1. O Arquivo Husserl
de Lovaina e a fenomenologia na Bélgica e Holanda
1.1. Devemos
(1) a Léon Noël (1910), professor na Universidade de Lovaina, a
primeira resenha em francês de Investigações Lógicas de Husserl, na
qual manifesta apresso à crítica husserliana ao psicologismo,
considerando-a um realismo epistemológico substancialmente alinhado com as
posições do neo-tomismo. Nos anos seguintes, Noël promove numerosos
estudos de filosofia fenomenológica, tendo um papel determinante na
fundação do Husserl-Archief, em 1939 em Lovaina (cf. van Breda,
1959). A partir desta dada a Fundação recolhe o inteiro Nachlass
husserliano: cerca de quarenta mil páginas escritas em caracteres
estenográficos e mais de dez mil datilografadas, posteriormente
transcritas e compiladas sistematicamente por alguns assistentes de
Husserl. O Arquivo possui, além disso, a biblioteca pessoal do grande
fenomenólogo, preciosa para identificar as fontes de seu pensamento.
A Fundação se ocupou
com grande competência e atenção da transcrição dos textos e de suas
edições críticas publicadas na Husserliana – Edmund Husserl Gesammelte
Weerke. Somam numerosos volumes, editados em colaboração com Centros
em toda a Europa: traduções em inglês confluem nas Edmundo Husserl
Collected Works; a importante série Husserl-Dokumente; e teve
início uma nova Coleção – Materialen – com a tarefa específica de
providenciar a transcrição dos manuscritos de conferências e cursos ainda
não incluídos na Husserliana. Em profícua interação com o Centre
d’Etudes Phénoménologiques da Universidade de Lovaina a Nova, a
Fundação publicou também significativas contribuições de filosofia
fenomenológica de autores como E. Fink, R. Ingarden, E. Lévinas, J.
Patočka. Os mais de cento e cinqüenta volumes que vieram à luz ilustram a
extraordinária vitalidade do método fenomenológico. Constante e
progressivamente, a Fundação torna-se um ponto de apoio para estudos
altamente especializados e ponto de encontro entre pesquisadores
provenientes de todo o mundo.
Para satisfazer os
rigorosos critérios epistemológicos e metodológicos que desde o início têm
caracterizado o trabalho da Fundação, seus vários diretores – H. L. van
Breda, S. IJsseling, R. Bernet – requisitaram a colaboração de
especialistas da Alemanha, Bélgica, Holanda e Suíça. Os primeiros
fenomenólogos chamados foram os últimos assistentes de Husserl, Eugene
Fink e Ludwig Landgrebe, que por alguns meses transcreveram duas mil e
oitocentas páginas dos textos do Mestre, antes de serem expulsos devido à
ocupação nazista da Bélgica (1940). Desde então, uma ininterrupta cadeia
de especialista continua o trabalho dessas duas eminentes personalidades,
permitindo o incremento das contribuições editoriais, histórico-teoréticas
e críticas. Depois da II Guerra Mundial, Walter e Marly Biemel sucederam a
Fink e Landgrebe como Associados do Arquivo Husserl. Com a morte de van
Breda a direção do Arquivo passou primeiramente a Samuel IJsseling e em
seguida a Rudolph Bernet.
Com a Anschluss
de 1938, Stephan Strasser vê-se forçado a fugir da Áustria, refugiando-se
na Bélgica. Van Breda o hospeda no Arquivo Husserl de Lovaina: no arco de
dois anos e com a constante ajuda da esposa, Strasser conseguiu converter
para redação ordinária cerca de vinte mil páginas de textos
estenografados, o que foi determinante para o trabalho editorial. A partir
de 1949 ele ocupa a cátedra de Psicologia Filosófica e Antropologia da
Universidade de Nijmegen: seu trabalho é dedicado à psicologia e às
ciências humanas, tomadas desde uma perspectiva especificamente
teorético-metafísica (cf. Strasser, 1950, 1962, 1985)
(2).
A intenção principal de sua reflexão sobre a alma é a de manter unidas
duas diversas abordagens: o método fenomenológico considerado como uma
moldura eidética necessária para cada sucessiva pesquisa empírica, por um
lado; e por outro, a posição neo-tomista que considera a fenomenologia
como um método de metafísica do ser. Strasser busca de um terreno comum
satisfaça as exigências de objetividade científica e de uma vida
autêntica, plena de sentido.
Docente em Lovaina a
partir de 1946, Alphonse de Waelhens representa uma das principais fontes
da tradição fenomenológica na Bélgica. Publicou comentários originais
sobre a filosofia de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer (cf. de
Waelhens, 1965, 1967) mas sua contribuição mais relevante refere-se à
atribuição de significado pela psicanálise (cf. de Waelhens, 1972)
(3). Ele argumenta que a auto-consciência e a experiência do ser
humano apresentam limites e que, desde um ponto de vista antropológico, a
filosofia e a ciência estão em relação hierárquica, ainda que recíproca:
para chegar a uma compreensão mais lúcida da existência humana, uma
precisa da outra. O mesmo pode-se dizer a propósito da relação entre
filosofia e psicanálise, sendo necessária uma re-interpretação do
inconsciente sobre base especificamente fenomenológica.
De Waelhens
investigou as estruturas fundamentais do ser humano e os problemas-chave
da psicologia fenomenológica: a relação mente-corpo, a questão da
subjetividade, a linguagem, a historicidade-existencialidade, a
intersubjetividade, a doença, a saúde, o inconsciente. O ápice de sua
reflexão está contido no livro La Psychose (de 1972): uma
interpretação das interrogações psicopatológicas básicas a partir das
concepções típicas do psicanalista francês Jacques Lacan. Já em 1967 ele
fundara o Centre d´anthropologie, dirigido até 1994 por Gh.
Florival e depois por M. Dupuis. Este último, além das traduções de alguns
textos de Ludwig Binswanger e de Edith Stein, dedicou grande parte de seu
trabalho ao estudo do pensamento de Emmanuel Lévinas, aos temas inerentes
à psicopatologia fenomenológica e à vivência empática.
Ulterior impulso aos
estudos de psicologia fenomenológica foi dado por G. Thinès (1968, 1977,
1991), trabalhando em estreita colaboração com de Waelhens e com o
psiquiatra J. Schotte para formular uma rigorosa crítica à postura
reducionista na antropologia e na psicologia. Depois da especialização em
filosofia, Thinès dedica sua pesquisa científica à etologia, à psicologia
e à filosofia fenomenológica. Em psicologia, seus mestres foram A.
Michotte (a quem substitui na cátedra de Lovaina em 1956), célebre por
seus estudos sobre percepção da causalidade, e F.J.J. Buytendijk (1952,
1952a), ao qual em 1961 substitui na cátedra da Universidade de Nijmegen.
Com A. Giorgi, Thinès fundou, em 1970, o Journal of Phenomenological
Psychology, publicação que contribuiu largamente à difusão e ao
desenvolvimento da chamada third force da psicologia nos Estados
Unidos da América
(4). Todo o trabalho de Thinès consiste em demonstrar a
possibilidade e a legitimidade de uma psicologia científica fundamentada
na clarificação apropriada de seus conceitos básicos sem, todavia, cair no
absurdo de uma “psicologia sem subjetividade”, que negaria a central
categoria do sentido.
Também a obra do
belga Antoine Vergote visa estender a discussão sobre a relação entre
fenomenologia e psicanálise. Depois das graduações em teologia e
filosofia, Vergote se especializa em psicologia e psicanálise, tornando-se
membro da Ecole Freudienne de Paris. Segundo o seu juízo, teologia
e psicanálise não são estranhas uma à outra, apresentando inúmeros pontos
de contato e temas comuns: o desejo, a vida, a morte, a corporeidade, o
pai, a relação intersubjetiva. Na perspectiva fenomenológica, a teologia
vem a ser conotada como arqueologia dos dados cristãos, investigação
essencial sobre a estrutura constitutiva do ser humano e sobre as
implicações culturais dos valores cristãos; enquanto que o exame
psicanalítico do inconsciente oferece precioso material de reflexão
explorando a estrutura elementar, primitiva, do ser humano. A obra de
Vergote tende a integrar proficuamente a transcendência horizontal com a
vertical, mostrando como o ser humano, egocêntrico, se abre a uma
experiência de Deus como Outro em relação a si. (Cf. Vergote 1974, 1983,
1996, 1997).
A atividade do
Centro de recherches phénoménologiques – fundado em 1992 e dirigido
por R. Brisart junto à Facultés Universitaires Saint Louis de
Bruxelas – é um importante testemunho da atual vitalidade acadêmica e
institucional da fenomenologia na Bélgica, em diálogo e colaboração com a
Universidade de Rennes I e com o Arquivo Husserl de Paris. O Centro
organiza congressos e conferências anuais e desde 1994 publica as
Recherches husserliennes, revista que recebe contribuições de
respeitáveis estudiosos internacionais. A partir de 1988 Brisart promoveu
um programa de pesquisa que reconstrói o pensamento de Husserl dos anos
1887-1901 e esclarece a relação do grande fenomenólogo com o pensamento
austríaco (Brentano, Bolzano e Mach). Essa pesquisa programática tem
despertado grande interesse na França, Alemanha e países anglo-saxões,
construindo uma ponte entre os filósofos de tradição analítica e o
contexto mais marcadamente continental, que viu o nascimento e incremento
da fenomenologia.
1.2. Respondendo a
um explícito convite do filósofo e lingüista Hendrick J. Pos, em 1928
Edmundo Husserl ministrou na Holanda algumas importantes conferências (Amsterdammer
Vorträge) sobre psicologia fenomenológica (cf. Husserl, 1928/1962),
vindo a influenciar alguns dentre os pesquisadores mais destacados daquela
região geográfica. A discussão sobre a relação entre psicologia e
fenomenologia inspirou, com efeito, estudiosos belgas e holandeses nos
anos precedentes à II Guerra Mundial, justamente enquanto o panorama
filosófico europeu parecia dominado pelo neo-tomismo por um lado e pelo
neo-kantismo pelo outro.
A isso se
acrescentou o específico interesse suscitado pelas pesquisas husserlianas
sobre geometria e lógica. Graças a J. Lameere, professor na Université
libre de Bruxelles, em 1939 a recém-nascida Revue Internationale de
Philosophie publicou, em seu segundo número, A origem da geometria
de Husserl juntamente a contribuições de eminentes estudiosos como os já
mencionados Fink e Landgrebe. No mesmo ano, o primeiro número de
Tijdschrift voor Filosofie publicava “A Draft of a Preface to the
Logical Investigations”, que possibilitou a difusão, compreensão e
desenvolvimento do pensamento de Husserl desde o início até Idéias I.
Situação esta muito propícia, então, para a fundação do Arquivo Husserl de
Lovaina em 1939. A partir de 1950 o editor holandês Martinus Nijhoff
publicou as obras do pai da fenomenologia na Husserliana, e a
Coleção Phaenomenologica ofereceu uma excelente panorâmica das
aplicações e do desenvolvimento ulterior dessa filosofia e de seu método.
Mas a história das
relações entre a escola fenomenológica e as abordagens filosóficas nos
Países Baixos não ficou limitada aos anos imediatamente anteriores à II
Guerra Mundial. Graças às suas múltiplas possibilidades de aplicação, a
filosofia fenomenológica teve um papel significativo em diversas áreas do
saber e da pesquisa científica: ciências humanas e/ou humanísticas como a
psicologia, a antropologia, a pedagogia, a lingüística, encontraram
intelectualmente a abordagem fundamental da fenomenologia através de seus
primeiros movimentos oriundos da França. O existencialismo de Jean-Paul
Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Gabriel Marcel, Emmanuel Lévinas
e sobretudo a postura fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty,
determinaram a cena filosófica na Holanda e na Fiandra, catalisando o
interesse sobre temas antropológicos e filosóficos. Emergem, então, os
nomes de Reinout Bakker (1964, 1965), docente de antropologia filosófica
na Universidade de Groningen; Cornelius A. van Peursen (1956), professor
nas Universidades de Leiden e de Amsterdã que estudou particularmente a
relação mente-corpo confrontando-a com a egologia cartesiana e com os
desenvolvimentos da filosofia da linguagem comum de Ludwig Wittgenstein,
John Austin e Gilbert Ryle – de fato, a obra principal de van Peursen
investiga o vínculo copro-alma-espírito, inspirando-se em Merleau-Ponty,
critica duramente o solipsismo do sujeito cartesiano e exprime-se em favor
de uma visão intersubjetiva –; e, finalmente, Theo de Boer, docente de
Antropologia Filosófica na Universidade de Amsterdã desde 1968, conhecido
por ter focalizado a questão metodológica, por ter lançado as bases para a
fundamentação de uma psicologia crítica e por diversos estudos
fenomenológicos específicos (de Boer, 1980, 1989). Dezessete anos depois
da redação desse projeto ele publicou um ensaio em que modificava
inteiramente sua perspectiva original, mais aberto ao diálogo com a
psicologia fenomenológica defendida por Jan Linschoten e com a hipótese
interpretativa (de Boer, 1997; Linschoten, 1959, 1964). O estudo de
Linschoten sobre William James lançara as bases do intento programático da
chamada Escola de Utrecht, e de Boer, com seu livro de 1997, negava
que a psicologia fosse uma ciência empírica, avaliando seu estatuto
hermenêutico. Sua antropologia filosófica é dialógica e enfatiza a
intencionalidade do ser humano, sua unicidade, sua autenticidade; a este
respeito, a psicologia fenomenológica é explicação científica das
estruturas intencionais da pessoa humana existencialmente situada.
Obviamente, a interpretação é sempre parcial, incompleta, passível de
erro; mas exige orientação eficaz para as questões da diferença e da
unicidade, além de um olhar perspicaz sobre o que é e permanece
contingente, não previsível, na psicologia do ser humano.
2. A Escola de
Utrecht
A Escola de
Utrecht pode ser legitimamente considerada a original e mais profícua
contribuição holandesa ao debate internacional sobre a fenomenologia.
Trata-se de uma agregação bastante variada de psicólogos, psiquiatras,
pedagogos, educadores, pediatras, sociólogos, criminologistas, médicos e
acadêmicos, todos orientados fenomenologicamente. O início oficial da
Escola deu-se em 1949, por mérito de Martinus J. Langeveld (1958) que
naquela ocasião convidara Frederik J.J. Buytendijk (1918, 1920) para a
Universidade de Utrecht. Ao término da II Gera Mundial o impulso
intelectual estava fortemente centrado sobre a pesquisa pedagógica: a
sociedade holandesa, de fato, estava preocupada com o futuro de seus
jovens após os horrores e tragédias da guerra; assim, o humanismo e o
personalismo tornaram-se os conceitos-chave utilizados por intelectuais,
sociólogos e membros da Escola de Utrecht. Neste sentido, Henricus
C. Rümke (1923, 1952, 1954, 1960, 1967)pode ser considerado o pioneiro
entre eles: psiquiatra de orientação fenomenológica, nos anos 1928-1933
ministrou cursos e conferências na Universidade de Amsterdã e depois
consolidou a carreira acadêmica de trinta anos na Universidade de Utrecht
(1933-1963). Inicialmente foi professor de psicologia, mas a partir de
1936 ocupou a cátedra de psiquiatria. A psiquiatria de Rümke era, na
realidade, mais próxima da literatura do que da postura rigorosamente
científica médica: utilizando a noção de “intuição empática” de Karl
Jaspers, ele continuamente completava a dissertação Phaenomenologie en
Klinisch Psychiatrische Studie over het Geluksgevole (“Estudos
fenomenológicos e psiquiátricos sobre sentimento de felicidade”) de 1923.
Sua interpretação da doença e da saúde é fortemente inspirada na
antropologia cristã humanista, que enfatiza a importância da
autenticidade, do sentido, da veracidade. Segundo Rümke, a condição que
determina o estado de saúde está em estreita relação com a capacidade de
integração da pessoa, em uma sociedade que permanece fortemente
desagregada e desagregante; contrário ao isolamento do paciente, ele se
pronuncia a favor de sua reintegração na vida civil e social.
A propósito da
abordagem literária da Escola de Utrecht, Jan Linschoten sublinha
que não se trata de um mero uso sugestivo e retórico da linguagem, mas de
uma abordagem sistemática e metódica do mundo-da-vida: se uma descrição
vivaz, vital, participada, tem a função de tornar próxima a realidade
descrita, então o material literário pode ser utilizado como um verdadeiro
recurso, como uma preciosa fonte de conhecimento. Segundo Linschoten,
todavia, a fenomenologia começa onde a novela, o conto e/ou o romance
terminam: a clarificação fenomenológica é uma disciplina filosófica que
estuda a esfera pré-reflexiva do mundo-da-vida mas “psicologia” é também a
disciplina científica que focaliza os fenômenos psicológicos usando
métodos quantitativos, experimentais. Como se vê, nesta área de pesquisa a
abordagem fenomenológica nunca cindiu completamente do método empírico ou
experimental.
A carreira acadêmica
do já citado psicólogo Frederik J.J. Buytendjk foi anômala: ele nunca
estudou de modo específico aquela disciplina. Completados os estudos de
medicina em 1909, dez anos mais tarde foi o promotor de algumas pesquisas
sobre comportamento e hábitos de animais; surpreendentemente, em 1946
obteve a cátedra de psicologia teorética na Universidade de Utrecht, onde
a partir de 1957 permaneceu como professo emérito. Buytendijk divergia
profundamente de Rümke quanto ao ponto de partida da reflexão: não o
doente e sua doença, mas a pessoa sadia e sua condição de saúde. Raramente
ele se preocupou em fixar por escrito o método de sua pesquisa: a única
interessante discussão metodológica encontra-se em Psychologie van der
Roman (traduzido para o inglês como “Psychology of the Novel”,
em 1962) em que argumenta que é possível compreender somente aquilo do
qual se tem verdadeiro cuidado. Analisando reflexivamente os romances de
Dostoevskij, ele fala de “objetividade do amor” e mostra como a literatura
pode suscitar relevantes insights para o trabalho de exploração
psicológica. Em seu texto Husserl’s Phenomenology and its significance
for contemporary psychology (1967) Buytendijk ilustra como o método
fenomenológico pode ser aplicado àqueles modelos de existência que
pertencem à práxis do mundo-da-vida: este texto oferece o fundamento para
o intento programático da Escola de Utrecht, ainda que diversos e
numerosos exemplos de aplicação do método fenomenológico à psicologia e às
suas técnicas encontrem-se mais adequadamente compendiados no livro
Phenomenological psychology: the Dutch School de Joseph Kockelmans
(1987). Também o programa fenomenológico de Buytendijk requer que o
conhecimento da existência humana seja baseado na observação das situações
e dos acontecimentos da vida quotidiana, e então nunca desligado do
aspecto especificamente empírico, além de interpretativo.
Em geral, muitos
intelectuais e estudiosos consideram que os membros da Escola de Urecht
tenham sido bons psicólogos mas péssimos filósofos. Segundo Boer, eles
pretenderam fundar uma espécie de fenomenologia empírica como ciência
rigorosa mas não tiveram êxito. É digna de nota a feroz crítica do mundo
feminino e feminista ao estudo do universo da mulher. (Buytendijk. 1951)
Willem J. Pompe
(1946, 1968) foi docente de criminologia na Universidade de Nijmegen de
1923 a 1928 e na Universidade de Utrecht entre 1928 e 1968. Na sua
proposta interpretativa global, a antropologia filosófica de base
fenomenológica obteve um lugar de destaque: tanto o sistema judiciário
moderno – que trata o criminoso como um ser inferior – quanto o sistema
judiciário antigo – que o considera responsável de suas ações assim como
os outros seres humanos – colocam inúmeras e complexas interrogações;
segundo Pompe, o criminoso, considerado como ser autônomo, deve ser
inserido na ordem ética vigente na sociedade: eis porque a reconciliação,
a recompensa, a pena, a reparação, a vingança e o castigo são temas que
ele indaga minuciosamente. Entre os criminologistas filiados à Escola
de Utrecht são dignos de menção os nomes de G. Th. Kempe, P.A.H. Baan,
J.C. Hudig, R. Rijksen e G.P. Hoefnagels.
Quase todos os
textos programáticos da Escola foram publicados em coleções (van
den Berb & Linschoten, 1953; van den Berg, 1954)
(5), reunindo importantes artigos, ensaios e contribuições. Jan
Hendrik van den Berg (1946, 1955, 1961, 1964, 1974) completou seu
doutorado em 1946 sob orientação de Rümke, com uma pesquisa sobre a
psicose esquizofrênica. Ele estudou na França e na Suíça e em 1951 ocupou
a cátedra de psicologia pastoral da Universidade de Utrecht. Seus textos,
traduzidos em diversas línguas, são uma contribuição determinante para a
formação intelectual da Escola. Ele propõe o programa de uma
psicologia existencial ou fenomenológica como uma psicologia totalmente
nova, com amplas potencialidades, e explica como ela recusa tanto o método
da introspecção quanto a postura reificante: o primeiro porque remete à
recusa de estudar o outro estudando si mesmo; a segunda, porque exprime a
postura objetivante típica da psicologia empírico-naturalista. A
psicologia fenomenológica ou existencial se ocupa de uma verdadeira
experiência e de uma imediata exploração da relação do ser humano com o
próprio mundo, fazendo referência aos eventos ordinários, quotidianos, da
vida. Van den Berg argumenta que o autêntico projeto de uma psicologia
fenomenológica deve ser contextualizado tendo em consideração limites da
linguagem, do mundo da cultura, dos valores, do espaço e do tempo: ele, de
fato, não visa uma abordagem universalmente válida dos fenômenos inerentes
do ser humano; sempre consciente de sues limites, ou seja, do fato que seu
ponto de partida é sempre antropológico, finito, passível de erro e de
mudança. Nessa perspectiva, é fútil falar de uma universal fenomenologia
da percepção, já que seres humanos pertencentes a diversas culturas “vêem”
diferentemente, “falam” diferentemente, “sentem” diferentemente, e também
seus filhos perceberão e verão o mundo sempre e somente no contexto de sua
pertença cultural, lingüística etc.
A difusão da
psiquiatria antropo-fenomenológica e da análise existencial aprofundou
questões anteriormente deixadas à objetivação reificante e, seja como for,
não oportunamente analisadas, quais a atribuição de sentido, a
corporeidade, o tempo e o espaço vividos: os psiquiatras holandeses van
den Berg, van den Hoerst e van Hugenholtz mostraram-se particularmente
atentos a esse tipo de temática (cf. Langeveld, 1958). Van den Berg é
conhecido sobretudo pelo desenvolvimento e aplicação da abordagem
histórico-fenomenológica, que ele denomina metabletical method.
Trata-se de um método que aborda seu objeto de pesquisa não de modo
diacrônico – como desenvolvimento dinâmico – mas sincronicamente, ou seja,
desde a interior constituição de relações significativas em diversos
acontecimentos da vida no mesmo período de tempo; e mostra como o sentido
da própria identidade seja constantemente fragmentado, dividido e
determinado por aquilo que provém do exterior. Van den Berg (1989)
continuou a realizar estudos fenomenológicos também no campo da
criminologia.
O declínio da
Escola de Utrecht foi provocado de fora, com a publicação do ensaio de
Adriaan D. de Groot intitulado Methodology (1961) de postura
empírico-analítica. O autor tomava distâncias da orientação
fenomenológica, julgando-a não científica e excessivamente centrada sobre
o sujeito: à fenomenologia vinha designado um papel menor, secundário, com
relação à fase empírica da pesquisa, considerada mais concreta, eficaz,
“real”. A influência desse texto levou ao afastamento das posições
humanistas nas chamadas ciências do espírito e abriu as portas à crescente
influência do behaviorismo americano na Holanda. A isto se acrescente que
a postura fenomenológica sofreu ataques das teorias críticas marxistas
oriundas da Alemanha e do pós-estruturalismo francês. A psicologia foi
perdendo seus fundamentos fenomenológicos na Holanda; mas não pode dizer o
mesmo para outras disciplinas como a pedagogia e a filosofia da educação:
a Escola de Utrecht continuou a aplicar o método fenomenológico nas
ciências pedagógicas, e permaneceu particularmente sensível aos temas da
subjetividade e da intersubjetividade, à questão da relação entre
linguagem, experiência e comportamento, e à dimensão textual dos escritos
fenomenológicos, conservando o impulso autenticamente humanista também nas
ciências que se ocupam da saúde do indivíduo.