Introdução
Machado de Assis é
considerado pelos críticos um dos maiores escritores brasileiros. De berço
humilde, mulato, nascido no Rio de Janeiro no ano 1839, Machado
conquistou, pouco a pouco, esta posição graças a sua genialidade e
talento. Escreveu durante toda sua vida uma vasta obra, composta dos mais
diversos gêneros literários: crônicas, críticas, teatro, poesia, mas é
principalmente nos contos e romances que encontramos suas melhores
criações. É a partir de 1880, com a publicação de Memórias póstumas de
Brás Cubas
(1), que dá início ao período que os críticos denominam sua
segunda fase de produção literária, em virtude de um enorme salto
qualitativo de suas obras, que já não se prendiam aos padrões das diversas
escolas literárias, como o romantismo urbanizado do século XIX, o
naturalismo, o realismo.
Existe uma enorme
quantidade de estudos sobre a ficção machadiana, sendo esta examinada sob
os mais diferentes ângulos: biográfico, filosófico, psicológico,
sociológico, estético, histórico. Ainda assim, sua obra pode oferecer-nos
muito para uma pesquisa na área da história das idéias psicológicas se a
interrogarmos de forma adequada, com o auxílio das fontes secundárias.
Todavia, é sempre necessário cautela se não quisermos “forçar” a obra a
responder aquilo que queremos ou que julgamos que ela deva responder,
falácia muito comum entre os críticos.
Investigar na obra
de Machado de Assis as idéias psicológicas aí presentes acarreta diversos
problemas metodológicos, que, no entanto, se tratados de forma adequada,
podem ser superados. Uma das questões a que devemos estar atentos
refere-se à linguagem utilizada pelo autor. Se Machado descreveu em
inúmeros contos a interioridade de suas personagens, utilizou, para isso,
uma terminologia característica. Ora, se considerarmos a história da
psicologia e das idéias psicológicas, podemos observar que cada sistema
psicológico usa um jargão próprio, onde o sentido e o significado de cada
expressão não existe por si só; o termo existe em relação a outros termos,
presentes dentro de um contexto maior, ou de uma estrutura que lhe confere
significado. O conceito de “inconsciente”, por exemplo, só existe em
relação ao conceito de “consciência”.
No sentido amplo do
termo, “inconsciente” seria nada mais que um adjetivo, que indica que um
objeto de origem psíquica não faz parte da consciência. No entanto,
qualificar de “inconsciente” pensamentos, impulsos, desejos, emoções,
interesses e outros elementos da vida psíquica não é algo tão simples como
à primeira vista pode parecer. Afinal, o que dá garantia de existência das
nossas emoções e conteúdos interiores, é o fato de que podemos
experimentá-las. Mas como se pode chegar à conclusão que existem conteúdos
subjetivos com os quais o indivíduo não pode, por definição, ter acesso
imediato? A melhor resposta seria: da mesma forma que os cientistas, para
explicarem a deformação na órbita de Saturno, foram forçados a inferir a
existência de Plutão, antes mesmo de observá-lo. Isto é, podemos afirmar
que supor a existência de conteúdos inconscientes é uma inferência
necessária para que vários fenômenos possam ser explicados.
No séc. XIX, segundo
aponta Ellenberger (1970/1991), a idéia de inconsciente, como uma
região psíquica com conteúdos inconscientes, foi introduzida para se
resolver a problemática da memória. Pois onde ficam nossas lembranças
quando não estão presentes na consciência? A resposta mais atraente seria
considerar estas memórias como temporariamente inconscientes, podendo
estas emergir novamente à consciência.
A questão da relação
entre inconsciente e memória se destaca em dois contos de Machado,
presentes no livro Várias Histórias (1896) que serão explorados
mais adiante: “Um homem célebre” e “O cônego ou metafísica do estilo”
publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1888 e 1885
(2). Este último conto apresenta especial importância, pois será
utilizado para se fazer uma articulação com três das quatro principais
concepções da atividade inconsciente presentes ao final do séc. XIX.
O conto é uma
narrativa sobre um cônego que está sentado, escrevendo um sermão. A
princípio, sua escrita flui naturalmente, mas, de repente, surge na cabeça
do protagonista uma dúvida quanto ao adjetivo a ser usado. Aqui o narrador
convida o leitor a subir até da personagem, e apresenta ao leitor uma
estapafúrdia teoria “psico-léxico-lógica” na qual as palavras têm sexo. O
estilo seria o casamento delas e, ainda, os substantivos nascem em um lado
do cérebro, ao passo que os adjetivos nascem do outro. O conto prossegue
com o narrador mostrando a busca do adjetivo pelo substantivo na cabeça do
padre. O substantivo encontra várias “damas” em seu caminho, mas recusa a
todas, pois está predestinado a um único adjetivo.
O cônego, sem tomar conhecimento dos seus processos
inconscientes, sente-se com a inspiração “travada”. E, por não conseguir
encontrar o adjetivo adequado, resolve se levantar, vai até a janela,
passando a se ocupar de outros afazeres. Nem se lembra mais da busca pelo
adjetivo. Contudo, apesar da atividade consciente ocupada com estes
pequenos afazeres, o seu inconsciente está em plena atividade. Nesta
passagem, portanto, encontra-se não somente a idéia de um inconsciente
tópico - isto é, como uma região psíquica passiva onde se armazenam as
memórias, região esta subordinada à consciência - mas também a idéia de um
inconsciente funcional, dinâmico, isto é, de caráter ativo, que possui
atividades relativamente independentes do próprio pensamento consciente.
Vejamos: “Enquanto o cônego cuida de cousas estranhas, eles (o adjetivo e
o substantivo: n.d.r) prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba
ou suspeite nada.” (p.274, V.14).
Logo após, o narrador torna explícita a
noção de inconsciente, convidando o leitor a acompanhar, no inconsciente
do cônego, a busca do substantivo pelo adjetivo:
Agora,
porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para
a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as
reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pula a vida sem formas, os germens
e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do
espírito. (1896/1961, V.14, p.275).
A descrição deste
inconsciente prossegue, revelando-se como um lugar obscuro, efervescente,
onde estão guardadas as memórias remotas, as emoções e “idéias grávidas de
outras idéias”. É a fonte geradora da linguagem, a partir da qual se
articulam as idéias conscientes.
O ensaio de Ivo Barbieri O cônego ou a invenção
da linguagem (1998) aponta o fato de que o bruxo do Cosme Velho
encontrou forte inspiração para descrição do inconsciente na obra do
filósofo alemão, Édouard von Hartmann
(1842-1906):
Philosophie de l’inconscient,
publicado pela primeira vez em 1877, livro este que pode ser encontrado no
restante do acervo da biblioteca pessoal de Machado de Assis.
Neste livro, um dos capítulos é dedicado a
explanações sobre o estilo literário e a atividade criativa. Sobre este
assunto, Hartmann, citado por Ivo Barbieri (1998), afirma que a invenção e
a realização do belo deriva de processos inconscientes, cujo resultado se
traduz na consciência através do sentimento do belo. E esse sentimento é a
matéria bruta, pela qual o artista, por meio da reflexão, irá construir
sua obra; mas, a cada momento, o inconsciente deve fazer certas
intervenções. Ainda, segundo o mesmo autor, o processo inconsciente, que é
o princípio de toda criação, escapa completamente ao “olhar da
consciência”.
Neste conto de
Machado, a descrição do “desvão do espírito” não se restringe a aspectos
relativos ao processo criativo, sendo que outras qualidades podem ser
evidenciadas. De fato, ao final do século dezenove, segundo aponta o
historiador Ellenberger (1970/1991), a questão do inconsciente era
abordada sob diversos pontos de vista. Para mostrar um quadro completo,
podemos dizer que no ano de 1900 havia quatro diferentes aspectos de sua
atividade: conservativo, dissolutivo, criativo e
mitopoético. Destas quatro concepções, três aparecem presentes nesse
conto, com exceção da função dissolutiva. Vejamos as principais concepções
e suas relações com este conto e outros.
As funções do inconsciente
A função conservativa era
identificada com a memória, o registro de um grande número de recordações;
também de recordações de percepções que a mente consciente que ficavam
armazenadas e das quais a personalidade consciente não sabia absolutamente
nada. Tais fenômenos eram observados, por exemplo, em casos clínicos de
pacientes que, durante estados febris, falavam uma língua que haviam
aprendido quando crianças e que depois haviam esquecido.
Além disso, o hipnotismo
forneceu inúmeros casos de “hipermnésia”. Um argumento muito debatido ao
fim do séc. XIX, tanto na filosofia quanto na psicologia, era se no
indivíduo havia recordações inconscientes de tudo o que havia encontrado
na vida. A presença desta função conservativa do inconsciente pode ser
muitas vezes encontrada em “O cônego ou metafísica do estilo”, em
passagens como: “Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram
rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu.” (p.277). Ou ainda:
Cá estão as
vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele
ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um
medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua
vez, e que agora jazem na grande unidade impalpável e obscura. (p.276).
Outro conto em que temos
referência à função conservativa é “Um homem célebre”. Trata-se do drama
de um compositor de polcas, Pestana, que apesar dos sucessos destas,
mantém-se frustrado. Isto porque deseja fazer obras em formas clássicas,
como sonatas, ao estilo de um Beethoven ou um Mozart. Contudo, apesar de
constantes tentativas, nunca consegue compor nada deste gênero.
Em uma das passagens da narrativa,
Machado refere-se ao inconsciente como o lugar de onde provem a
inspiração:
Às vezes, como que ia
surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao
piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia
esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à
ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas
nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar
dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de
alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar.
Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou
puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em
Mozart, a imitá-lo ao piano. (Assis, 1961, V.14, p.72).
Restava a Pestana apenas
compor polcas. Certo dia, entretanto, Pestana começou a compor uma sonata,
que lhe pareceu belíssima. Sua
mulher, porém, que estava por perto a escutar, percebeu, para o seu
desconsolo, que aquela obra não era dele, mas sim de Chopin.
Isto é, a música não era fruto de sua inspiração, mas sim de sua
memória. Segundo o ensaio de Augusto Meyer (1965) sobre a psicologia da
criação artística em Machado: Sílvio e Sílvia, o que o ocorre, no
caso de Pestana, é que a música foi “trasladada inconscientemente”.
A função criativa do inconsciente
já era sublinhada desde o tempo do romantismo.
Segundo esta concepção, o
ato de criação tem origem no inconsciente.
Esta idéia aparece em E. Hartmann,
sendo posteriormente desenvolvida, segundo Ellenberger (1970/1991), por
eminentes psiquiatras, como Francis Galton (1822-1911), e de um modo mais
psicológico por Theodore Flournoy (1954-1921).
A presença desta função
criativa do inconsciente em “O Cônego ou metafísica do estilo” é evidente,
como já foi exposto anteriormente.
A função mitopoética (termo
cunhado pelo psiquiatra Frederick Myers (1841-1901)) era uma “região
média”, subliminar, de onde se desenvolvia continuamente uma estranha
produção de fantasia interior.
Um grande explorador desta
faculdade foi Flournoy, que pesquisou, sob a perspectiva psicológica, um
famoso médium de sua época. Em sua concepção, o inconsciente se ocupa
continuamente de criar mitos e fantasias, que muitas vezes permanecem
completamente inconscientes, manifestando-se com maior freqüência nos
sonhos. Algumas vezes, no entanto, estas fantasias se manifestam mesmo no
estado de vigília, através de diferentes formas: delírio, do sonambolismo,
hipnose, mitomania, transes, possessões. Segundo alguns outros psiquiatras
da época, estas fantasias poderiam ter expressões somáticas, residindo
nesta classe de fenômenos a etiologia da histeria.
Na descrição do
inconsciente por Machado de Assis em “O cônego ou metafísica do estilo”
esta função parece ser sugerida na seguinte passagem:
Platão traz os
óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as
classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas
pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego
plantou quando ele era criança. (Assis, 1961, V.14, p.275).
A função
dissolutiva do inconsciente compreendia duas classes de fenômenos. A
primeira era composta daqueles fenômenos psíquicos que antes eram
conscientes, mas que, com o tempo, se tornaram automáticos (como se
verifica nos hábitos adquiridos). A segunda era composta de alguns
fragmentos cindidos da personalidade que interfeririam no processo normal.
Esta hipótese encontrou forte argumentação no fato de se conseguir,
através de sugestão hipnótica, gerar no indivíduo comportamentos
específicos, mesmo depois de desperto do sono hipnótico, sendo que estes
comportamentos eram induzidos sem que o indivíduo tivesse consciência da
real razão de seu ato. Estes fenômenos levaram Janet (1859-1947) e outros
eminentes psiquiatras do final do séc. XIX à conclusão de que vários
distúrbios tinham origens psíquicas, devido à força destes fragmentos
cindidos que permaneciam inconscientes. Assim, muitos psicólogos da época
consideravam a histeria como uma espécie de possessão da consciência por
esta parte cindida da personalidade.
A existência de uma
parte cindida da personalidade que permanece oculta leva-nos à hipótese da
existência de “desejos inconscientes”. Em relação ao desejo, entretanto, o
problema se torna mais complexo que em relação à memória, pois tratamos
aqui de um elemento da psique que impele o indivíduo ao comportamento.
Mas, afinal, como um desejo pode ser inconsciente, se ele necessita do
comportamento para a sua satisfação? Se um desejo é inconsciente e se, por
definição, só se pode chegar a ele de forma indireta, quais são os sinais,
os indícios, ou os fenômenos que garantiriam a sua existência? Pois
afirmar a existência de um desejo só faz sentido na medida em que seja
possível encontrar ao menos uma manifestação do mesmo. Mas se o fim de um
desejo é o comportamento, como poderia chegar a tal fim sem passar pela
consciência? Poderíamos complicar ainda mais: e por que motivo haveria um
desejo de se esconder? E como isso poderia ser observado na literatura?
Buscaremos
desenvolver estas questões usando como ponto de partida a obra de um
contemporâneo de Machado, Os irmãos Karamazov (1866/2001), de
Dostoievski. O intuito de introduzir a questão por meio desta obra é de se
apresentar um panorama mais rico das idéias psicológicas no séc. XIX no
âmbito da literatura, não se restringindo somente ao âmbito das teorias da
psicologia científica.
O romance gira em
torno da família Karamazov, composta por Fiódor Pávlovitch, homem vulgar,
bufão e imoral, e seus três filhos: Alieksiéi, um asceta; Ivan, tipo mais
comedido e controlado; e Dimítri, homem impetuoso, que por uma série de
razões odeia seu pai. A tensão entre Fiódor e Dimítri aumenta ainda mais
devido ao fato de ambos apaixonarem-se por uma mesma mulher, o que leva
Dimítri a ameaçar seu pai de morte. Enquanto isso, Fiódor, para conquistar
a moça, começa a consumir seu patrimônio, dando a ela presentes caros e
prometendo-lhe dinheiro: se a união fosse concretizada, seria o fim da
herança para os filhos. É nesse contexto que um dos agregados da casa,
Smerdiakov, possível filho bastardo de Fiódor, começa a sugerir a Ivan que
irá assassinar seu pai, pois todos pensariam que o assassino seria o filho
mais velho, Dimítri. No entanto, Ivan não chega formular em pensamento
a intenção do agregado; o que lhe ocorre - além de profundas insônias e
tormentos mentais - é apenas um sentimento inexplicável de asco e
ódio a Smerdiakov. A presença de Ivan na casa de seu pai seria de grande
importância para que fosse evitado um possível assassinato de seu pai.
Todavia Ivan resolve viajar, afastando-se da situação. O agregado, que
sente grande simpatia por Ivan, entende a viajem como um sinal de
aprovação, pois, dentre outras coisas, Ivan é um intelectual cético que
defende a supremacia da vontade pessoal frente aos valores morais, sendo
dele a famosa frase: “Se Deus não existe, tudo é possível”. Durante sua
viagem, seu pai morre assassinado. Quando Ivan regressa, enlouquece algum
tempo depois de saber da notícia, mas a loucura chega ao auge quando fica
sabendo que o verdadeiro assassino é Smerdiakov. Tudo leva a crer que o
fator responsável por sua insanidade é a culpa. O livro parece sugerir que
a culpa existe porque, inconscientemente, ele queria a morte do pai,
afastando-se de casa e deixando o campo aberto para o assassinato.
Provavelmente até soubesse inconscientemente das intenções de Smerdiakov
(afinal por que tanta raiva dele?). Tudo indica que Ivan não formula seu
desejo de modo explícito a fim de se proteger da dor moral da culpa
pelo seu desejo parricida, gerado pelo interesse (na
herança). Porém, o conflito inconsciente se manifesta na insônia e no
sentimento de ódio profundo ao agregado (possível projeção de
ódio e asco ao próprio desejo parricida).
Se no romance de
Dostoievski o desejo inconsciente é apenas sugerido, em “Uma senhora”, de
Machado de Assis, o desejo inconsciente é evidente. Neste conto, presente
em Histórias sem Data (1884) a protagonista, D. Camila, não formula
para si o desejo de que sua própria filha não se case:
Um dia, poucos meses
depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara
vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa.
Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou a filha;
descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e
ficou prostrada. Casá-la era o menos, mas, se os seres são como as águas
da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como
atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que
os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro
neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como
não formulara a idéia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma
sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no
mais íntimo do seu ser, de onde não as extraiu para não ser obrigada a
encará-las. (1961, V.13. p.171).
Mesmo com D. Camila
não formulando em nível consciente o seu desejo, este, por outros meios,
atinge seu comportamento. O meio pelo qual o desejo se realizará será
através do sentimento de desagrado que D. Camila tem em relação aos
namorados de sua filha, vendo-lhes apenas defeitos, e, assim, criando
empecilhos ao casamento da mesma. Vale também notar que D. Camila procurou
atrasar ao máximo o amadurecimento da filha, tratando-a como criança e
vestindo-a como menina até o momento em que não lhe foi mais possível. Em
D. Camila, como no caso de Ivan Karamazov, o desejo permanece
inconsciente, livrando-a, deste modo, de uma dor moral, pois tomar
consciência do ato de “atrasar” a vida da própria filha não poderia passar
sem o peso da culpa. Todavia, se em Ivan a motivação é o dinheiro, em D.
Camila a motivação é a vaidade. Interessante notar as idéias de Matias
Aires
(3), autor que, segundo Alfredo Bosi, seria uma das fontes para se
construir uma “genealogia do olhar machadiano” (1999) Numa perspectiva
histórico-psicológica, Massimi observa que
Há
outros aspectos do pensamento do autor (Matias Aires: n.d.r) acerca de
vaidade que o aproximam de Freud. O primeiro é a hipótese da existência de
censura: no prólogo vimos que o autor acena à possibilidade de que
sensação e paixões com conotações éticas negativa, fugiam da lembrança e
do conhecimento do sujeito que as experimenta. O segundo aspecto é a
afirmação de que a vaidade é uma paixão ‘escondida’ (em termos freudianos
“inconsciente”): ela “se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e
ignora; ainda as ações mais pias nascem muitas vezes de huma vaidade
mystica, que quem a tem, não conhece nem distingue.” (Massimi, 1984,
p.107).
Fato notável: Matias
Aires em 1752 já supunha a existência de uma censura inconsciente. E
talvez censura seja o nome mais adequado para o que ocorre neste conto,
pois o desejo pressupunha uma conotação ética negativa.
Nem sempre, porém, é
a “dor moral” o único fator que faz com que o desejo permaneça
inconsciente – temos que somar a esta a “inconveniência”. Em alguns contos
de Machado, o desejo pode até ser formulado, mas a psique arranja meios de
suspendê-lo, de distorcê-lo e de afastá-lo da consciência. É o caso de
“Uns braços”, (1986/1961).
Em “Uns braços”
temos o problema do desejo de uma mulher casada, de vinte e sete anos, D.
Severina, por um rapazinho de quinze anos, Inácio, que se hospeda em sua
casa para ajudar seu marido nos serviços do escritório.
O que nos interessa
neste conto é o fato do narrador descrever detalhadamente todas as etapas
de desenvolvimento do desejo em D. Severina. Mesmo depois do desejo já
estar instalado, a própria personagem não se dá conta de sua existência. O
narrador vai mostrando ao leitor vários sinais que indicam a presença do
desejo, até que este, finalmente, penetre na consciência da personagem.
Este conto apresenta uma grande riqueza na descrição dos processos
psíquicos. O narrador mostra com pormenores o desenrolar do desejo, que
ora se esconde, ora se disfarça, mas que, entretanto, dirige o
comportamento da mulher no sentido de sua satisfação.
Primeiramente é o
menino, Inácio, que se apaixona pela mulher. Todavia este só a encontra
praticamente três vezes ao dia, no café da manha, no almoço e no jantar.
Inácio, em virtude da paixão, começa a se distrair constantemente,
esquecer das coisas e devanear. O tempo passa e a paixão de Inácio não
diminui. Inácio, entretanto, tenta ao máximo disfarçar sua paixão. Mas,
certo dia, D. Severina suspeita de Inácio:
Tudo parecia dizer à
moça que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro,
trouxe uma complicação moral, que só conheceu pelos efeitos, não achando
meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se,
chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador (seu marido: n.d.r), ele que
mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estaco: realmente, não
havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não,
ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho,
o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí
a pouco (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem
fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor
e averiguar bem a realidade das coisas. (p.54).
Após alguns dias, D.
Severina confirma sua hipótese e resolve não contar nada a seu marido,
para evitar desgosto a ambos. O narrador então vai mostrando como D.
Severina vai fugindo ao seu desejo pelo mocinho: “(...) já se persuadia
bem que ele era uma criança, e assentou de o tratar secamente até ali, ou
ainda mais.” (p.55). Mas, no entanto, o narrador vai revelando em
D. Severina, através dos comportamentos, de pequenos gestos, o verdadeiro
sentimento da mulher:
Inácio começou a
sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, como o próprio
Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até
meigo, muito meigo; assim como o olhar, geralmente esquivo, tanto errava
por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas
tudo isso era curto. (p.55).
Com o transcorrer do
tempo, D. Severina passa a tratar Inácio mais carinhosamente, dando
conselhos: não beber água fria depois de café quente, etc. Ao mesmo tempo:
“A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem
entender-se.” (p.56). Aqui o narrador parece sugerir um fenômeno parecido
com o presente em “Missa do Galo”, publicado pela primeira vez 1893, em
que o protagonista sente, através de “sensações”, o desejo de sua tia por
ele, e o dele por ela. Entretanto, não o formula em nível consciente, como
“pensamento”. “Nunca poderei entender a conversação que tive com uma
senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.” (Assis,
1899/1961, V.15, p.91). E ainda:
Há impressões desta
noite que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me.
Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que apenas
era simpática, ficou linda, ficou lindíssima. (p.99).
Podemos dizer que é
o mesmo caso o de D. Severina, que sente, mas não sabe, no plano
consciente, de desejo por Inácio.
Finalmente D.
Severina saberá de seu desejo. Isso ocorre através de uma espécie de
“possessão”. Certa vez, D. Severina sente-se atordoada: “Parecia fora do
natural, inquieta, quase maluca.”(p.55), fazendo atos sem propósito, vai à
janela e confirma que seu marido foi embora, senta-se na cadeira e lembra
que Inácio comera pouco, e resolve (“capciosa natureza”) ir observá-lo
para ver se não estava doente. Aqui, o narrador parece deixar claro que
não foi este o real motivo que faz D. Severina ir ao encontro de Inácio.
Inácio está dormindo
na rede quando D. Severina vem sorrateiramente observá-lo, porém ao
observá-lo, o desejo aparece em nível consciente. D. Severina começa uma
luta interior com seu desejo por Inácio; sua arma contra este desejo
consiste em considerá-lo uma criança:
E mirou-o
lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído;
mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais
bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra.
(p.61).
De repente, D.
Severina começa a andar e beija a boca de Inácio. Logo em seguida, ela
recua, envergonhada do ato, não acreditando em sua atitude. Apesar do
beijo, Inácio não acorda, está sonhando justamente que a própria D.
Severina está lhe beijando. O conto finaliza com Inácio sendo mandado
embora de sua casa, sem que ele saiba o porquê.
Há muitas idéias
psicológicas presentes no conto, porém o que mais se destaca são
malabarismos do desejo não admitido, que, por meios ardilosos, levam a
personagem a efetuar comportamentos no sentido de sua satisfação.
Conclusão
A noção de uma atividade inconsciente
se manifesta na ficção machadiana em diferentes níveis e sob diversos
aspectos. Através da análise de alguns contos, encontramos passagens em
que a atividade consciente não corresponde à totalidade psíquica, sendo
aquela apenas uma parte desta. Em virtude disso, podemos concluir, no que
diz respeito às modalidades com que Machado descreve os estados subjetivos
de suas personagens, que por trás de várias intenções conscientes, existem
finalidades ocultas, inconscientes, como é o caso dos contos “Uma senhora”
e “Uns braços”. De fato, Machado constantemente apresenta personagens
dotadas de uma consciência conflituosa, confusa, pouco transparente a si
mesma. Algumas
vezes, mesmo a atividade da memória, de recordar-se, é submetida a filtros
ou barreiras como podemos observar em “Missa do Galo”.
Em outro nível, Machado faz
referência à concepção de um inconsciente vinculado à inspiração musical,
como é o caso de “Um homem célebre”, “Cantiga de esponsais” e literária em
“O cônego ou metafísica do estilo”.
Podemos afirmar, portanto, que o
conceito de inconsciente ou de forças inconscientes que movem o indivíduo
foi disseminado em solo brasileiro através da literatura, antes mesmo do
surgimento da própria Psicanálise.