1. Antecedentes do
culto em Portugal
A devoção a São
Miguel Arcanjo
(1)
suscitou a produção de objetos diversificados: imagens, pinturas, moedas e
medalhas, selos ou mesmo a representação integrada às cenas do Juízo
Final, existentes nas portadas do Românico, paredes e abóbadas do Gótico e
Maneirismo (Male,
1947). Fontes
escritas confirmam a amplitude da crença; no Purgatório, de Dante
Alighieri, as almas recorrem à intercessão de São Miguel (PURG. XIII,
49-51); nos Livros de Horas, literatura piedosa de grande
circulação até a época Moderna, o Arcanjo luta contra o demônio, salvando
os justos para a imortalidade (2).
A Ibéria não se esquiva a esse pendor devocional, finalizando encenações
do teatro religioso, como o Auto da Ave Maria (de Antônio Prestes),
com mensagens edificantes proferidas por São Miguel (Martins, 1969, vol.2,
p.10).
Em Coimbra, o Museu
Machado de Castro conserva três esculturas em pedra, do século XV, duas
delas mesclam bem características medievais e renascentistas. Das portadas
medievais herdaram a presença de almas nas balanças. A instituição possui
ainda o retábulo de São Miguel, proveniente de Santa Clara (convento
velho), do escultor João de Ruão (1537) (Cf. Borges, 1980, p.51). Nessa
composição arquitetural, compartimentada em seis nichos distribuídos em
dois registros, São Miguel é representado na parte superior, com a
tradicional balança com almas. Naquele altar de Santa Clara, o Arcanjo
perdeu as balanças, que, seguindo o gosto da época, também teriam almas. O
culto a São Miguel foi recuado entre os portugueses, assumindo destaque a
partir de D. João III que, por lhe ter tido especial devoção, alcançou do
papa, Adriano VI, autorização para que fossem celebrados os ofícios de S.
Miguel, na Capela Real (1522) (cf. Albuquerque, 1995). Intitulado o
Piedoso, o rei obteve a titularidade das Ordens Militares, cuja união à
Coroa foi adquirida da Cúria Romana que lhe rendeu o cargo de Mestre da
Ordem de Cristo. A devoção e o fato de ter sido o primeiro monarca titular
da Ordem, explica a presença do arcanjo no escudo.
A Capela de São
Miguel, integrada aos prédios que compõem o conjunto da Universidade de
Coimbra, possui soberba portada manuelina, bem como decoração interna
bastante erudita, datada dos séculos XVII e XVIII, fato que ratifica a
presença particular desse culto no âmbito das elites governantes (3).
Em Portalegre, na
Igreja da Sé, pode-se observar no retábulo, sob invocação da Virgem do
Carmo, a representação de São Miguel em um dos quatorze painéis de feição
maneirista, pintados por Luís de Morales, em 1616 (Serrão,
1987).
Concluindo este rol
sumário de obras lusitanas anteriores ao Barroco, menciona-se o retábulo
de São Miguel no templo de Santo Antão, em Évora, feito por Jerônimo Corte
Real na segunda metade do quinhentos (Gonçalves, 1959). Face ao presente
acervo, observamos a veneração a São Miguel, a propósito bastante recuada
entre os portugueses, onde teve excelente contextualização histórica, para
então se alastrar no ultramar, inclusive sob os auspícios do Concílio
Tridentino (1545/1563).
Motivado pela
tradição e também pela reforma religiosa, o culto a São Miguel atinge a
cidade e o campo, atraindo os governantes, o clero regular, secular e os
leigos (4).
Durante o seiscentos e setecentos, transforma-se em um culto dotado de
bases sociológicas ampliadas. Domina por completo as manifestações mais
populares, compartilhando, muitas vezes o mesmo altar com outra invocação,
notadamente das Almas do Purgatório, das quais é considerado o principal
defensor. Em Portugal, a representação do Arcanjo tornara-se freqüente nos
painéis existentes nos monumentos denominados alminhas. A exposição
alusiva ao culto às Almas do Purgatório (1993), organizada pelo Museu de
Etnografia de Póvoa do Varzim
(Fig.I), divulgou através de imagens, telas e retábulos de feição
bastante popular a amplitude dessa devoção
(5).
No Porto, a
representação de São Miguel encontra-se no convento de Santa Clara, nos
Congregados, em São Pedro dos Clérigos e no forro da Casa do Cabido da Sé,
onde o pintor Pachini (1737) reservou-lhe o painel central, pois é
considerado o patrono daquele Cabido. Ladeando a Sé, tem-se a fonte
entalhada por Nicolau Nasoni (1736), através da qual a representação dupla
em relevo e escultura de Miguel atinge o espaço público, tal é a
vitalidade da devoção entre os lusitanos.
Lisboa também possui
acervo representativo: o templo dedicado a São Miguel em Alfama, a imagem
luxuosa com capacete, estandarte e asas de prata do Museu da Sé; numa
versão mais popular, o Miguel com almas nas balanças e na peanha da igreja
de Santa Madalena
(6); esculturas e os azulejos do Museu de Madre de Deus, duas
imagens expostas no Museu de Arte Antiga, a excepcional pintura de autoria
de André Gonçalves (1685 -
V1762)
na tribuna de altar lateral de Menino de Deus (7),
dentre outras.
O presente
arrolamento expande aquele iniciado por Flávio Gonçalves e então,
reunidos, fornecem um conjunto expressivo de objetos devocionais dedicados
a São Miguel no âmbito das manifestações culturais do colonizador
(Gonçalves, 1959, 1963).
Salienta-se a presença da devoção na Espanha Andaluza e na Galícia,
divulgada na América, onde, a propósito, existem bons exemplos apelativos
da proteção do Arcanjo.
A partir da
constatação da representatividade do acervo inventariado, tentamos
estabelecer tipos iconográficos que nos ajudariam a compreender os modelos
desenvolvidos nas Minas Gerais. Existem iconografias com duração
prolongada, outras bastante particularizadas no tempo e espaço, sem
continuidade no Barroco luso-brasileiro.
2. Iconografia do
Arcanjo e fontes doutrinárias
São raras as
referências bíblicas sobre a atuação de São Miguel, embora haja passagens
elucidadoras a respeito de tipos iconográficos precisos (Dn 12, 1-3; Is
28, 17; Jó 31, 6-7; Ex 23, 20-21; Ap 12, 7-8). Das breves alusões, a mais
importante, sem dúvida, é a luta travada por Miguel e seus anjos contra o
demônio (Ap 12, 7-8), pois ela suscitou uma tradição iconográfica,
geralmente de feição Medieval, Renascentista, Maneirista e Barroca,
raramente Rococó.
Segundo a narrativa
sagrada, Lúcifer tentou se equiparar a Deus e, submetido por Miguel,
perdeu a graça e o acesso às alturas, sendo condenado, então, a transitar
nas partes baixas, na escuridão das profundezas dos abismos (Ap 20, 1-3).
Dentro dessa concepção fornecida pelo santuário de Gárgano estão obras
bastante recuadas, cujos atributos - lança e demônio - contaram com grande
repetição (Male, 1984, 245-279). Por haver sido lançado para baixo, para
as trevas, a cor de satã seria negra (8).
Na arte medieval, o demônio foi representado sob
forma hedionda e essencialmente animal. Grabar (1994)
observou notável popularidade nessa representação. Através dos
avanços da racionalização, o artista do Renascimento nem sempre o
representa com feição monstruosa, imaginando-o com traços humanos. No
barroco ibero-americano observamos a coexistência das duas representações,
com uma diferença: a tradição erudita inclina-se ao demônio antropomórfico
e a popular ao animalesco. Nas soluções intermediárias é possível
encontrar Miguel com aspecto refinado, enquanto o demônio é uma forma
híbrida entre o humano e o animalesco, como no exemplo da Matriz de Catas
Altas do Mato Dentro, atribuído a Francisco Vieira Servas (Coelho & Hill,
2001).
No século XII, o
santuário de Saint Michel (França) introduziu uma particularidade
estranha à arte italiana - o escudo, conservando o dragão e a lança. Esse
atributo possibilitou a difusão de um modelo bastante popular no barroco
ibero-americano.
Em muitos casos,
essa versão iconográfica recorreu simultaneamente a outra passagem bíblica
que demonstra a grandeza do Arcanjo no conceito divino. Refere-se ao
significado do nome Miguel, do hebraico Mi-câ-el, em latim Quis
ut Deus, Quem (é) como Deus (Ex 23,20-21). Dessa forma, em
escudos da gramática Barroca e Rococó encontramos a inscrição Quis ut
Deus ou então, simplesmente as iniciais.
O Românico e o
Gótico difundiram as balanças (9),
escatológicas por excelência, freqüentes também nas representações
renascentistas, maneiristas e barrocas. Naquelas cenas alusivas ao Juízo
Final, o Arcanjo Miguel tem balanças e almas
(Fig. II e III). Enquanto avalia as almas justas e as pecadoras, o
demônio, sorrateiramente, observa ou avança sobre o prato situado à
esquerda, lado que significa na linguagem religiosa a degradação
(Fig. IV) moral. Para Male e Reau, as balanças, difundidas pelo sul
da França, foram introduzidas durante o século XI como resultado da
conversão do Egito, que cristianizou o deus Anubis, cujo papel de juiz
post-mortem era simbolizado pelas balanças. Sem entrar no mérito dessa
interpretação, reconhecemos que a associação do Arcanjo com as almas não
foi dada literalmente pelas Escrituras, mas pelas fontes apócrifas
e estas circularam abertamente até por ocasião do Concílio Tridentino
(1545-1563).
Dos textos não
incluídos na Bíblia destacamos o Primeiro livro de
Henoque (cerca de 170), no qual se estabelece a relação entre o final
dos tempos e São Miguel, aceito como o principal dos arcanjos, o
mediador entre Deus e os homens, o misericordioso e magnânimo,
o encarregado de zelar pelos bons (Macho, 1984). As poucas passagens
escriturísticas referentes ao Arcanjo reiteram também a dimensão
escatológica, pois ele é considerado príncipe e defensor dos povos; não
bastasse, o soldado na luta contra o Anticristo (Dn 10, 13 e 21; Dn 12, 1;
Ap 20, 1-3, Ex 23, 20-21).
Na Visão de Paulo
(anterior a 250), também apócrifo, Miguel intercede, já no momento do
ofertório da missa de defuntos, em defesa dos justos, pois de Deus
recebera a missão de conduzir aquelas almas ao Paraíso (10).
Por amor a Miguel, a São Paulo e à humanidade, o Pai concedera às
almas um dia e uma noite de refrigério, de suspensão das penas
expiatórias, do sábado ao domingo, dia da ressurreição (11).
Segundo a Visão de Paulo, o Arcanjo Miguel roga fervorosamente ao
Filho de Deus em defesa dos filhos dos homens (Macho, 1981, p. 377). Tal
bondade e ardor, existentes na súplica do Arcanjo, constituem fonte de
inspiração para o teatro religioso, que vez por outra empregou palavras
edificantes proferidas por Miguel (Martins, 1969, p. 10 e 246). Assim
sendo, o Apocalipse de Paulo, dotado de linguagem bastante
compreensível e de pormenores realistas, teve sucesso extraordinário no
sentimento religioso, como também na construção de imagens relativas ao
além e à intercessão de Miguel na defesa dos justos.
Inúmeras concepções
religiosas viram nas balanças com seus dois pratos a imagem perfeita para
simbolizar "a justiça, o peso comparado dos atos e das obrigações"
(Chevalier & Gheerbrant, 1989, p. 114). A Bíblia também a considera
adequada para significar a eqüidade divina: "pese-me Deus em sua
balança justa, e conhecerá a minha simplicidade" (Jó 31,6) (12).Apesar disso, a introdução da balança nas representações referentes
a Miguel só ocorreu a partir do século XI. Acontece justamente quando se
encontram em ascensão os diversos testemunhos em favor de uma expiação
temporária, alguns já referidos nas Escrituras, outros acrescidos
pelas narrativas de viagens ao além e, outrossim, pela vivência apostólica
da Igreja que incentivaram a declaração conciliar sobre o purgatório no
século XIII (Concílio de Lião, 1274). Portanto, embora obras românicas,
góticas, renascentistas e maneiristas aludam principalmente ao Juízo
Final, a mentalidade religiosa de então se adianta, amadurece em seu seio
a crença no Juízo particular concomitante à morte. GRABAR destacou o
descompasso da escultura monumental medieval em relação ao pensamento
teológico, demonstrando que ela muitas vezes preocupava-se mais com o
preenchimento das arquivoltas concêntricas, domínio da aparência, do que
propriamente com a atualização do significado (Cf. Grabar, 1994, 363). O
Renascimento, Maneirismo e Barroco destacaram a imagem de Miguel com
balanças e almas, substituindo-lhe a túnica de anjo pela armadura de
soldado (Fig: X), porém, doravante investida de outro sentido, não mais
alusivo à consumação dos tempos, mas ao juízo individual.
A iconografia de
Miguel, com balanças e almas, difundiu-se no mundo ibérico coevo (13).
Contudo, nas Gerais, onde a colonização remete ao XVIII, as almas
desapareceram rapidamente, deixando as balanças vazias. Encontramos a
representação do Arcanjo ainda com almas nas balanças nas igrejas
paroquiais de Catas Altas do Mato Dentro, Caeté, Itatiaia, Ouro Branco,
São João del Rei, Santa Rita Durão, Camargos e no Museu do Ouro de Sabará
(Fig:V e VI). São ausentes nas balanças de imagens do Rococó (1760-1840) (14).
Somente em imagens datáveis das primeiras décadas do século XVIII,
portanto de fatura portuguesa ou bem integrada à tradição ibérica, houve
recorrência à representação das Almas do Purgatório. A mesma consideração
se aplica às obras do Rococó em Portugal, notadamente às eruditas,
inclinadas ao modelo de Guido Reni (1575 -
V1642).
A posição inclinada do corpo, o manto revolto, as sandálias vazadas e
leves, balanças vazias, gládio, enfim toda a elegância da configuração de
Reni influenciou bastante o Barroco internacional.
Durante a restauração da imagem de São Miguel de Cachoeira do Brumado
(distrito de Mariana), realizada em 1993, o CECOR-UFMG localizou pequenos
furos para a fixação de pinos nos pratinhos daquelas balanças, entalhados
em madeira. Este caso explica a perda de almas que, por serem entalhadas à
parte, ficavam mais expostas às lesões. Esclarece também a presença desse
atributo em meados do setecentos nas Gerais.
Na arte escultórica
das Minas Gerais, a representação de almas nas balanças teve duração mais
limitada que aquela verificada na pintura, prataria e talha em geral.
Neste caso, já não mais conotam um forte sentido escatológico, servindo,
sobretudo, como símbolo da Irmandade de São Miguel e Almas. Constitui um
simples decalque estético, resíduo ilustrativo de mudanças operadas no
sentimento religioso e na espiritualidade daquela época.
O imaginário cristão
medieval reconheceu a existência de almas errantes, que tiveram
penitências mal cumpridas e estariam penando aqui e acolá, suplicando por
preces (15).
O catolicismo pós-tridentino se esforçou para desbastar certos aspectos da
religiosidade popular, dentre eles encerrando as almas em processo de
purificação em uma única topografia do além, isto é, o Purgatório. As
almas continuavam a suscitar a sociabilidade, a piedade cristã, só que
através de canais formalizados. Não deviam se expor ostensivamente aos
homens, causando-lhes temores e embaraços. Nas Minas, a cultura lusitana
bem como as tradições populares chegam de uma forma fragmentada, em
virtude das condições específicas da colonização, acarretando o
enfraquecimento precoce da "onipresença dos mortos e sua coabitação com
os viventes" (Vovelle, 1987, p. 199 ss).
Por mais que se
tentasse transplantar para o Novo Mundo as instituições, costumes e
crenças próprias de sua cultura, o colonizador contava então com a
grandeza do território, os poucos núcleos urbanos, a diversidades das
culturas e a ausência de tradição cristã autóctone. Do ponto de vista
europeu, um verdadeiro caos, uma conspiração contra a preservação do
imaginário católico e também dos valores da religiosidade popular de
matriz medieval.
Por sua vez, o território das Gerais foi desbravado apenas em fins do
seiscentos, com o estabelecimento das primeiras vilas em 1711. Portanto,
entre a ocupação litorânea do Brasil e o povoamento da Capitania, houve um
hiato de quase 200 anos (Ramos, 2001). Nela foram os próprios leigos que,
assentando-se socialmente erigiram as irmandades (Boschi, 1986). Deste
modo, percebe-se uma mutação significativa na mentalidade religiosa de
origem, no sentido de dificultar a coesão, a solidariedade e o
enraizamento das tradições.
Enquanto a Capitania
das Minas se mantinha esquiva à edificação das alminhas, na Ibéria
elas se alastravam pelo meio urbano e rural do seiscentos e do setecentos.
Não bastasse a ausência daqueles oratórios com a invocação das almas, a
própria representação daquelas criaturas desapareceu precocemente;
primeiro das balanças, depois dos frontais de altares e de outros objetos
de culto. Trata-se de um motivo em extinção nas artes figurativas, ainda
que a devoção persistisse, sem o entusiasmo verificado no mundo ibérico.
As Almas Santas eram veneradas, contudo sem a vontade expressa de
objetivar, através de obras visuais, esse culto em particular. Por outro
lado, não podemos afirmar que a devoção já se encontrasse profundamente
interiorizada, a ponto de não precisar se manifestar no domínio concreto,
pois os testamentos mineiros não atestam apreço expressivo às benditas do
Purgatório, a não ser nas primeiras décadas.
Um modelo
iconográfico que obteve relativo sucesso nas obras refinadas, imitado
algumas vezes naquelas de confecção popular, representou São Miguel com
gládio. Em substituição à popular lança, o gládio inspirava-se na aparição
do Arcanjo ao papa Gregório em 815, ocasião em que o teria desembainhado
banhado em sangue (Vorágine, 1990, p. 622). Essa vertente apresenta a
dupla gládio e escudo podendo prescindir da presença do demônio em favor
de base em forma de monte, pois Miguel preferira sempre aparecer aos
homens sobre montanhas (cf. Reau,
1996;
Attwater,
1991).
Conforme a Visão
de Paulo, os anjos brilham como sol, têm o nome de Deus inscrito no
peito, trazem a palma - símbolo da vitória contra o mal, e a cruz, símbolo
maior para o cristão (Erbetta, 1981, 362). Na obra La leyenda Dorada
(1260), São Miguel é relacionado não só com o Juízo Final, mas
particularmente com a figura de Cristo, que exercerá o papel de juiz (Vorágine,
1990, II, 621). Como o segundo mais importante nessa cena, o Arcanjo se
apresentará diante do último tribunal portando a cruz, os cravos, a lança
e a coroa de espinhos (16).
Desde o Renascimento
e o Maneirismo, a produção visual explorou bastante o liame estabelecido
entre Miguel, a Paixão de Cristo e a consumação dos tempos. Na tábua
quinhentista, anônima, do Museu de Arte Antiga de Lisboa, alusiva ao
Julgamento das Almas, Miguel traz a espada e uma longa haste, ambas com
arremates cruciformes. Na gravura maneirista de Jérôme de Wierx
(Fig. VII) existente na Biblioteca Nacional de Paris, de
fins do quinhentos, Miguel é representado ao centro, com o destaque que
merece em face dos demais arcanjos, trazendo aos pés um demônio
animalesco, a palma à esquerda e a cruz abandeirada, à direita. Na
pintura de Santo Antão, em Évora, Corte Real o representa com a palma da
vitória e com o braço direito para o alto, encimado pela inscrição Quis
ut Deus. E no coroamento encontra-se um painel circular; nele estão
justapostos o Pai e o Filho crucificado (17).
A palma foi atributo
de pouca difusão no barroco, enquanto a cruz assumiu relevância enorme no
conjunto das obras da época Moderna (18).
Despojada ou ornamentada, ela ocupou ostensivamente a paisagem, morros,
encruzilhadas, pontes e adros, destacando-se também como atributo
iconográfico dos mais concorridos. Pietro de Cortona (1596 -
V1665)
registrou essa aliança iconográfica, que unifica o culto à Paixão, aos
anjos e ao Arcanjo Miguel. Nela, figuras angélicas de delicados gestos
apresentam os martírios de Cristo, enquanto, no centro da composição,
Miguel - com manto revolto, asas amplas e penacho exuberante - sustenta
graciosamente o Santo Lenho. No catolicismo barroco, essa iconografia
desenvolveu-se particularmente, transformando-se em um programa,
concorrendo com as versões tradicionais, inspiradas nos modelos fornecidos
por Gárgano, Mont Saint Michel e portadas medievais.
Entretanto, São Miguel conservou sua feição escatológica. Com a cruz (abandeirada
ou não) continuou a aludir à consumação dos tempos, só que de um modo
abrandado (19).
O atributo cruz, no
entanto, não diz respeito apenas a uma projeção futura. Das inúmeras
aparições do Arcanjo consta uma, assaz interessante, que suscitou
expressiva produção artística. Segundo a tradição religiosa, São Francisco
(1182 V1226)
jejuava e orava em louvor a São Miguel no Monte Alverne, em setembro.
Neste mês inscrevem-se duas festas: a celebração do Arcanjo Miguel
e a Exaltação da Cruz. Na ocasião, Francisco meditava sobre a Paixão de
Cristo e, por amor, quis compartilhar as dores do Calvário, recebendo os
estigmas da Paixão. Segundo o padre Antônio Vieira e a literatura piedosa
coeva, o anjo que imprimiu as chagas em São Francisco fora Miguel (Vieira,
1646/1945). Por essa razão os franciscanos veneram São Miguel e fizeram
questão de criar, no século XII, uma iconografia precisa para a cena da
imposição dos estigmas.
No barroco luso-brasileiro, os terceiros
franciscanos, cientes da tradição iconográfica da ordem, repetem-na nos
altares de seus templos e nas imagens que saíam às ruas nos andores das
“Chagas” e do “Amor Divino” por ocasião da procissão de Quarta-feira de
Cinzas (Campos, 2001). Com a iconografia citada, sobressai o medalhão
existente na portada magistral de São Francisco de Assis, de Vila Rica
(Cf. Trindade, 1951).
Tratamos aqui das variantes iconográficas básicas próprias da devoção ao
Arcanjo Miguel, o que não descarta, porém, a existência de outras
possíveis combinações. Observamos, entretanto, que o modelo em ascensão já
nas primeiras décadas do setecentos mineiro, diga-se de concepção bastante
culta, exalta a veneração à Paixão de Cristo.
3. A Devoção a São
Miguel e Almas no âmbito da Capitania de Minas Gerais
Em Os leigos e o
poder, há relação com trinta e cinco irmandades sob a invocação de São
Miguel e Almas existentes na Capitania das Minas, montante que as coloca
em terceiro lugar, em termos de invocação institucionalizada, sobrepujada
primeiramente pelas irmandades do Rosário dos Pretos e, em segundo, pelas
do Santíssimo Sacramento (Boschi, 1986, 187-188). Não se trata de
particularidade das Gerais, visto que também em Portugal e na França da
época Moderna houve classificação semelhante das devoções, o que atesta,
no plano da religiosidade, a popularidade atingida por esse culto (20).
A devoção, recuada
como vimos, foi reavivada com o Concílio Tridentino, juntamente com os
coros angélicos e Almas do Purgatório. No barroco luso-brasileiro foi
ratificada pelas Constituiçoens Primeiras:
(...)
encomendamos muito que tratem desta devoção das Confrarias; e de servirem,
e venerarem nellas aos Santos, principalmente á do Santíssimo, e do nome
de Jesus (esta não se desenvolve), á de N. Senhora, e das Almas do
Purgatório... porque estas Confrarias he bem as haja em todas as
Igrejas (LX-869).
Levantamos cerca de 60 localidades mineiras que
possuíram irmandades de São Miguel e Almas ou então apenas a devoção,
atestada pela existência de obras artísticas, capelas ou denominação de
sítios. Neste caso, são lugares em que o culto não chegou a ser
institucionalizado. O nosso estudo considera tanto a existência legal da
irmandade, como a presença de imagens em nichos e museus, os retábulos com
emblemas das almas sob a invocação do Glorioso Arcanjo.
A devoção a Miguel
Arcanjo acompanhou a rota de ocupação do território das Minas (21).
Geralmente as igrejas que foram elevadas à sede de paróquia no primeiro
quartel do setecentos tinham as irmandades do Rosário dos Pretos, das
Almas e necessariamente do Santíssimo Sacramento. Por sua vez, na região
de colonização mais recente como, por exemplo, a Comarca do Serro do Frio,
a devoção não provocou o mesmo fervor, resultando em diminuto acervo (22).
A antigüidade e a
relevância do culto às Almas são confirmadas pelo lugar destacado de seu
altar, sempre na proximidade do arco-cruzeiro, o primeiro do lado da
Epístola, fronteiro a outro sob invocação de Nossa Senhora (23).
Nas localidades que se conservaram indiferentes às novas devoções do
oitocentos e do novecentos, é possível constatar, ainda, a presença do
altar e respectivo Arcanjo exatamente na concepção original. Há casos em
que a invocação deixa o altar primígeno, distanciando-se da vizinhança da
capela-mor, em favor de devoções mais atraentes - Senhor dos Passos, Nossa
Senhora das Dores, Coração de Jesus... ou, então, é obrigado a dividir a
tribuna com outro santo. Ironicamente, transforma-se em inquilino no
próprio altar. Face a esse processo, dia a dia em aceleração, o Arcanjo
foi perdendo devotos. Suas imagens, das requintadas às populares,
progressivamente vêm sendo deslocadas para museus e coleções particulares.
A devoção suscitou enorme acervo cultural que atrai a atenção dos
comerciantes do setor, vigilantes ao lento arrefecimento do culto. Com
isso, tem-se a dispersão gradativa dos bens culturais alusivos ao culto a
São Miguel e Almas, que dificulta a realização de um mapeamento mais
completo.
Na Capitania, as
irmandades de São Miguel foram, mormente constituídas por brancos, embora
no plano individual a veneração não fosse restrita. Observamos
documentalmente que, na maioria das vilas, na ausência das Misericórdias,
as irmandades do Glorioso Arcanjo alugavam seu esquife (tumba) a preços
módicos ou até mesmo faziam o funeral daqueles que não tinham recursos
para isso
(24). Supomos que tal particularidade tenha sido a razão da
veneração declarada dos negros e pardos e daqueles que eram pobres em
geral (25).
Reau estabelece uma conexão entre o culto a Miguel e a tumba da boa morte
(talvez inspirado remotamente na barca egípcia), motivo pelo qual o
Arcanjo foi cultuado não só em altares, templos e oratórios, mas também em
cemitérios.
Por sua vez o
período áureo das confrarias de São Miguel e Almas coincidiu no plano
político com o longo governo de D. João V (1707 -
V1750),
qualificado pelo Sumo Pontífice de fidelíssimo e pela historiografia de "o
rei barroco" (Bebiano, 1987; D'Araújo, 1989). Declarada
foi a sua inclinação para a religião, as artes em geral e especialmente em
favor das Almas do Purgatório. Portanto, a propagação das irmandades das
Almas além de contar com o estímulo das autoridades eclesiásticas,
baseava-se na compreensão pessoal do rei. Era um ir e vir de influências
mútuas, enfim uma devoção compartilhada. Entende-se assim por que o culto
às Almas do Purgatório sensibiliza a Capitania, mormente durante o governo
joanino, sobretudo antes da longa doença que acometeu daquele protetor
pródigo.
4. Os altares de São
Miguel e Almas
No decorrer do
dezoito e princípios do dezenove mineiros, os altares de São Miguel, bem
como das irmandades em geral, subordinavam-se aos modelos internacionais,
ainda que em ritmos diferenciados. Temos assim os retábulos do tipo
Nacional-Português (1700-1730), D. João V ou Joanino (1730-1760) e o
"Rococó" (1760-1840) sendo que a transição constituiu um processo lento,
resultando soluções mescladas e tardias (26).
Durante todo o
período citado, houve elaboração de altares de São Miguel e Almas, mas
eles foram mais freqüentes nas primeiras décadas do setecentos. Contudo,
reconhecemos a existência de um conjunto expressivo de altares do Joanino
tardio (1745-1760) e do Rococó, geralmente decorrentes da substituição da
talha primitiva. Assim sendo, verificamos que a devoção não declina
abruptamente, ao contrário, resiste bem, atingindo com tranqüilidade o
próprio oitocentos. Todavia, em discreta retirada para favorecer
invocações em propagação: Paixão de Cristo e temas correlatos, Nossa
Senhora da Boa Morte, São Francisco de Assis, Sagrados Corações...
As irmandades de
maior poder aquisitivo, conseguiam acompanhar as novidades artísticas,
alteravam, via de regra, os retábulos originais ou pelo menos as mesas de
altares que, modernizadas, diferenciam-se do conjunto escultórico
respectivo. As modificações aconteciam ao sabor do momento, sem obedecer a
um programa teológico ou iconográfico. É comum encontrar a mesa Rococó (ou
mesmo sem estilo definido) em retábulo do nacional-português ou joanino.
Face às inovações estilísticas, mesas de altares perderam seus emblemas
distintivos - balança e/ou alminhas, conseqüência da depuração do fundo
escatológico da iconografia original. O acervo ficou alterado em seu
contexto cultural, o qual suprimiu a maioria das balanças com almas,
atributos recorrentes nos primórdios da colonização, quando eram fortes as
marcas de origem.
Observamos a difusão
de balanças sem almas em frontais de mesa de altares, em meio às
modificações introduzidas, a partir de 1745, na talha joanina (27).
Desde então, e no Rococó em particular, tornam-se flagrantes como
atributos as balanças vazias, a cruz ou a ausência total de
símbolos religiosos. As obras com a representação de balança vazia superam
numericamente aquelas dotadas de alminhas, porque são mais recentes, pois
correspondem ao redirecionamento da mentalidade religiosa no sentido de
uma racionalização. As criaturas do além vão se retirando do mundo da
representação, para serem veneradas sob uma forma mais interiorizada e até
arrefecida, doravante sem a mediação da imagem. Verificamos o domínio
recuado de uma iconografia mais solidária com a sorte das benditas do
purgatório, mais direta e espontânea, tal como encontramos em Monsenhor
Horta (antigo São Caetano), Cachoeira do Campo, Furquim, Itaverava, Vila
Rica (Conceição do Antônio Dias) e São João del Rei (28).
(Fig:V
e VI).
Em meados do XVIII mineiro, as transformações no âmbito da talha joanina
restringem seus elementos simbólicos em proveito do conjunto estético -
enxuto, estrutural, grandioso. Essa tendência em despojar a decoração do
seu significado religioso e desbastar os caprichos ornamentais, atinge o
gosto das irmandades, e notadamente os altares de almas feitos nesse
período. Com essa concepção, dois altares sobressaem pela monumentalidade,
requinte e despojamento ornamental, em relação aos modelos pretéritos - o
da matriz de Catas Altas (Fig: IX) e o da Sé de Mariana, ambos lado
Epístola, ladeando o arco cruzeiro. Eles obedecem a um pensamento prévio,
não foram feitos para depois assimilarem invocacões em nichos ou se
modificarem paulatinamente, como é o caso do altar de Miguel da matriz do
Pilar ouropretana, que atingiu esta iconografia a partir de intervenções
em datas diferentes.
As duas irmandades
das Almas, a de Catas Altas (29)
e a de Mariana (30)
já se encontravam constituídas em 1713 (31).
Há descompasso entre a iconografia do Arcanjo de Catas Altas, de concepção
tradicional e de fatura elaborada - demônio animalesco, balança com almas,
estandarte com inscrição (Quis ut Deus) - e o altar no qual se
insere, bem mais simplificado, embora refinado (Coelho & Hill, 2001). Os
atributos da imagem são literalmente escatológicos. Enquanto este conteúdo
é abrandado, ou mais espiritualizado, na ornamentação do retábulo,
encimado pelo grande arranjo escultórico, no qual se tem a alegoria da Fé
(uma jovem de olhos vendados trazendo uma cruz à direita), na tribuna
destaca-se o Senhor Bom Jesus de Matosinhos, circundado por uma massa
escultórica de raios luminosos; logo abaixo no nicho uma imagem de Nossa
Senhora das Dores, no espaço convencionalmente destinado ao sacrário (32).
Trata-se de altar de
fatura erudita, na forma e no conteúdo simbolizado, distante daquelas
mensagens diretas fornecidas pelas almas que, para suscitar a devoção,
mostravam as penas que padeciam. A fé é a virtude mais nobre,
indispensável à graça e à salvação eterna (Jó 8, 24). É cega, porque
aquele que crê "não esquecerá que os olhos hão de estar sempre vendados
para o ma, fechados ao mundo que despreza a lei de Deus" (33).
Na cultura barroca, a cruz materializa sempre a expulsão das trevas,
proteção divina, aversão à idolatria e, sobretudo, a meditação sobre a
morte, entendida como portal para a eternidade dos justos. O Senhor do Bom
Jesus e sua mãe evocam a memória o drama do Calvário, tão relevado no
catolicismo barroco. O destaque reservado ao Cristo, em prejuízo do
próprio padroeiro, representa o acatamento à pastoral tridentina, pois sua
imagem deve preceder a todas outras (34).
O catolicismo pós tridentino venera tanto a Paixão, que santos oragos
descem dos tronos, com modéstia, em direção ao sacrário do próprio altar.
De um modo geral, dia a dia vão desaparecendo aqueles sinais evocativos de
orações para as Almas do Purgatório, embora a mentalidade continue voltada
para a salvação eterna.
No altar da Sé de
Mariana, certamente concluído em 1748, estão presentes o Senhor Bom Jesus,
das Dores, Madalena, São João, numa reconstituição do que teria ocorrido
no Monte Calvário. Essa tribuna é vedada por um relevo escultórico
excepcional, incomum nas Minas. Nela foram entalhados os emblemas
representativos da Paixão do Senhor: a jarra, as mãos de Pilatos, o
martelo e a cruz com a legenda SPQR - Senatus populusque romanus,
iconografia comum aos cruzeiros da Capitania. Na tampa do sacrário tem-se
a representação do cordeiro envolto numa estrutura raionada brilhante,
para significar que ele, Cristo a vítima expiatória, é a verdadeira luz do
mundo (Jó 8, 12). No frontal do altar figura a balança vazia, doravante
sem as benditas almas do purgatório. A imagem de São Miguel tem peanha
lisa, levemente ondulada, balança vazia e, infelizmente, perdeu o outro
atributo que seria a cruz. Ao invés do apelo tradicional às almas, da
presença destacada de São Miguel no trono (tribuna), evoca-se a salvação
através dos méritos da Paixão de Cristo.
A obra mais recuada
dessa versão iconográfica, localizada em altar de São Miguel, é aquele da
Matriz do Pilar (Vila Rica). Ali, a irmandade de São Miguel procedeu à
fatura de novo retábulo em 1733, o qual apresenta tribuna espaçosa que, no
transcorrer dos anos, foi recebendo figuras da Paixão: em 1736 colocaram o
Crucificado, em 1747 Nossa Senhora das Dores, depois a Madalena e o
São João (35).
Um Calvário alcançado às custas do improviso, seguindo a pulsação do gosto
religioso.
O exemplo mais
acabado da aliança iconográfica, Paixão e Arcanjo das Almas, ainda que
improvisado no transcurso de meio século, encontra-se no templo de São
Miguel, Santíssimos Corações e Senhor Bom Jesus de Matosinhos - três
invocações em um só monumento - situado no antigo Passa-dez (Cabeças), em
Vila Rica. Trata-se da única obra monumental com iconografia das almas na
Colônia. É uma representação tardia (a do purgatório), mais sincronizada
com a mentalidade da primeira metade do século XVIII. Momento alto da
criação local, sintetiza, e simultaneamente renova, representações
dispersas e em franca extinção, imortalizando-as através daquela portada,
datada do último quartel do setecentos (36).
Uma grande obra que materializa e documenta, através da talha em pedra
sabão, o culto às almas (Campos, 1998).
Na singular portada
da Capela de São Miguel ouropretana há representação das almas no fogo do
purgatório (37).
Encimando a composição, há nicho ocupado por São Miguel, com escudo e
balanças desprovidas de almas. Através de análise estilística, atribui-se
o conjunto da portada a Antônio Francisco Lisboa e sua oficina, que
executaram obra provavelmente enquanto trabalhavam no frontispício de São
Francisco, também em Vila Rica. Apesar do tema representado e de certa
frontalidade do Arcanjo, a portada das Cabeças é posterior a 1778, ano em
que se lavrava e carregava pedra para aquele frontispício.
Em 1771, José Simões
Borges (morador em Congonhas do Campo) legalizava a doação de um terreno
ao ermitão Manoel de Jesus Fortes para a edificação da capela no Passa-dez
(Vila Rica) (38).
A invocação original era Santíssimos Corações e São Miguel e Almas,
comumente registrada nos documentos entre 1761-1792, período de construção
e ornamentação (incompleta) do templo (39).
Contudo, é interessante observar que a decoração interna do templo foi
progressivamente inclinando-se à devoção da Paixão, com a aquisição de
imagens do Senhor do Sepulcro, Senhor do Bom Jesus, das Dores, São João
Evangelista. Talha de confecção tardia, de um Rococó transitando para o
clássico. Não bastasse, os irmãos encomendaram uma via-crucis (interna)
para a sacristia, envolvendo painéis de Manoel da Costa Ataíde, relevos
com mesas de altares e imagem do Senhor dos Passos. A Capela
transformou-se em templo de peregrinação, com estalagem para os devotos (40).
Aos poucos, o templo dos Santíssimos Corações e São Miguel e Almas
assemelhou-se ao santuário de Congonhas, com a diferença de que, em Vila
Rica, os Passos da Paixão são internos e naquele são ao ar livre, segundo
a tradição ibérica (Massara, 1988).
Há documento de 1867 em que os devotos do Senhor Bom
Jesus instituem novo compromisso: doravante "eles pretendem fazer reviver
a antiga Irmandade de São Miguel e Almas, erecta na dita capela", cuja
veneração, constatamos, foi tão preterida a favor daquela do Senhor do Bom
Jesus, a ponto do Glorioso Arcanjo ser convertido em inquilino em seu
próprio templo (41).
Tudo pela Paixão de Cristo, a maior devoção do setecentos mineiro!
É interessante
registrar que o santuário de Congonhas, feito às custas das esmolas
levantadas pelo ermitão Feliciano Mendes, funcionava como paradigma
devocional durante a segunda metade do setecentos. A partir de então,
seguindo a motivação portuguesa, o culto se impõe nas Gerais,
preferindo-se os lugares altos e a topografia irregular. Curiosamente, a
construção e ornamentação de São Miguel e Almas do bairro das Cabeças é
contemporânea à fatura da via sacra escultórica de Congonhas, cujas
imagens foram confeccionadas entre 1796-1799. O templo ouropretano,
coincidentemente, localiza-se no topo de um sítio íngreme, embora não o
suficiente para comportar a presença de um escadório. Apresenta, no
entanto, condições adequadas para essa fusão de devoções, ou melhor, o
domínio do culto à Paixão. Dessa forma, o templo vilarriquenho amadurece
um processo iniciado nos próprios altares de São Miguel e Almas presentes
nas igrejas matrizes.
O
purgatório do Aleijadinho, tal como o de Dante, situa-se em uma montanha,
obtida através da suave ondulação da sobreporta. Nele, homens e mulheres,
com feições tranqüilas, purificam-se sem externalizar aflição ou
sofrimento. Diferentemente das representações costumeiras, o escultor
descobre bastante o peito de algumas almas, destacando ao centro uma
figura masculina, representada de corpo inteiro e nu, o que é raridade na
iconografia existente na Capitania.
Nessa concepção, há intenção de diferenciar rigorosamente os tipos humanos
(masculino/feminino) ainda que não se distingam plenamente os tipos
sociais, estes mais freqüentes na iconografia portuguesa. Ainda assim, o
Aleijadinho representou, excepcionalmente, um frade (com o tonsura), como
também a visão frontal de uma mulher com cabelos longos e soltos, seios
expostos, denunciando a profissão e.ou o pecado da luxúria. No purgatório
de Vila Rica e nas demais representações das Minas, não ocorrem sinais
distintivos - coroa, tiara, mitra etc. Domina uma iconografia avessa às
hierarquias tradicionais, afinada assim com a realidade colonial,
particularmente a mineira, onde as condições específicas da colonização
contribuíram para a diluição precoce do modelo baseado em uma sociedade
estamental. Por sua vez, as almas não são dotadas da feição genericamente
infantil que caracteriza, via de regra, as obras populares. Aleijadinho as
representou adultas e, outrossim, com fisionomia particular,
individualização, aliás, também afirmada na pintura do cômodo lado
epístola na matriz de São João del Rei (Fig.
VIII).
Mais uma vez
constatamos que nas Minas, o cuidado de adquirir bens temporais ocupava os
homens não prevalecendo a visão infernalizada do purgatório (42).
Diante justamente desta particularidade, é coerente apresentar uma visão
mais complacente, conformada aos homens daquele tempo!
Encimando o purgatório em um nicho, registro separado e superior, São
Miguel de elaborada confecção, não perde a imponência, ao contrário dos
Miguéis da talha portuguesa, que descem até as chamas e inclinam-se muito,
para, com as próprias mãos, retirar dali as benditas. Essa convivência
íntima de graus distintos de santidade não ocorre na portada de Vila Rica,
onde se materializa a nítida separação entre as formas de existência no
além, mais ou menos santificadas. Reconhecemos que não constitui uma obra
de fatura ingênua (composição compacta, ausência de movimento,
desproporção). Foi elaborada quando a racionalização do pensamento tendia
a apartar não só o mundo dos vivos daquele dos mortos, bem como a
estratificar rigorosamente o além dos eleitos. Assim, a visão do
purgatório não é infernalizada, mas também não conta com a participação,
em seu seio, da companhia direta dos intercessores, segundo o gosto de
matriz medieval. Eles se afastam progressivamente para o alto, para o
imperscrutável!
A imagem de São
Miguel, entalhada na pedra com certa frontalidade, porta balança vazia de
almas e escudo que se espraia, à moda de João Gomes Batista, seguindo
aquela forma divulgada nos rolos (filactério) dos profetas de Congonhas, o
atributo - o escudo - estranho à arte da comarca de Vila Rica, mais
freqüente nos acervos das comarcas do Rio das Mortes e Rio das Velhas.
5. A iconografia do
Arcanjo Miguel nas Minas Gerais
Na arte colonial
mineira Miguel foi representado de diversas maneiras. Em obras cuja
datação é mais recuada, traz uma bota pesada e austera. Em fins do
primeiro quartel do setecentos, o rude calçado vai dando lugar a uma
sandália vazada apenas nos dedos, com arremate trabalhado nas bordas, à
maneira de Jérôme de Wierx, demonstrando-se, assim, a intenção
ornamental. No geral, as imagens datáveis da primeira metade do século
exibem as pernas bem recobertas por um calçado fechado. A partir de então,
desenvolve-se uma versão graciosa: a sandália de tiras trançadas à moda
Guido Reni, colocando à mostra os pés e as pernas do Arcanjo. Desse modo,
nas imagens do Rococó há preferência pela leveza, elegância e
sensualidade. São formas mais adequadas à vida urbana do que ao mundo
rural. Essa trajetória, igualmente verificada no acervo europeu, evidencia
a passagem de um modelo severo (Barroco) a outro mais arejado (Rococó). O
academismo oitocentista trataria de recuperar a austeridade, retornando às
sandálias levemente vazadas. A bota foi usual nos lugares de ocupação
mais antiga, nos primeiros núcleos de povoamento, decorrentes do
desbravamento dos bandeirantes. Nas versões mais populares continuou
compacta. Denuncia o contato direto com o meio natural. Contudo, não é
específica da Capitania, e não foi colocada para expressar as dificuldades
enfrentadas diante do mundo natural. Por sua vez, a sandália parcialmente
vazada (nos pés) é coetânea com as povoações mais recentes, às vezes
decorrentes de um remanejamento interno das populações, quando já se tem
estabelecido o perfil urbano da Capitania. O calçado de São Miguel
fornece, portanto, indicações para a datação do acervo cultural e sobre a
modernização superficial da peça, caso tenha sido "maquiada" conforme o
gosto Rococó. Convém salientar que, em geral, por obedecerem à tradição,
nas obras mais rústicas, houve a tendência a prolongar o uso da bota
completamente fechada.
Outro atributo
importante para a iconografia de Miguel é o demônio Freqüente nas peças do
primeiro terço do setecentos, desaparece rapidamente, para voltar à cena
com o academismo oitocentista. Nas concepções eruditas, é representado à
maneira antropomórfica; nas populares, apresenta forma assaz variável, mas
sempre tendendo para o animalesco. A vertente erudita foi a maior
responsável pela retirada do demônio da peanha das imagens, em favor do
monte ou das nuvens. Conforme a tradição religiosa, São Miguel
manifestou-se aos homens em solo montanhoso - Itália, França,
Inglaterra... (Attwater, 1991; Reau, 1996). Segundo a doutrina, Miguel tem
uma missão escatológica, pois estará ao lado do Senhor no Juízo
Final, quando então trará arvorada a Santa Cruz. Os atributos monte ou
nuvens, que dominam a iconografia nas Gerais, aparecem durante as
primeiras décadas do setecentos, disputando, tanto nas obras de confecção
mais elaborada quanto naquelas ingênuas, com a representação do demônio. O
popular segue na esteira do erudito, imitando-o, divulgando-o e até
degradando-o (Grabar, 1994, p. 396 ss). Em fins do primeiro terço do
setecentos, o monte ou as nuvens, às vezes indistinguíveis, se impõem
definitivamente nas peanhas das imagens eruditas. Embora haja imagens
sobre nuvens ou montes, portando as botas aludidas, a sandália mais
austera ou plenamente vazada ajusta-se melhor ao novo tipo iconográfico,
desprovido de satã; mudança esta também com preferência pelas composições
graciosas e leves.
Na iconografia das
Minas, a lança encontra-se presente desde tempos recuados. Às vezes com
sentido funcional - submeter o demônio - outras, meramente para compor a
imagem. Durante o primeiro quartel do setecentos mineiro, houve uma
tendência, inclusive já explorada anteriormente na arte medieval, a dar a
forma crucífera ao arremate da lança, a qual serve de suporte para uma
bandeirola. Com o tempo, esta lança cruciforme transforma-se em uma cruz
bastante leve, mais adequada para as peanhas compostas de nuvens ou
montanha. Com isso destacamos que muitas imagens carentes de atributos (à
mão direita), necessariamente não teriam a lança, sobretudo se a peanha é
formada por montanha ou nuvens. Portanto, a partir da terceira década do
século XVIII, a representação do Arcanjo passa a contar, de maneira
progressiva, com a cruz, que pode estar substituindo a lança ou gládio.
Verificamos que composições do período Rococó compartilham da afeição à
Paixão de Cristo, generalizada nessa época na religiosidade da Capitania,
relevando o atributo cruz, ao invés da lança e do gládio. A introdução da
cruz nas imagens atinge a maior popularidade nas manifestações do Rococó.
O
gládio e o escudo, identificados no acervo proveniente da comarca do Rio
das Velhas e na do Rio das Mortes, são atributos mais raros, atingem o
Rococó, mas de maneira bastante particularizada.
Sem dúvida, o atributo mais costumeiro e duradouro, que não deixa esmaecer
na memória a face escatológica de São Miguel, é a balança, existente em
todo o período contemplado (sempre à mão esquerda). Ela acompanha a lança,
o gládio, a cruz, enfim é compatível com todos os atributos. Do Barroco ao
Rococó, as balançinhas constituem o atributo mais recorrente. No entanto,
modifica-se no transcorrer do setecentos mineiro: nos modelos mais
recuados pode conter a representação de almas, enquanto nas obras de
meados do século e particularmente do Rococó é rara tal presença. É como
se essas criaturas fossem rapidamente retiradas do mundo visível
(artístico e religioso) e, então, alocadas definitivamente lá, no
purgatório!
No escoar do
setecentos mineiro, as imagens alusivas a São Miguel perderam a
austeridade, tanto no que diz respeito à contenção do movimento na talha
quanto na policromia. As feições assumem a expressão doce, angélica, meio
afeminada. Os capacetes tornam-se delicados, sofisticados, cada vez mais
distantes da rígida forma inicial. A composição obedece à construção em
diagonais, possibilitando a movimentação das massas, revelada em volumoso
e revolto manto e vestimenta pouco militar, dotada de suave galanteria!
Minas Gerais deixou vasto acervo iconográfico alusivo a São Miguel, dia a
dia em processo de descontextualização. Inicialmente, bastante marcado
pela influência ibérica, porém, precocemente criou opções próprias,
voltadas para a depuração escatológica, - supressão das almas -, e
notadamente para o culto à Paixão. Na última grande obra em homenagem a
Miguel, isto é, a pintura da nave da igreja paroquial de Arcângelo de
Joaquim José da Natividade (XIX), ele ajoelha-se diante da Santíssima
Trindade, despojando-se do gládio e da cruz abandeirada. Trata-se de uma
nova época, mais afirmativa da vida terrena e despreocupada em relação ao
além!
SIGLAS
ACC:
Arquivo da Casa dos Contos de Ouro Preto
ACMBH:Arquivo da
Cúria Metropolitana de Belo Horizonte
AHMI:
Arquivo Histórico do Museu da Inconfidência (Ouro Preto)
AEAM: Arquivo
Eclesiástico da Arquidiocese de Mariana
APM: Arquivo Público
Mineiro (Belo Horizonte)
APNSC:
Arquivo Paroquial de N. Sra. da Conceição (Ouro Preto)
APNSP:
Arquivo Paroquial de N. Sra. do Pilar (Ouro Preto)
APSAT:
Arquivo Paroquial de Santo Antônio (Tiradentes)
CECOR:
Centro de Conservação e Restauração de Bens Culturais Móveis (Belo
Horizonte)
IEPHA:
Instituto Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico
IFAC:
Instituto de Filosofia, Artes e Cultura da UFOP (Ouro Preto)
IPHAN:Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (escritório de Belo Horizonte)
IBMI:
Inventário de Bens Móveis e Integrados feito pelo IPHAN
IEPHA/MG: Instituto
Estadual do Patrimônio Histórico e Artístico de Minas Gerais
MMC:
Museu Machado de Castro, Coimbra