Gomes, W. B. (2004). Primeiras noções da psique: das concepções animistas às primeiras concepções hierarquizadas em antigas civilizações. Memorandum, 7, 32-46.  Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm

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Primeiras noções da psique: das concepções animistas às primeiras concepções hierarquizadas em antigas civilizações

 First notions of the psyche: from animistic conceptions to the first
hierarchical conceptions in ancient civilizations

 William B. Gomes
Universidade Federal do Rio Grande do Sul
Brasil

Resumo

Neste estudo, argumento que a história do pensamento psicológico deve contemplar, como ponto de partida, considerações evolucionárias e antropológicas sobre a consciência humana. O artigo está dividido em três partes. A primeira traz as evidências empíricas e os campos teóricos que se ocupam do estudo da evolução humana. A segunda examina a definição de três termos básicos e fundamentais para o estudo do pensamento humano: consciência, psique e animismo. A terceira compara crenças de antigas civilizações sobre concepções do universo e da psique. A conclusão argumenta que a escolha da antiga filosofia grega como ponto de partida não despreza as contribuições de outras civilizações. O pensamento grego foi, em grande parte, uma síntese cuidadosa e criativa do conhecimento existente até então. Contudo, as interligações entre universo, corpo e psique, como entendidas pelas antigas civilizações, trazem as perguntas básicas e a lógica que deve orientar o estudo inicial dos fenômenos psicológicos.

Palavras-chave: animismo; consciência; história da psicologia; civilizações antigas.

Abstract

In this paper, I argue that the history of human thought should include, as a departure point, the evolutionary and anthropological considerations about human consciousness. The article is divided into three parts. First, I present the empirical evidences and the theoretical fields involved in human evolution. Second, I examine the definitions of the three fundamental terms for the study of thought: consciousness, psyche, animism. Third, I contrast different beliefs about the universe and the psyche from ancient civilizations. To conclude, I say that the usual choice for initiating the study of human thought with the Greek philosophy certainly includes the contributions from the ancient civilizations. Greek thought began as a careful and creative synthesis of existing knowledge. However, links between universe, human and psyche, as seen by ancient civilizations, bring up the basic questions and the logic, which should guide the initial considerations on the study of the psychological phenomena.

Keywords: animism; consciousness; history of psychology; ancient civilizations.

O estudo da história do pensamento psicológico vem se consagrando, internacionalmente, como uma forma sólida e segura de introdução ao estudo da psicologia contemporânea. O conceito de pensamento psicológico abrange todas as manifestações humanas que tem como centro a geração de sentido. O pensamento humano manifestou-se nas mitologias e nos rituais, justificando os estranhos fenômenos da natureza e dos diferentes destinos dos deuses e dos indivíduos. As mitologias prescreviam éticas, trazendo como recompensa o sucesso na terra, e algum tipo de vida depois da morte.

Mas o sentido humano é crítico, não se conformando com justificativas atreladas em crenças no sobrenatural. Era preciso buscar no natural a sua própria ordem e explicação. O interesse pela observação, pela objetividade, e pela medida surgem como projeto para desvendar a origem do cosmos. A preocupação com a objetividade foi uma importante manifestação da racionalidade humana.

A racionalidade não é tudo para o sentido e suas produções. As ações humanas são misteriosas e imprevisíveis, e parecem decorrer de uma relação nem sempre clara entre a força da paixão e o discernimento do intelecto. As justificativas para a conturbada relação entre paixão (Eros) e intelecto (Psique) variavam conforme as crenças dos povos. Quem pode antever o juízo de alguém? Cada humano traz o seu próprio entendimento das coisas e, por conseguinte, tudo cai no relativo, no pessoal e no subjetivo.

Dos confrontos entre mitos, racionalidade e subjetividade surgiram teorias que, a cada tempo, definiram e explicaram a natureza humana. As teorias prescreviam éticas e sugeriam formas para o proceder correto e justo. O termo concepção ontológica é usado neste texto para se referir às substâncias apontadas por crenças de diferentes civilizações como constituintes da capacidade humana de autoconsciência, e das relações da autoconsciência com o corpo e com o cosmos.

A fundação científica da psicologia nos finais do século XIX tomou como princípio a suspensão das discussões metafísicas. Não havia um projeto inicial para a construção de uma teoria geral de psicologia. A idéia era circunscrever fenômenos psicológicos e estudá-los em laboratório, de acordo com as práticas vigentes: indo do simples para o complexo ou do elementar para o superior. A posição não era unânime. Vários entendimentos sobre objeto e método foram propostos por diferentes pesquisadores, fortemente influenciados pelas crenças e interesses de seus países ou culturas.

O estudo científico da psicologia é fundamental e deve sustentar as ações profissionais do psicólogo. No entanto, não se pode negligenciar o estudo das crenças que envolvem as ações humanas e o modo de refletir sobre essas ações. Ao contrário do que pensavam os primeiros psicólogos cientistas, o estudo de mudanças no pensamento filosófico e nas discussões metafísicas sobre a natureza humana é parte importante do conhecimento psicológico. Enquanto crenças, elas constituem o social e o pessoal, estando presentes em cada situação em que o psicólogo for chamado a intervir. As crenças gerais são tão importantes quanto as crenças pessoais do psicólogo. As últimas, por sua vez, devem estar sob permanente suspeita. O trabalho do psicólogo é especialmente complexo por exigir, sobretudo, competência científica e sensibilidade sociocultural. A importância do conhecimento psicológico está em sua posição privilegiada de interagir com todos os saberes, sejam eles físicos ou biológicos, sociológicos ou antropológicos.

Por onde iniciar o estudo para tão exigente carreira? A resposta é simples. Inicia-se pela história do pensamento psicológico. A história antiga traz as raízes de nossas crenças. Em contraste, o pensamento filosófico moderno nos fornece as matrizes que sustentam as bases de nossas teorias. Há controvérsia se esse estudo deve começar pelos gregos, pelos chineses, pelos hindus ou pelos egípcios. Alguns até defendem que seja iniciado pela mitologia dos povos ameríndios. Na proposta deste texto, o início deve ser anterior a qualquer civilização e partir dos primeiros indicadores das origens da consciência humana. Desta forma, o presente texto está dividido em três partes. A primeira dedica-se à identificação das primeiras manifestações da consciência (autoconsciência). A segunda examina a definição de três termos básicos e fundamentais para o início do estudo do pensamento humano: consciência, psique e animismo. A terceira e última passa em revista algumas crenças de civilizações antigas sobre concepções do universo e da psique.

 

Consciência e evolução

A história das idéias em psicologia tem como ponto de partida o contexto que deu origem ao aparecimento da consciência na espécie humana (homo sapiens sapiens). Entende-se por consciência a intuição imediata que os humanos possuem dos seus estados físicos e mentais, e dos seus atos. Pergunta-se, então: como surgiu a consciência e quais foram os indicadores desta capacidade que atingiu o auge de sua sofisticação no homo sapiens sapiens? A pergunta introduz um problema de ordem histórica. Subsídios para a explicação evolucionária da consciência procedem de evidências paleontológicas, arqueológicas, primatológicas, antropológicas, neuropsicológicas, e moleculares. Nos últimos anos, avanços no estudo dos fundamentos neuroquímicos da consciência (Churchland, 1995; Edelman, 1989) e no mapeamento da seqüência nuclear do genoma humano (Keller, 2002) têm contribuindo grandemente para a compreensão do processo evolucionário humano. A apresentação das primeiras manifestações da consciência na humanidade requer a antecipação de conceitos e métodos que permitiram o levantamento de evidências sobre o humano pré-histórico. A revisão será breve e introdutória, mas suficiente para os fins propostos. Os comentários que seguem basearam-se nos três primeiros capítulos do livro História da etnologia de J. Poirier (1981).

Muitos escritores e viajantes da antiguidade dedicaram-se à preparação de textos e à classificação de documentos sobre práticas e costumes dos mais diferentes povos. No entanto, tais documentos e textos começaram a ser estudados e interpretados na Renascença. Na Idade Média, a hegemonia do cristianismo desestimulou a curiosidade por mundos extra-europeus e incentivou a depreciação de outros povos, como aconteceu tão duramente com os negros. Havia um esforço para manter a humanidade da forma que ela era reconhecida e aceita, isto é, em limites bem estabelecidos e determinados. Uma exceção foi o testemunho de Marco Polo [1254-1324], um mercador e aventureiro veneziano, sobre uma viagem que fez provavelmente entre 1271 e 1295 ao Oriente Médio, permanecendo entre os Khans mongóis (na região da atual China) por 17 anos. Marco Polo ditou suas memórias de viagens para um escritor que as publicou em 1477. As histórias apresentadas foram recebidas, na época, como fábulas engenhosas e audaciosas, e não como relatos de fatos reais.

A abertura para o conhecimento do que até então era considerado estranho, exótico e diferente pela velha Europa veio com a Renascença. As grandes viagens marítimas trouxeram documentos e produtos de terras e povos desconhecidos. Os europeus tornaram-se ávidos por notícias e histórias das terras e dos povos recém-descobertos, interessando-se pelas práticas e costumes das sociedades oceânicas, australianas e ameríndias. Foi uma época em que se reuniram muitos documentos de interesse etnográfico, com europeus visitando sociedades estranhas e recebendo visitas de membros de tais sociedades que eram apresentados em paradas e festas de coroação. O impacto destes contatos foi grande. Alterou conceitos vigentes e desenvolveu novos conceitos. Alguns defendiam que os povos recém-conhecidos não eram dignos de ser considerados seres humanos, por serem malditos e abandonados por Deus. Outros defendiam a valorização das sociedades exóticas, como mostrou enfaticamente a teoria do Bom Selvagem, proposta na França no século XVIII.

Reflexões sobre o conhecimento das sociedades estranhas e exóticas começaram no século XVII, através do estudo dos relatos de viagens e dos paralelos culturais, tendo como referência as culturas grega, romana e judaica. No entanto, persistia a atitude depreciativa aos povos recém-conhecidos. No século XVIII apareceram as interpretações antropológicas por meio dos estudos de filósofos e de naturalistas. Foi na segunda metade do século XIX que se começou a falar em ciências humanas (Dilthey, 1880/1983). Conduto, pode-se argumentar que o termo ciência do homem começou a ser usado no século XVIII, tendo como referência o livro Tratado da Natureza Humana do filósofo David Hume [1711-1776], publicado em 1739. De qualquer modo, estudos sobre povos pré-históricos, escritos de maneira aberta, livres de preconceitos filosóficos e religiosos, apareceram somente no século XIX. Setores da velha Europa haviam alcançado a maturidade necessária para, enfim, compreender a diversidade das atividades humanas em diferentes tempos e lugares.

Especulações sobre teorias da evolução são anteriores ao século XIX. No entanto, o marco revolucionário desta teoria foi a publicação do livro The Origin of Species em 1859 por Charles Darwin [1809-1882]. O avanço do biólogo foi favorecido pela publicação de Principles of Geology em 1830-33, por Charles Lyell [1797-1875]. Neste livro, Lyell mostrou que tudo que está sobre a superfície da Terra é produzido por processos físicos, químicos e biológicos, em longos períodos geológicos. Tais processos agem sempre da mesma maneira e com a mesma intensidade, sendo possível estimar o tempo das mudanças geológicas. Em outras palavras, as leis que governam os processos geológicos não se modificaram no decorrer da história da Terra. Essas idéias foram defendidas, primeiro, em 1785 por James Hutton e depois transformadas em livro em 1795, com o título de Theory of Earth. Hutton mostrou como o solo é formado pela ação dos elementos que alteram a cor, a textura, e a composição das rochas, e como as camadas de sedimentos são acumuladas. A idade da Terra, estimada em 6.000 anos pela tradição bíblica, estava sendo contestada.

Estudiosos da evolução (Bradshaw, 1997; Salzano, 1995)  presumem que o sistema solar que faz parte da Via Láctea deve ter surgido há aproximadamente 4,5 bilhões de anos, e a vida há 3,5 bilhões de anos. Na cadeia evolutiva, o Homo sapiens é um mamífero pertencente à ordem dos primatas. A diversificação dos primatas ocorreu em torno de 50 a 60 milhões de anos atrás. Na mesma época, ocorria a diversificação de muitos grupos de plantas e de animais. Os primatas se alimentavam de animais e plantas de maneira seletiva. As refeições eram realizadas no crepúsculo e durante a noite. Em virtude desses hábitos, houve nestes animais uma evolução de padrões básicos de comportamento, envolvendo olfato e alto grau de coordenação manual-visual.

Os humanos distinguem-se dos outros animais por características anatômicas e comportamentais. Na anatomia, os humanos diferenciam-se pela postura bípede, cérebro grande, e aspectos reprodutivos específicos. No comportamento, eles se distinguem pela linguagem, pela destreza visual-manual, pelo uso do fogo, pela manufatura e uso de instrumentos, pela organização social a partir de famílias nucleares, e pelo cuidado prolongado com a prole (Salzano, 1995).

evidências de que todos os humanos descendem de um único ancestral (Cavalli-Sforza, 2003). O Homo sapiens sapiens deve ter surgido em torno de 200.000 anos atrás na África e migrado para outras partes da Terra cerca de 100.000 anos. A migração da África para outras partes da Terra deixou traços nos povos modernos ao redor do mundo (Bradshaw, 1997). Do mesmo modo, todas as línguas parecem proceder de uma única língua. Genes e linguagens co-evoluíram em linhas similares, conforme princípios de diversificação e diferenciação.

Formas arcaicas do Homo sapiens viveram na África aproximadamente 700.000 atrás, e na Europa há 500.000 anos. Durante um período de aproximadamente 100.000 anos houve uma sobreposição do Homo Sapiens e dos remanescentes do Homo erectus. O mesmo ocorreu entre os Homo neanderthalensis e os anatomicamente modernos Homo sapiens sapiens, por um período que vai de 100.000 a 35.000 anos atrás. Coincidentemente, arqueólogos reconhecem a presença de senso estético em vestígios artesanais humanos a partir 35.000 anos atrás. Naquela época, final do período pré-histórico, o Homo sapiens sapiens vivia em pequenas comunidades agrícolas, confeccionava cerâmica, enterrava seus mortos com oferendas, e se expressava artisticamente em gravuras, esculturas e ornamentos. Por trás destas realizações estava o aparecimento da consciência, a mais elevada diferenciação do Homo sapiens sapiens (Leroi-Gourhan, 1990).

 

Consciência, Psique e Animismo

A manifestação da consciência está associada ao desenvolvimento da habilidade humana para resolver problemas novos e manipular diferentes conceitos simultaneamente. Os humanos agiam em grupos. Mudanças de táticas, quando necessárias, dependiam de avaliação entre os pares para proposição de novas estratégias de ação. Na relação com os pares era necessário fazer inferências sobre desejos, intenções, e crenças; implicando em autoconsciência dos próprios desejos, intenções e crenças. A consciência, por sua vez, é inexoravelmente relacionada com a memória em suas diferentes modalidades: 1) memória para identificação de objetos que organizados e agrupados constituem os eventos e as experiências, incluindo o ambiente circundante; 2) memória para eventos e experiências; 3) memória para o trabalho intelectivo propriamente, abrangendo pensamento, raciocínio e imaginação (Bradshaw, 1997).

Psicólogos evolucionários (Por exemplo, Bradshaw, 1997) procuram, em estudos comparatistas, rastrear a continuidade evolutiva entre animais humanos e não humanos, incluindo aspectos da consciência e da memória. Em contraste, etnólogos e antropólogos preocupam-se com as diferenças entre animais humanos e não humanos, em particular com o processo de formação da cultura. Por cultura entende-se o compartilhamento de crenças, hábitos, artes, instrumentos e organização social. A cultura constitui um conhecimento explícito e implícito, transmitido de geração a geração, podendo experimentar momentos de progresso, estabilidade e declínio. A este propósito Edmund Leach (1976, p. 35) resumiu a visão antropológica de humano em Claude Lévi-Strauss, do seguinte modo:

O homem é um animal, um membro da espécie Homo sapiens, sendo parente próximo dos grandes primatas e mais distante de outros seres vivos presentes e passados. Mas o homem, nós afirmamos, é um ser humano, e ao dizer isso se quer dizer, evidentemente, que ele é diferente e de alguma maneira um outro e nãosimplesmente um animal’.

A localização das características distintivas do humano moderno no plano evolucionário é, também, a localização dos aspectos que vão ocupar a atenção do campo de estudo que receberá, posteriormente, o nome de Psicologia. Entre esses aspectos destaca-se a manifestação da consciência como a capacidade para intuição imediata, para revisar o passado e para se voltar ao futuro. A consciência é a capacidade genérica e universal dos humanos de geração de sentido para eventos e experiências cotidianos, preenchendo vazios e faltas. Foi a condição de ser consciente e de poder dirigir a consciência para ela mesma que permitiu aos humanos, o desenvolvimento da reflexão, este ímpeto à procura de sentido para si, para o outro, e para o mundo circundante. Hearnshaw (1987), um historiador britânico de Psicologia, disse que quando os humanos começaram a se expressar artisticamente e a sepultar seus mortos com oferendas, eles estavam reafirmando o sentido dos limites entre vida e morte, e celebrando a própria sobrevivência.

A condição humana de constituir sentido emergiu no desenvolvimento de crenças entre os antigos. Essas crenças eram expressas em magias, rituais e mitos. Elas surgiram da observação cuidadosa, paciente e continuada do comportamento de outros seres humanos, dos animais, e da natureza. Os antigos podem ter se perguntado, por exemplo, qual a diferença entre humanos, animais e plantas; qual a diferença entre sua tribo e outras tribos; e qual a diferença entre cada um deles e os outros. Eles aprenderam, muito cedo, que estavam envoltos em uma rede de relações complexas e diante de fatos sobre os quais não tinham controle.

As respostas para explicar ou lidar com as questões apontadas apareceram gradativamente em explicações mágicas e, mais adiante, religiosas. As origens das crenças traçam o caminho da vida inteligente. Em sentido amplo, as crenças antigas ilustram a criação de sentidos gerais que estabelecem limites conceituais e práticos: o que comer, quando comer, que plantas e animais podem servir de alimentos, por que preservar o território da tribo, por que ir para luta com outras tribos, e por que nosso povo tem um destino e uma missão especial. Do respeito aos limites dependia a ordem da vida social e a garantia da sobrevivência.

A magia (Séjourné, 1957) traz a primeira forma de relação do humano com seu próprio corpo, com os outros seres humanos e com as forças onipotentes da natureza. Na magia, os humanos procuravam assimilar as forças da natureza ou se fazer semelhantes a elas. O ritual mágico era mediado por um feiticeiro, aquele capaz de viver os fenômenos naturais, assemelhando-se a eles. O feiticeiro invoca a chuva imitando-a, o mesmo ocorre com a imitação do menino que sumiu na floresta, e com as dores do corpo. O sucesso da mágica estava na capacidade de imitar com perfeição. Havendo falha, a justificativa estava na imperfeição do ato de imitar. As crenças mágicas revelam a presença da vida inteligente e as relações contextuais que apoiavam tais crenças e comportamentos. Os atos mágicos (Séjourné, 1957) indicam a falta de realidade do pensamento, a incapacidade de síntese, e a ausência de um centro de referência. A magia foi uma maneira de lidar com o múltiplo por meio de fragmentos, caracterizando-se como um modo de agir através de atos parcelados.

A religião apresentou-se como um avanço extraordinário na vida inteligente e trouxe o princípio de unidade capaz de lidar com emanações de todos, a interligação de partes que perfazem uma ordem, por exemplo, o cosmos invisível (Séjourné, 1957). É quando surgem as concepções de uma alma cósmica que ordem à natureza, e da alma individual que, de alguma forma, está também presente em animais e plantas. O humano emerge como centro de si mesmo, disposto a interferir no curso dos acontecimentos e na própria natureza. A unidade que se obtém na religião independe de sua condição politeísta ou monoteísta. Associados às crenças religiosas, surgiram os rituais e os mitos. Os rituais são sistemas de atos simbólicos regulados por regras próprias. O mito é uma narrativa simbólica de origem desconhecida, pertencente à memória coletiva de um povo, e que relata eventos ligados às crenças religiosas. As narrativas míticas podem envolver deuses, heróis, animais e plantas. Os rituais estão relacionados aos totens que são objetos simbólicos (planta ou animal), separados para lembrar ancestrais mortos ou para preservar tradições familiares ou tribais. A linguagem do ritual é a mesma linguagem do mito. Os rituais pré-históricos envolviam sacrifícios humanos e de animais. Por exemplo, Laurette Séjourné, uma antropóloga especializada no estudo do pensamento e religião do México pré-colombiano, publicado pela primeira vez em 1957, conta que na religião asteca o homem não tinha outro fim sobre a Terra que não fosse alimentar o Sol com o seu próprio sangue. Sem sangue o Sol se esgotaria e chegaria a seu fim. Aos astecas restava o dilema: matar seres humanos ou esperar pelo iminente fim do mundo. No exemplo, emerge claramente a construção do mito e a sua relação com o ritual de sacrifícios humanos, em altares especialmente preparados para este fim.

O estudo das culturas primitivas foi fortemente influenciado por Edward Burnett Tylor [1832-1917] um etnólogo britânico que descreveu as origens do pensamento religioso, em um livro publicado originalmente em 1871-1873, com o título de Primitive Culture (Tylor, 1958). Para Tylor (Tylor, 1958, vol I), nossos ancestrais eram movidos por curiosidades, intrigados com as próprias experiências dos sonhos e visões, e dispostos a encontrar uma explicação satisfatória para a morte. Eles, então, articularam idéias sobre princípios animistas e almas fantasmas, estendendo tais idéias para a alma individual, daí para toda a humanidade e daí para o mundo não natural. Assim, as primeiras explicações foram por meio de crenças que ficaram conhecidas como mitos.

Tylor (1958) tomou o mito como base para explicar as origens da religião. Para ele, os mitos interpretavam os fenômenos da natureza com interpolações alegóricas, de acordo com o olhar dos povos antigos. É autor da teoria do animismo, na qual ele explica a origem do conceito de alma. O termo animismo é definido como a crença em alma ou espírito como entidade distinta e separada da matéria. Poirier (1981) resumiu a teoria do animismo em quatro proposições: 1) o conceito de alma nasce da experiência do sono e da morte; 2) os conteúdos dos sonhos com suas cenas e dramas induziram a idéia de que durante o sono o ser humano pode agir, deslocar-se, continuar uma vida inaparente, mas real, e ser uma sombra dele mesmo, sendo esta sombra a alma; 3) a alma está presente em todos os seres vivos como um espírito vital; e 4) a alma dos mortos pode agir sobre os vivos. A relação entre sono, sonho e morte levou à dedução de que os seres são constituídos de um corpo visível e de um espírito invisível. A alma é móvel, está presente nos animais e até nos seres inanimados, e é a vida universal que anima a natureza. De resto, a alma dos antepassados, dos sacerdotes, dos chefes e dos heróis tem autoridade permanente e pode agir sobre os vivos para protegê-los ou prejudicá-los. Em suma, a alma que anima a natureza pode reencarnar-se em animais humanos, em animais não humanos, e em objetos.

As crenças sobre almas e espíritos foram se tornando complexas. Em sua reflexão sobre o sentido do mundo e das coisas, o ser humano foi diferenciando os espíritos e elaborando uma realidade de muitos deuses, com funções específicas: deuses do mar, do céu, da água, da colheita, da fertilidade, da guerra, do amor e assim por diante. Foi o que veio a se chamar de politeísmo. O monoteísmo, seguindo a teoria de Tylor, representaria uma etapa posterior e mais abstrata e estaria baseada em noções do bem e do mal.

Os conceitos de animismo e de alma atravessaram séculos e continuam presentes, com muita força, nos dias de hoje. O animismo, em termos gerais, é a doutrina de que os organismos vivos são animados por uma alma, ou seja, a alma é o princípio de vida orgânica e da vida psíquica. O conceito se refere a crenças cruas e ingênuas, nas quais se confundem imagens, sentimentos e realidade. As relações de causalidade se apóiam em idéias falsas, e as práticas mostram uma confiança absoluta no sobrenatural. O pensamento religioso  para Tylor (1958) é uma forma de animismo, variando em grau de sofisticação. No entanto, a magia foi um desenvolvimento importante da inteligência humana, procurando explicar as relações entre o homem e a natureza, aliás, a mesma preocupação da ciência moderna.

Nesta mesma linha de argumentação, encontra-se Wilhelm Wundt [1832-1920]. Para ele, o conhecimento da natureza não devia se basear em pressuposições apriorísticas, mas no relato psicológico do desenvolvimento humano. Este é o argumento dos seus estudos em Völkerpsychologie (Wundt, 1912/1916) quando ele trata da história da evolução da psicologia do gênero humano em quatro estágios: o homem primitivo, a idade totêmica, a idade dos heróis e deuses, e o desenvolvimento da humanidade. A argumentação é consistente com a virada conceitual provocada pelos evolucionistas, em contraste com a visão judaico cristã da degenerescência da humanidade. A humanidade seria, para Wundt, o ponto de chegada, a meta de aperfeiçoamento. O interesse de Wundt era apontar para as primeiras manifestações da vida inteligente no totemismo, nas idéias da alma, da vida depois da morte, até alcançar o desenvolvimento da personalidade e da reflexão evidenciadas nas idéias de heróis e de deuses. Para Wundt, a idéia da alma originou-se no medo instintivo do morto, o medo de que alguma força do morto pudesse vir a fazer mal e atacar os vivos. Esta alma deixava o corpo por ocasião da morte na forma de uma cobra, de um verme, de um pássaro ou de rato. Por conseguinte, estes foram os primeiros animais totêmicos. Os totens foram então estendidos a outros animais, a plantas e a objetos inanimados de acordo com o significado atribuído ao animal ou objeto. O animismo, para Wundt, estava associado a um outro conceito de alma, a alma como fôlego vital que deixava o corpo no momento da morte.

Obviamente, as posições de Tylor quanto à origem do pensamento religioso e de Wundt quanto à evolução do pensamento psicológico, foram criticadas. Durkheim (1912/1995) foi um crítico de Tylor, entendendo que a religiosidade, um fenômeno duradouro e consistente, não poderia ter se originado em uma ilusão. Para ele, o fato religioso era um fato social, não redutível à verdade empírica. Spiro (1984) alegou que as explicações de Tylor desconsideraram as implicações sociais e emocionais da religião. Bloom (1992), seguindo a perspectiva do criticismo religioso, defendeu a condição irredutível da experiência religiosa. Neste sentido, a religião seria uma experiência transcendente e sui generis. Por sua vez, Mead (1916) criticou Wundt sob o argumento de que suas posições estavam desatualizadas e de que não poderiam ser levadas em consideração quando tratando de temas antropológicos. Ressalvou, contudo, que as idéias psicológicas apresentadas eram interessantes e sugestivas. Gundlach e Robinson (1992) avaliaram as posições de Wundt como uma síntese da teoria social da Europa Continental. Para os autores, a evolução cultural em quatro etapas, como referida acima, não passava de reminiscências óbvias das informações darwinistas, e das teorias dialéticas defendidas no século XIX por filósofos como J. G. Fichte [1762-1814], G. W. F. Hegel [1770-1831] e K. Marx [1818-1883]. No entanto, o papel importante de Wundt está no reconhecimento da condição humana como geradora de mudança, criação e desenvolvimento da humanidade, em uma visão voluntarista e romântica.

De qual quer modo é impossível negar as evidências históricas de que árvores e plantas foram reverenciadas como totens por serem belas e úteis, e as evidências arqueológicas da ocorrência de rituais como o culto das ossadas. O estudo destes materiais mostra que os paleantropídeos veneravam as mandíbulas de raposa no fundo das tocas, e de que os neanderthalenses, os últimos paleantropídeos, sepultavam seus mortos (Leroi-Gourhan, 1990). O conceito de animismo de Tylor e a preocupação de Wundt com a evolução da consciência são importantes por trazer a idéia da unidade psíquica nos seres humanos e por procurar entender a geração de sentido na relação direta com a experiência. Os autores fornecem ainda uma perspectiva secular para o problema.

O termo animismo procede do latim anima que quer dizer respiração ou alma. Por sua vez, o conceito de alma é básico para a compreensão histórica das teorias psicológicas. Apesar da grande variação em concepções de alma, é possível restringir a abrangência do termo para três definições básicas: 1) alma como sopro (respiração), 2) alma como fogo (calor vital que se apaga com a morte), e 3) alma como sombra, duplo, ou simulacro que pode sair à noite, como ocorre nos sonhos; que pode aparecer aos vivos, como ocorre depois da morte; e que pode reencarnar-se em outros seres. O conceito de alma será redefinido continuada e simultaneamente na sucessão de idéias psicológicas. Afinal, o termo psique significa alma, isto é, respiração, princípio de vida, mente e cérebro.

 

Concepções ontológicas do universo e da psique

A gênese das idéias psicológicas e seus contextos constituintes tem sempre como ponto de partida uma visão do universo e do ser. Trata-se dos princípios ontológicos fundamentais. O que era a natureza fundamental da realidade ou ser para as civilizações antigas? Certamente, essas visões poderiam ser tantas quantas eram as civilizações. Algumas civilizações ganharam notoriedade pela sua proeminência histórica e pela influência que até hoje exercem em nossa maneira de ser e pensar. O conceito ontológico de ser humano será revisto em três civilizações: a chinesa, a indiana, e a egípcia. Essas civilizações trazem comporeensões bem articuladas e hierarquizadas sobre a relação entre cosmos, alma e corpo. As considerações que serão expostas estão baseadas na investigação exaustiva e inédita de Paulo Roberto F. Mosca intitulada Epistemologia Genética e Conhecimento Médico, a primeira tese de doutorado do Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, defendida em 1999.

Seria fascinante se fosse possível iniciar a exposição pela civilização mesopotâmica. Há evidências de que este povo existia por volta de 12.000 anos a.C. e de ter criado a escrita entre 4.000 e 3.000 anos a.C. No entanto, as teorias mesopotâmicas sobre o mundo e sobre o humano não foram preservadas. Sabe-se, contudo, que era uma cultura fortemente marcada pela magia e pela religiosidade (Mosca, 1999).

 

China Antiga

A origem dos chineses é pouco conhecida. Há evidências arqueológicas de civilizações que existiram na região hoje ocupada pelos chineses com datação de 5000 a.C. No entanto, o pensamento chinês, no que se refere ao taoísmo (caminho) começa a ser conhecida nos séculos V e IV a.C. (Mosca, 1999) A cosmologia chinesa é centrada em uma visão dinâmica e mutante do universo. As propriedades fundamentais do universo são explicadas através das várias noções do taoísmo. A explicação do mundo é dada através dos conceitos de Wuji (Sem Cumeeira), Tao (caminho), Taiji (Cumeeira Suprema), Yang (a grande luz), e Yin (a grande sombra). O Wuji (Sem Cummeeira) está além do pensamento e assim não se tem como falar sobre ele. O Tao traz a relação entre mestre e aluno. Taiji (Cumeeira Suprema) é o princípio natural do movimento perpétuo (nascimento, progresso, decadência, aniquilação) e controla as forças e movimentos constituídos por Yang e Yin. A dupla é mediada por um princípio único do Tao, sendo que um deles não pode existir sem a presença do outro. Há entre eles um controle mútuo. Yang expressa a atividade (wei), o ser (yeu) o movimento, (tong) e o princípio metafísico (li). Em contraste, Yin expressa a não atividade (wu wei), o não ser (wu), a quiessência (tsung), e o éter físico (k’u). Ainda, Yang está associado a calor, luz e masculinidade; e Yin a nuvens, chuvas, e feminilidade.

Os princípios construtivos do ser humano, na ontologia chinesa são descritos em uma ordem hierárquica incluindo: jing (essência seminal etérea), hing (corpo físico), k’i (sopro vital), p’o (alma racional ligada a materialidade), hun (alma racional cognitiva), e shen (alma superior, mais permanente que hun, e onde tche designa a vontade). A relação entre os níveis fica mais fácil de entender quando se diz que corpo físico (hing) é animado pelo sopro vital (k’i) e constituído por uma essência (jing). Junto ao corpo tem-se uma alma terrena (p’o) que está ao lado de uma alma celeste (Hun ou Huen). Na China Antiga havia uma supervalorização das almas mais permanentes sobre as modalidades corporais efêmeras. Neste sentido, os seres vivos são explicados pelo k’i que é o sopro vital e está presente nos vegetais, nos animais e nos humanos; e pelo jing que se desdobra em Xeou jing e em Chang jing. O Xeou jing é a sensibilidade e está presente nos animais e nos humanos; e o Chang jing é a racionalidade. Há uma analogia entre os princípios construtivos do ser humano e o corpo, sendo indicada as seguintes correspondências: hun-fígado, p’o-pulmão, shen-coração, siang-rins (fecundação), tche-vesícula (vontade). Essas proposições orientaram as noções religiosas, psicológicas e médicas da Antiga China.

 

Índia Antiga

Há evidencias arqueológicas de que uma civilização hindu, indiana ou harappiana existia, no subcontinente asiático, por volta de 2500 a.C., alcançando seu apogeu por volta de 2000 a.C., e desaparecendo por volta de 1750 a.C. A seguir, a região indiana foi ocupada pelos arianos que vieram provavelmente de Bactria e do norte do Iran. Os arianos rig-védicos estenderam seus domínios pelos vales do rio Indus (cerca de 1500 a.C.) e do rio Ganges (cerca de 900 a.C.). Os arianos incorporam técnicas usadas pelos harappianos, trabalharam na fundação de cidades, e desenvolveram o sânscrito, uma língua indo-européia na qual foi escrita a literatura clássica da civilização indiana. Ainda hoje o sânscrito é língua da cultura e das relações diplomáticas da Índia e das regiões que sofreram sua influência (atuais Afganistão, Japão, Indochina e Indonésia). A expansão da civilização indiana experimentou grande movimentação comercial com o Oriente Médio e com a Mesopatamia, entre 700 e 300 a.C. Foi neste período que apareceu o budismo (Mosca, 1999).

A ciência indiana é pouco conhecida no ocidente. O que sempre interessou muito na cultura indiana foi a sua filosofia. Entre as muitas tradições do pensamento indiano, a vertente sâmkhya foi a que parece ter exercido maior influência sobre os princípios ou elementos de ciência (Mosca, 1999). Os apontamentos que seguem sobre a ciência hindu tratarão de conceitos referentes ao sâmkhya e ao budismo. O yoga, outra influência hinduísta muito conhecida no ocidente, tem como referência o tratado Yoga-sutras de um autor chamado Patañjali, mas que viveu muito depois do período que está sendo aqui considerado (séc. II a.C.). O tratado deve ter aparecido em torno do século II d.C.

De acordo com o sâmkhya, o Absoluto manifesta-se em três grandes símbolos: o Grande Alento, o Incognoscível, e a Grande Mãe. O Grande Alento é a noção central. Trata-se de um movimento abstrato eterno, de uma Realidade Única. O alento é como a respiração, um movimento que está sempre indo e vindo. De acordo, com a tradição, o aparecimento e desaparecimento do Universo expressam, respectivamente, a expiração e inspiração do Grande Alento. O Incognoscível é o que respira um pensamento, sendo este pensamento o Universo. Por fim, A Grande Mãe é o Corpo do Universo Imóvel, isto é o espaço. A consciência individual tem como fonte e origem o Grande Alento.

O conceito de ser humano, na tradição sâmkhya, é concebido em planos que correspondem a um certo corpo ou revestimento (Mosca, 1999). A descrição que segue tenta expressar, em sua forma, o desdobrar destes planos e a linha de contigüidade existente entre eles: o primeiro plano é o corpo físico que é o Annamaya Kosha, o revestimento de alimento; ao qual se agrega o Prânamaya Kosha que é o revestimento do fluído vital; ao qual se agrega o Mânomaya Kosha que é o revestimento da mente com as emoções e os pensamentos materiais, ao qual se agrega o Vijnanamaya Kosha que é o revestimento do conhecimento, a porção superior dos pensamentos, o “eu” reencarnante; ao qual se agrega, o Anandamaya Kosha que é o revestimento do êxtase, correspondendo a alma espiritual, às vezes referida como buddhi, termo do qual se deriva buddha que quer dizer liberdade.

O budismo é uma religião e uma filosofia que embora tendo aspectos próximos ao hinduismo destacou-se com características próprias. O primeiro buddha foi Siddharta Gautama, nascido provavelmente em meados do século VI a.C. Gautama era um nobre da tribo dos sáquias. Aos 29 anos, preocupado com a fatalidade do envelhecimento, do adoecimento, e da mortalidade, ele renunciou aos bens materiais, ao conforto dos palácios, à convivência da mulher e do filho, e saiu em busca da verdade. Em suas andanças, primeiro encontrou dois mestres com os quais aprendeu a alcançar estados místicos de elevada consciência. Não completamente satisfeito, continuou com as suas andanças e encontrou os ascéticos com os quais ele viveu seis anos de austeridade, praticando flagelação do corpo através de penitências e jejuns. Sentido-se fraco e doente, Gautama deixou os ascéticos e seguiu o seu próprio caminho para a iluminação, através da meditação.

Siddharta Gautama fundou o budismo, uma filosofia e religião que se interessa profundamente pelo estudo da mente, usando como método a meditação. Ao contrário de outras religiões não tem um deus de adoração. O ponto central do pensamento budista é o sofrimento que é gerado pelas reencarnações sucessivas e suas sementes kármicas. A iluminação tem como objetivo superar o sofrimento e romper com o ciclo da reencarnação. O budismo tem sua síntese doutrinária em quatro verdades: a vida é plena de sofrimento, a origem do sofrimento é a idéia acerca da existência de umeu”, a cessação do sofrimento ocorre com a eliminação da idéia do “eu”, a obtenção dessa cessação se dá pela prática do óctuplo caminho. O nobre óctuplo caminho consiste em 1) compreensão correta, 2) pensamento correto, 3) fala correta, 4) ação correta, 5) meio de vida correto, 6) esforço correto, 7) atenção correta, e 8) concentração correta. As verdades budistas foram analisadas por Mosca, baseando-se para tanto no Samyutta-Nikaya, que quer dizer coleção (nikaya) de discursos (suttas). Com relação a segunda verdade disse Mosca (1999, p. 250):

O Samyutta-Nikaya 2:1,2 aponta que o “surgir por meio de causas é a seguinte: as construções mentais são condicionadas pela ignorância (a dualidade), a consciência é condicionada pelas construções, o nome e a forma são condicionados pela consciência, as seis esferas sensoriais são condicionadas pelo nome e pela forma, o contato é condicionado pelas seis esferas sensoriais, a sensação é condicionada pelo contato, o desejo é condicionado pela sensação, o apego é condicionado pelo desejo, a existência é condicionada pelo apego, o nascimento é condicionado pela existência, e condicionados pelo nascimento a velhice, a morte, o sofrimento, a dor, o desespero e os lamentos vêm à existência, esta é a origem dos males.

Com relação à quarta verdade, a análise de Mosca apontou o seguinte:

A interrupção das construções resulta da interrupção da ignorância, a interrupção da consciência resulta da interrupção das construções, a interrupção do nome e da forma resulta da interrupção da consciência, etc.; assim se produzem os males.

Os elementos da cadeia de causação condicionada são analisados pelo Samyutta-Nikaya 2:2-4 do seguinte modo (Mosca, 1999): a geração de qualquer coisa, consiste em três espécies de existência (dos prazeres sensuais, da forma e do sem forma), em quatro tipos de apego (aos prazeres sensuais, a uma mesma opinião, a regras e ritos, a idéia do “eu”), em seis tipos de desejos (o das formas materiais, o das coisas ouvidas, o das percebidas pelo olhar, o ligado ao olfato, ao gosto, ao tato, e à mente), em seis sensações (as que nascem em contato com o olho, com a orelha, o nariz, a língua, o corpo e a mente), em seis tipos de contato (contatos com o olho, etc.), em seis esferas sensoriais (as esferas do olho etc.), em nome (ou seja a sensação, a percepção, o esforço, o contato, a atenção) e em forma (derivada dos quatro elementos terra, água, ar, e fogo), em seis espécies de consciência (pelo o olho, etc.) em três espécies de construções (pelo corpo, pela palavra, pelo pensamento) e em relação a ignorância das quatro nobres Verdades. Mosca enfatiza que o budismo é a mais psicológica de todas as religiões. No oriente, o budismo exerce forte influência na vida espiritual, social e cultura desde o século VI a.C. A partir do século XX o budismo começou a fazer adeptos também no ocidente.

 

Egito Antigo

O Egito juntamente com a Mesopotânia na Idade Neolítica (ou da Pedra Polida) fundaram cidades e Estados organizados. A história geral descreve o Egito Antigo em diversos períodos políticos que abrangem desde o início das dinastias em 3100 a.C. à decadência e domínio estrangeiro em 332 a.C. (Ronan, 1987). O apogeu das artes plásticas, das composições religiosas e dos grandes sábios ocorreu no Antigo Império, entre 2686 e 2160 a.C. Foram deste período as descobertas que fundaram a matemática, a astronomia e a medicina. Os papiros originais deste período desapareceram, mas desenvolvimentos posteriores no Médio Império (2040 a 1786, a.C.) e no Novo Império (1567 a 1085 a.C.) supõem grandes elaborações anteriores. Mesmo os papiros médicos do Novo Império eram cópias ou adaptações de documentos que remontam ao Antigo Império (Mosca, 1999).

Os antigos egípcios conceberam uma ontologia complexa constituída por vários princípios e corpos (Mosca, 1999). Os seres humanos eram formados por um corpo físico (kha), um corpo etéreo (ba) que seria o alento vital ligado ao coração, uma alma ligada aos desejos (ka), uma alma mental inferior (akh), uma alma superior ou intuitiva (sah), uma inteligência espiritual (khw ou ku), e um espírito (atm). O corpo físico era descrito como possuidor de uma decadência inerente, sendo a parte que era mumificada e enterrada no túmulo. O corpo etéreo seria uma alma que permanecia na vizinhança do corpo do morto na câmara fúnebre ou voava livre. A alma mental inferior era um corpo astral, também designado de duplo, que tinha independência do corpo físico. Possuía características e personalidade própria. As oferendas aos mortos tinham como objetivo alimentar essa alma inferior para que ela pudesse ser purificada e não ficasse por atrapalhando a vida dos humanos na terra. A alma inferior era algo intermediário entre os deuses e os homens, podendo significar brilho e também o morto que retorna. A alma superior ou intuitiva era o corpo incorruptível que ia da tumba aos céus, era o corpo glorificado do ego. Ela era descrita como possuindo uma forma brilhante, luminosa e intangível ao corpo físico. Por viver com os deuses, a alma superior não poderia ficar aprisionada ao túmulo, para evitar essa catástrofe teria que recitar fórmulas mágicas. Por fim, o espírito era o filho de Ptah que fazia o sacrifício da individualização para viver. Na religião egípicia, Ptah era o deus criador de todas as coisas.

 

Relações entre explicações animísticas e positivas nas culturas antigas

O primeiro ponto a ser destacado na comparação é a inter-relação das substâncias que compõem o universo e a psique. Na ontologia chinesa aparece com clareza a visão tripartida de alma: 1) fôlego vital enquanto vida, presente nas plantas, nos animais e nos humanos; 2) sensibilidade, presente nos animais e nos humanos; e 3) a racionalidade presente nos humanos. O segundo ponto refere-se às interligações das explicações etéreas ou anímicas com as explicações positivas, isto é, conceitos baseados em um estudo empírico da realidade corporal. A distinção dessas relações é complexa, em parte pela escassez de documentos que possam servir de evidência e também pela grande variedade de vertentes ontológicas em cada grande civilização. Os chineses antigos não estavam convencidos de que conhecimentos anatômicos e fisiológicos fossem indispensáveis para a compreensão da estrutura do corpo humano. A prioridade voltava-se para as almas permanentes (shen, a alma superior) e não para a alma efêmera (corpo). A mesma hierarquia valorativa de almas existia para os humanos desta cultura. Para eles, o homem superior, por possuir uma estrutura interna elevada, não se deixa contaminar pela varíola e não é atacado pelos tóxicos, o mesmo não ocorrendo com o homem vil. O importante, para os chineses, era o desenvolvimento da capacidade para observar e intervir nos vários níveis da alma, colocados acima do corpo.

Os Indianos pouco conheciam de anatomia, fisiologia, patologia e terapêutica. Por exemplo, a medicina védica, uma das vertentes ontológicas indianas, associava a doença a negligências em relação aos rituais e as regras de vida. Os egípcios sabiam que o homem não podia viver sem alimento ou sem ar, que os excrementos eram ligados ao aporte de alimentos, e que havia substâncias dentro do corpo que preservavam a vida do corpo. Mas se constata uma forte racionalidade e um certo conhecimento anatômico fisiológico. Nos procedimentos de mumificação, juntava-se o conhecimento positivo das partes do corpo que precisavam ser removidas para evitar a putrefação, com o conhecimento não positivo de que era preciso acalmar o morto, prendendo e alimentando seu corpo vital. Na atualidade, reconhece-se que o pensamento indiano exerceu influência na lógica ocidental, apontando para certas inadequações e mostrando que certas distinções não são tão determinadas e inevitáveis como parecem ser. Por exemplo, o Tratado Filosófico Hindu (Upanisads) traz uma das primeiras formulações sobre monismo radical, isto é, a unidade essencial entre corpo e espírito.

O argumento central deste texto é a construção do sentido como característica básica e enunciadora da inteligência humana. Por sentido entende-se a compreensão imediata e necessária que se requer ao humano diante do curso da vida. O sentido é a interpretação das informações obtidas pelas sensações ou pelas elaborações imaginativas e que serve de base para ação ou resposta. Mas o sentido é, também, a interpretação da natureza da qual este humano é parte, e do mundo em que vive. As evidências das primeiras manifestações de sentido ou de inteligência são escassas e fragmentadas. A documentação arqueológica encontrada refere-se ao instrumental técnico, ao habitat, e as atividades religiosas e estéticas. O interesse de uma abordagem científica ao problema é saber como se chegou ao primeiro hominídeo, aquele que aparece dotado de uma consciência do próprio existir. Para aqueles que se orientam pela tradição judaico cristã, por exemplo, o problema está resolvido há muito tempo, tornando-se desnecessário procurar o elo da cadeia antropídea. Pois, pela graça de Deus, fez-se o primeiro homem, plenamente amadurecido. Por outro lado, aqueles que procuram uma compreensão secular defrontam-se com a hipotética teoria do animismo, ou seja a imaginação criadora enquanto atividade da consciência, buscando sentido para a relação entre a vida e a morte. Por esta teoria, o conceito de alma invisível e imortal é uma criação do sentido humano. De qualquer modo, a idéia de uma alma independente e separada do corpo, mas reunindo características intelectivas e/ou divinas tornou-se base para a explicação do conhecimento, da racionalidade, e, por conseguinte, do comportamento, ocupando a posição central em muitas teorias ao longo dos séculos.

As concepções de psique e de mundo das civilações que precederam aos gregos, como a China, a India e o Egito servem de ilustração para dois importantes pontos: a explicação para a relação entre o cosmo, o corpo, e a psique; e a conjunção de princípios ontológicos (o que é a realidade) com princípios axiológicos (o que é o bem e o belo), principalmente a ética no sentido de moral ou costume.

Nota-se nas teorias, em um primeiro plano de comparação, um esforço para explicar as relações entre o cosmos e os seres vivos: os chineses pelo sopro vital (k’i), os indianos pelo Grande alento e o Incognoscícel, e os egípicios pelo corpo etéreo, o alento vital. Em um segundo plano, as teorias procuram diferenciar a sensibilidade e também a força para o movimento, dando-lhe um status de materialidade: os chineses com a sensibilidade (xeou jing), os indianos com as emoções e os pensamentos materiais, e os egípcios com a alma ligada aos desejos. Em um terceiro plano, as teorias trazem o problema da racionalidade, os chineses contrapondo conhecimento e vontade, representados respectivamente pela a alma racional cognitiva e pela alma mental superior; os indianos no contraste entre o conhecimento e o eu reencarnante, e os egípcios no contraste entre a alma mental inferior (o corpo astral ou duplo) e a alma mental superior ou intuitiva. No último plano está a diferença entre a alma perecível e a alma imperecível, no caso dos chineses era a alma terrena versus a alma celeste; no caso dos indianos era a experiência libertadora da êxtase, a alma espiritual; e para os egípcios era a alma mental superior que iria da tumba aos céus.

As questões ontoaxiológicas decorrem das pressuposições ontológicas como base prescritiva (ética) em educação e saúde. Por exemplo, os egípcios diferenciavam claramente uma alma mental inferior que era independente do corpo físico mas permanecia ao lado do corpo, podendo sair atrapalhando e criando problemas para os vivos. A esta alma, eram dedicadas as oferendas para que ela se purificasse e permanecesse tranqüila em seu próprio lugar, sem sair para incomodar os demais. a alma mental superior requeria um certo cuidado em vida para que ela retornasse aos deuses, de onde havia vindo. Esse cuidado se fazia por meio da recitação de fórmulas mágicas. Quais as implicações práticas dessa ontoaxiologia? O cuidado com as sepultaras e as oferendas, no caso da alma racional inferior; e a recitação de fórmulas mágicas no caso da alma mental superior. No caso do budismo, a relação ontoaxiológica é muito clara e apresenta, em sua estrutura, semelhanças com teorias psicoterapêuticas contemporâneas. Basta considerar as características ontológicas das quatro vertentes e comparar com a prática budista.

As civilizações antigas, apesar das distâncias geográficas e das condições rudimentares de transporte entre elas, desenvolviam intensas atividades comerciais entre si. A China por volta de 1500 anos a.C. mantinha comércio com o ocidente, tendo a Índia como parte da rota de viagem. Há também evidências de relações entre Egito e Mesopotâmia desde 1100 anos a.C., conforme evidências no campo da astronomia, comprovadas no uso do gnômon, ponteiro que marca a altura do sol pela direação da sombra, e dos pólos para marcar hora, dia, e ano.

Entre os séculos VII e V a.C. ressurgia de quatrocentos anos de obscurantismo a civilização grega. A base desta civilização era a polis, a Cidade-Estado, a comunidade limitada e autônoma. O modelo havia sido inspirado nas civilizações orientais e consolidava-se politicamente em sua forma de governo democrático (Ronan, 1987). Tinha início o grande momento da Grécia antiga, caracterizado por intensa atividade comercial com outros povos e grande florescimento nas ciências e nas artes. Era uma época em que para se estudar se empreendia muitas viagens com o objetivo de conhecer as diferentes culturas, os grandes centros de conhecimento, e, sobretudo, os mestres egípcios, persas, chineses, e indianos. Neste período, surgiram eminentes sábios gregos que foram denominados de físicos por Aristóteles e de filósofos pela tradição. Por algum tempo, estes sábios foram chamados de primeiros filósofos. Tal entendimento não é mais aceito por se reconhecer a contribuição anterior de grandes pensadores de outras culturas mais antigas. Assim, quando os manuais de história da psicologia retornam aos gregos como ponto de partida, certamente não estão desprezando as civilizações anteriores. Contudo, coube aos gregos a construção da grande síntese e da ampliação deste conhecimento prévio, mesmo que privilegiando algumas direções em detrimento de outras. Na síntese grega ampliada e enriquecida assentou-se o alicerce do conhecimento ocidental contemporâneo, entre eles, a psicologia.

 

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Nota sobre o autor

 

William B. Gomes é psicólogo, Doutor em Higher Education (Southern Illinois University Carbondale, EUA), professor no Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Contato: Instituto de Psicologia – UFRGS, Rua Ramiro Barcelos 2600/113, CEP 90035-003, Porto Alegre – RS, Brasil. E-mail: gomesw@ufrgs.br

Data de recebimento: 31/07/2004
Data de aceite: 20/10/2004

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/gomes01.htm

 

 

 

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