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A devoção a
Nossa Senhora de Nazareth a partir da elaboração da experiência
ontológica de moradores de uma comunidade tradicional
The devotion to Our Lady of Nazareth considered the ontological
elaboration of a traditional community’s people
Renata
Amaral Araújo
Universidade de São Paulo
Miguel
Mahfoud
Universidade Federal de Minas Gerais
Brasil
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Resumo
Nosso
objetivo geral é verificar como a figura religiosa de Nossa
Senhora de Nazareth, padroeira de Morro Vermelho (MG/Brasil) faz
parte da elaboração da experiência ontológica de seus moradores.
Utilizamos o conceito de pessoa, enfatizando como a dimensão
pessoal e a experiência religiosa são apreendidas no
mundo-da-vida, contexto intersubjetivo. Empregando a metodologia
fenomenológica, apresentamos entrevistas com 3 sujeitos,
ordenadas em 4 eixos de análise: entrada no mundo, surpresa
essencial, concepção do Outro, concepção de si. Os resultados
indicam que a partir de um tema fundante elaborado pelos
sujeitos entrevistados – fé, graça e amor –
pode-se chegar à experiência religiosa/devocional, configurada
pela convivência comunitária, através do impacto com fatos
excepcionais dentro do cotidiano identificado com as
características sagradas e humanas de Maria de Nazareth.
Concluímos que se relacionar com Nossa Senhora de Nazareth
através dos acontecimentos e da história concreta são sinal de
sua presença e oportunidade de relacionamento com Ela.
Palavras-Chave:
psicologia social, cultura popular, psicologia e religião,
experiência ontológica, fenomenologia. |
Abstract
The aim was to verify how the religious figure of Our Lady of
Nazareth, Patroness of Morro Vermelho (MG/Brazil), is part of
the elaboration of the ontological experience of its
inhabitants. We used the concept of person, emphasizing how the
personal dimension and the religious experience are apprehended
in the world-of-life, an inter-subjective context. Based on
phenomenological methodology, interviews with three subjects are
presented, ordered in four analytical focuses: entrance into the
world, essential surprise, conception of the Other, conception
of self. Results indicate that, starting from themes elaborated
by the subjects that were interviewed - faith, grace, love - it
is possible to get to the devotional/religious experience,
configured by living in community, through the impact with
exceptional facts within daily life, identified with sacred and
human characteristics of Mary of Nazareth. It is through
happenings and facts of history that a relationship with Our
Lady is made possible.
Keywords:
social psychology, popular culture, psychology and religion,
ontological experience, phenomenology. |
1) Introdução
Ao examinar
manifestações culturais características do meio popular podemos
identificar como são elaboradas as experiências de sujeitos de uma
determinada comunidade, os significados compartilhados dentro de um
contexto específico, a forma como um conhecimento é transmitido, a maneira
como as pessoas se organizam em função do que receberam com a finalidade
de manter viva a tradição.
Nas
comunidades tradicionais, toda organização social gira em torno de um
centro, normalmente religioso (Berger, Berger e Kellner, 1979). Em Morro
Vermelho (Caeté / MG), comunidade rural com cerca de 800 habitantes,
localizada a 80 quilômetros de Belo Horizonte, a centralidade das
experiências está na figura religiosa de Nossa Senhora de Nazareth, marco
da vida coletiva e pessoal dos moradores e ex-moradores dessa comunidade.
A Padroeira do vilarejo é o centro religioso, cultural, econômico, social
e pessoal. A festa de Nossa Senhora de Nazareth, mantida há quase 300
anos, é o momento mais evidente de como Ela faz parte dos significados
compartilhados e de como o empenho dos sujeitos na festa se deve àquela
devoção; de como Ela, sendo uma presença provocativa e mobilizadora para
os moradores, possibilita o surgimento de um sujeito ativo socialmente
(Alves e Mahfoud, 2001 e 2001a; Araújo e Mahfoud, 2000, 2001, 2002 e
2002a; Campos e Mahfoud, 1999 e 2000; Costa e Mahfoud, 2001; Mahfoud,
1999, 2001a, 2001b e 2002; Mahfoud e Drummond, 1999; Mahfoud e Almeida,
1998; Mahfoud e Ribeiro, 1998, 1999 e 1999a; Oliveira e Mahfoud, 2000).
Tendo em vista
esse contexto vivido de maneira compartilhada, emergiu uma pergunta que
aludia ao lugar dessa presença do sagrado, a Padroeira da comunidade, na
elaboração da experiência que fundamenta a existência dos moradores: a
elaboração da experiência ontológica.
Esse campo de
pesquisa, já nos primeiros contatos com a comunidade de Morro Vermelho,
nos desconcertava – e ainda desconcerta –, por exigir uma postura
intelectual mais aberta diante daquela maneira de organizar a vida
coletiva e pessoal que contrastava com aquela na qual estamos inseridos.
Nesse confronto cultural entre pesquisador e pesquisado, intensificou-se
ainda mais o interesse em conhecer as formas pelas quais a Padroeira
estaria fazendo parte da concepção que os moradores têm de si mesmos. A
partir daí, poderíamos chegar a explicitar como estão sendo elaborados os
conteúdos oferecidos pelo contexto cultural de Morro Vermelho,
marcadamente cristão.
Assim, estabelecemos
como nosso
objetivo geral: verificar
como a figura religiosa de Nossa Senhora de Nazareth, centro da vida
cultural da comunidade rural de Morro Vermelho, faz parte da elaboração da
experiência ontológica dos moradores desse vilarejo; e como nossos
objetivos específicos: a) identificar e descrever a experiência
de surpresa ao estar diante do sagrado; b) compreender quem é essa figura
religiosa para os moradores dessa comunidade rural; c) apreender como a
concepção de si e do mundo emerge na vida desses moradores marcada pela
devoção à Padroeira.
O presente artigo
refere-se a uma investigação que faz parte de um percurso, diríamos de uma
história, que fizemos e fazemos com pessoas concretas que, ao longo do
tempo, têm nos ajudado a entender que a pesquisa constitui-se no encontro
com algo inesperado, na comunicação de respostas surpreendentes, em um
trabalho coletivo.
2) Referencial
Teórico-metodológico
Realizamos uma
demarcação teórico-metodológica que nos possibilitou melhor compreender a
emergência desses modos singulares de viver dentro da convivência
comunitária tradicional. Utilizamos o conceito de pessoa,
explicitando sua definição e a dinâmica na qual a pessoa emerge, em ação.
Em um segundo momento, examinamos como a dimensão pessoal pode ser
compreendida dentro de um contexto de vida compartilhada, comunitária e
social; para isso, utilizamos o conceito de mundo-da-vida. Ao
demonstrar, teoricamente, a possibilidade de uma manifestação da pessoa
associada ao contexto coletivo, passamos para uma compreensão mais
propriamente psicológica, em que buscamos explicitar a elaboração da
experiência ontológica como forma de expressão de modos criativos com
os quais o sujeito pode se instalar no mundo, estando vinculado a um
contexto cultural. Em seguida, introduzimos o tema da dimensão
religiosa assim como vivida e experienciada, identificando
características próprias do homem religioso. Nesse tópico, ainda,
apresentamos um breve panorama acerca da devoção mariana e, mais
especificamente, a Nossa Senhora de Nazareth.
O conceito de pessoa
A pergunta
relacionada ao conceito de homem é um grande desafio para nós, muito
embora não nos encontremos no campo filosófico. Quem é o homem? Tal
indagação tornou-se importante para esta investigação sobre a elaboração
da concepção de si, mais especificamente sobre a elaboração da experiência
ontológica, pertinente ao campo psicológico quando se busca captar as
estruturas de significado dessa elaboração que compõe um campo pessoal.
A pergunta pelo
“quem” apresenta uma perspectiva específica, uma vez que o homem não é
algo, mas alguém. Com a pergunta “Mas quem é esse?” nos
maravilhamos com o fato de que “alguém” que nos escapa por ter uma vida
independente da nossa: seus desejos, sentimentos, decisões serão
irredutíveis a quaisquer explicações estruturalmente estáticas. Ele passa
a existir dentro de uma história com um pai, uma mãe, antepassados e tem,
ao mesmo tempo, algo extraordinariamente novo e inovador que não se atém à
sua árvore genealógica. Torna-se, portanto, fonte contínua de conhecimento
(Marías, 1994 e 2000).
Ricoeur
(1996) compreende que no centro de uma atitude está a pessoa. No
posicionamento surge a pessoa, possibilitando a ela dizer quem é (ainda
que diante de uma realidade em crise e intolerável).
Mounier (1955) nos
ajuda a compreender que o homem pessoal está em constante processo de
descobrimento e enriquecimento acerca das novidades que emergem e que
acabam constituindo o seu eu interior. A personalização se dá por meio de
três momentos fundamentais: a exteriorização, a interiorização e a
superação de possíveis formas de despersonalização. Segundo Mounier (1955)
e Blondel (1996), não se pode eliminar da ação o sujeito que a realiza, e
o momento da decisão é, precisamente, a prova de que uma pessoa emerge,
uma vez que se trata de sua resposta às provocações que recebe da
realidade. Por meio da ação, o sujeito descobre que há uma potencialidade
a ser desenvolvida, ou melhor, o sujeito descobre que a sua atividade é
criadora.
Pessoa e
alteridade: a vida compartilhada
Segundo Blondel
(1996), Stein (cf. Ales Bello, 2000) e Schutz (cf. Wagner, 1979) o viver
plenamente a vida individual leva o sujeito a expandir-se, a abrir-se,
pois, ao deparar com o fato de que a própria vida é inconsistente,
buscam-se outras forças para seus fins, busca-se fora de si um
complemento. É no encontro com o outro que emerge a pessoa como uma fonte
inesgotável de conhecimento. O outro traz à tona formas e maneiras novas
que antes se desconhecia em si mesmo.
Para Edith Stein e
Alfred Schutz posicionar-se significa agir socialmente segundo afirmação
de algo valoroso, disponibilizando-se em relação ao outro, afetando o
outro e afetando-se de acordo com a posição assumida, constituindo, assim,
relacionamentos interpessoais recíprocos. O conceito de mundo-da-vida
enfatiza que um eu não pode ser entendido sem o mundo que o circunda, e
vice-versa. Assim, o termo se refere ao mundo intersubjetivo
e compartilhado: um contexto histórico-sócio-cultural precede a existência
do sujeito e tem continuidade além dele, e ali há um “relacionamento de
Nós” que mantém a maneira como cada um vive a experiência.
Pessoa e cultura: o espaço do ser criativo
Segundo Ales Bello
(1998), para enfrentarmos a questão do significado da cultura, é essencial
levar em consideração que há um sujeito que está no mundo, para o qual ele
se volta, e que é considerado por ele e para ele. É por meio dessa relação
entre o sujeito e o mundo que se torna possível captar formas subjetivas
de perceber os objetos que estão presentes no mundo que, em si, são
objetivos.
A cultura pode ser
apreendida sob a ótica do mundo-da-vida. Ela coincide com as expressões
humanas e personalizadas, e podem ser compreendidas dentro de uma
perspectiva do próprio sujeito em seu processo reflexivo (Ales Bello,
2000). Não faz sentido em falar de mundo-da-vida sem se levar em
consideração que há alguém que emite juízos segundo aquilo que experimenta
de seu mundo circunstante e que, certamente, esses juízos só são possíveis
porque esse sujeito recebe os conteúdos que julga dentro de um horizonte
que lhe é transcendente. E ela afirma: “Todas as tomadas de posição
teóricas conexas com este mundo pressupõem sempre uma ligação com uma
tradição particular” (p. 40). É essencial, portanto, considerar os termos
tradição, história e cultura. Ales Bello indica que para Husserl
o conceito de
cultura, na verdade, conecta-se com a vida humana na sua totalidade, tanto
individual como também comunitária, em cujo interior se desenvolve o que é
individual. Portanto, é a atividade prática do ser humano que procede
através de cada ação particular. (Idem, p. 41)
Segundo a autora,
tal compreensão do termo cultura não pode ser apreendido sem se considerar
a forma pela qual o sujeito manipula a realidade, sendo orientado por um
projeto que é pessoal e que, certamente, em um contexto amplo, torna-se
coletivo, compartilhado. Essa produção humana assume uma forma concreta na
criação de objetos sob a influência de uma mentalidade em comum e, sem
dúvida, a sua finalidade corresponde às necessidades do mundo
compartilhado, que, entretanto, traz em si a marca pessoal daquele que a
cria. Segundo Ales Bello (Idem), Husserl denominou esse grau de produção
humana de produções pré-científicas.
A cultura pode ser
apreendida sob a ótica do mundo-da-vida. Ela coincide com as expressões
humanas e personalizadas, que podem ser compreendidas dentro de uma
perspectiva na qual o sujeito a vive de forma natural ou pré-científica e
que irá se constituir em um modo reflexivo e cultural. A partir de uma
atitude meramente natural na qual se vivencia a apreensão da realidade
pré-dada passa-se à forma cultural que se caracteriza pelo protagonismo
humano expresso por suas obras.
Pessoa e a elaboração da experiência ontológica
Por meio do
conceito de mundo-da-vida, discutimos como é possível apreender o sujeito
criativo ou o ser de cultura. Vejamos agora como se torna possível,
através da elaboração de um certo tipo de experiência, a ontológica,
apreendermos esse homem como pessoa ou como um sujeito criativo capaz de
se relacionar de maneira personalizada, constituindo cultura.
Safra (1999) ajuda-nos a compreender que, as possibilidades humanas de vir
a ser em uma relação intersubjetiva instaura um espaço de criatividade do
sujeito que o torna singular pertencendo ao âmbito coletivo. Segundo o
autor, é partindo de um encontro humano que se viabilizam experiências em
que a pessoa tem a oportunidade de expressar-se como um ser único e
irrepetível, carregando – e trazendo para o desenvolvimento da sua
personalização – aspectos históricos e sociais, nos quais se encontra
ambientado.
Safra está
discutindo aqui o desenvolvimento do self do ponto de vista
clínico, que para nós é relevante enquanto aflorar da pessoa numa
perspectiva inter-relacional, enquanto descrição das condições de
estabelecimento de um self coincidente com a impressão da marca de
um sujeito singular na história compartilhada, em que o sujeito está em
constante relação com a cultura à qual pertence. Ele utiliza os recursos
que lhes são transmitidos desde criança, na relação com os pais e por
eles, ao longo de seu desenvolvimento, como espaços nos quais pode criar
continuamente o mundo.
Para Safra (2000 e
2001), cada pessoa, única, realiza um certo tipo de elaboração acerca de
um enigma que funda a sua existência e que se relaciona com a maneira como
se coloca e se concebe no mundo. Essa dinâmica emerge do encontro, no
presente, com o passado, configurando entradas no mundo diferenciadas para
cada ser humano, sempre provocando novos anseios, levando-o a elaborar uma
concepção sobre o sentido último. Esse processo de singularização acontece
em duas vertentes: 1) a elaboração de sua experiência ontológica, a partir
da pergunta “quem sou, quem somos”; 2) elaboração de sua experiência
teológica própria, relacionada à pergunta sobre o sagrado presente no
mundo. As condições necessárias para o acontecer humano, de maneira
singularizada, estão ligadas ao aparentamento com os ancestrais, com os
seus descendentes, com o mundo natural, com as coisas, e ao aparentamento
sócio-cultural.
Um ser humano não
vive sem um Outro. A dimensão inter-relacional possibilita o aflorar de
três modalidades inter-relacionadas de existência:
a) Em si: é a
experiência existencial que coloca o sujeito numa condição de solidão
essencial, na qual se faz a experiência da vontade, denominada como a
coragem de ser, que coloca a pessoa em ação, em direção a um Outro. Essa
modalidade existencial é sustentada pela presença desse Outro que sugere,
portanto, a segunda modalidade existencial.
b) Para si: o
Outro se torna um não eu familiar, totalmente diverso e ao mesmo
tempo para mim. Conhecer esse estranho familiar é uma experiência
amparada pela terceira modalidade existencial.
c) Consigo:
Estar diante do Outro é estar consigo, torna a existência
totalizante. Ser afetado pela presença do Outro permite compreender a
distinção entre o eu e o Outro familiar e para mim, potencializando
a experiência do em si.
No anseio pelo
encontro com o Outro a pessoa guarda toda a herança dos ancestrais,
insere-se na história da humanidade rompendo-a e colocando algo de
absolutamente novo: reinicia e mantém a história, através da sua ação
criativa.
Pessoa e elaboração da experiência religiosa
Passemos a um tipo
de experiência cultural muito presente na vida de sociedades tradicionais:
a religiosidade. Certamente, tal dimensão encontra-se presente, de formas
diversificadas, em sociedades consideradas modernas. No entanto,
interessa-nos, sobretudo, as formas de expressão que ela alcança nas
primeiras, em virtude essencialmente do contexto prevalentemente
tradicional no qual se encontram os nossos entrevistados.
Segundo Berger (1979), ser humano significa viver em uma realidade que
está ordenada e que dá sentido à vida, que é comunicada segundo a forma
humana fundamental em que se expressa a existência: o mundo-da-vida. O
autor, ao realizar uma comparação entre as sociedades tradicionais e
modernas, levando em consideração a constituição própria do mundo-da-vida
de cada uma delas, verifica que uma diferenciação básica é que nas
sociedades tradicionais há um pólo que é integrador de todos os aspectos
da vida cotidiana. Já nas sociedades modernas, em virtude da pluralização
dos mundos, também pólos se multiplicam e encontram-se presentes em cada
setor da vida, o que leva a uma vida mais fragmentada.
Sin embargo, en comparación con las sociedades modernas, las sociedades
primitivas dieron señales de un elevado grado de integración. Fueran
cuales fueran las diferencias entre los diversos sectores de la vida
social, éstos se manteníam unidos en un orden integrador de significación
que los incluía a todos. Este orden integrador solía ser religioso. Para
el individuo, esto significaba sencillamente que unos mismos símbolos
integradores impregnabam los diversos sectores de su vida diaria. En la
familia, en el trabajo, en la actividad política o en la participación en
fiestas y ceremonias, el individuo estaba siempre en el mismo “mundo”.
(p. 64)
Esse pólo
religioso integrador torna-se o nosso foco de atenção em uma sociedade
tipicamente tradicional: o tipo de vivência humana que se realiza na
sociedade que possui esse centro, os símbolos oferecidos culturalmente
orientando e organizando a vida social dos sujeitos.
Do ponto de vista existencial, o
Homo religiosus
possui, uma estrutura aberta, não se fecha somente no seu momento humano.
Sua abertura é para o mundo, para conhecê-lo e, assim, conhecer o Ser, o
Criador.
(Ales Bello, 1998; Eliade, 2001; van der Leeuw, 1964)
Nesse
sentido, a experiência religiosa caracteriza-se por ser um relacionamento
com o mistério admitido e reconhecido dentro da vida presente na figura
que porta um significado totalizante. “Religiosidade é a consciência
vivida da relação de dependência do Mistério-sentido-de-tudo, do Mistério
como significado global da realidade, do Absoluto; é dimensão de uma
experiência portadora de um significado exauriente” (Mahfoud, 1997, p.
26).
Nossa Senhora de Nazareth
Segundo Ales Bello (2001), Maria é considerada, na tradição ocidental, a
imagem de humanidade, e uma condutora entre o divino e o humano.
Quanto a Nossa Senhora de Nazareth, segundo a história tradicional, em
1179, em terras portuguesas, Dom Fuas Roupinho cavalgava e caçava um veado
no alto de um rochedo onde se encontrava uma sua venerada imagem desde o
século VIII, quando o animal lança-se do penhasco ao mar. Embalado e
incapacitado de frear seu animal a tempo, clama por ela, que paralisou seu
cavalo a poucos centímetros de se consumar o acidente. Agradeceu aquele
milagre erguendo ali a “Capela da Memória” (Coelho Dias, 1997).
A festa de Nossa Senhora de Nazareth em Morro Vermelho se dá em três dias
intensamente vividos pelos moradores que a preparam durante todo o ano.
Fica evidente o empenho e a devoção à Padroeira vividos de forma concreta,
com grande volume de trabalho. São dias em que muitos familiares que não
mais moram ali por diversos motivos (trabalho, estudo) retornam fielmente
para encontrar a Padroeira. (Mahfoud e Ribeiro, 1998, 1999, 199a)
3) Procedimentos metodológicos
Depois de alguns
contatos preliminares, foi possível identificar os sujeitos a serem
entrevistados. Para isso utilizamos o procedimento da amostragem
intencional
(1).
O critério para a
escolha dos sujeitos foi o empenho na festa de Nossa Senhora de Nazareth,
uma vez que o compromisso com determinada responsabilidade na festa
implica reconhecimento e re-significação da tarefa recebida e pela qual se
é responsável. Tal critério permitiu evidenciar um caráter, ao mesmo
tempo, pessoal e coletivo das experiências e assegurar-nos que o sujeito
escolhido tivesse uma devoção empenhada à Padroeira do vilarejo, havendo
também reconhecimento por parte da comunidade de uma devoção pessoal
significativa para eles. Assim, realizamos entrevistas durante a
preparação e realização da festa de Nossa Senhora de Nazareth com três
sujeitos, de ambos os sexos, adultos.
As principais
técnicas que utilizamos para o processo de coleta de dados foram:
entrevistas semi-estruturadas e observação etnográfica.
Com as entrevistas
semi-estruturadas
(2),
privilegiamos uma pergunta inicial que nos possibilitasse acompanhar os
sujeitos em sua elaboração segundo os objetivos da pesquisa. Salientamos
que, segundo a perspectiva fenomenológica, buscamos privilegiar a
descrição da experiência e não uma opinião sobre o assunto. Do ponto de
vista da relação pesquisador - pesquisado, a situação de entrevista
consiste exatamente no estabelecimento de uma relação implicada que se
torna condição para a construção do testemunho (Augras, 1997). A pergunta
inicial foi: “Como nasceu a devoção à Nossa Senhora de Nazareth para
você?”. Buscávamos enfocar, de uma forma geral, a maneira pela qual esses
moradores se relacionavam com Nossa Senhora de Nazareth e seguiu os
seguintes objetivos: a) deixar aparecer um certo tipo de elaboração
histórica, singularizada, que nos possibilitasse confrontar as
experiências dos entrevistados acerca do que a Padroeira representa para
eles; b) apreender um certo tipo de elaboração que está relacionada à
maneira pela qual a pessoa concebe a própria origem, o presente e o futuro
dentro da comunidade em que vive, onde o centro cultural é aquela figura
religiosa.
O tipo de relato
privilegiado durante a realização das entrevistas foi o depoimento. Ele se
refere, segundo Queiroz (1988), ao “relato de algo que o informante
presenciou, experimentou, ou de alguma forma conheceu, podendo assim
certificar” (p. 21), preocupando-se essencialmente com a delimitação de
temas segundo o problema formulado anteriormente (Queiroz, 1991).
Nesse sentido, os
depoimentos nos ajudaram a focalizar, durante a realização das
entrevistas, o lugar que a figura religiosa de Nossa Senhora de Nazareth
ocupa na experiência dos moradores de Morro Vermelho, constituindo uma
identidade coletiva e pessoal.
A observação
etnográfica
(3) nos auxiliou na descrição de um sistema de significados
culturais desse determinado grupo, possibilitando observar o sujeito em
seu ambiente natural (Lüdke e André, 1986). A observação etnográfica
propiciou: a) evitar a definição rígida e apriorística de hipóteses; b) um
contato direto com a situação em estudo, estando presente em campo durante
os preparativos e a realização da festa em si; c) realizar entrevistas com
alguns moradores que estavam empenhados diretamente na festa; d) obter uma
razoável quantidade de dados primários - material produzido pelos sujeitos
da comunidade.
3.1) Análise dos
dados: uma leitura fenomenológica
van der Leeuw (1964) e
Amatuzzi (1996, 2001 e 2001a) teorizam sobre o método fenomenológico que
nos interessa como “estudo do vivido, ou da experiência imediata
pré-reflexiva, visando descrever seu significado” (Amatuzzi, 1996, p. 5).
Esses autores indicam uma metodologia rigorosa: atenção às propriedades do
objeto, privilegiando a apreensão das conexões de sentido que se
evidenciam no exame do fenômeno. Esse rigor é fundamentado pela
consciência que é sempre intencional, “consciência de” alguma coisa. Nesse
sentido, está sempre voltada para a realidade, e isso possibilita a
apreensão do sentido, do ser das coisas. O método fenomenológico acompanha
essa dinâmica da consciência, buscando, por meio de uma atitude
fenomenológica, a epoché
(4), entrar em contato com a elaboração
feita pelo próprio sujeito.
O método utilizado para a
análise dos dados foi o fenomenológico (Amatuzzi, 2001a e van der Leeuw,
1964) com o objetivo de apreender um conjunto de significados relatados
nas experiências e a estrutura dessas experiências para se identificar o
lugar típico de Nossa Senhora de Nazareth na elaboração da experiência
ontológica dos moradores de Morro Vermelho. Utilizamos os passos
metodológicos, enumerados por van der Leeuw, para falarmos daquilo que se
mostrava a nós, como fenômeno. Procuramos apreender o vivido dos sujeitos,
evidenciando conexões de sentido, chegando a formular uma experiência-tipo
que capta a essência dentro da diversidade das experiências coletadas
pelas entrevistas.
A primeira etapa
constituiu-se de uma ordenação dos dados em quatro eixos que
possibilitassem a análise referente à experiência de nosso interesse. Isso
correspondeu à delimitação de um plano articulado em um campo que, antes
disso, nos pareceria caótico, no dizer de van der Leeuw (1964). A
delimitação desse campo de experiência a ser analisado foi sugerida pela
própria pergunta a respeito da elaboração da experiência ontológica. Os
quatro eixos são:
a)
Entrada no mundo: descrição da maneira como Nossa Senhora de
Nazareth entra no horizonte de vida de cada um dos sujeitos, a partir do
contexto no qual eles começaram a conceber a presença dessa figura
religiosa em suas vidas.
b)
Surpresa essencial: apreensão da dinâmica essencial de cada um dos
sujeitos entrevistados, focalizando as experiências que envolvem o impacto
com essa figura religiosa e que, de certa maneira, delineiam os conteúdos,
abrindo espaço para o início de um relacionamento com Ela.
c)
Concepção do Outro: abertura para o contato com Nossa Senhora de
Nazareth, pela dinâmica fundamental de cada um dos sujeitos, explicitando
os conteúdos que são introduzidos e levantados por meio do relacionamento
que cada um deles estabelece com a Padroeira, à luz da própria dinâmica
fundamental.
d)
Concepção de Si: explicitação de como esses elementos que emergem
no relacionamento com a Padroeira integram a maneira como os sujeitos
concebem a si mesmos.
Continuando a
cumprir os passos metodológicos propostos por van der Leeuw (1964),
procedemos à leitura e análise dos dados de cada sujeito (já ordenados
segundo os quatro eixos), da seguinte maneira:
1)
Leitura atenta e repetida do conjunto de depoimentos de cada
entrevistado, analisando-os a fim de identificar o tema fundamental de
elaboração pessoal;
2)
Nova leitura, tendo presente o tema fundante e os eixos da
elaboração da experiência ontológica para cada entrevistado;
3)
Estabelecimento de categorias iniciais;
4)
Para o estabelecimento dessas categorias iniciais foi necessário
que nos inseríssemos na perspectiva pessoal apresentada para cada sujeito
entrevistado;
5)
“Inserção entre parênteses”: um cuidado de nos inserirmos na
perspectiva dos sujeitos, sem com isso utilizarmos de nossas convicções
como ponto de partida para a compreensão do que se apresentava a nós;
6)
Elucidação das conexões de sentido;
7)
Identificação da essência das experiências;
8)
Examinar e confrontar nossas compreensões em espaços coletivos –
como o grupo de pesquisa, orientações – bem como com o referencial
teórico-metodológico para a interpretação da experiência vivida, e, a
partir daí, estabelecer um novo confronto entre nossas compreensões e o
conjunto dos dados, para contínua confirmação ou retificação da análise;
9)
Elaboração da experiência-tipo, ou seja, a partir das essências,
compreensão de como Nossa Senhora de Nazareth entra na maneira como um
sujeito-tipo de Morro Vermelho concebe a si mesmo;
10)Reconstrução: a
apreensão do sentido com o qual o vivido se apresenta é alcançada por meio
de uma segunda experiência vivida, reconstruída pelo pesquisador.
4) Resultados
4.1)
Entrevistado: Biló
Biló, como é
conhecido na comunidade de Morro Vermelho, tem 43 anos, e é um dos
responsáveis pela Cavalhada, mais especificamente pela queima dos fogos de
artifício na festa de Nossa Senhora de Nazareth.
4.1.1) Eixo de Análise: Entrada no Mundo
A dinâmica da fé como elemento essencial na
elaboração ontológica de Biló
Inicialmente, é na experiência de acompanhar o pai, de estar junto do pai,
em suas atividades na festa da Padroeira, que ocorre a percepção da
presença de Nossa Senhora de Nazareth na vida de Biló. Vendo outros
trabalhando, ficava sabendo não apenas como as pessoas se dedicavam àquele
trabalho pela fé em Nossa Senhora de Nazareth, mas, principalmente, ficava
sabendo o motivo pelo qual, trabalhando na festa, ia-se “tomando fé” na
Padroeira. Essa maneira de percebê-La se repete na vida adulta, ao se dar
conta de pessoas que vão à festa para pagar uma promessa por causa de um
pedido que tenha alcançado resposta. A dinâmica da fé, fundamentada na
confiança de que o que se pede a Nossa Senhora se alcança, é um aspecto
essencial para ele poder ver as graças que a Padroeira promove.
Nasceu, assim, com
os pais. Papai mexia, eu acompanhando ele, a gente... Ele ia lá pegava um
trem e a gente ia atrás. Então, assim, a gente foi tomando aquela fé,
aquele trem, que junto com ele, mexendo, depois a gente assumiu... vai
assumindo a responsabilidade de festa. A gente já foi ficando, assim, com
mais fé e, assim, nós vão tendo as coisa igual nós tá hoje. Acabou que a
gente, agora, já tomando até responsabilidade de festa.
Papai, quando mexia
com nós, até xingava também. Às vez, tava com um... “oh, ajuda a carregar
os pau aqui, uai, ‘cês agüenta, leva um” – xingando – nós carregando o
trem. A gente pra mexer, falei: “Tô gostando”. Aí já foi passando as coisa
pra nós também. Eu lembro, às vez, ele afastava até do Silvinho, e deixava
a gente ficar, pra poder... Ele falava assim: “ocês têm que aprender; hoje
eu tô mexendo, mais tarde é ocês mesmo”. Então, assim foi tomando a fé,
foi tendo graça em Nossa Senhora, aí mais fé foi dobrando, que eu já tive
muitas. Então, é nisso que a gente vai tendo fé com Ela e com a festa
também. Num pode deixar acabar. E, assim, nós tão aí, tá mexendo com esse
trem aí. É com a fé e é com... mexendo. Minhas filha também; num mexe na
parte de nós que é fogueteiro, mas a mãe dela também já tá pondo elas
também, ensinando elas a trabalhar, mais tarde elas vão mexer. Então,
assim que foi. Então, é nisso que a minha fé se baseia: começou eu vendo
os outro, é os pedido dos outro, pedindo e nisso eu fui só... só sabendo
das coisa que eles tinha fé com Ela. É onde que ‘cê fica sabendo.
Temos a dinâmica da fé marcada pelo processo de conhecimento indireto, por
meio do qual se destaca o processo de aprender e de assumir uma
responsabilidade, possibilitando a Biló começar a intuir a presença da
Padroeira. Ao mesmo tempo, a dinâmica da fé sustentava este
posicionamento: ao aprender uma tarefa, Biló carregava algo precioso sobre
o qual não tinha controle: ver as graças da Padroeira na vida dos outros,
na sua vida e na festa.
Compreendemos que a dinâmica da fé, para Biló, promove uma sustentação
daquilo que ele havia assumido como responsabilidade. É o que Lewis (1979)
chama do valor supremo de fé, já marcadamente religiosa, ou seja, o
reconhecimento de que os próprios esforços não estão ancorados em si
mesmos, mas em algo fora de si: as intervenções da Padroeira.
Podemos compreender, então, que a decisão de Biló em assumir a sua
responsabilidade tinha relação com a continuidade do trabalho que seu pai
realizava, mas, sobretudo, relacionava-se à decisão de preservar trabalhos
que possibilitavam ver as graças de Nossa Senhora de Nazareth.
Com esta inicial exposição da experiência de Biló, podemos apreender que a
dinâmica da fé está presente como um pilar em sua vida, como uma porta que
se abre para a central figura do sagrado em Morro Vermelho: Nossa Senhora
de Nazareth.
É dentro dessa perspectiva
que verificaremos, então, a maneira como Biló se impressiona com essa
figura religiosa e que tipo de experiências emergem desse fato.
4.1.2) Eixo de
Análise: Surpresa Essencial
As experiências que
emergem no impacto com Nossa Senhora de Nazareth
A urgência pelo
significado, ao ver as ações dessas pessoas que recebiam “graças”, na
experiência de Biló, compreende a centelha que acende a sua dimensão de fé
e que o coloca em movimento dirigido à Padroeira, por meio de sua
curiosidade expressa na maneira como observa, desde pequeno, a fé
depositada nEla.
Ocê vai olhando, às
vez, quando eu tava menino aí eu tô olhando, os outro tá só leva um
retrato e agora falo: “Por que que ‘cê só leva retrato?”; “Isso é graça
alcançada”. Falo assim: “graça alcançada, quê isso?”. Aí fiquei pensando,
ele falou comigo assim: “É, os outro, às vez, pede Nossa Senhora uma coisa
e melhora a doença ruim, um trem, aí eles pega, promete trazer um retrato,
se melhorar, pra trazer um retrato e por no pé d’Ela”; “Ah, e tem...”. E
nisso foi. Dia oito eu tô vendo, vinha nego e tudo. Eu ia lá na igreja,
tava aquele mundo de vela acesa, eu tava conversando, ainda perguntei até
uma dona na igreja, falando com meu irmão, então, eu falei assim: “Por que
que ‘cês acende esse bolo de vela aqui?”; “Não, num é nós não, ali cada um
faz um pedido pra Nossa Senhora aí e acende uma vela”; “Aí eu posso
acender uma?”; ela falou assim: “Ó, ocê pede, ocê pede e pode acender uma
vela aí”; mas eu num acendia não. Aí eu acabei indo embora. E nisso eu fui
vendo, fui pensando o quê que era isso e nisso é que foi eu tomando fé,
foi olhando os outro pedindo e foi tomando aquele trem, fui tomando,
então, é nisso que começou.
A experiência de se
impactar com Nossa Senhora de Nazareth, para Biló, ocorre ao ver as graças
que a Padroeira faz na própria vida e na vida de outras pessoas. Uma vez
conhecido o significado do gesto de fé, que passa pelo posicionamento de
outras pessoas frente à Padroeira, Biló começa a estabelecer relações
entre aquela realidade apreendida e a sua própria vida.
A gente vê até hoje,
assim: chega um paga uma promessa, outro nego chega aí andando descalço:
“porque, ah, eu pedi Nossa Senhora isso e se eu melhorasse eu andava essa
rua toda descalça na procissão; então, recebi, Ela fez”. E nisso ocê vai
só aumentando a fé n’Ela com... A gente vai só tendo fé. Só tendo fé na
festa.. Quando Ela... Além de tá fazendo pra gente, a gente tá vendo os
outro também falando, falo assim: “Uai, então, ali é mais que uma festa”.
Eu tenho fé com alguns trem, mas Nossa Senhora de Nazareth eu num sei...
Eu... Tem muito santo, às vez, tem muita Nossa Senhora que tudo é Ela
mesmo, mas eu, pra mim, tem que ser Ela. Eu, pra mim, a devoção minha é
Ela mesma.
A dinâmica do ver e
pensar que pudemos apreender no impacto de Biló em relação à Padroeira,
que denominamos experiência de urgência de significado, emerge como uma
extensão da dimensão humana que chamamos senso religioso. Tal dimensão não
se resume à dinâmica descrita acima, porém, em Biló, verificamos que ela é
suscitada, inicialmente, pela urgência de significado expressa pela
sensação do ver e pela função do pensar. Amatuzzi (2001) nos ajuda a
compreender tal dimensão:
O senso religioso,
ou religiosidade latente, é aquilo que em nós, seres humanos concretos e
históricos, está na base das questões de sentido que apresentamos,
enquanto questões potencialmente radicalizáveis. Estamos supondo que, se
formos fiéis ao movimento de indagação pelo sentido (das coisas, de nossa
vida e de tudo o que existe), deixando-nos conduzir pela busca que ele
contém, acabaremos formulando a pergunta pelo sentido último, mais
radical. O que está por trás de tal indagação, considerada em toda a sua
amplitude possível, é o senso religioso. (pp. 27 e 28)
O autor considera,
ainda, que a dimensão do senso religioso, ao suscitar questões
potencialmente radicalizáveis, possibilita encontro de sentidos, criações
de sentidos ou gera posicionamentos pessoais, assumindo, por sua vez,
alguma forma religiosa. Nessa perspectiva, Amatuzzi também atesta que a
formalização da postura religiosa é variável para cada pessoa, podendo se
conformar em diversas modalidades: desde uma religião sistematizada
externamente até formas não religiosas ou atéias, esta última também
considerada pelo autor como uma posição religiosa.
Porém, vejamos, agora, que
tipo de relacionamento emerge entre Biló e a Padroeira de Morro Vermelho,
levando em consideração a sua dinâmica fundamental: a fé.
4.1.3) Eixo de
Análise: Concepção do Outro
No relacionamento
entre Nossa Senhora de Nazareth e Biló emerge a dimensão espiritual
Para Biló, Nossa Senhora de
Nazareth emerge através da função sensitiva de ver outras pessoas
reconhecendo uma graça alcançada, como já mencionamos anteriormente. Nesse
sentido, ver o reconhecimento dos outros está relacionado com o fato de
vê-La, ou seja, o reconhecimento de outras pessoas coincide com ver a
Padroeira mexendo com elas. Esse ver Nossa Senhora mexendo, por sua vez,
coincide com uma intervenção de Sua parte que traz algum tipo de mudança
benéfica e que evita maiores preocupações diante do curso que a vida toma.
O reconhecimento de
que a Padroeira intervém se dá sob três aspectos: Ela apóia, Ela responde,
pode-se confiar n’Ela. Acontecimentos cotidianos são compreendidos por ele
como um chamado d’Ela mesma para ele se aproximar, para que a sua
necessidade seja respondida e ele apreende que a resposta dEla tem algo de
grande guardado para ele.
A gente começando a
sentir que Nossa Senhora... A gente foi começar entender graça, que até
melhora e aquele negócio, então, fui sentindo aquele trem e a gente foi
crescendo e... Aí eu fui tomando confiança em Nossa Senhora ajudar a
gente. Então, nisso que começou esses trem.
Outro dia qu’eu pedi
Ela na procissão, eu fui na igreja, eu cheguei, eu tava aqui na praça
aqui, eu falei com Silvinho. Silvinho tava até... Falei assim: “Ô
Silvinho, eu vô pedir Nossa Senhora de Nazareth e essa chuva vai estiar”.
Eu fui lá na igreja, aí chegou lá na igreja eu – num tinha ninguém lá não
– cheguei lá na igreja, olhei pra Nossa Senhora assim, falei: “Ô Nossa
Senhora...”, aí conversei com Ela, aí eu senti... Pronto! Olhei Ela d’um
jeito... Foi quando eu abaixei e levantei, vi Ela... Vi Ela como que Ela
mudou a feição, sabe com’é que é? Aí pedi, e senti Ela com a cara...
Parece qu’Ela até riu pra mim. Falei assim: “Ô Silvinho, a chuva vai
estiar”; “Que isso Biló, vai chover, a chuva vai estiar?”. O trem estiou
de um tapa. Silvinho ficou bobo, Silvinho falou comigo assim: “É, bem que
ocê falou”. Aí eu olhei, eu olhei lá pra Nossa Senhora, falou assim:
“Ah...”. Aí nisso eu fiz o pedido e estiou mesmo. Mas, parece que Ela já
fez a... parece que eu senti. Acho que Ela mesma já vem pra mim fazer esse
pedido ouviu minhas prece; é muito trem e eu num sei, alguma coisa...
A maneira como Biló
concretiza o seu relacionamento com o transcendente é o pedido. Percebemos
como nesse gesto emerge o que Frankl (1993) chama de dimensão espiritual
ou noética, que se caracteriza por ser inconsciente e intuitiva.
Primeiramente, o pedido se constitui como ação de tender para algo fora de
si mesmo. Depois, as condições para realizá-lo são a percepção do quão
valioso é para si o relacionamento com a Padroeira, precisando se sentir
próximo a Ela. O autor afirma que, para o homo religiosus, aquilo
para o qual se intende é uma figura que faz parte de um
supra-mundo, tratando-se de uma presença transcendente. Verificamos que a
maneira como Biló concebe o relacionamento com Nossa Senhora de Nazareth
está alicerçado no fato de poder encontrar um sentido (dimensão espiritual
ou noética), propriamente dito, ao utilizar os recursos que são
oferecidos pela tradição cultural específica de Morro Vermelho: a imagem
que se encontra na igreja matriz do vilarejo e todas as manifestações em
torno dela. É nessa perspectiva que emerge em Biló o ser-responsável (Frankl,
1986). Na medida em que responde ao chamado de Nossa Senhora de Nazareth,
mediado pela dinâmica da fé, emerge do pedido, indício de uma presença
transcendente que o chama, uma vida de sentido (uma vez que a resposta a
esse chamado carrega a espera por algo de grande para a sua vida, para a
sua realização pessoal, seja dentro de uma circunstância favorável ou
desfavorável).
Uma coisa: papai
adoeceu, aí viemos aqui, fui lá na igreja, olhei Nossa Senhora de
Nazareth, assim, do mesmo jeito que eu olhei, tava vendo Nossa Senhora de
Nazareth triste, rapaz, tava lá. Eu me senti também... Pedi, assim, olhei
e fa... Voltei pra trás. Aí, cheguei lá em casa, fui lá e fui visitar
papai, olhei e falei assim: “Ah!”. E não pedi, não. Vi Ela com o rosto
muito triste e não pedi, não. Aí, não pedi, não (...)
Depois eu até falei
com a minha irmã: eu senti que ele ia. Hora que eu cheguei lá, assim,
perto d’Ela, eu senti que chegou a hora dele. Não pedi... Fui lá visitar
ele, olhei, conversei com ele... E não pedi... Eu não... Sempre pedi, não
sei por quê que eu não pedi... Não sei nada, não sei explicar, não... (S).
E aí?
[comove-se: os olhos
ficam cheios de lágrimas]
4.1.4) Eixo de Análise: Concepção de si
Sobre Biló
A partir de agora, verificaremos como essas vivências são concebidas na
vivência pessoal de Biló, como entram na concepção de si.
Emerge como posicionamento de Biló um confiar-se à Padroeira. É a Ela que
ele se entrega no trabalho que realiza na festa com um comprometimento,
responsabilidade, apreço e zelo.
É, ué! Senão, Ela ia
só montar dificuldade pra nós. Então, é isso que eu sinto que Ela quer a
festa, o dia que Ela não quiser... é uma vez só. É, ué! Então, é por isso
que eu mexo ni festa, porque eu sei que Ela quer. O que eu posso fazer pra
Ela, eu mimo isso aí. Eu mimo. Porque a gente faz porque Ela tá fazendo
pra nós. Trabalho mesmo. Trabalho mesmo! Pra festa eu trabalho mesmo.
Então, é por isso que nós trabalha.
Biló emerge, portanto, como o ser-responsável que Frankl (1986, 1993) nos
descreve ao falar do homem religioso que se volta para uma autoridade
transcendente. O comprometimento de Biló coincide com uma resposta a Nossa
Senhora de Nazareth pelo seu comprometimento com a sua própria vida, que
consiste no seu empenho na festa, nas obrigações familiares e no
enfrentamento das dificuldades. Aquilo que Biló apreende como valioso e
que afirma como um sentido existencial tem reflexos na sua vida concreta:
a vida configura-se como vocação (responder à Padroeira) por meio da sua
missão que se concretiza no seu compromentimento.
Biló, assim, confia-se à Padroeira. Porém, está amparado pela visão de
mundo compartilhada de sua comunidade, que lhe possibilita compreender
como é ter fé na Padroeira. É o que lhe possibilita se lançar nas
responsabilidades que lhes foram passadas pela tradição e o que se torna
um critério para confiar nas experiências que vivencia em relação à Nossa
Senhora de Nazareth, ou seja, para “ir tomando fé”.
Nessa perspectiva, a
sua vida de dedicação à Padroeira coincide com o seu pertencimento à
comunidade de Morro Vermelho e com o seu empenho na festa, que não apenas
mantém aquilo que lhe foi passado pelo seu pai, como contribui
continuamente a (re) criar essa tradição.
4.2)
Entrevistada: Beatriz
Beatriz, 53 anos,
responsável pelo Apostolado da Oração e pela Pastoral do Batismo, festeira
na festa de Nossa Senhora de Nazareth.
4.2.1) Eixo de
Análise: Entrada no mundo
A dinâmica da
graça como elemento essencial da elaboração da experiência ontológica de
Beatriz
É através da
dinâmica da graça que Beatriz consegue chegar até a Padroeira:
reconhecendo na vida cotidiana algumas circunstâncias, aparentemente
contraditórias e tensas, ela percebe como foi privilegiada em ter feito um
caminho que lhe permitiu receber o que era “bom”. Através da presença de
seus pais, chega até a figura Nossa Senhora de Nazareth.
Ah, isso, desde
pequena. Porque não tem, quer dizer, aqui foi sempre muito pequeno. E
também isso foi em casa. Tudo vem de casa mesmo; num tem outra explicação
não. L’em casa toda vida foi assim: tudo quanto há era Nossa Senhora de
Nazareth. Num tinha mesmo... É que tudo quanto há era “Nossa Senhora de
Nazareth que ajudava”, “Nossa Senhora de Nazareth que protege”, é “Nossa
Senhora de Nazareth que ajuda”; e também a gente cresceu num ambiente,
assim, de muita oração. O que papai e mamãe puderam colocar em mim de bom,
eles colocaram; quer dizer, a gente frisa muito, hoje mais do que nunca,
eu vejo como que é importante a família, com’é que é importante contar o
que é bom e a gente num pode perder tempo; porque é um tempo precioso. Se
a gente perdeu aquele tempo... Depois, quer dizer, o que foi... quer
dizer, eu tive a graça de ter tido papai e mamãe que me incutiram, apesar
da simplicidade, apesar de num ter... mas tinha perto. Eles puderam passar
isso pra mim; quer dizer que, então, num tem como... num tem como ‘cê...
‘Cê viveu ali, raiz mesmo, é negócio que foi incutido na gente. Parece,
assim, eu sempre tenho falado muito com Celso, que eu acho interessante
que a gente nasce não só com os traços físicos e tal, mas a gente nasce
com a... parece que com um pouquinho dos dons que eles tem, da graça que a
gente, eu acho, recebe também.
Compreendemos que a
maneira como Beatriz se surpreende diante da sua realidade devocional é
estabelecida com a graça, com o que lhe é doado: um outro que doa
os seus dons que, por sua vez, foram recebidos. Essa doação se dá por meio
da tradição que foi passada aos pais e que chega até ela; também por
graça.
A gente...
É cada dia, cada coisa que a gente faz, é cada coisa que a gente ouve, é
cada participação, é atitude que a gente vai vendo nas pessoas: com’é que
é bom, com’é que vale a pena, sei lá, eu acho que é tudo isso e... E Nossa
Senhora... A gente... Ela é tão boa... Ela, sei lá, Ela cativa a gente,
Ela leva a gente pra Jesus mesmo, num tem jeito não. É igual padre Ari
falou: Ela vai segurando a gente por dentro, vai fazendo assim [faz um
gesto de quem está puxando com as mãos], mas vai mesmo. E é cada dia.
E Ela num desampara a gente, Ela num... sei lá, eu acho que sem Ela a
gente num chega a lugar nenhum não.
A resposta para
Beatriz é Nossa Senhora de Nazareth, que chega por meio da dinâmica da
graça. Com Guardini (1958), verificamos que essa experiência está
muito sintonizada com a experiência religiosa, como já dissemos. Para o
autor, a dinâmica da graça dentro da vida religiosa, de maneira
geral, emerge como uma valorização do numinoso ou divino que
se apresenta como uma realidade que não se pode possuir totalmente, em
última instância inabordável, inatingível; entretanto passível de ser
reconhecido.
4.2.2) Eixo de
Análise: Surpresa essencial
As experiências que
emergem no impacto com
Nossa Senhora de Nazareth.
Beatriz reconhece
uma posição humana em Nossa Senhora e colhe significados para si a partir
da existência humana da Padroeira – a prontidão, a disposição e a bondade
– que a colocam em uma postura de querer conhecê-La.
Ela mostra muito pra
gente as coisa. É, assim, em tudo. Qualquer trabalho, assim, na Igreja,
por exemplo. Eu gosto muito mesmo de trabalhar na Igreja. É, assim, pode
ser qualquer coisa; num precisa de ser um serviço, uma coisa melhorzinha
não, qualquer coisa: se for pra varrer, pra passar pano, pra passar cera,
tirar a maior sujeira, nós tamo... Eu acho que é isso que Ela dá a gente
exemplo; porque Ela saiu da casa d’Ela, porque Ela foi à casa de Isabel
(5), aquela prontidão. É feito outro dia, eu falei com padre Marcilon:
“Mas, quantos quilômetros, mais ou menos, Nossa Senhora deve ter andado?”;
ele falou assim: “Ah, Beatriz, deve ter sido uns cento e dez, uns cento e
cinqüenta”. Eu falei: “Nó, mas...”, né? Naqueles caminhos, assim, tudo
tortinho... Porque nós já andamos muito a pé nessa estrada de Caeté que a
gente ia e vinha só a pé mesmo, que a gente num tinha con... a condição
era pouca. Então, é gente que tá passando por aqui, por um atalho ali,
diminuía... pra diminuir a estrada. Então eu fico pensando Nossa Senhora
por esse caminho; quer dizer, Ela, olha bem pr’ocê ver, apesar de ter
sido, de tá tão novinha, né, e tão, assim, ma... pela idade imatura, mas
muito madura, e grávida. E Ela com essa disposição. Não tem como ‘cê num
gostar de Nossa Senhora não, tem? Tem? Num tem. A gente vira, vira, e tudo
cativa. Igual, outro dia a gente tava refletindo no círculo bíblico: “Ô
gente, foi a única pra quem o anjo inclinou pra saudar (6) porque é
rainha, porque é mãe, porque é imaculada. A gente vai no serviço d’Ela, na
escuta d’Ela, nessa bondade d’Ela; igual nas bodas de Caná (7): tudo! A
gente vai percorrendo a vida de Nossa Senhora e a gente vai... cada dia
Ela vai cativando a gente mais. “Mas, gente, Ela fez! Ela foi escolhi...
Ela tava escolhida pra mãe de Deus!”. E também hoje minha mãe. É uma honra
muito grande pra nós (R). Eu acho uma delícia! É assim, eu acho muito
gostoso mesmo ter Nossa Senhora como nossa mãe.
Beatriz, ao
compreender o que a atrai em Nossa Senhora – sua prontidão e
disponibilidade – se posiciona para conhecê-La: tenta identificar-se com
aquela situação que ela viveu. Nossa Senhora emerge como modelo com o qual
se comparar, que Beatriz admira e com o qual se identifica, elencando
características acenadas por Sua postura humana: disponibilidade,
prontidão, bondade, doação e silêncio. Admirando e se identificando com a
Padroeira, Beatriz faz a experiência de realização.
A experiência de realização aqui descrita por Beatriz pode ser comparada
ao que Guardini (1958) denomina como sentimento de vida, que emerge por
meio da experiência da graça. Para esse autor, esse sentimento não emerge
como uma necessidade satisfeita ou como um prazer alcançado, mas como a
verdadeira felicidade que se encontra. Quando o sentimento de vida emerge,
é sinal de que ele foi ganho, longe de qualquer possibilidade de ser
produzido por um esforço próprio.
4.2.3) Eixo de
Análise: Concepção do Outro
No relacionamento
entre Nossa Senhora de Nazareth e Beatriz emerge o feminino
Nossa Senhora emerge para Beatriz como mediação: ela não pode, mas Nossa
Senhora pode levar o seu pedido até Deus, para que a sua busca se
concretize. Ela é companheira, apoio seguro, devido à maneira como
responde. Nossa Senhora emerge para Beatriz dentro de um relacionamento de
amor materno.
E eu, o que eu posso
falar, assim, de Nossa Senhora pra outras pessoas para que elas também
segurem n’Ela, para que Ela tenha... para que Ela... Eu acho que, às vez,
a pessoa tá procurando uma coisa, igual muitas vezes a pessoa fala: “ah,
mas eu peço, peço, peço a Deus e Ele num...”. Por enquanto ela começa a
pedir Nossa Senhora que Ela vai dar um jeitinho pra gente... da gente
chegar até Ele. Que a gente num pode, Ela pode (R). Então, eu acho é isso.
Eu acho que sem Nossa Senhora é muito difícil da gente caminhar. Pois é,
eu amo a Nossa Senhora porque Ela deu vida pra gente, por Jesus. Porque
senão a gente estaria perdido; porque, olha bem pr’ocê ver: Ela assumir
tudo aquilo, embora tão nova, para que a gente pudesse um dia encon... ter
a salvação. A chance! Uma pessoa que te abre uma porta pra na hora que ‘cê
tá apertada, ela te abre a porta pr’ocê entrar e ocê... Te acolhe! É bom
demais, eu amo Nossa Senhora por isso (R)! É gostoso, menina. E vale a
pena amar, eu acho que deve amar mesmo porque Ela num desampara a gente
não. Num tem jeito como num amar uma pessoa... É a mesma coisa d’eu te
falar assim: “Porque que ‘cê ama sua mãe?”; “Uai, porque ela me deu a
vida! É, eu devo minha vida a ela”.
Stein (1999), ao
discutir o valor da feminilidade e sua importância para a vida do povo,
faz menção ao anseio que está presente na vida da mulher como inclinação
para a pessoa e como tendência à totalidade, segundo a concepção da
graça no sentido cristão. Nesse sentido as funções que emergem a
partir dessa peculiaridade nos interessam por expressar um contexto no
qual Beatriz está elaborando sobre como emerge o seu relacionamento com
Nossa Senhora como um Outro. A presença dessa inclinação pessoal e do
anseio pela totalidade emergem mais fortemente no mundo feminino por
estarem ligados à função especial de ser companheira, que significa
ser apoio e amparo. Segundo a autora essa atitude se torna possível se a
pessoa encontra-se em posição firme e em uma postura correta.
No relacionamento
com Nossa Senhora, em que está presente o pedido (como expressão da
necessidade e/ou busca por algo que se realize), a mediação (a necessidade
pela presença de um Outro) e a Eucaristia (como espaço de atenção à
presença do Outro), evidencia-se uma companheira expressa pelo apoio, a
confiança e a resposta que ela oferece ao que se necessita. Assim, podemos
compreender que o mundo feminino, expresso na função “ser companheira”, é
apreendido por Beatriz no relacionamento com Nossa Senhora, com essas
modalidades de experiências, segundo a correspondência e a identificação
com a posição humana de Nossa Senhora.
Para Beatriz,
relacionar-se com Nossa Senhora coincide com uma ação concreta: a maneira
como concebe o seu trabalho na festa da Padroeira, o cuidado com a forma
de preparar a festa, a preocupação com as pessoas que vão a Morro
Vermelho.
A gente vê
muita gente aqui dentro da igreja que vem, assim, de tão longe, com tanta
humildade, com tanta simplicidade, e chega ali na frente, mas que conversa
com Nossa Senhora, mas bate um papo assim de encher o coração da gente!
Mas, bate um papo com Nossa Senhora, mas é um papo, assim, gostoso,
invejável mesmo! Assim, ‘cê vê aquela fé bonita na pessoa, ‘cê vê a pessoa
depositando ali toda a confiança n’Ela, toda! Eu acho muito bom mesmo
trabalhar nessa festa para que todo fruto, que o fruto verdadeiro de cada
pessoa... que a pessoa queira colher, que ele seja colhido dessa festa;
que a gente possa ser melhor no ano que vem, que a gente possa mudar um
pouquinho o jeito da gente, que Deus vai burilando a gente, vai
transformando, vai dando um jeito no coração da gente. Então, eu acho que
é muito bom mesmo trabalhar pra essa festa.
Para Beatriz, trabalhar na
festa é a possibilidade de encontrar alguma coisa pela qual existe uma
busca. O ponto é encontrar não o fazer, que tem o principal significado de
ser por um Outro (Nossa Senhora) e que implica, ao mesmo tempo, uma
realização e um cuidado. O cuidado que culmina na organização do espaço
como possibilidade de florescimento de um relacionamento com Nossa
Senhora. Essa preparação tem duas características primordiais: não ocorre
de uma maneira individual na realização de tarefas, mas pelo envolvimento
com a festa, seja realizando qualquer tarefa, que tem como intenção
proporcionar que outras pessoas se relacionem com a Padroeira; e é
concebido de maneira a proporcionar que possa vir à tona o desejo de uma
proximidade com Ela. Fazer a festa é a possibilidade de encontrar Nossa
Senhora, o que coincide com a possibilidade de uma transformação para
melhor, para si e para os outros. Assim, trabalhar na festa é a
possibilidade de poder mudar, de que uma porta seja aberta, mesmo dentro
de uma condição frágil.
4.2.4) Eixo de
análise: Concepção de si
Sobre Beatriz
Beatriz concebe a si
mesma considerando que suas ações por si só não podem contornar as
situações, e assim possibilita a entrada de um Outro que tem poder para
tanto. A consciência da fragilidade suscita Beatriz a se colocar diante da
presença de Nossa Senhora com o pedido de que a sua vida tenha sentido, de
que seja boa, para que algo de grande aconteça em sua vida, apesar da
fragilidade. Para Beatriz, conceber a si mesma, é chegar a dizer o que
quer em sua vida: a fé, o amor que Nossa Senhora foi capaz de ter. A
esperança ocorre por reconhecer sua condição frágil no movimento de se
comparar com a experiência de Maria, Nossa Senhora, vislumbrando uma
possibilidade, uma saída: estar atenta aos seus passos, indo na Sua
escuta.
(Beatriz) Mas eu...
Ela me comove mesmo. Num tem saída pra...
(Renata) Por que num
tem saída?
(Beatriz) Não, Ela num tem... eu num tenho... Eu num consigo controlar.
Ela mexe comigo mesmo. Ela me toca. Num tem jeito de... Eu posso
controlar, eu posso morder, eu posso me apertar, mas eu não consigo. Ela
mesma mexe; mas Ela mexe tanto... Mas, Ela mexe no mais íntimo do meu ser;
Ela mexe comigo. Ela mexe muito! Então, eu não consigo ficar parada nesse
Morro Vermelho sem mexer aqui dentro. Amo demais Nossa Senhora, mas Ela
quer que a gente faz o que Jesus quer”. Ela quer que a gente faz o que Ele
quer! Porque Ele deu o sangue d’Ele por nós! Ele fez tudo por nós. Que Ele
quis... Ela quer, então, a gente tem que fazer a vontade d’Ela, Ela quer!
Então a gente tem que fazer porque Ela quer. Num adianta eu fazer o que eu
quero, não. Então, eu fico muito... eu fico me... Eu sou apaixonada com
Nossa Senhora! Sou mesmo! Sou apaixonada mesmo por Ela, porque Ela é tudo,
porque vale a pena ‘cê fazer tudo pra Ela em cada Ave Maria. Quando a
gente fica rezando Ave Maria bem devagarinho, mas vem, parece que aquele
negócio vai entrando na gente. Vai... num sei, vai incrustando. Num tem
jeito, Nossa Senhora é demais.
Aqui a posição de
Beatriz é fortemente influenciada pela inclinação feminina à totalidade e
à integridade (Stein,1999), ou ainda, pela necessidade de não ser
determinada pelo limite, deixando aparecer a necessidade de ir além dessa
condição, dando-se conta de um fator externo como possibilidade de
compensação (Weil, 1993). Tudo isso se concretiza com a presença sagrada
de Nossa Senhora de Nazareth e possibilita a Beatriz conceber-se como
gratidão e comoção.
4.3) Entrevistado:
Basseli
Basseli, 43 anos, é responsável por carregar o andor de Nossa Senhora de
Nazareth durante a procissão festiva do dia oito de setembro. Trabalha em
Belo Horizonte, voltando aos finais de semana para Morro Vermelho, de onde
se considera ainda morador.
4.3.1) Eixo de
Análise: Entrada no mundo
A dinâmica do amor
como elemento essencial na elaboração ontológica de Basseli
Nossa Senhora de
Nazareth entra no horizonte de vida de Basseli por meio da convivência
familiar e comunitária. A dinâmica essencial por ele desenvolvida tem como
tema central o amor, cuidado que explicita um querer bem ao outro, que é
propiciado por sua família, por uma educação marcada por regras morais e
por uma convivência que introduz o zelo como maneira de se relacionar. Na
convivência em comunidade esse tema é introduzido pela maneira como as
pessoas, dentro de uma condição simples, vivem uma devoção (dedicação)
excepcional à Padroeira.
Então, com isso, eu vim aprendendo a gostar de Nossa Senhora e via minha
vó cuidar d’Ela com o maior zelo, os meus pais... ‘Cê num podia responder
um irmão, ‘cê num podia xingar, ‘cê num podia falar um palavrão como até
hoje nunca fa... gosto de falar, num vô dizer que eu nunca falei, mas
detesto, detesto falar. Se falo, eu arrependo na hora, peço Deus perdão. E
aprendi muito através dos exemplos deles. Então, aprendi a confiar, assim,
muito no que eles falava e via que, realmente, era verdade as aprovações,
que era milagres, que num tinha como acontecer as coisa que acontecia.
Então, eu acredito que Nossa Senhora, Ela zela por esse pessoal aqui. Eu
acredito que Ela é realmente a nossa medianeira de todas as graça, que Ela
intercede a Deus por cada um de nós. Então, eu sou pai de família, eu
tenho certeza que Ela também está zelando pela minha família, como Ela
zelou pelos meus pais. Hoje, Ela zela por cada um de nós.
A convivência,
assim, proporciona uma maneira de amar o objeto, uma vez que Basseli tem
condição de se familiarizar com aquela modalidade de vida que está sendo
oferecida, por meio da verificação e de um juízo estabelecido. Giussani
(2000a), nesse sentido, compreende que, diante de um posicionamento assim,
emerge uma evidência – a percepção de uma presença inexorável – ou seja,
que há uma companhia que o ajuda oferecendo uma hipótese de relacionamento
com a realidade ao redor e que é possível vivê-la de maneira inteligente e
comprometida, de maneira que essa pessoa se vê como atuante e com
possibilidade de desenvolver-se. Emerge, assim, um eu.
4.3.2) Eixo de
Análise: Surpresa essencial
As experiências
que emergem no impacto com Nossa Senhora de Nazareth
Vimos até aqui que
Basseli está inserido em um contexto no qual a Padroeira é incluída a
partir de um fator essencial: a dinâmica do amor, por um cuidado
que explicita um querer bem ao outro. Em sua elaboração verificamos que as
experiências de impacto com Nossa Senhora referem-se a atitudes
características de vida de Maria e, portanto, levam à verificação de Sua
presença no cotidiano.
Eu criei [a festa do Natal das crianças], há alguns anos atrás, e hoje é
um sonho, uma coisa muito linda: quando muitas crianças, pessoas que vêm
de todas as redondeza. Então esse Natal, ele começou simples: minha mãe
começou esse Natal; aí, outras pessoas começou a fazer. E isso foi
crescendo, foi crescendo. Até que um dia, uma criança, filha duma pessoa
mais ou menos rica, praticamente rica, uma criança que tinha tudo – vamos
dizer assim –, tinha toda maravilha dentro de casa, de presente, só coisa
chique, chegou aqui – segundo a vó dela me contou – essa criança chegou
aqui e eu tava realmente dando umas bonequinhas muito vagabunda, assim, no
modo de dizer. Vagabunda é assim pelo preço, eu tô dizendo, uma coisa
muito sem valor, quase, em dinheiro; pra criança tinha muito valor, porque
tava ganhando alguma coisa. Assim, eu falo em termos de dinheiro. Aí, essa
dona chega pra mim – D. Isabel – e vira pra mim e fala assim: “Ô, menino,
eu queria conversar com você. Você aceitaria uma ajuda?”. Eu falei assim:
“Uai, D. Isabel, como assim a senhora quer dizer?”; “É porquê eu tô
achando o seu trabalho tão bonito, tão lindo! Você me comoveu!”, “Você me
comoveu. E eu tô achando o seu trabalho tão maravilhoso, que eu queria
saber se você era capaz de aceitar eu te ajudar você nesse Natal das
criança”. Eu fiquei muito feliz, eu fiquei muito feliz! E ela pegou e
falou assim: “Ólha, eu vou te dizer pra você uma coisa: tem coisas que
fica na vida. É, a filha da Gisa (a criancinha que ela falou), ela veio
aqui e você deu ela uma bonequinha com uma mamadeirinha de plástico, uma
coisa simples demais da conta. Ela tem todos os presentes, mas que coisa
mais incrível: ela gosta do seu bonequinho!”. Falou pra mim: “Ela gosta do
seu bonequinho! Ela dorme agarrada com aquele bonequinho! Aquele
bonequinho pra ela é tudo! Ela tem coisas caríssimas, ela pouco tá
importando”.
Para Basseli, a
experiência do encontro ocorre no momento em que verifica que acontece
algo de grande como no envolvimento de dona Isabel, ou seja, dentro de um
gesto simples, como o Natal das crianças, em que ele, em conjunto com
outras pessoas, apenas entrega algumas lembranças e fazem um pouco de
“farra”. Em um momento que se caracteriza pela simplicidade, emerge a
verdadeira realização de algumas pessoas. É em um momento assim que
observamos que Basseli, sustentado por um querer bem ao outro, ou seja,
pela dinâmica do amor, verifica a entrada de uma novidade, estranha e
portadora de uma inusitada novidade: algo ocorre dentro desse gesto
simples que tem uma extensão jamais imaginada.
O querer bem às
pessoas, desejar que seu destino se cumpra, para Basseli, tem relação com
algo que foge ao seu controle. Com a experiência de encontro que é, então,
paradoxal, vertiginosa e realizadora, Basseli chega a se impactar com a
presença da Padroeira. Comenta estar engrandecido por ser Nossa Senhora de
Nazareth esse fator que, invisivelmente, age e mexe com as pessoas.
Eu estou tão engradecido que é Nossa Senhora de Nazareth. É Nossa Senhora
de Nazareth, eu tenho certeza que é Nossa Senhora de Nazareth.
Diante do
maravilhamento com esse algo estranho e inusitado, Basseli se comove e
esse estranho, paradoxalmente, passa a ser familiar. Podemos compreender
que a experiência de amor possibilite esse estupor que se apresenta como
uma novidade atraente, ou seja, coloca-o diante do numinoso, com
uma certa familiaridade, como Guardini (1958) mesmo chega a dizer: “Este
carácter estranho aparece como a expressão do essencialmente misterioso,
do numinoso” (p. 153); ou como “um centro misterioso que actua na própria
acção e constitui o destino” (p. 154). Com eesse tipo de experiência – o
encontro com algo realizador – Basseli chega a se impactar com a presença
da Padroeira.
4.3.3) Eixo de Análise: Concepção do Outro
No relacionamento
entre Nossa Senhora de Nazareth e Basseli emerge a dimensão da pessoa
Nossa Senhora de Nazareth emerge dentro de um relacionamento materno, de
entrega e exemplo de amor.
Atitude de intercessão:
o relacionamento com a Padroeira introduz a dimensão do cuidado, de alguém
que constantemente se preocupa com os seus filhos.
Então, assim, tem um amor muito grande por Ela. Eu acho que todo ser
humano deveria recorrer a Ela porque Ela é Mãe. Ela é Mãe, Ela foi
criadora, Ela ensinou, Ela educou o próprio Filho de Deus. Se Ela teve
condições de educar um próprio Filho de Deus, eu acho que tudo Ela faria
por a gente também porque Ela sabe que nós, mais do que Ele, somos
pecador. Mais do que Ele, precisamos d’Ela, mais do que ele Ele, estamos
aí correndo atrás d’uma ajuda porque num é fácil a vida, é muitas coisa
pra jogar a pessoa em depressão, em tristezas, em desespero. Então, assim,
eu acredito que Ela tá sempre intercedendo a Deus por cada um de nós.
Acredito, não, tenho certeza! Tenho certeza porque tem os exemplo de vida
por essas coisa tão maravilhosas que Ela já foi na minha vida, nos meus
caminho. Eu, assim, se eu tivesse que dar testemunho pra provar qu’Ela,
realmente, é a minha Mãe, qu’Ela me criou, qu’Ela me carrega, eu teria
exemplos, assim, pra te relatar qualquer hora, qualquer minuto, sem
vergonha, sem tristeza.
Atitude de aceitação:
no contato com Nossa Senhora de Nazareth, Basseli experimenta o que
significa ser perdoado, pois trata-se de Alguém que olha para o filho não
olhando para o erro que comete; intercede e se preocupa não em função do
pecado, mas em função do verdadeiro pedido que lhe é feito.
O amor, ele é tudo! O amor, ele perdoa, ele cresce, ele aceita, ele vive,
ele dá tudo que você precisa. Então, eu acho que o amor, hoje, é
fundamental na vida de qualquer ser humano. Onde existe o amor, existe a
verdade, existe a sinceridade, existe a confiança, a certeza. Então, eu
acredito muito no amor, eu acredito demais no amor. Eu acho que o que a
Maria fez aqui foi amar, só exemplo de amar, Ela amou, amou demais,
entendeu? E deixou todos nós nessa situação de amar. Igual Jesus, Jesus
morreu numa cruz por amor, por amar, então eu acredito no amor, eu tenho
certeza que o amor é tudo, entendeu? Quando a gente ama, a gente perdoa,
seja a pessoa, seja o erro que for, por isso que Deus é sempre perdão.
Jesus Cristo veio pra perdoar pra mostrar pra gente: se a gente amar, a
gente é perdoado. Por que tudo que você faz por amar, se você errou, Deus
fala assim: “Puxa vida, mas ela amou. Ela errou talvez por causa da
fraqueza dela, pelos defeitos do ser humano mesmo, mas ela ama, ela me
quer. Ela compreende as coisa da vida”.
Atitude de apoio:
Nossa Senhora como Alguém que cuida e intercede sem pedir nada em troca;
deseja que seu filho seja atendido. Nossa Senhora emerge dentro de um
relacionamento de adesão, atração e chamado. Aqui se encontra a realização
de Basseli: ao se render ao chamado que Nossa Senhora faz, algo lhe é dado
e, juntamente a isso, algo lhe é revelado. Realizando aquela
responsabilidade na festa expressa o seu querer ficar próximo dEla. Nossa
Senhora emerge dentro de um relacionamento de proximidade, afeição e
proteção. Ela, intercedendo por ele em cada momento de sua vida, lhe
possibilita crescer e se transformar, ou seja, mudar a maneira de olhar
para as situações que encontra, sabendo que não está sozinho, que a
Padroeira está acompanhando-o. Com Nossa Senhora ele pode olhar o mundo
com os olhos de Deus: diante dos sofrimentos Basseli tem a certeza de que
algo de construtivo poderá acontecer. A partir do relacionamento íntimo
que se estabelece com aqueles que respondem, é Ela quem se mostra. É Ela
que, de maneira silenciosa, age e gera crescimentos e transformações na
vida dessas pessoas e na realidade ao redor.
Ela vai te mostrando
as coisas. Igual, por exemplo, essas coisa que vai acontecendo do
desemprego, no silêncio, Ela vai agindo. E a gente fica preocupado,
preocupado, preocupado: “como é que vai ser? Vai me mandar embora?”. Olha
pr’ocê ver! No silêncio, Ela vai resolvendo as coisa. ‘Cê só percebe e “ó,
mas, puxa vida! Nossa Senhora, que é isso?” (R). Então, assim, Ela
silenciosamente, a hora que você não acha que vai acontecer, a hora que
‘cê não tá esperando, se você é d’Ela – você é d’Ela – entendeu? Ela
resolve. É só ‘cê ter paciência, num querer adiantar os carro na frente
dos boi. Tenha paciência! Confia, sim, em Deus que Ele, Ela resolve, Ele
resolve. Tudo que ocê precisar, num precisa ter medo, não. (R) Eu sei
disso: não precisa ter medo! Tem hora que eu fico com medo. Tem hora que
eu fico com medo. Aí, acontece: “gente, mas que cabeça! Por quê que eu
tenho esse medo?”. Depois falo: “olha, Nossa Senhora, eu sabia que isso ia
acontecer”, mas e o medo de faz... de ter certeza, entendeu?
O relacionamento amoroso com a Padroeira, por parte de Basseli,
caracterizado por sua rendição à atração que o provoca, mobiliza-o a se
comprometer com aquilo que está guardado para ele: um chamado. Emerge a
pessoa, emerge Basseli de forma pessoal à medida que, diante de Nossa
Senhora, em seu relacionamento com Ela, é capaz de responder de maneira
espontânea, ou seja, totalmente pessoal, naquilo que deseja expressar,
naquilo que é.
Nesse sentido, a proximidade
que é oferecida por Nossa Senhora de Nazareth, implícita em Seu chamado,
tem a sua expressão máxima em Sua proteção, que é oferecida àqueles que se
rendem à Sua presença.
Basseli emerge como pessoa, como Marías (1994) comenta sobre a
reciprocidade do amor, porque se sabe acompanhado, levando em consideração
a sua vida concreta, cheia de sofrimentos e dificuldades – oscilações.
Porém, sabendo-se acompanhado, tem condição e espaço para continuar
expressando quem é: comprometendo-se com a própria vida.
4.3.4) Eixo de
Análise: Concepção de si
Sobre Basseli
Para Basseli,
comprometer-se com a vida, viver a vida, olhar para os acontecimentos do
mundo, tem relação com um olhar para a realidade com os olhos de Deus:
assim, ele quer amar mais. Disponibilizar-se ao outro, tendo presente a
maneira como Deus e Nossa Senhora amam é que o liga afetivamente ao mundo
que é limitado, cheio de falhas. O posicionamento é marcado pelo desejo de
comunicar essa modalidade de viver.
Então, Nossa Senhora
de Nazareth me traz nessa procissão d’Ela, com alegria de poder tá ali
andando do lado d’Ela, cantando. Ela deve tá cheia de glória, com tantos
filhos que... todos voltados pra Ela. E gostaria muito é que o mundo
transformasse dessa forma, enxergasse as coisas por esse lado, que
entendesse um pouquinho quê que é amor da Virgem Maria, quê que é amor de
Deus, quê que é amor de Jesus Cristo. Gostaria muito ainda de aprender
mais ainda, eu gostaria de ser mais exemplo de vida. Eu gostaria muito de
ser um exemplo de vida pras criança, pra outras pessoas, deixar raízes.
Igual meu pai, deixa tantas raízes pra gente, tanto exemplo, tanta coisa
meu pai fez pra mostrar a gente o amor de Deus, eu gostaria...
Para Basseli,
comprometer-se com a vida, viver a vida, olhar para os acontecimentos do
mundo, tem relação com um olhar para a realidade com outros olhos, ou
melhor, com os olhos de Deus. Olhar, não mais partindo do limite
estabelecido pelas circunstâncias injustas, feias, desagradáveis e
sofridas, mas reconhecendo-se como parte desse mundo cheio de falhas,
olhando para o que está sendo construído, transformado dentro dessas
condições.
Reconhecemos o
cuidado que aqui expressa Basseli ao experenciar essa forma de amar. Fromm
(1971) já considerava que o cuidado é um elemento básico da atitude ativa
de amar, que consiste em um trabalho que favoreça o crescimento. O olhar
de Basseli tem a dimensão de um trabalho em colher aquilo que cresce
dentro de uma circunstância de aridez.
Certamente,
apreendemos nesse posicionamento de Basseli a responsabilidade que Fromm
(1971) também identificava como um elemento que se seguia ao cuidado, ou
seja, sabendo-se que há um crescimento empenha-se com a vida que está
repleta de necessidades: aqui, a sua decisão em amar com o coração,
entregando-se ao outro.
5) A concepção de
si diante de Nossa Senhora de Nazareth em Morro Vermelho: a
experiência-tipo
a) A convivência
para o sujeito de Morro Vermelho está associada a um compartilhamento da
própria vida: sente-se acolhido assim como é e, no relacionamento, há o
predomínio de um reconhecimento mútuo em que cada um é valorizado pelas
suas potencialidades, ou seja, por aquilo que tem para oferecer. Há uma
maneira pessoal com a qual o sujeito, inserido nesse horizonte
compartilhado e afetivo, depara-se com algo que lhe é inicialmente
exterior. Normalmente, aparece sob a forma de um impacto com uma
excepcionalidade humana que está fora de si, que o transcende, que não é
alcançável imediatamente. Dessa maneira, o sujeito de Morro Vermelho pode
chegar a compreender que esse algo exterior é Nossa Senhora de Nazareth,
de quem já tinha ouvido falar tanto. Começa a se delinear um olhar
próprio, uma maneira própria apreender a figura d´Ela. Há uma compreensão
de que Nossa Senhora de Nazareth se refere a si também, de maneira
pessoal: tenta se comunicar e dizer algo que seja relevante para a sua
vida, ou seja, para a realização da sua própria existência.
b) Uma
característica do relacionamento com a Padroeira é que o sujeito dessa
comunidade sente-se valorizado pelo que é. Nossa Senhora de Nazareth é
percebida pelo sujeito como acolhedora; o relacionamento com Ela é
compreendido em um horizonte de confiança. Em situações de difícil
solução, esse Outro, intercede em seu favor, não apenas em relação aos
resultados, mas como um apoio ou presença com que se possa contar. O
sujeito dessa comunidade se percebe como não estando desamparado e, assim,
o lança para esse Outro com seus problemas, coloca-se diante da vida com
uma postura ativa, de enfrentamento das circunstâncias que se lhe
apresentam como árduas, penosas ou trabalhosas. O sujeito de Morro
Vermelho sente-se filho de Nossa Senhora de Nazareth: Ela é mãe porque
intercede por ele, porque lhe quer bem, quer que ele se realize.
c) O relacionamento
com a Padroeira, para o sujeito de Morro Vermelho, é o parâmetro
organizador do seu dia, do trabalho a realizar, da maneira como educar os
filhos, da forma como receber as pessoas que chegam na festa d’Ela, da
tarefa que se tem de assumir nesse momento comemorativo de sua natividade,
na maneira como organizar a festa, na maneira como decidir algo. É Ela o
ponto orientador de tudo. Ter parâmetros significa estar em constante
relacionamento com Nossa Senhora de Nazareth e deixar-se guiar pela ação
d’Ela no seu mundo.
d) Nesse sentido, o
relacionamento com a Padroeira é considerado pessoal, pois permite que o
sujeito se expanda e conheça a si mesmo, continuamente: Ela toma
iniciativa para com ele, de forma pessoal, tendo algo a lhe dizer; ao
responder à sua iniciativa, esse sujeito dá sua contribuição, que não pode
ser dada por nenhuma outra pessoa. No relacionamento com Nossa Senhora de
Nazareth, é despertado não apenas um conhecimento acerca de si mesmo, mas
o valor da sua ação, que é resposta ao seu chamado. O resultado dessa ação
tem uma extensão ampla, que nem o próprio sujeito tem condições de
avaliar; mas que reconhece existente. O sujeito de Morro Vermelho descobre
que a sua ação tem um valor imprescindível para a comunidade e que tem um
alcance inimaginável.
e) Responder a Nossa
Senhora de Nazareth coincide com pertencer a Morro Vermelho. Assumir a
própria contribuição pessoal tem uma importância de construção da
coletividade: é contribuição para a continuidade da história local na
medida em que é testemunho vivo, refletindo Sua presença para os
contemporâneos, para os que ainda estão por vir e para os que não são de
lá. Um ideal compartilhado constitui-se em uma referência que relembra o
valor que o relacionamento com a Padroeira tem para a vida, própria e de
todos. Portanto, ao fazer memória d’Ela o sujeito revitaliza sua
existência concreta como missão, o sentido de sua tarefa e seu dever para
com a comunidade de Morro Vermelho, para com o mundo, para com Nossa
Senhora de Nazareth.
6) Conclusões
Normalmente,
teríamos a tendência de considerar que em tais formas de associação as
pessoas teriam poucas oportunidades de elaborar de maneira pessoal os
conteúdos oferecidos pela tradição cultural. Ao contrário, em Morro
Vermelho encontramos a diversidade e a riqueza de elaborações e de formas
de ser no mundo vivenciadas como contribuição para a organização social
comunitária tipicamente tradicional. Participação, iniciativa pessoal e
ação nas atividades tradicionais propiciam uma vivência comunitária, que,
por sua vez, é condição necessária para que os sujeitos possam desenvolver
trajetórias de vida autenticamente pessoais, inserções no mundo
personalizadas, consciência de si fortalecida pela pertença a uma
comunidade concreta e histórica.
Havendo essa
elaboração dos conteúdos oferecidos pelo contexto cultural, os sujeitos de
Morro Vermelho chegam a Nossa Senhora de Nazareth em formas singularizadas
de viver o relacionamento com Ela. Assim, temos Biló, caracterizado pela
dinâmica da fé, pela qual no posicionamento dentro das circunstâncias
concretas visa a presença de Nossa Senhora de Nazareth. Beatriz, segundo a
dinâmica da graça, que se dando conta de sua fragilidade humana e
contradições que a vida pessoal, familiar e comunitária apresentam,
maravilha-se com a presença humana de Maria. Pela dinâmica do amor,
Basseli comove-se com essa presença misteriosa e surpreendentemente humana
que guia sua ação e os acontecimentos cotidianos.
Verificamos, também,
que a própria convivência nessa comunidade rural tradicional, tendo como
centro a figura de religiosa de Nossa Senhora de Nazareth, é concebida
como intervenção e o com relacionamento com Ela. As elaborações
personalizadas dessa compreensão compartilhada coletivamente consolidam
uma devoção diversificada e unitária a um só tempo.
A excepcionalidade
reconhecida na figura de Nossa Senhora de Nazareth – ao mesmo tempo
sagrada e humana – traz para o plano concreto cotidiano dos sujeitos a
mesma excepcionalidade: reconhecem na convivência com quem os educa os
mesmos elementos; ligam-se aos seus reconhecendo um mistério pelo qual o
relacionamento com eles coincide com relacionar-se com Nossa Senhora de
Nazareth; os acontecimentos e a história concreta, pessoal e comunitária,
são sinal de sua presença e oportunidade de relacionamento pessoal com
Ela.
Biló, Beatriz e
Basseli - pudemos aprender muito com eles! No início a percepção de um
contexto diferente nos fascinava e nos colocava em movimento para
conhecer. Porém, os resultados nos ofereceram muito mais do que a
conclusão deste trabalho. Como poderíamos concluir, a não ser agradecendo?
Agradecer por termos encontrado mais do que sujeitos de pesquisas, mas
pessoas que, com as maneiras humanas aqui descritas, trouxeram à tona
formas poéticas com a quais puderam enfrentar a vida e se instaurar no
mundo de maneira criativa, levando em consideração o próprio contexto
cultural no qual estavam inseridas.
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Notas
(1)
Utilizamos o recurso da amostragem intencional assim como descrito por Gil
(1999): “constitui um tipo de amostragem não probabilística e consiste em
selecionar um subgrupo da população que, com base nas informações
disponíveis, possa ser considerado representativo de toda a população” (p.
104). Assim, procuramos entrevistar intencionalmente os sujeitos que mais
poderiam nos fornecer dados que respondessem aos nossos objetivos.(volta).
(2)
As entrevistas semi-estruturadas consistem, principalmente, na realização
pelo pesquisador de algumas questões que cumpram os objetivos principais
do trabalho de pesquisa, deixando um espaço livre relativamente grande
para o entrevistado poder responder. Há, também, a possibilidade, nesse
tipo de entrevista, que novas questões apareçam ao longo do encontro com
os sujeitos da pesquisa. (Moreira, 2002).(volta).
(3)
Podemos considerar observação etnográfica como observação participante,
que segundo Moreira (2002) pode ser definida “como uma estratégia de campo
que combina ao mesmo tempo a participação ativa com os sujeitos, a
observação intensiva em ambientes naturais, entrevistas abertas informais
e análise documental” (p. 52), através da qual o seu principal produto é o
“relato etnográfico”, que se caracteriza por se constituir em relatos do
dia-a-dia dos entrevistados e das notas de campo do pesquisador.(volta).
(4) Através da
epoché ou redução fenomenológica, Husserl (1992) acredita que para se
conhecer algo é preciso partir de uma evidência indubitável. Para o autor,
o resultado da redução é a correlação entre o eu penso e o objeto
de pensamento, ou melhor, entre o cogito e o cogitatum. Para
se chegar a algo invariante nas diferentes maneiras de aparição do objeto
à nossa consciência, ou melhor, para se chegar a captar a essência do
fenômeno puro, é imprescindível adotar uma atitude oposta à ingênua e
natural em que se vive no dia-a-dia: a de conceber o mundo como
“fenomenalizado” por meio da epoché. (volta).
(5)
“Naqueles dias, Maria pôs-se a caminho
para a região montanhosa, dirigindo-se apressadamente a uma cidade de
Judá. Entrou na casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, quando Isabel ouviu
a saudação de Maria, a criança lhe estremeceu no ventre e Isabel ficou
repleta de Espírito Santo. Com um grande grito, exclamou: ‘Bendita és tu
entre as mulheres e bendito é o fruto de teu ventre! Donde me vem que a
mãe do meu Senhor me visite? Pois quando a tua saudação chegou aos meus
ouvidos, a criança estremeceu de alegria em meu ventre. Feliz aquela que
creu, pois o que lhe foi dito da parte do Senhor será cumprido!”. (Lc 1,
39-45) (A Bíblia de Jerusalém, 2000).(volta).
(7) “No terceiro
dia, houve um casamento em Caná da Galiléia e a mãe de Jesus estava lá.
Jesus foi convidado para o casamento e os seus discípulos também. Ora, não
havia mais vinho, pois o vinho do casamento tinha-se acabado. Então a mãe
de Jesus lhe disse: ‘Eles não têm mais vinho’. Respondeu-lhe Jesus: ‘Que
queres de mim, mulher? Minha hora ainda não chegou’. Sua mãe disse aos
serventes: ‘Fazei tudo o que ele vos disser’. Havia ali seis talhas
de pedra para a purificação dos judeus, cada uma contendo de duas a três
medidas. Jesus lhes disse: ‘Enchei as talhas de água’. Eles as encheram
até à borda. Então lhes disse: ‘Tirai agora e levai ao mestre-sala’. Eles
levaram. Quando o mestre-sala provou a água transformada em vinho – ele
não sabia de onde vinha, mas o sabiam os serventes que haviam retirado a
água – chamou o noivo e lhe disse: ‘Todo homem serve primeiro o vinho bom
e quando os convidados já estão embriagados serve o inferior. Tu guardaste
o vinho bom até agora!’. Esse princípio dos sinais, Jesus o fez em Caná da
Galiléia e manifestou a sua glória e os seus discípulos creram nele.
Depois disso, desceram a Cafarnaum, ele, sua mãe, seus irmãos e seus
discípulos, e ali ficaram apenas alguns dias.”. (Jo 2, 1-12).(volta).
Nota sobre os
autores
Renata Amaral Araújo é mestre em Psicologia Social pela Universidade
Federal de Minas Gerais, doutoranda pelo programa de Pós-graduação em
Psicologia da Universidade de São Paulo. Contato:
renata_araujo@ig.com.br
Miguel
Mahfoud é doutor em Psicologia Social, professor adjunto do
Departamento de Psicologia da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas e
do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal de
Minas Gerais, atuando na linha de pesquisa "Cultura e subjetividade".
Contato: Caixa Postal 253 - CEP: 31270-901 – Belo Horizonte – MG –
Brasil. E-mail:
mmahfoud@fafich.ufmg.br
Data de recebimento: 25/02/2004
Data de aceite: 25/04/2004
Memorandum 6, abril/2004
Belo
Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos06/aramahfoud01.htm
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