidade externa mediatizada pela consciência e, portanto, limitada pela
discriminação.
Assim
sendo, mesmo dentre as funções elaboradoras primárias da vida intelectual,
a discriminação é a função básica, primordial, e capaz de estabelecer um
grande número de correlações, podendo ser privilegiada pelo fato de
atender ao critério de hierarquia metodológica proposto por
Radecki.
Por que sensibilidade afetiva?
A
afetividade é, no discriminacionismo afetivo, um adjetivo da
discriminação. A discriminação afetiva, enquanto síntese, é a função a ser
colocada no topo da hierarquia metodológica, quando dos esforços de
pesquisa e aplicação de uma psicologia do caráter. Afinal, o indivíduo que
discrimina não tem vida intelectual independente de vida afetiva. A
consciência tem um ingrediente de sensibilidade afetiva – sentimento e
emoção – que ocorre, como já vimos, pelo processo de recognição, que se
desenvolve pela experiência.
Não há,
em relação à afetividade, a proposta de estabelecer uma hierarquia
metodológica para fins de pesquisa, até mesmo porque “a consciência
afetiva deve ser estudada e analisada em um outro nível, diferente do da
consciência intelectual, nível em que não procuramos estabelecer gradações
de clareza” (Radecki, 1928-29, p.218). Isso porque “a consciência afetiva
não tem foco e nem franja” (p.217), diferentemente da consciência
intelectual.
Não
tendo a consciência afetiva foco e franja, “não se pode falar em
representações dos sentimentos, porque a noção de representação está
ligada com sucessivas revivescências focais” (p.224). Não sendo os
sentimentos representáveis, “não se prestam também a uma definição
conceitual” (p.232). O mesmo ocorre com a essência psicológica da emoção
que “é tanto indefinível e irrepresentável como a consciência do prazer e
desprazer” (p.259).
De volta aos problemas de psicologia
individual
Avançando um pouco além do parágrafo em que Radecki anuncia o
discriminacionismo afetivo, na qualidade de seu sistema, fica claro
que a esperada classificação dos caracteres não será encontrada no
Resumo:
não
proponho nenhum um quadro de classificação dos caracteres porque uma tal
proposta sobrepujaria a tarefa de um simples esboço dos problemas da
psicologia individual, entrando na resolução desses problemas e me
obrigaria também a discutir dezenas de classificações propostas por outros
autores. Limitei-me, portanto, a indicar os caminhos metódicos de
resolução do problema sem impor para isso formas rígidas (Radecki,
1928-29, p.369).
Não há
nada de errado no fato de um autor limitar-se a indicar caminhos
metodológicos para a resolução de um problema ou de deixar de propor um
quadro com vistas a uma caracterologia, ainda mais em se tratando de um
Resumo.
É, além
do mais, uma posição adequada para um teórico que afirmava:
a
psicologia individual, na época atual, não possui ainda qualquer sistema
completo totalmente elaborado: ela está em franco período de contribuições
parciais, recolhidas em milhares de trabalhos por centenas de
pesquisadores. Entretanto, a criação de um sistema firme que possa ser
universalmente aceito impõe-se. Sem incluir um tal sistema na metodologia
dos estudos psicológicos, nunca poderão ser suficientemente explorados os
dados da psicologia geral na ação prática (Radecki, 1928-29, p.373).
Para que
o leitor tenha uma idéia da visão de Radecki quanto às possibilidades da
edificação de uma psicologia unificada como ciência e profissão, passarei
a ele a palavra, até mesmo para que se torne melhor conhecido:
a
conciliação e o entendimento da psicologia com várias disciplinas de
aplicação, como psiquiatria, psicotécnica, educação etc., poderão ser
atingidos única e exclusivamente através da psicologia individual. A
separação da psiquiatria, os freqüentes insucessos da psicotécnica, as
dúvidas na metodologia da educação, só poderão ser evitados quando
tentarmos colocar essas disciplinas na base psicológica, tanto da
psicologia geral, como individual. Infelizmente, a onda do “prático” que
invadiu o mundo fez com que, desprezando a ordem metodológica das
aplicações, queiram saltar da pura teoria para a direta aplicação,
omitindo os necessários intermediários científicos. Por causa disso,
sente-se cada vez mais a necessidade de preencher as lacunas criadas pela
aplicação apressada, e este preenchimento realizar-se-á pela elaboração
sistemática dos dados da psicologia individual (Radecki, 1928-29, p.
373-374).
O que
pode haver de mais atual neste momento em que teoria e prática parecem
cada vez mais distanciadas?
A
questão que permanece é a seguinte: se o discriminacionismo afetivo era
apenas uma indicação de caminho metodológico para investigação e
aplicação da psicologia individual, com vistas a criação de uma
caracterologia, por que se tornou polêmico?
O retorno ao mito do discriminacionismo
afetivo
Ao
analisar os trabalhos dos colaboradores de Radecki, Penna (1992) faz
referência à Psicologia da Vida Afetiva de Nilton Campos, até mesmo
por esse livro apresentar-se como um ensaio crítico e analítico baseado no
sistema do discriminacionismo afetivo de Radecki. Assinala Penna (1992)
que, “todavia, nele, efetivamente, não se encontra uma exposição do que
seria o discriminacionismo afetivo como sistema psicológico [e que
espanta] o fato de que em nossa convivência durante dezoito anos com
Nilton Campos jamais dele ouvimos qualquer comentário acerca desse sistema
que, não obstante, lhe deveria ser conhecido” (p.17). Imagina, inclusive,
que o conhecido rompimento de Nilton Campos com Radecki possa ter ocorrido
por conta do discriminacionismo afetivo.
Ao
analisar o trabalho de Antonio de Bulhões Pedreira, outro colaborador de
Radecki, chama a atenção de Penna (1992) o fato dele declarar sua
fundamentação no discriminacionismo afetivo, embora o autor não adiante
“nenhuma informação capaz de nos esclarecer quanto ao seu conteúdo
conceitual” (p.45).
Nos
diversos artigos dos membros da “escola” de Radecki a que tive acesso,
nada encontrei que lembrasse a indicação metodológica denominada
discriminacionismo afetivo, inclusive porque os trabalhos não estão
orientados para uma caracterologia.
Mesmo
Jayme Grabois, assistente de Radecki com quem mantive vários encontros,
nunca se mostrou muito à vontade quando perguntado sobre o
discriminacionismo afetivo, limitando-se a afirmar que não aceitava o
sistema desde que ingressou no laboratório.
Setores
da igreja católica, que em 1932 insurgiram-se contra a proposta de Radecki
criar um Instituto de Psicologia, usaram o discriminacionismo afetivo como
sinônimo de psicologia materialista etc.
Lourenço
Filho, embora reconhecesse os méritos de Radecki, dizia fazê-lo apesar da
insistência com que o mestre polonês repisava os princípios do
discriminacionismo afetivo, embora não julgasse a “doutrina” isenta de
méritos.
Independentemente das motivações dessas pessoas, fica claro que Radecki
empregava, em suas atividades cotidianas, o conceito de discriminacionismo
afetivo muito além dos limites que encontramos no Resumo.
Certamente fazia propaganda do conceito e parece não ter dúvida na
suspeita levantada por Jacó-Vilela (2000), de que havia um autoritarismo
de Radecki traduzido “na obrigação de seus colaboradores inscreverem”
(p.46) o discriminacionismo em seus trabalhos.
Resta a
hipótese de que havia uma outra dimensão do discriminacionismo afetivo,
sobre a qual até mesmo os ex-assistentes silenciaram.
Vamos
acompanhar Radecki na Argentina e Uruguai - países em que passou a residir
e atuar depois que deixou o Brasil em 1932 - em busca de algumas
respostas.
O discriminacionismo afetivo no Prata
Há
novidades no Prata. O Resumo de Radecki, traduzido para o
castelhano e intitulado de Tratado de Psicologia (resumido),
recebeu um Anexo denominado Posición de la psicologia en el
sistema de las ciencias (Posição da psicologia no sistema das
ciências), inexistente na versão brasileira. No Anexo, com a
erudição e esmerada lógica de costume, Radecki trata de assuntos relativos
aos critérios de cientificidade, classificação das ciências, posição da
psicologia em relação às demais ciências etc. No trato desses assuntos, o
discriminacionismo afetivo entrará novamente em cena, agora com um novo
vulto.
É um
sistema de psicologia geral.
uma
tentativa de organização sistemática de tudo que até agora foi colecionado
como caudal fenomênico da psicologia, tentativa nascida no interior de
pesquisas consecutivas de fenômenos psíquicos os mais variados, tentativa
na qual o autor não ocultou nada de positivo das doutrinas e estudos
monográficos até hoje existentes (Radecki, 1933, p.376).
Isso
começa a fazer sentido. Como Radecki está tratando, agora, de aspectos de
classificação das ciências e da posição da psicologia em relação às
demais, o conceito original de discriminacionismo afetivo, até então
apresentado como um método a ser empregado no campo da psicologia
individual, avançou para um território mais amplo – o da psicologia geral.
Faz também sentido a configuração de sua psicologia geral na arquitetura
do Resumo – psicologia da vida intelectual, psicologia da vida
afetiva e psicologia da vida ativa - cada qual dividida em funções ou
processos psíquicos inerentes a cada uma dessas “vidas”, contendo os
conceitos dos mais diversos teóricos relativos a cada função, finalizando,
sempre, com a posição de Radecki sobre cada um deles.
O
discriminacionismo afetivo é a proposta de organizar em um único sistema,
tudo que fora produzido até então na psicologia, aproveitando os pontos
passíveis de articulação das teorias, visando a concretização do ideal de
uma psicologia unificada. No campo da psicologia individual, conforme
apresentado no Brasil, o discriminacionismo afetivo é a forma de evitar
que a classificação caracterológica fique por conta dos desentendimentos
arbitrários dos diferentes autores. Agora, no campo da psicologia geral, o
discriminacionismo afetivo é a forma de evitar que as doutrinas
psicológicas, pela fragmentação, impeçam a constituição de uma unicidade
científica. O discriminacionismo afetivo é o sistema que “tenta”
viabilizar a unicidade.
Será
isso? Vejamos!
A
psicologia geral dos anos 30 do século passado representava, de acordo com
Radecki, “uma variabilidade profunda”. Essa variabilidade fazia com que os
psicólogos não adotassem um sistema geral e apreciassem o quadro dessa
ciência “como um conjunto de pequenas correntes (...) que não se fundiram,
todavia, em um leito comum” (1933, p.375).
Uma
constatação que se mostra verdadeira até hoje – “a psicologia não cultiva
nenhum um sistema universalmente aceito e consagrado”, sendo esse o motivo
pelo qual “a evolução interna da psicologia difere muito da evolução de
outras ciências, como por exemplo, a química” (p.375). Enquanto nas demais
ciências
os
estudos particulares ou trabalhos monográficos as completam, na psicologia
ocorre o fenômeno oposto: cada trabalho particular ou monográfico provoca
interpretações doutrinárias muito adiantadas, que se apresentam como
pretensões de chave sistematizadora para o restante caudal da ciência
(Radecki, 1933, p.375).
Vamos
acompanhar Radecki analisando as “doutrinas” de seu tempo, pelas suas
próprias palavras:
o
behaviorismo de Watson e outros autores americanos, o formismo proposto
por Köhler, Koffka e Wertheimer, o eidetismo estudado por Jaensch e seus
adeptos, a psicanálise de Freud e seus numerosos partidários ortodoxos ou
rebeldes, todas essas correntes – que na realidade não são mais que
doutrinas, nascidas no fundo da observação parcial ou das restrições
metodológicas – aspiram impor à totalidade da ciência, “novos” pontos de
vista gerais, declarando sempre que a verdade de suas doutrinas deve fazer
uma “revolução” completa em toda a psicologia, subordinando tudo o que não
estudam ao que conhecem e, arbitrariamente, elevam ao primeiro plano da
importância científica (Radecki, 1933, p.375).
Não
poupa também os tratados de psicologia de autoria coletiva de sua época
que, pretendendo manter uma “certa imparcialidade”, transformam-se numa
“pura coleção de trabalhos sobre vários domínios da vida psíquica, sem
nexo interno e até com contradições e confusões metodológicas”,
simplesmente por falta de uma “sistematização interna”. Quando são
tratados de psicologia produzidos por um único autor, “enfocam reduzido
número de problemas, deixando em silêncio os domínios funcionais que o
autor não selecionou como objeto de sua preocupação”, o que faz com que
tais trabalhos se transformem “em exposição direta do partidarismo ou do
doutrinarismo do autor”. (p.375).
As
“relações primordiais” da psicologia com as demais ciências, pelo prisma
do discriminacionismo afetivo, nasceram no terreno do objeto e do método.
Sendo o “fenômeno psíquico” o objeto da psicologia, pertencendo portanto
ao grupo dos “fenômenos vitais” (de onde psicologia da “vida” intelectual,
afetiva e ativa), “coloca esta ciência no conjunto das disciplinas
biológicas, subordinadas diretamente à biologia geral” (p.376).
No
terreno do método, o emprego do empirismo e do racionalismo, enquanto
abordagens de trabalho, fez com que “em certos pontos, a psicologia não
emancipasse suficientemente seus estudos da influência da filosofia e das
ciências formais: da lógica e da matemática” (p.379). Essa influência
exigia cuidados pois
um
sistema verdadeiramente psicológico, isto é, baseado nas premissas
sistemáticas de origem exclusivamente psicológica, ainda que interpretando
os dados psíquicos através de certas categorias filosóficas, lógicas ou
matemáticas, nunca irá subordinar seu objeto de estudo a essas ciências;
nunca colocará a psicologia na posição de ser parte da filosofia, lógica
ou matemática (Radecki, 1933, p.379).
A vida
psíquica, diz Radecki, “não pode e não deve ser reduzida a expressões de
uma forma lógica ou filosófica” (p.379), pois tinha uma evolução mais rica
do que as ciências formais poderiam conceber.
Para
evitar a confusão metodológica do logicismo e do psicologismo, o
discriminacionismo afetivo, enquanto sistema psicológico, procura
orientar,
uma
rigorosa distinção, cuidando de não introduzir contradições nas
interpretações parciais dos vários domínios psíquicos, não satisfazendo-se
em evitar contradições lógicas, mas cuidando, sobretudo, da
compatibilidade fenomenológica de suas interpretações parciais. A harmonia
lógica que disso resulta, não é um fim colimado art pour art, mas o
resultado de uma severa seleção dos métodos interpretativos, puramente
psicológicos (Radecki, 1933, p.380).
Nos
métodos interpretativos ou analíticos, diz Radecki, a psicologia segue
“muitos caminhos traçados pela química e pela física” (p.383). Como na
física, a psicologia avançou da estática para o dinamismo, enquanto
atributo dos fenômenos psíquicos vitais:
inicialmente em sua parte afetiva (Freudismo), estendendo-se gradualmente
à interpretação dos processos intelectuais (parcialmente o formismo e
totalmente o discriminacionismo afetivo). A vida psíquica é hoje concebida
mais como um caso específico dos fenômenos energéticos (embora concebidos
metodologicamente como intransformáveis em outras formas de energia), do
que como um determinado conteúdo imaterial estático (Radecki, 1933, p.
383).
A
metodologia da química influenciou a psicologia “sobretudo na busca do
simples, do indivisível, do átomo”. Segundo Radecki, se o sensualismo e o
associacionismo combateram com razão o atomismo psicológico, não
ofereceram todavia “o substituto do átomo objetivo, que surgiu
impropriamente na psicologia, como natural expressão da investigação
analítica do simples” (p.384).
Nesse
sentido, o discriminacionismo afetivo,
evitando
o atomismo, teve o intento de resolver o problema com a introdução da
unidade subjetiva dinâmica que, na interpretação da vida intelectual,
facilita a análise dos fenômenos complexos, sem introduzir o caráter da
objetividade, impróprio dos fenômenos psíquicos (Radecki, 1933, p.384).
As
análises de Radecki prosseguem mas, para meus propósitos, creio que já
temos elementos para concluir a análise que aqui nos propomos.
Desmitificando o discriminacionismo afetivo
Como
vimos, o discriminacionismo afetivo foi uma proposta bem desenvolvida e,
de fato, compreensível. Não posso assegurar que tenha encontrado seus
elementos primordiais e, para dizer como Radecki, realizado as correlações
devidas – mas o que encontrei parece suficiente para afirmar que esse
sistema existiu e tem compreensibilidade.
O que
parece claro é que essa concepção de Radecki não surgiu de uma hora para
outra, depois que deixou o Brasil em 1932. Permeia o Resumo do
início ao fim, o que permite imaginar que Radecki tinha ao menos um esboço
dessa idéia enquanto produzia os textos, ou que foi perceber essa
possibilidade quando se dedicou a tratar da temática da psicologia
individual. Radecki escreveu em 1932, portanto ainda no Brasil, um artigo
intitulado O discriminacionismo afetivo, a ser apresentado no
Congresso Internacional de Psicologia que teria lugar em Copenhague
[infelizmente, nunca tive acesso a esse texto].
Assim
sendo, não há como pensar que o sistema fosse desconhecido de seus
assistentes e de uma parcela significativa de figuras expressivas da
psicologia brasileira de seu tempo.
Não
contendo absurdos lógicos, fica difícil entender os motivos pelos quais,
ainda que apenas para expressar discordâncias, o discriminacionismo
afetivo não tenha sido, naquele tempo, motivo de discussões de natureza
tipicamente intelectual.
Que
Radecki não realizou o discriminacionismo afetivo, ainda que na condição
de uma tentativa de organização sistemática, parece não restar
dúvida. A ordenação de dados e teorias que pretendia unificar não foi
efetivada. O elenco de pressupostos, definições e métodos de seu sistema,
ainda que explicitados, ficaram devendo uma finalização, principalmente
quando resolveu ampliar a extensão do discriminacionismo para um universo
mais amplo.
Prova
disso foi o esforço aqui demonstrado para localizar o conceito dentro de
publicações, bem como a temerária aventura de deduzir seu alcance a partir
de situações nem sempre muito definidas. Creio que, apenas pela leitura de
trechos transcritos de Radecki, deve ter o leitor percebido que a ele não
faltavam condições para teorizar e escrever. Fica a impressão que, na
análise da relação da psicologia com as demais ciências, o termo
discriminacionismo afetivo extrapolou os limites de ser um método com
vistas a uma psicologia do caráter, embora a idéia central de criar uma
unicidade teórica, metodológica e prática para a psicologia, estivesse
presente na publicação brasileira.
Como a
história da psicologia, diferentemente da própria ciência psicológica, tem
a propriedade de ser acumulativa, pretende-se que este artigo sirva como
abertura para que outro pesquisador, mais capacitado para lidar com
teorias, sistemas, metasistemas etc., encontre na obra de Radecki um novo
significado. Talvez o discriminacionismo afetivo tenha uma importância que
até agora nenhum de nós foi capaz de descobrir. Talvez!
Independentemente dessa possibilidade, eu, que tenho Radecki e a
experiência do Laboratório de Psicologia da Colônia de Psicopatas em
Engenho de Dentro muito bem definidos no meu campo focal afetivo, continuo
com a avaliação que tinha há 21 anos:
Um homem
intelectualmente bem formado, culto e inteligente, por motivos ainda
desconhecidos, atravessa o Atlântico em companhia de sua mulher (Halina
Radecka), buscando edificar uma nova vida. Chega a um país ao sul da
América do Sul, nos anos 20 do século passado, onde a psicologia é ainda
algo de novo que acontece na “metrópole”. Às custas de seu esforço
pessoal, tendo por retaguarda um respeitável currículo, vai conquistando
seus espaços na condição de professor, diretor de laboratório de
psicologia experimental, chefe de equipe, palestrante, pesquisador e
autor. Um estrangeiro, com hábitos extravagantes, insistindo que a
formação teórica e metodológica deveria preceder à aplicação prática da
psicologia diante de um público que ansiava em aplicar; empreendedor o
bastante para tentar criar um Instituto de Psicologia quando psicologia
era somente disciplina de Escola Normal; e que ainda dizia ser autor de um
sistema psicológico próprio, certamente encontraria problemas. Disputas
geradas por interesses e vaidade não é invenção recente.
Como
nunca ouvi ou li qualquer crítica a Radecki, que não fosse em torno do
discriminacionismo afetivo, sou levado a crer que a insistente propaganda
de tal sistema foi a razão maior de suas dificuldades. Não duvido que
“...a criação de um sistema firme que possa ser universalmente
aceito impõe-se” (Radecki, 1928-29, p.373), a que já nos referimos em
outro contexto, tivesse, no Brasil, a pretensão de ter o
discriminacionismo afetivo como sinônimo.
Se é
verdade que as teorias não são verdadeiras e nem falsas, mas férteis ou
estéreis, o discriminacionismo afetivo mostrou-se estéril, não sendo capaz
nem mesmo de convencer aos assistentes de Radecki, ficando no
esquecimento. Seus principais assistentes escolheram outros caminhos:
Nilton Campos o da fenomenologia e Jayme Grabois o da psicanálise.
Isso não
tira os méritos de Radecki. Ainda considero, vinte e um anos depois da
publicação de meu primeiro trabalho a seu respeito, que Radecki foi, em
sua época, uma das figuras mais expressivas da história da psicologia
neste país.
De
qualquer forma, como um sistema unificado de psicologia continua por se
fazer, Radecki nos deixou também este legado – o discriminacionismo
afetivo como um indicativo dessa possibilidade.
Referências bibliográficas
Centofanti, R. (1982). Radecki e a psicologia no Brasil. Psicologia:
Ciência e Profissão, 3 (1), 2-50.
Jacó-Vilela, A.M. (2000). Psicólogos estrangeiros no Brasil. Cadernos
IPUB, VI (18), 7-52.
Penna, A.G. (1992). História da psicologia no Rio de Janeiro.
Rio de Janeiro: Imago.
Radecki, W. (1928-29).
Resumo do curso de psicologia.
Rio de Janeiro: Imprensa Militar.
Radecki,
W. (1933). Tratado de psicología (resumido). Buenos Aires: Casa
Editora Jocobo Peuser.