Introdução
O interesse
pela compreensão da história da medicina no Brasil surgiu ao nos
depararmos com a importância dos cursos de medicina para o desenvolvimento
da psicologia no país. Faz parte do imaginário dos historiadores da
psicologia no Brasil a relevância das teses para doutor em medicina,
dispositivo utilizado desde a criação das Faculdades de Medicina até 1930
para titular os médicos. Isto porque estas teses se constituem nos
primeiros livros acadêmicos do Brasil, já que têm tiragem variável,
dependendo do interesse e da capacidade financeira de seu autor, e versam
sobre uma grande variedade de temas: os médicos são os grandes cientistas
do século XIX, abarcam em seus conhecimentos muito daquilo que hoje vemos
em outras áreas, como Ciências Sociais, Meio Ambiente, Educação,
Psicologia, Educação Física, além de Biologia e outros temas correlatos à
área médica.
Assim, a origem deste trabalho é o
interesse pelas referidas teses, objeto de investigação específica em que
procedemos à identificação e análise daquelas relativas à Faculdade de
Medicina do Rio de Janeiro, procurando verificar, nelas, a presença da
temática psicológica. Os resultados desta investigação, bem como da com o
periódico Brazil-Médico estão sendo apresentados em diversos textos a
partir das análises efetuadas.
Aqui, objetiva-se apresentar
especificamente um pouco da história da constituição dos cursos de
medicina no país, clarificando-se o campo da psiquiatria e sua distinção
dos demais campos médicos. Relevo especial é dado às principais teorias
psicológicas então aceitas, pois é nesta base que a psicologia irá se
constituir como um saber específico sobre a subjetividade, em
contraposição ao saber neo-escolástico sobre a alma que imperava até
então.
Ressalte-se que o propósito maior deste
texto é servir de auxílio a outros pesquisadores do tema, pois o interesse
pela contribuição médica à constituição da psicologia torna necessária uma
compreensão, pequena que seja, sobre a formação médica. Assim nos
preocupamos principalmente em apresentar de forma coerente a história
desta formação no Brasil e o aparecimento, nela, dos saberes psicológicos,
recorrendo para isto principalmente a estudiosos que já se dedicaram a
esta temática. Ou seja, não pretendemos utilizar aqui o recurso a fontes
primárias porque nosso objetivo não é a formação em medicina em si, mas um
de seus resultados, as teses. Estas, todavia, não são objeto de análise
neste texto.
O contexto
Até meados do século XVIII as cidades
brasileiras encontravam-se abandonadas por Portugal (Costa, 1979). A
ocupação do território era realizada por iniciativa particular dos
colonos. Quando Portugal desenvolveu um novo tipo de interesse, devido à
descoberta do ouro, passou a exercer um controle mais rigoroso sobre a
colônia, intensificando a extorsão econômica. Além disso, a disputa que
havia entre Igreja, Governo e Câmara
(1) (senhores rurais e grandes negociantes) gerava a impressão de
ausência de um poder único e de existência de uma lei obscura.
Paralelamente a isto, episódios de
sabotagem econômica e de rebeldia política – tanto de intelectuais, como
na Inconfidência Mineira (1789), quanto de camadas populares, como na
Conjuração Baiana (1798) – multiplicavam-se. As infrações dos colonos
passaram a ser punidas com truculência e arbitrariedade. Entretanto, esta
estratégia punitiva terminou por esgotar suas possibilidades de ação sem
modificar o perfil insurreto da população. O século XIX recebeu a desordem
urbana praticamente intocada. Esta conclusão pode ser comprovada pela
presença de diversas revoltas populares, como a Revolução Pernambucana
(1817), a Sabinada (1834), a Balaiada (1838) e a Cabanagem (1835) (Fausto,
1994)
(2).
Além dos problemas
das insurreições populares, as cidades estavam subjugadas a uma espécie de
absolutismo patriarcal. O monopólio das famílias rurais ocorria através
das câmaras municipais, e por isso tinham uma forte influência na
organização político-social da colônia. A família colonial não formava
cidadãos livres e autônomos, como é o nosso modelo de indivíduo moderno.
Ao invés disso, formava parentes e “apadrinhados”, todos dependentes das
decisões do patriarca. No seu apego à tradição, a família colonial
mantinha-se em um estado de inércia que impedia o estabelecimento da
ideologia liberal, cujos preceitos estabeleciam, como sua base, um sujeito
senhor do seu livre-arbítrio, autônomo, igual aos demais e livre para
estabelecer contrato no mercado de trabalho.
Ao desembarcar no Brasil em 1808 com a
corte portuguesa, D. João VI pretende estabelecer instituições
centralizadoras (Shwarcz,1995) que pudessem, de alguma forma, restabelecer
a ordem e ao mesmo tempo “civilizar”, ou seja, europeizar a sociedade.
Data dessa época a instalação dos
primeiros estabelecimentos de caráter cultural, como a Imprensa Régia (até
então não havia, no Brasil, imprensa autorizada por Portugal), o Real
Horto e o Museu Real. Vinculados aos modelos metropolitanos, os primeiros
centros de saber enxergavam o Brasil ora como espelho, ora como extensão
da corte portuguesa. D. João VI, logo após a mudança da corte para o
Brasil, centralizou o poder na colônia, promovendo o início da criação de
um Estado nacional e do desenvolvimento urbano, pelo menos na capital, Rio
de Janeiro. Como os integrantes da nobreza portuguesa poderiam viver num
país que não tinha os hábitos de consumo, lazer, higiene e moradia que
havia na Europa? O comércio internacional, as instituições culturais e de
ensino superior surgiram como instâncias modernizadoras e civilizadoras da
provinciana sociedade brasileira.
Dentro desse
contexto civilizatório foram criadas, em 1808, as Cadeiras de Cirurgia e
Anatomia que, em 1832, deram origem às Faculdades de Medicina da Bahia e
do Rio de Janeiro. Nesta época, o Brasil, agora país independente
(3), adquiria maior facilidade de contato com o restante da Europa,
o que propiciava a penetração de idéias correntes no Velho Mundo,
especialmente na França. Assim, apresentaremos a seguir uma breve
descrição do processo de institucionalização da medicina no Brasil,
seguindo alguns estudiosos escolhidos por sua dedicação ao tema, a fim de
melhor compreendermos o contexto acadêmico em que nosso objeto de estudo
se situava.
A Institucionalização da Medicina no
Brasil
Antecedentes
No período que se estende do século XVI
ao início do século XIX, os profissionais habilitados, portadores de
“licença”, de diploma ou “carta” para exercer a Medicina no Brasil, foram
os físicos e os cirurgiões. Sofreram, contudo, a concorrência dos não
habilitados, isto é, dos “práticos”, designados por uma vasta sinomínia –
curandeiros, curadores, entendidos, curiosos, entre os quais se incluíam
os pajés, os boticários e barbeiros, além dos jesuítas (Santos Filho,
1991; Maia, 1996).
Os físicos, ou médicos propriamente
ditos, foram principalmente os licenciados pela Universidade de Coimbra.
Os cirurgiões da época, por sua vez,
podem ser classificados em várias categorias. A grande maioria dos
residentes no país nos séculos XVI e XVII constitui-se dos “cirurgiões
barbeiros”, que se habilitaram como aprendizes ou ajudantes de mestres,
foram examinados e receberam “carta” (Santos Filho, 1991). Além dos atos
cirúrgicos comuns à época, sangravam, sarjavam, aplicavam ventosas e
sanguessugas, extraíam dentes, barbeavam e cortavam o cabelo, estas duas
últimas práticas restritas ao “barbeiro” do século XVII em diante.
Trata-se pois de uma medicina hipocrática, onde se estudam os humores,
pratica-se a sangria. Entretanto, seus fundamentos na religião impedem que
avance nos processos experimentais e empíricos (de vivisseção, por
exemplo) que já faziam parte e muito haviam contribuído para o avanço da
medicina européia (Rossi, 1998).
Outra categoria é a
dos “cirurgiões aprovados”, que seguiam um curso teórico-prático em
hospitais, se submetiam a exame e obtinham “carta” que lhes outorgava o
direito de exercerem todos os tipos de cirurgia e, mesmo, a própria
medicina, onde não houvesse físicos. Apareceram no Brasil a partir do
século XVII e dividiram a clientela com estes últimos. Finalmente, outros,
os “cirurgiões diplomados”, formados por escolas européias que não as
ibéricas, também aqui viveram no século XVIII. Entretanto, foram minoria
(Santos Filho, 1991; Salles, 1971).
Da criação dos primeiros cursos às
Faculdades de Medicina
O ensino oficial de medicina teve
início logo após a chegada de D. João VI ao Brasil, através da criação da
Escola de Cirurgia da Bahia e da Escola Anatômica, Cirúrgica e Médica do
Rio de Janeiro, em 1808 (Santos Filho, 1991). Ambas funcionaram no
Hospital Real Militar das respectivas cidades. Em 1813
(4) a Escola do Rio de Janeiro transformou-se na Academia
Médico-Cirúrgica do Rio de Janeiro, tendo o mesmo acontecido, dois anos
depois, com a Escola da Bahia.
O curso durava cinco anos; terminados
os exames do quarto ano, os alunos que o desejassem recebiam a “Carta de
cirurgia”. Os que completavam o quinto ano, por sua vez, ficavam
habilitados a exercer a Cirurgia e recebiam “licença para curar de
Medicina”. Entretanto, ainda na década de 20 do século XIX era intenso o
clamor em prol da reforma das Academias Médico-Cirúrgicas do Rio de
Janeiro e Bahia, apontadas como deficientes e anacrônicas.
(5)
Em 1829 é fundada a Sociedade de
Medicina do Rio de Janeiro
(6). Chamada, em 1830, a dar parecer sobre os planos de
reorganização do ensino médico, tem seu anteprojeto aprovado com pequenas
alterações pela Comissão de Saúde Pública da Câmara, e promulgado como lei
em 1832. A partir deste momento, estavam criadas as Faculdades de Medicina
do Rio de Janeiro e da Bahia. Até a confecção de um regimento, foram
adotados os estatutos da Faculdade de Paris (7).
Instituíram-se três cursos: o de Medicina, o de Farmácia e o de Partos, e
as faculdades passaram a conceder os títulos de “doutor em Medicina”,
“farmacêutico” e “parteira”. Como nosso objetivo refere-se às teses da
Faculdade de Medicina, vamos nos deter aqui às exigências para a obtenção
do título de “doutor em Medicina”. (8)
Os candidatos a este título deveriam
sustentar, em público, uma tese, escrita no idioma nacional ou em latim, e
impressa à própria custa. A tese compreendia uma “dissertação” e a
enumeração de “proposições” que se traduziam, muitas vezes, na transcrição
ipsis verbis de aforismos de Hipócrates.
O curso médico, pela nova
regulamentação, deveria ter a duração de seis anos, sendo composto por
quatorze matérias divididas em três seções: ciências acessórias, ciências
cirúrgicas e ciências médicas. De acordo com Santos Filho (1991), as
reformas que se processaram no regime monárquico e as seguintes, no
período republicano, visaram, em essência, adaptar o ensino ao progresso
técnico-científico que se verificava na Medicina.
As aulas nunca foram regulares, dada a
ausência constante de vários lentes. O ensino médico sofria ainda com a
precariedade do material escolar, com a falta de instrumentos, de drogas,
de vasilhames, e até de cadáveres para as dissecações anatômicas. A
precariedade de espaço físico é uma constante em todo este período. A
Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro só veio a ter sua sede própria em
1918, quando foi inaugurada a Faculdade Nacional de Medicina da Praia
Vermelha
(9).
A orientação doutrinária do ensino
médico
No século XIX afirma-se a influência
francesa no ensino da Medicina no Brasil, ao passo que, nos séculos
anteriores, prevaleceu, ou antes, imperou a Medicina ibérica. No século
XIX, a influência gaulesa estendeu-se não somente à Medicina, como às
demais ciências, à literatura, aos costumes, ao comércio. Teorias e
conhecimentos oriundos de outros países europeus, como da Alemanha e da
Inglaterra, também foram adotados no Brasil por muitos profissionais
quando já ia bem avançado o século XIX, embora tivessem presença menor que
a francesa. Desse modo, importava-se e aplicava-se a teoria, a orientação,
os métodos clínicos, a técnica cirúrgica e a terapêutica (10).
Os profissionais desta fase, denominada
por Santos Filho (1991) como pré-científica, são os doutores em Medicina
formados, na maioria, pelas Faculdades do Rio de Janeiro e da Bahia.
Substituíram os “físicos” dos três primeiros séculos. Obrigados à
auto-suficiência, forçados a entender e a praticar todas as
especialidades, todos os ramos da Medicina, constituíram o que se
convencionou chamar de “médicos-de-família” (11),
ou seja, aquele que medicava os membros de uma família, do recém-nascido
ao ancião, de ambos os sexos, atendendo-os ora como clínico, ora como
cirurgião, e ainda como parteiro. Era, além do mais, o conselheiro,
consultado e ouvido nas dificuldades e nos problemas domésticos.
A Medicina continua teórica e
essencialmente clínica, vale-se da observação ao pé do leito do enfermo,
baseia-se nos sintomas e em sinais visíveis e suspeitados, os quais,
depois de comparados e somados, determinam a natureza da doença.
Inexistiam os meios auxiliares de diagnóstico e, portanto, a casuística –
o registro dos casos – era um fator importante para determinar o
diagnóstico. A patologia repousava na sintomatologia, enquanto a origem,
as causas - por desconhecidas, ignoradas, ou ainda, por mal avaliadas -
eram atribuídas, como no passado, às condições climáticas, aos
desregramentos alimentares e sexuais, a estados emotivos, a “germes”,
vapores e humores indeterminados, genéricos, já que a teoria microbiana só
surge ao final do século XIX.
Entretanto, a medicina no Brasil também
começa a assumir o novo paradigma científico e, como tal, além de criar
instituições como as já citadas, necessita de seus meios de divulgação.
Surgem os periódicos médicos, dos quais dois se destacam por sua duração,
tornando-se um importante veículo de pesquisa, intervenção e divulgação de
idéias. São eles a “Gazeta Medica da Bahia”, primeiro periódico médico
brasileiro, criado em 1866, e o “Brazil Medico”, do Rio de Janeiro, criado
em 1887.
A “Gazeta Medica da Bahia” surgiu a
partir de um grupo de médicos,
(12) não pertencentes ao quadro de lentes da Faculdade da Bahia,
que se reuniam, a partir de 1865, em sessões científicas, com discussões
sobre Anatomia Patológica, alicerçadas em dados fornecidos pelo
microscópio. Esses médicos, com as suas cuidadosas observações e seus
estudos clínicos, iniciam uma nova era na Medicina brasileira. São eles os
predecessores e, mesmo, os arautos da Medicina experimental no país. Foram
denominados “tropicalistas”, ou, em terminologia atual, parasitologistas
(Santos Filho, 1991). A Gazeta Medica da Bahia, pelo seu conteúdo, pode
ser apontada como um verdadeiro tratado de Medicina Tropical brasileira (Schwarcz,
1995).
O Brazil Medico, ao contrário da Gazeta
Medica da Bahia, nasceu vinculado à Faculdade de Medicina do Rio de
Janeiro. Para Schwarcz (1995), o periódico adquirirá um perfil próprio a
partir de finais do século XIX com o fortalecimento da área de higiene
pública, quando terá um papel vital no combate às epidemias e na
divulgação das campanhas de saneamento e no apoio a uma “medicina
tropical” (p. 223). Em nossa pesquisa sobre este periódico observamos que
assume de forma explícita um caráter didático, de formação dos médicos,
através de artigos sobre estudos de caso, além de indicar literatura
atualizada, apresentar resumos de obras recém-lançadas na Europa e
estimular, via divulgação, a participação em eventos científicos. Em todos
estes casos, a partir dos anos de 1912 surge a menção explícita a livros,
eventos, estudos psicológicos
(13).
Medicina Social
De acordo com alguns estudiosos que
trabalharam com as teses defendidas nas Faculdades de Medicina, muitas
delas discorrem sobre temas sociais, de modo que podem ser consideradas
como pertencentes à Medicina Social. Segundo Antunes (1998), “tratam de
questões relacionadas à higiene e àquilo que hoje consideramos como
fatores psicossociais” (p. 30).
Machado (1978) também as situa na
esfera da Medicina Social, afirmando que esta se empenhava na busca de uma
normalização da sociedade com vistas a uma formação sadia. Era preciso que
a sociedade fosse organizada e livre de desvios. O que causava “desordem”
deveria ser eliminado ou devidamente controlado através de projetos
profiláticos e reparadores. Nota também que, nas teses, freqüentemente há
uma elaboração de propostas para várias organizações sociais, com a
finalidade de higienizá-las: uma preocupação com hospitais, cemitérios,
bordéis e, de maneira especial, com a escola e a própria instituição
familiar.
Assim, por exemplo, verificamos que a campanha pela
amamentação materna gera afirmativas como a de Duque, em sua tese
“Hygiene da Criança, do nascimento à queda do cordão umbilical” (1864,
pp. 23-24): “... o leite é, pois, incontestavelmente aquelle que a
natureza destinou ao recém-nascido, e o substitui-lo seria ir de encontro
ao voto desta, e diminuir a humanidade”.
Nessas propostas médicas observa-se
também uma certa produção de idéias moralizantes expressas através de
formas de controle de comportamento, sempre com a justificativa de visar
uma vida mais saudável.
Ubatuba,
por exemplo, em sua tese de 1845 (p.22): “Algumas considerações sobre a
educação physica”, dirige-se diretamente ao que deve ser o
comportamento adequado da mulher:
“vesti-vos, alimentae-vos regradamente e
compenetrae-vos d’esta verdade que sois esposas, mãis, e que sois mais a
alma de vossas famílias do que das sociedades”.
É importante
notar também que até o século XVIII o ensino na colônia portuguesa,
limitado às escolas elementares, era controlado pelos jesuítas. Em meados
do século XVIII os jesuítas são perseguidos em Portugal - e
conseqüentemente no Brasil - através das sanções de Marquês de Pombal (14).
Com a proibição do trabalho educacional dos jesuítas, o clima intelectual
brasileiro fica mais rarefeito, só movimentado pela entrada, embora
pequena e restrita, de ideologias liberais originadas no contexto da
Revolução Francesa e da Independência dos Estados Unidos.
No século XIX, contudo, a
intelectualidade brasileira se encontra em meio a um fluir de idéias que
ofereciam a possibilidade da construção de novos discursos filosóficos,
extremamente ecléticos, no dizer de Alberti (1999). Notadamente a partir
da chegada dos pensamentos evolucionista, materialista e, principalmente,
do positivismo ao Brasil (este já no último quartel do século XIX),
Alberti observa, nas teses da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, uma
crescente objetivação da alma, tirando-a das mãos de Deus e gradativamente
colocando-a sob o controle rigoroso da ciência.
Neste contexto, julgamos fundamental o
exame das idéias em desenvolvimento na Europa, especialmente na França,
que influenciaram significativamente a consolidação do campo médico
brasileiro.
Principais teorias européias influentes
no ensino médico brasileiro
A consolidação da psiquiatria enquanto
especialidade médica no Brasil acompanhou o desenvolvimento desta
disciplina no cenário europeu. Assim como na Europa, o nascimento da
psiquiatria aqui está estritamente vinculado ao nascimento do asilo
enquanto instituição psiquiátrica, de modo que a inauguração do Hospício
Pedro II, no Rio de Janeiro, em 1852, é muito freqüentemente considerada o
marco inicial do exercício da atividade psiquiátrica entre nós. A
construção do Hospício, inserida no emergente projeto de urbanização e
ordenação da cidade, simbolizou, entre outras coisas, uma tentativa do
nascente Império brasileiro em mostrar-se em consonância com a modernidade
européia.
Neste momento, as faculdades de medicina
do Rio de Janeiro e da Bahia — que, como dito, foram criadas em 1832,
sucedendo aos antigos colégios médico-cirúrgicos — possuíam uma cátedra de
Medicina Legal (Russo, 1993). Logo em seguida foi criada a cadeira de
Higiene, uma das principais áreas de pesquisa, sobretudo no Rio de
Janeiro. Somente em 1881, numa nova reforma do ensino médico (decreto
3024), foi criada a cadeira de Clínica Psiquiátrica e Moléstias Mentais,
que, no caso da Faculdade do Rio de Janeiro, foi interinamente ocupada
pelo também catedrático de Medicina Legal à época, Dr. Nuno de Andrade,
diretor
médico do hospício. Conforme
Venâncio (2003), somente em 1887 a nova cátedra e a direção do Hospício
serão ocupadas por aquele que é considerado o primeiro psiquiatra
brasileiro, João Carlos Teixeira Brandão (1854-1921). Observamos, pois,
que a Psiquiatria se constitui no Brasil por um lado no mesmo movimento do
que ocorrera na França – a partir da existência do hospício e do trabalho
com pessoas internadas e classificadas como doentes mentais (e não mais os
loucos a serem considerados como “diferentes” nas ruas da cidade ou
colocados nas naus dos desvairados). Por outro lado, ela se constitui a
partir da Medicina Legal, ou seja, as questões da inimputabilidade e da
periculosidade do réu ou criminoso são questões prementes à época e fazem
com que a investigação dos atributos do indivíduo seja uma questão
relevante na interseção da Medicina com o Direito, o que vai justificar,
por exemplo, a relevância da teoria da degenerescência, como veremos
abaixo.
Esta e outras idéias em desenvolvimento
na Europa, e ainda mais especialmente na França, influenciaram
significativamente a consolidação do campo médico brasileiro, de modo que
grande parte das teses elaboradas pelos alunos da Faculdade de Medicina
para sua conclusão de curso é muito freqüentemente considerada uma mera
reprodução ou compilação de autores franceses, dentre os quais se situam,
por exemplo, Pinel, Esquirol, Morel, Ribot, tese com a qual não
concordamos por partilharmos do princípio da “tradução” tão bem exposto
por Schwarz (1992) (vide
nota 10).
Philippe Pinel (1745-1826) foi o
primeiro autor a estudar a loucura de forma empírica, contrapondo-se às
concepções teológicas e metafísicas desenvolvidas até então, as quais,
vendo os loucos como vítimas de possessões demoníacas ou de outros
fenômenos sobrenaturais, não os encaravam como doentes e, portanto, como
pertencentes à esfera médica. (15)
Representante do espírito iluminista de sua época, Pinel defendia como
princípios básicos de orientação de um médico na busca da verdade os
mesmos seguidos pelas outras ciências naturais para este fim (Teixeira,
1997). Assim sendo, preconizava que os médicos partissem do estudo dos
sintomas apresentados para, a partir daí, se chegar a um quadro clínico
mais geral, o que constituiria o método a ser utilizado na investigação e
análise das doenças mentais. Segundo Teixeira (1997) as noções
introduzidas por Pinel consolidaram novos conceitos operatórios:
(1) uma semiologia psiquiátrica, a partir do olhar
do alienista que convive, observa e descreve minuciosamente o
comportamento dos doentes; (2) uma nosografia, com a conhecida divisão
pineliana em quatro grandes classes, a saber: a mania, a melancolia, a
demência e o idiotismo; (3) uma abordagem clínica, que parte dos sintomas
para chegar aos quadros clínicos; e (4) uma terapêutica específica da
loucura, voltada para o tratamento das causas corporais e, principalmente,
das chamadas causas morais, isto é, das paixões descontroladas, ardentes
ou pervertidas que estariam na base da insanidade (p. 46).
O tratamento moral, proposto por Pinel
como terapêutica específica para a loucura, defendia a regularização e
conseqüente disciplinarização dos hábitos dos internos, o que se traduzia,
por exemplo, no estabelecimento de horários para todas as atividades, na
definição de uma rotina precisa para os trabalhos, na administração dos
momentos de recreio, enfim, no controle de tudo aquilo que contribuísse
para uma rigorosa ordenação do seu quotidiano. Além disso, a restrição aos
jogos que exaltassem as paixões e o reconhecimento e sujeição à autoridade
do médico, também eram tidos como elementos fundamentais abarcados nesta
proposta terapêutica (Castel, 1978).
Na concepção de loucura desenvolvida
por Pinel estava presente a idéia de perturbação do entendimento, uma
disfunção do intelecto ou faculdade de pensar, onde o delírio figuraria
como um sintoma necessário para o diagnóstico da doença mental.
Jean-Etienne Dominique Esquirol (1772-1840), complementando Pinel, amplia
a sua noção de loucura quando a descreve também como uma “aberração
profunda dos sentimentos morais” (Castel, 1978, p. 270), e, assim,
reafirma a importância do asilo enquanto o único local apropriado para o
tratamento moral dos alienados. A partir de Esquirol, o afastamento social
do louco passa a ser considerado terapêutico por si só, e o hospício passa
a ser visto definitivamente como um instrumento necessário para a
intervenção médica na loucura, do qual, portanto, o alienista não poderia
prescindir.
A Teoria da Degenerescência,
desenvolvida por Bénédict-Augustin Morel (1809-1873), foi uma das grandes
influências no meio médico brasileiro da segunda metade do século XIX e
inícios do XX, principalmente por sua relevância para a Medicina Legal,
como exposto acima. Defende a idéia da transmissão de uma predisposição do
organismo à degenerescência, que pode ser identificada pela ocorrência de
traços físicos e morais característicos aos degenerados.
Leonel Gomes Velho, em sua tese “Do
degenerado e sua capacidade civil”, de 1905, apresenta as idéias de
Morel e de alguns de seus seguidores, procurando inicialmente apontar as
diferentes definições de “degenerado” e de como este se encontra presente
em todos os recantos da vida – não existem só os degenerados débeis, pouco
aptos para as lutas pela existência, mas também os superiores, aqueles
indivíduos
originais, bizarros e excêntricos que, apesar de
serem triunfantes na vida e até ocuparem elevadas posições sociais, são
tão anormais sob o ponto de vista cerebral quanto os idiotas. Devido a
este fato, os débeis, por serem impotentes, são menos prejudiciais à
sociedade que os degenerados superiores (s/esp).
Assim, a degenerescência não estaria
ligada somente à alienação mental, mas à idéia de desvio de modo geral.
As causas da degeneração são pensadas
como podendo ser tanto físicas quanto morais. Como possíveis causas
físicas são apontadas a insalubridade dos climas, a má higiene e a
insuficiência das moradias e da nutrição, sendo atribuída especial
importância ao meio enquanto produtor de condições propícias à instalação
de processos degenerativos. Como causas morais, por outro lado, figuram a
ignorância, a avareza, a sede de prazeres, a prostituição, os fanatismos,
entre muitas outras (Serpa Jr., 1998, p.18). No entanto, também são
apontadas com freqüência lesões físicas, morais e intelectuais como sendo
conseqüências do processo de degeneração, o que demonstra o caráter
paradoxal deste processo, onde causa e efeito são muitas vezes
confundidos, num processo de retroalimentação.
Uma das formas encontradas pela
medicina para intervenção neste processo foi a higiene, mencionada por
Morel como possibilidade de tratamento para a degenerescência. A higiene
moral empenhava-se na moralização dos hábitos e costumes do degenerado, a
partir da disseminação de uma lei moral que, sendo universal, seria o
principal fator de união da espécie humana. À higiene física não é
atribuída menor importância, pois se proclamava uma interdependência do
físico e do moral, já que somente em um organismo saudável a moral poderia
desenvolver-se adequadamente.
É interessante notar que a
problematização acerca das relações entre o físico e o moral é bastante
representativa das discussões em voga neste momento. Como já vimos, com a
chegada dos modelos científicos em vigor na Europa, como o positivismo, e
o progressivo abandono do “discurso da alma”, pela entrada em cena do
discurso biologizante, a definição de uma localização física das funções
psíquicas - ou seja, do que no momento anterior era entendido como
“atributos da alma” - passa a ser o objetivo primordial perseguido pelos
médicos de então. Este é um momento que Keide e Jacó-Vilela (1999)
denominam como um processo crescente de fisiologização da alma.
As idéias psicológicas em
desenvolvimento na França e na Alemanha, traduzidas, respectivamente, nas
figuras de Ribot e Wundt, também exerceram influência na produção
acadêmica de nossos médicos.
Wilhelm Wundt (1832-1920), fundador do
Laboratório de Psicologia em Leipzig em 1879 é reconhecido, de uma maneira
geral, como o fundador da Psicologia científica, embora este rótulo muitas
vezes deixe ocultas as condições de possibilidade para este papel criadas
por trabalhos anteriores, como os de Muller e de Fechner, bem como
enfatiza a vertente experimental de seu trabalho, desdenhando sua
“psicologia dos povos”. Esta será a face de seu trabalho que chega ao
Brasil e propiciará, já nos princípios do século XX, a montagem de
laboratórios.
Na França, por sua vez, a Sociedade de
Psicologia Fisiológica, fundada em 1885, em Paris, sob a liderança de
Theodule Ribot (1839-1916), surge por sua vez em contraposição à vertente
filosófica anteriormente predominante designada como “espiritualismo” (16)
e pretendia contribuir para uma autonomização da psicologia, afastando-a
da filosofia e possibilitando, a partir de um maior comprometimento com a
fisiologia, que obtivesse um estatuto científico.
Assim, ressalvadas as diferenças entre
os dois autores acima, observa-se que apresentavam em comum a compreensão
de que a psicologia fisiológica deveria basear-se em fatos concretos,
evitando quaisquer especulações de cunho filosófico que a aproximassem de
uma metafísica, pois somente desta forma poderia ser, de fato, enquadrada
no conjunto das ciências. Com este intuito, buscava-se estabelecer uma
correspondência entre os fenômenos psicológicos e fisiológicos,
afirmando-se, com base nos novos conhecimentos acerca do sistema nervoso,
que eram de uma mesma natureza, fundamentando-se assim organicamente a
atividade psíquica. Ribot, contudo, terá maior presença entre os médicos
brasileiros pois sua psicologia era mais centrada na observação da
patologia, que não via como negação ou oposição ao funcionamento normal,
mas como degradação deste. Seus estudos dirigidos para a patologia mental
têm grande importância para esta vertente da psicologia experimental
européia, contribuindo para o fortalecimento de uma abordagem clínica por
parte de seus teóricos. Partia-se do princípio de que, a não ser por uma
variação quantitativa, os fenômenos patológicos são idênticos aos normais,
o que significa, em outras palavras, que a patologia poderia viabilizar
estudos sobre as condições de normalidade, já que seria equivalente a
estas em uma outra escala. Assis,
em sua tese “Das emoções”, de 1892, após dizer que a psicologia
experimental talvez explique a insensibilidade afetiva, principalmente
pela análise das formas de “ataque”, de alterações da personalidade, diz
que
O objeto,
portanto, da psychologia physiologica é descrever os phenomenos do mundo
mental e investigar as leis que os regem. (...) na sciencia mental, o
psycho-physiologico nada tem a vêr com a alma e com as suas faculdades,
substancia ou causas metaphysicas (s/esp).
Esta valorização da psicopatologia foi
um dos elementos fundamentais na definição de um caráter eminentemente
intervencionista da psicologia fisiológica, caráter este que a distinguirá
de outras vertentes da psicologia experimental – como a própria psicologia
alemã - e que a tornará especialmente interessante para a realidade
brasileira. A perspectiva intervencionista oferecida por este modelo será,
portanto, mais freqüentemente adotada pelos intelectuais brasileiros, que,
na busca constante de soluções para os problemas da cidade, estarão sempre
propondo fazer uso de técnicas de intervenção (Jacó-Vilela, 2000).
Considerações Finais
O processo de institucionalização do
ensino médico no país foi instrumento relevante para o caráter científico
e moderno da medicina praticada no Brasil. Um de seus fatores mais
relevantes, a compreensão sobre o estatuto da alma, releva uma contínua
mudança da relação alma versus corpo, a fisiologização de antigos
atributos da alma possibilitando aos médicos uma maior autoridade para
assumirem uma regulação das condutas humanas e conseqüentemente dos
fenômenos sociais relativos à saúde, saneamento, habitação e outros.
Afinal, ninguém melhor que médicos – que, é importante ressaltar, atuavam
em acordo com os interesses do Estado - para organizar uma sociedade
composta de pessoas cujas condutas, sentimentos e motivações são regidos
por processos fisiológicos.
Considerava-se a conduta anti-higiênica
dos habitantes como subversiva e um empecilho fundamental à saúde e à
organização da cidade. As técnicas higiênicas da Medicina Social
concretizaram-se por dispositivos de persuasão que procuravam mostrar as
vantagens (diminuição da mortalidade dos filhos, mais saúde, e vida mais
longa) de uma submissão às suas ordens. Santos, por exemplo, em sua tese
de 1857
intitulada Que regimen será mais conveniente para a creação dos expostos da Santa
Casa de Misericórdia, attentas nossas circunstancias especiaes: a criação
em comum dentro do Hospício, ou a privada em casas particulares?
diz:
Se a cifra dos
meninos engeitados, e educados á custa da sociedade, cresceu tão
prodigiosamente, há trinta annos, não é porque de anno a anno haja um
numero maior de meninos expostos e engeitados; é porque morrem muito
menos, graças às applicações felizes da hygiene publica á educação das
crianças (Santos, 1857, p. 24).
Ou seja, os médicos recorrem aos saberes psicológicos
para exercerem sua função, quer aqueles saberes oriundos da tradição
brasileira quer, principalmente, os novos conhecimentos científicos em
desenvolvimento na Europa.
A sociedade
brasileira no século XIX atravessou uma profunda transformação econômica e
social desde a chegada da família real no começo do século. Nesse
contexto, a medicina foi chamada para contribuir na solução de diversos
problemas, incluindo-se aí a preocupação com fenômenos que poderíamos
chamar de “psicológicos”. Assim, é possível dizer que o século XIX foi
para a Psicologia o momento fundamental que preparou as condições para sua
constituição e posterior autonomização como saber independente.