Manganaro, P. (2004). Desenvolvimentos da fenomenologia nos Países Baixos. Memorandum, 7, 8-17. Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm

  PDF FILE

Desenvolvimentos da fenomenologia
nos Países Baixos

 The development of phenomenology in the Low Countries

 Patrizia Manganaro
Pontificia Università Lateranense
Itália

Resumo

O trabalho descreve o desenvolvimento da fenomenologia na Bélgica e Holanda delineando os principais centros de investigação, seus importantes intelectuais atuantes e as temáticas ali pesquisadas. No que diz respeito à Bélgica, descreve a fundação do Husserl-Archief em Lovaina, suas edições críticas da obra husserliana, apontando diretores e especialistas responsáveis pelo trabalho. Relata a atividade do Centre de Recherches phénoménologiques, junto à Facultés Universitaires Saint Louis de Bruxelas. Quanto à Holanda, o ponto de partida para os estudos fenomenológicos foram as conferências proferidas em 1928 por Edmund Husserl sobre a psicologia fenomenológica. Além do debate entre psicologia e fenomenologia – um dos grandes pólos de interesse da Escola de Utrecht – a segunda ocupa, naquela região, um papel de destaque em diversas áreas do saber como, por exemplo, na pedagogia.

Palavras-chave: história da fenomenologia; psicologia fenomenológica; Arquivo Husserl; Escola de Utrecht.

Abstract

The study describes the development of phenomenology in Belgium and the Netherlands, underlining the main centers of investigation, their most prominent intellectuals and the principal themes which were approached. Regarding Belgium, the study describes the foundation of the Husserl-Archief in Leuven, the publication of the critical editions of works by Husserl, pointing out the directors and specialists responsible for the publication. It is also reported the activities of the Centre de Recherches phénoménologiques of the Facultés Universitaires Saint Louis in Brussels. Regarding the Netherlands, the starting point for the phenomenological studies were the conferences given in 1928 by Edmund Husserl about phenomenological psychology. Besides the debate between psychology and phenomenology – one of the main poles of interest – the latter occupies, in that region, a prominent role in many areas of knowledge, as, for instance, pedagogy.

Keywords: history of phenomenology; Husserl Archive; phenomenological psychology; School of Utrecht.

1. O Arquivo Husserl de Lovaina e a fenomenologia na Bélgica e Holanda

1.1. Devemos (1) a Léon Noël (1910), professor na Universidade de Lovaina, a primeira resenha em francês de Investigações Lógicas de Husserl, na qual manifesta apresso à crítica husserliana ao psicologismo, considerando-a um realismo epistemológico substancialmente alinhado com as posições do neo-tomismo. Nos anos seguintes, Noël promove numerosos estudos de filosofia fenomenológica, tendo um papel determinante na fundação do Husserl-Archief, em 1939 em Lovaina (cf. van Breda, 1959). A partir desta dada a Fundação recolhe o inteiro Nachlass husserliano: cerca de quarenta mil páginas escritas em caracteres estenográficos e mais de dez mil datilografadas, posteriormente transcritas e compiladas sistematicamente por alguns assistentes de Husserl. O Arquivo possui, além disso, a biblioteca pessoal do grande fenomenólogo, preciosa para identificar as fontes de seu pensamento.

A Fundação se ocupou com grande competência e atenção da transcrição dos textos e de suas edições críticas publicadas na Husserliana – Edmund Husserl Gesammelte Weerke. Somam numerosos volumes, editados em colaboração com Centros em toda a Europa: traduções em inglês confluem nas Edmundo Husserl Collected Works; a importante série Husserl-Dokumente; e teve início uma nova Coleção – Materialen – com a tarefa específica de providenciar a transcrição dos manuscritos de conferências e cursos ainda não incluídos na Husserliana. Em profícua interação com o Centre d’Etudes Phénoménologiques da Universidade de Lovaina a Nova, a Fundação publicou também significativas contribuições de filosofia fenomenológica de autores como E. Fink, R. Ingarden, E. Lévinas, J. Patočka. Os mais de cento e cinqüenta volumes que vieram à luz ilustram a extraordinária vitalidade do método fenomenológico. Constante e progressivamente, a Fundação torna-se um ponto de apoio para estudos altamente especializados e ponto de encontro entre pesquisadores provenientes de todo o mundo.

Para satisfazer os rigorosos critérios epistemológicos e metodológicos que desde o início têm caracterizado o trabalho da Fundação, seus vários diretores – H. L. van Breda, S. IJsseling, R. Bernet – requisitaram a colaboração de especialistas da Alemanha, Bélgica, Holanda e Suíça. Os primeiros fenomenólogos chamados foram os últimos assistentes de Husserl, Eugene Fink e Ludwig Landgrebe, que por alguns meses transcreveram duas mil e oitocentas páginas dos textos do Mestre, antes de serem expulsos devido à ocupação nazista da Bélgica (1940). Desde então, uma ininterrupta cadeia de especialista continua o trabalho dessas duas eminentes personalidades, permitindo o incremento das contribuições editoriais, histórico-teoréticas e críticas. Depois da II Guerra Mundial, Walter e Marly Biemel sucederam a Fink e Landgrebe como Associados do Arquivo Husserl. Com a morte de van Breda a direção do Arquivo passou primeiramente a Samuel IJsseling e em seguida a Rudolph Bernet.

Com a Anschluss de 1938, Stephan Strasser vê-se forçado a fugir da Áustria, refugiando-se na Bélgica. Van Breda o hospeda no Arquivo Husserl de Lovaina: no arco de dois anos e com a constante ajuda da esposa, Strasser conseguiu converter para redação ordinária cerca de vinte mil páginas de textos estenografados, o que foi determinante para o trabalho editorial. A partir de 1949 ele ocupa a cátedra de Psicologia Filosófica e Antropologia da Universidade de Nijmegen: seu trabalho é dedicado à psicologia e às ciências humanas, tomadas desde uma perspectiva especificamente teorético-metafísica (cf. Strasser, 1950, 1962, 1985) (2). A intenção principal de sua reflexão sobre a alma é a de manter unidas duas diversas abordagens: o método fenomenológico considerado como uma moldura eidética necessária para cada sucessiva pesquisa empírica, por um lado; e por outro, a posição neo-tomista que considera a fenomenologia como um método de metafísica do ser. Strasser busca de um terreno comum satisfaça as exigências de objetividade científica e de uma vida autêntica, plena de sentido.

Docente em Lovaina a partir de 1946, Alphonse de Waelhens representa uma das principais fontes da tradição fenomenológica na Bélgica. Publicou comentários originais sobre a filosofia de Husserl, Heidegger, Merleau-Ponty e Gadamer (cf. de Waelhens, 1965, 1967) mas sua contribuição mais relevante refere-se à atribuição de significado pela psicanálise (cf. de Waelhens, 1972) (3). Ele argumenta que a auto-consciência e a experiência do ser humano apresentam limites e que, desde um ponto de vista antropológico, a filosofia e a ciência estão em relação hierárquica, ainda que recíproca: para chegar a uma compreensão mais lúcida da existência humana, uma precisa da outra. O mesmo pode-se dizer a propósito da relação entre filosofia e psicanálise, sendo necessária uma re-interpretação do inconsciente sobre base especificamente fenomenológica.

De Waelhens investigou as estruturas fundamentais do ser humano e os problemas-chave da psicologia fenomenológica: a relação mente-corpo, a questão da subjetividade, a linguagem, a historicidade-existencialidade, a intersubjetividade, a doença, a saúde, o inconsciente. O ápice de sua reflexão está contido no livro La Psychose (de 1972): uma interpretação das interrogações psicopatológicas básicas a partir das concepções típicas do psicanalista francês Jacques Lacan. Já em 1967 ele fundara o Centre d´anthropologie, dirigido até 1994 por Gh. Florival e depois por M. Dupuis. Este último, além das traduções de alguns textos de Ludwig Binswanger e de Edith Stein, dedicou grande parte de seu trabalho ao estudo do pensamento de Emmanuel Lévinas, aos temas inerentes à psicopatologia fenomenológica e à vivência empática.

Ulterior impulso aos estudos de psicologia fenomenológica foi dado por G. Thinès (1968, 1977, 1991), trabalhando em estreita colaboração com de Waelhens e com o psiquiatra J. Schotte para formular uma rigorosa crítica à postura reducionista na antropologia e na psicologia. Depois da especialização em filosofia, Thinès dedica sua pesquisa científica à etologia, à psicologia e à filosofia fenomenológica. Em psicologia, seus mestres foram A. Michotte (a quem substitui na cátedra de Lovaina em 1956), célebre por seus estudos sobre percepção da causalidade, e F.J.J. Buytendijk (1952, 1952a), ao qual em 1961 substitui na cátedra da Universidade de Nijmegen. Com A. Giorgi, Thinès fundou, em 1970, o Journal of Phenomenological Psychology, publicação que contribuiu largamente à difusão e ao desenvolvimento da chamada third force da psicologia nos Estados Unidos da América (4). Todo o trabalho de Thinès consiste em demonstrar a possibilidade e a legitimidade de uma psicologia científica fundamentada na clarificação apropriada de seus conceitos básicos sem, todavia, cair no absurdo de uma “psicologia sem subjetividade”, que negaria a central categoria do sentido.

Também a obra do belga Antoine Vergote visa estender a discussão sobre a relação entre fenomenologia e psicanálise. Depois das graduações em teologia e filosofia, Vergote se especializa em psicologia e psicanálise, tornando-se membro da Ecole Freudienne de Paris. Segundo o seu juízo, teologia e psicanálise não são estranhas uma à outra, apresentando inúmeros pontos de contato e temas comuns: o desejo, a vida, a morte, a corporeidade, o pai, a relação intersubjetiva. Na perspectiva fenomenológica, a teologia vem a ser conotada como arqueologia dos dados cristãos, investigação essencial sobre a estrutura constitutiva do ser humano e sobre as implicações culturais dos valores cristãos; enquanto que o exame psicanalítico do inconsciente oferece precioso material de reflexão explorando a estrutura elementar, primitiva, do ser humano. A obra de Vergote tende a integrar proficuamente a transcendência horizontal com a vertical, mostrando como o ser humano, egocêntrico, se abre a uma experiência de Deus como Outro em relação a si. (Cf. Vergote 1974, 1983, 1996, 1997).

A atividade do Centro de recherches phénoménologiques – fundado em 1992 e dirigido por R. Brisart junto à Facultés Universitaires Saint Louis de Bruxelas – é um importante testemunho da atual vitalidade acadêmica e institucional da fenomenologia na Bélgica, em diálogo e colaboração com a Universidade de Rennes I e com o Arquivo Husserl de Paris. O Centro organiza congressos e conferências anuais e desde 1994 publica as Recherches husserliennes, revista que recebe contribuições de respeitáveis estudiosos internacionais. A partir de 1988 Brisart promoveu um programa de pesquisa que reconstrói o pensamento de Husserl dos anos 1887-1901 e esclarece a relação do grande fenomenólogo com o pensamento austríaco (Brentano, Bolzano e Mach). Essa pesquisa programática tem despertado grande interesse na França, Alemanha e países anglo-saxões, construindo uma ponte entre os filósofos de tradição analítica e o contexto mais marcadamente continental, que viu o nascimento e incremento da fenomenologia.

 

1.2. Respondendo a um explícito convite do filósofo e lingüista Hendrick J. Pos, em 1928 Edmundo Husserl ministrou na Holanda algumas importantes conferências (Amsterdammer Vorträge) sobre psicologia fenomenológica (cf. Husserl, 1928/1962), vindo a influenciar alguns dentre os pesquisadores mais destacados daquela região geográfica. A discussão sobre a relação entre psicologia e fenomenologia inspirou, com efeito, estudiosos belgas e holandeses nos anos precedentes à II Guerra Mundial, justamente enquanto o panorama filosófico europeu parecia dominado pelo neo-tomismo por um lado e pelo neo-kantismo pelo outro.

A isso se acrescentou o específico interesse suscitado pelas pesquisas husserlianas sobre geometria e lógica. Graças a J. Lameere, professor na Université libre de Bruxelles, em 1939 a recém-nascida Revue Internationale de Philosophie publicou, em seu segundo número, A origem da geometria de Husserl juntamente a contribuições de eminentes estudiosos como os já mencionados Fink e Landgrebe. No mesmo ano, o primeiro número de Tijdschrift voor Filosofie publicava “A Draft of a Preface to the Logical Investigations”, que possibilitou a difusão, compreensão e desenvolvimento do pensamento de Husserl desde o início até Idéias I. Situação esta muito propícia, então, para a fundação do Arquivo Husserl de Lovaina em 1939. A partir de 1950 o editor holandês Martinus Nijhoff publicou as obras do pai da fenomenologia na Husserliana, e a Coleção Phaenomenologica ofereceu uma excelente panorâmica das aplicações e do desenvolvimento ulterior dessa filosofia e de seu método.

Mas a história das relações entre a escola fenomenológica e as abordagens filosóficas nos Países Baixos não ficou limitada aos anos imediatamente anteriores à II Guerra Mundial. Graças às suas múltiplas possibilidades de aplicação, a filosofia fenomenológica teve um papel significativo em diversas áreas do saber e da pesquisa científica: ciências humanas e/ou humanísticas como a psicologia, a antropologia, a pedagogia, a lingüística, encontraram intelectualmente a abordagem fundamental da fenomenologia através de seus primeiros movimentos oriundos da França. O existencialismo de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Albert Camus, Gabriel Marcel, Emmanuel Lévinas e sobretudo a postura fenomenológica de Maurice Merleau-Ponty, determinaram a cena filosófica na Holanda e na Fiandra, catalisando o interesse sobre temas antropológicos e filosóficos. Emergem, então, os nomes de Reinout Bakker (1964, 1965), docente de antropologia filosófica na Universidade de Groningen; Cornelius A. van Peursen (1956), professor nas Universidades de Leiden e de Amsterdã que estudou particularmente a relação mente-corpo confrontando-a com a egologia cartesiana e com os desenvolvimentos da filosofia da linguagem comum de Ludwig Wittgenstein, John Austin e Gilbert Ryle – de fato, a obra principal de van Peursen investiga o vínculo copro-alma-espírito, inspirando-se em Merleau-Ponty, critica duramente o solipsismo do sujeito cartesiano e exprime-se em favor de uma visão intersubjetiva –; e, finalmente, Theo de Boer, docente de Antropologia Filosófica na Universidade de Amsterdã desde 1968, conhecido por ter focalizado a questão metodológica, por ter lançado as bases para a fundamentação de uma psicologia crítica e por diversos estudos fenomenológicos específicos (de Boer, 1980, 1989). Dezessete anos depois da redação desse projeto ele publicou um ensaio em que modificava inteiramente sua perspectiva original, mais aberto ao diálogo com a psicologia fenomenológica defendida por Jan Linschoten e com a hipótese interpretativa (de Boer, 1997; Linschoten, 1959, 1964). O estudo de Linschoten sobre William James lançara as bases do intento programático da chamada Escola de Utrecht, e de Boer, com seu livro de 1997, negava que a psicologia fosse uma ciência empírica, avaliando seu estatuto hermenêutico. Sua antropologia filosófica é dialógica e enfatiza a intencionalidade do ser humano, sua unicidade, sua autenticidade; a este respeito, a psicologia fenomenológica é explicação científica das estruturas intencionais da pessoa humana existencialmente situada. Obviamente, a interpretação é sempre parcial, incompleta, passível de erro; mas exige orientação eficaz para as questões da diferença e da unicidade, além de um olhar perspicaz sobre o que é e permanece contingente, não previsível, na psicologia do ser humano.

 

2. A Escola de Utrecht

A Escola de Utrecht pode ser legitimamente considerada a original e mais profícua contribuição holandesa ao debate internacional sobre a fenomenologia. Trata-se de uma agregação bastante variada de psicólogos, psiquiatras, pedagogos, educadores, pediatras, sociólogos, criminologistas, médicos e acadêmicos, todos orientados fenomenologicamente. O início oficial da Escola deu-se em 1949, por mérito de Martinus J. Langeveld (1958) que naquela ocasião convidara Frederik J.J. Buytendijk (1918, 1920) para a Universidade de Utrecht. Ao término da II Gera Mundial o impulso intelectual estava fortemente centrado sobre a pesquisa pedagógica: a sociedade holandesa, de fato, estava preocupada com o futuro de seus jovens após os horrores e tragédias da guerra; assim, o humanismo e o personalismo tornaram-se os conceitos-chave utilizados por intelectuais, sociólogos e membros da Escola de Utrecht. Neste sentido, Henricus C. Rümke (1923, 1952, 1954, 1960, 1967)pode ser considerado o pioneiro entre eles: psiquiatra de orientação fenomenológica, nos anos 1928-1933 ministrou cursos e conferências na Universidade de Amsterdã e depois consolidou a carreira acadêmica de trinta anos na Universidade de Utrecht (1933-1963). Inicialmente foi professor de psicologia, mas a partir de 1936 ocupou a cátedra de psiquiatria. A psiquiatria de Rümke era, na realidade, mais próxima da literatura do que da postura rigorosamente científica médica: utilizando a noção de “intuição empática” de Karl Jaspers, ele continuamente completava a dissertação Phaenomenologie en Klinisch Psychiatrische Studie over het Geluksgevole (“Estudos fenomenológicos e psiquiátricos sobre sentimento de felicidade”) de 1923. Sua interpretação da doença e da saúde é fortemente inspirada na antropologia cristã humanista, que enfatiza a importância da autenticidade, do sentido, da veracidade. Segundo Rümke, a condição que determina o estado de saúde está em estreita relação com a capacidade de integração da pessoa, em uma sociedade que permanece fortemente desagregada e desagregante; contrário ao isolamento do paciente, ele se pronuncia a favor de sua reintegração na vida civil e social.

A propósito da abordagem literária da Escola de Utrecht, Jan Linschoten sublinha que não se trata de um mero uso sugestivo e retórico da linguagem, mas de uma abordagem sistemática e metódica do mundo-da-vida: se uma descrição vivaz, vital, participada, tem a função de tornar próxima a realidade descrita, então o material literário pode ser utilizado como um verdadeiro recurso, como uma preciosa fonte de conhecimento. Segundo Linschoten, todavia, a fenomenologia começa onde a novela, o conto e/ou o romance terminam: a clarificação fenomenológica é uma disciplina filosófica que estuda a esfera pré-reflexiva do mundo-da-vida mas “psicologia” é também a disciplina científica que focaliza os fenômenos psicológicos usando métodos quantitativos, experimentais. Como se vê, nesta área de pesquisa a abordagem fenomenológica nunca cindiu completamente do método empírico ou experimental.

A carreira acadêmica do já citado psicólogo Frederik J.J. Buytendjk foi anômala: ele nunca estudou de modo específico aquela disciplina. Completados os estudos de medicina em 1909, dez anos mais tarde foi o promotor de algumas pesquisas sobre comportamento e hábitos de animais; surpreendentemente, em 1946 obteve a cátedra de psicologia teorética na Universidade de Utrecht, onde a partir de 1957 permaneceu como professo emérito. Buytendijk divergia profundamente de Rümke quanto ao ponto de partida da reflexão: não o doente e sua doença, mas a pessoa sadia e sua condição de saúde. Raramente ele se preocupou em fixar por escrito o método de sua pesquisa: a única interessante discussão metodológica encontra-se em Psychologie van der Roman (traduzido para o inglês como “Psychology of the Novel”, em 1962) em que argumenta que é possível compreender somente aquilo do qual se tem verdadeiro cuidado. Analisando reflexivamente os romances de Dostoevskij, ele fala de “objetividade do amor” e mostra como a literatura pode suscitar relevantes insights para o trabalho de exploração psicológica. Em seu texto Husserl’s Phenomenology and its significance for contemporary psychology (1967) Buytendijk ilustra como o método fenomenológico pode ser aplicado àqueles modelos de existência que pertencem à práxis do mundo-da-vida: este texto oferece o fundamento para o intento programático da Escola de Utrecht, ainda que diversos e numerosos exemplos de aplicação do método fenomenológico à psicologia e às suas técnicas encontrem-se mais adequadamente compendiados no livro Phenomenological psychology: the Dutch School de Joseph Kockelmans (1987). Também o programa fenomenológico de Buytendijk requer que o conhecimento da existência humana seja baseado na observação das situações e dos acontecimentos da vida quotidiana, e então nunca desligado do aspecto especificamente empírico, além de interpretativo.

Em geral, muitos intelectuais e estudiosos consideram que os membros da Escola de Urecht tenham sido bons psicólogos mas péssimos filósofos. Segundo Boer, eles pretenderam fundar uma espécie de fenomenologia empírica como ciência rigorosa mas não tiveram êxito. É digna de nota a feroz crítica do mundo feminino e feminista ao estudo do universo da mulher. (Buytendijk. 1951)

Willem J. Pompe (1946, 1968) foi docente de criminologia na Universidade de Nijmegen de 1923 a 1928 e na Universidade de Utrecht entre 1928 e 1968. Na sua proposta interpretativa global, a antropologia filosófica de base fenomenológica obteve um lugar de destaque: tanto o sistema judiciário moderno – que trata o criminoso como um ser inferior – quanto o sistema judiciário antigo – que o considera responsável de suas ações assim como os outros seres humanos – colocam inúmeras e complexas interrogações; segundo Pompe, o criminoso, considerado como ser autônomo, deve ser inserido na ordem ética vigente na sociedade: eis porque a reconciliação, a recompensa, a pena, a reparação, a vingança e o castigo são temas que ele indaga minuciosamente. Entre os criminologistas filiados à Escola de Utrecht são dignos de menção os nomes de G. Th. Kempe, P.A.H. Baan, J.C. Hudig, R. Rijksen e G.P. Hoefnagels.

Quase todos os textos programáticos da Escola foram publicados em coleções (van den Berb & Linschoten, 1953; van den Berg, 1954) (5), reunindo importantes artigos, ensaios e contribuições. Jan Hendrik van den Berg (1946, 1955, 1961, 1964, 1974) completou seu doutorado em 1946 sob orientação de Rümke, com uma pesquisa sobre a psicose esquizofrênica. Ele estudou na França e na Suíça e em 1951 ocupou a cátedra de psicologia pastoral da Universidade de Utrecht. Seus textos, traduzidos em diversas línguas, são uma contribuição determinante para a formação intelectual da Escola. Ele propõe o programa de uma psicologia existencial ou fenomenológica como uma psicologia totalmente nova, com amplas potencialidades, e explica como ela recusa tanto o método da introspecção quanto a postura reificante: o primeiro porque remete à recusa de estudar o outro estudando si mesmo; a segunda, porque exprime a postura objetivante típica da psicologia empírico-naturalista. A psicologia fenomenológica ou existencial se ocupa de uma verdadeira experiência e de uma imediata exploração da relação do ser humano com o próprio mundo, fazendo referência aos eventos ordinários, quotidianos, da vida. Van den Berg argumenta que o autêntico projeto de uma psicologia fenomenológica deve ser contextualizado tendo em consideração limites da linguagem, do mundo da cultura, dos valores, do espaço e do tempo: ele, de fato, não visa uma abordagem universalmente válida dos fenômenos inerentes do ser humano; sempre consciente de sues limites, ou seja, do fato que seu ponto de partida é sempre antropológico, finito, passível de erro e de mudança. Nessa perspectiva, é fútil falar de uma universal fenomenologia da percepção, já que seres humanos pertencentes a diversas culturas “vêem” diferentemente, “falam” diferentemente, “sentem” diferentemente, e também seus filhos perceberão e verão o mundo sempre e somente no contexto de sua pertença cultural, lingüística etc.

A difusão da psiquiatria antropo-fenomenológica e da análise existencial aprofundou questões anteriormente deixadas à objetivação reificante e, seja como for, não oportunamente analisadas, quais a atribuição de sentido, a corporeidade, o tempo e o espaço vividos: os psiquiatras holandeses van den Berg, van den Hoerst e van Hugenholtz mostraram-se particularmente atentos a esse tipo de temática (cf. Langeveld, 1958). Van den Berg é conhecido sobretudo pelo desenvolvimento e aplicação da abordagem histórico-fenomenológica, que ele denomina metabletical method. Trata-se de um método que aborda seu objeto de pesquisa não de modo diacrônico – como desenvolvimento dinâmico – mas sincronicamente, ou seja, desde a interior constituição de relações significativas em diversos acontecimentos da vida no mesmo período de tempo; e mostra como o sentido da própria identidade seja constantemente fragmentado, dividido e determinado por aquilo que provém do exterior. Van den Berg (1989) continuou a realizar estudos fenomenológicos também no campo da criminologia.

O declínio da Escola de Utrecht foi provocado de fora, com a publicação do ensaio de Adriaan D. de Groot intitulado Methodology (1961) de postura empírico-analítica. O autor tomava distâncias da orientação fenomenológica, julgando-a não científica e excessivamente centrada sobre o sujeito: à fenomenologia vinha designado um papel menor, secundário, com relação à fase empírica da pesquisa, considerada mais concreta, eficaz, “real”. A influência desse texto levou ao afastamento das posições humanistas nas chamadas ciências do espírito e abriu as portas à crescente influência do behaviorismo americano na Holanda. A isto se acrescente que a postura fenomenológica sofreu ataques das teorias críticas marxistas oriundas da Alemanha e do pós-estruturalismo francês. A psicologia foi perdendo seus fundamentos fenomenológicos na Holanda; mas não pode dizer o mesmo para outras disciplinas como a pedagogia e a filosofia da educação: a Escola de Utrecht continuou a aplicar o método fenomenológico nas ciências pedagógicas, e permaneceu particularmente sensível aos temas da subjetividade e da intersubjetividade, à questão da relação entre linguagem, experiência e comportamento, e à dimensão textual dos escritos fenomenológicos, conservando o impulso autenticamente humanista também nas ciências que se ocupam da saúde do indivíduo.

 

Referências bibliográficas

Bakker, R. (1964). De geschiedenis van het fenomenologisch denken. Utrecht: Het Spectrum.

Bakker, R. (1965). Maurice Merleau-Ponty: de filosoof van het niet-wetend weten. Baarn: Wereldvenster.

Buytendijk, F.J.J. (1918). Proeven over gewoontevorming bij dieren. Amsterdam: van Soest.

Buytendijk, F.J.J. (1920). Psychologie der dieren. Haarlem: Bohn.

Buytendijk, F.J.J. (1951). De vrouw. Haar natuur, verschijning en bestaan. Een existentieël psychologische studie. Utrecht; Antwerp: Het Spectrum.

Buytendijk, F.J.J. (1952). Traité de psychologie animale. (A. Frank-Duquesne, Trad.). Paris: PUF.

Buytendijk, F.J.J. (1952a), Phénoménologie de la rencontre. (J. Knapp, Trad.). Paris: Desclée de Bronwer. (Publicação original de 1950).

de Boer, T. (1980). Grondslagen van de kritische psycologie. Meppel; Amsterdam: Boom.

de Boer, T. (1989). Van Brentano ot Lévinas: studies over de fenomenologie. Mappel; Amsterdam: Boom.

de Boer, T. (1997). Pleidooi voor interpretatie. Meppel; Amsterdam: Boom.

de Waelhens, A. (1965). Phénoménologie et vérité. Lovaina: Nauwelaerts.

de Waelhens, A. (1967). Une philosophie de l’ambiguïté: l’existentialisme de Maurice Merleau-Ponty. Lovaina: Nauwelaerts.

de Waelhens, A. (1972), La psychose. Lovaina: Nauwelaerts.

Husserl, E. (1962). Amsterdammer Vorträge. Em W. Biemel (Ed.) Phänomenologische Psychologie. Husserliana: Gesammelte Werke (vol. IX, pp. 302-349). The Hague: Nijhoff. (Original de 1928).

Kockelmans, J. (Ed.) (1987). Phenomenological psychology: the Dutch School. Dordrecht: Kluwer. (Phaenomenologica 103).

Langeveld, M. (Ed.). (1958). Rencontre, Encounter, Begegnung. Bijdragen aan een humane psychologie opgedragen aan professor F.J.J. Buytendijk. Utrecht; Antwerp: Het Spectrum.

Linschoten, J. (1959). Op weg naar een fenomenologische psychologie: de psychologie van William James. Utrecht: Bijleveld.

Linschoten, J. (1964). De idolen van de psychologie. Utrecht: Bijleveld.

Noël, L. (1910). Les frontières de la logique. Revue Néo-Scolastique de Philosophie, 17 (2), 211-233.

Pompe, W.J. (1946). Het nieuwe tijdperk en het recht. Amsterdam: Vrij Nederland.

Pompe, W.J. (1968). Strafrecht en vertrouwen in de medemens. Utrecht: Dekker and van der Vegt.

Rümke, H.C. (1923). Phaenomenologie en klinisch psychiatrische studie over het geluksgevoel. Leiden: University of Leiden.

Rümke, H.C. (1952). The Psychologie of Unbelief: character and temperament in relation of unbelief. London: Rockliff.

Rümke, H.C. (1954) Psychiatrie. V.1. Amsterdam: Scheltema & Holkema.

Rümke, H.C. (1960), Psychiatrie. V.2. Amsterdam: Scheltema & Holkema.

Rümke, H.C. (1967), Psychiatrie. V.3. Amsterdam: Scheltema & Holkema.

Strasser, S. (1950). Het zielbegrip in de metaphysische en in de empirische psychologie, Lovaina: Nauwelaerts.

Strasser, S. (1962). Fenomenologie en empirische menskunde. Bijdrage tot een nieuw ideaal van wetenschappelijkheid. Arnhem: van Loghum Slaterus.

Strasser, S. (1985). Understanding and Explanation. Basic Ideas Concerning the Humanity of the Human Sciences. Pittsburgh: Duquesne University Press.

Thinès, G. (1968). La problématique de la psychologie. Nijhoff: The Hague. (Phaenomenologica, 29).

Thinès, G. (1977), Phenomenology and the Science of Behaviour. London: G. Allen & Unwin.

Thinès, G. (1991), Existence et subjectivité. Études de psychologie phénoménologique. Bruxelles: Éditions de l'Université de Bruxelles.

van Breda, H.L. (1959). Le sauvetage de l’héritage husserlien et la fondation des Archives-Husserl Em H.L. van Breda & J. Taminiaux (Org.s). Husserl et la pensée moderne – Husserl und das Denken der Neuzeit. (pp. 1–42). Nijhoff: The Hague. (Phaenomenologica 2).

van den Berg, J.H. & Linschoten, J. (Edd.). (1953). Persoon en werelld. Bijdragen tot de phaenomenologische psychologie. Utrecht: Bijleveld.

van den Berg, J.H. (1946). De betekenis van de phaenomenologische of existentiële anthropologie in de psychiatrie. Utrecht: Kemink.

van den Berg, J.H. (1955). The phenomenological approach to psychiatry: an introduction to recent phenomenological psychopathology. Springfied: Thomas.

van den Berg, J.H. (1961). The changing nature of man. Introduction to historical phenomenology. New York: Norton.

van den Berg, J.H. (1964). De psychiatrische patient: Kleine algemene Psychopathologie op fenomenologische grondslag. Nijkerk: Callenbach.

van den Berg, J.H. (1974). A Different Existence: principles of phenomenological psychopathology. Pittsburg: Duquesne University Press.

van den Berg, J.H. (1989). Hooligans. Metabletisch onderzoek naar de betekenis van Centre Pompidou en Crystal Palce. Nijkerk: Callenbach.

van den Berg, J.H. (Ed.). (1954). Situations: contributions to phenomenological psychology and psychopathology. Utrecht; Antwerp: Het Spectrum.

van Peursen, C.A. (1956). Lichaam, ziel, geest: inleiding in een fenomenologishce antropologie. Utrecht: Bijleveld.

Vergote, A . (1997) Husserl et Freud sur le corps psychique de l'action. Em Jean-Luc Petit (Ed.). Problemes et controverses: les neurosciences et la philosophie de l'action. (pp. 387-396). Paris: J. Vrin.

Vergote, A. (1974). Interpretation du langage religieux. Paris: Seuil.

Vergote, A. (1983). Religion, foi, incroyance: étude pyichologique. Bruxelles: Mardaga.

Vergote, A. (1996). Psychologie religieuse. Bruxelles: Charles Dessart.

Notas

(1) Tradução de Miguel Mahfoud do original em italiano.(volta).

 

(2) A obra Het zielbegrip in de metaphysische en in de empirische psychologie de Strasser (1950) tem tradução em língua inglesa de 1957: The Soul in Metaphysical and Empirical Psychologiy. Pittsburgh: Duquesne University Press. Sua obra Fenomenologie en empirische menskunde. Bijdrage tot een nieuw ideaal van wetenschappelijkheid de 1962 tem tradução em língua inglesa de 1963: Phenomenology and the Human Sciences, Pittsburgh: Duquesne University Press.(volta)

 

(3) Sua obra La psychose (de Waelhens, 1972) tem tradução em língua inglesa de 1978: Schizophrenia: a philosophical reflection on Lacan’s structuralist interpretation (W. ver Eecke, Trad., Introd., Notes and Bibliog.). Pittsburgh: Duquesne University Press.(volta)

(4) Uma história daquela Fundação pode ser consultada no arigo de A. Giorgi “The origins of the Journal of Phenomenological Psychology and some difficulties in introducing phenomenology into scientific psychology”, publicado no Journal of Phenomenological Psychology n.29, volume 2, de 1998.(volta)

(5) O livro “Persoon en werelld. Bijdragen tot de phaenomenologische psychologie” editado por van den Berg & Linschoten em 1953 tem tradução para a língua inglesa no mesmo ano com o título “Person and World: contributions to a Phenomenological Psychology” da mesma editora Erven J. Bijleveld da cidade de Utrecht.(volta)

 

 

Nota sobre a autora
 

Patrizia Manganaro é doutora em filosofia, professora de filosofia da linguagem na Pontificia Universirtà Lateranense, Roma, Itália. Contato: patriziamanganaro@yahoo.it

Data de recebimento: 26/08/2004
Data de aceite: 13/10/2004

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/manganaro02.htm

 

 

 

 Português  English Envie seu comentário sobre este artigo e sobre a revista Memorandum. Clique aqui

Indique este artigo