Peres, S. P. & Massimi, M. (2004). Representações do conceito de insconsciente na obra de Machado de Assis. Memorandum, 7, 128-137.  Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm

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Representações do conceito de inconsciente na obra de Machado de Assis

 Representations of the concept of unconscious in the workmanship of Machado de Assis

 Sávio Passafaro Peres
Marina Massimi

Universidade de São Paulo
Brasil

Resumo

Este ensaio procura reconhecer e avaliar as idéias psicológicas que circularam no Brasil no final do século XIX, em sua representação na obra machadiana, tomada como documento histórico e como veículo transmissor de idéias. Para isso, foram examinadas as ocorrências do conceito de inconsciente na obra de Machado de Assis em três diferentes âmbitos. Primeiro, na terminologia empregada pelo autor. Segundo, nos discursos expositivos dos narradores machadianos. Terceiro, na descrição dos estados subjetivos das personagens. Depois de feitas as análises, as idéias e noções encontradas foram confrontadas com algumas das principais formulações acerca do conceito de inconsciente em outros autores de sua época.

Palavras-chave: história da psicologia; inconsciente; literatura.

Abstract

This essay intends to recognize and to evaluate the psychological ideas that circulated in Brazil during the 19th century and the way they are represented in the workmanship of Machado de Assis, faced as historical document, and a transmitting vehicle of ideas. For this, the occurrences of the concept of unconscious had been examined in the workmanship of Machado de Assis in three different scopes. First, in the terminology used by author. Second, in the expositive speeches of the Machadian narrators. Third, in the description of the subjective states of the personages. After this, we examined the occurrences of the concept of unconscious in the workmanship of Machado de Assis, related with some of the referring conceptions of unconscious in the work of other authors of his time.

Keywords: history of psychology; unconscious; literature.

Introdução

Machado de Assis é considerado pelos críticos um dos maiores escritores brasileiros. De berço humilde, mulato, nascido no Rio de Janeiro no ano 1839, Machado conquistou, pouco a pouco, esta posição graças a sua genialidade e talento. Escreveu durante toda sua vida uma vasta obra, composta dos mais diversos gêneros literários: crônicas, críticas, teatro, poesia, mas é principalmente nos contos e romances que encontramos suas melhores criações. É a partir de 1880, com a publicação de Memórias póstumas de Brás Cubas (1), que dá início ao período que os críticos denominam sua segunda fase de produção literária, em virtude de um enorme salto qualitativo de suas obras, que já não se prendiam aos padrões das diversas escolas literárias, como o romantismo urbanizado do século XIX, o naturalismo, o realismo.

Existe uma enorme quantidade de estudos sobre a ficção machadiana, sendo esta examinada sob os mais diferentes ângulos: biográfico, filosófico, psicológico, sociológico, estético, histórico. Ainda assim, sua obra pode oferecer-nos muito para uma pesquisa na área da história das idéias psicológicas se a interrogarmos de forma adequada, com o auxílio das fontes secundárias. Todavia, é sempre necessário cautela se não quisermos “forçar” a obra a responder aquilo que queremos ou que julgamos que ela deva responder, falácia muito comum entre os críticos.

Investigar na obra de Machado de Assis as idéias psicológicas aí presentes acarreta diversos problemas metodológicos, que, no entanto, se tratados de forma adequada, podem ser superados. Uma das questões a que devemos estar atentos refere-se à linguagem utilizada pelo autor. Se Machado descreveu em inúmeros contos a interioridade de suas personagens, utilizou, para isso, uma terminologia característica. Ora, se considerarmos a história da psicologia e das idéias psicológicas, podemos observar que cada sistema psicológico usa um jargão próprio, onde o sentido e o significado de cada expressão não existe por si só; o termo existe em relação a outros termos, presentes dentro de um contexto maior, ou de uma estrutura que lhe confere significado. O conceito de “inconsciente”, por exemplo, só existe em relação ao conceito de “consciência”.

No sentido amplo do termo, “inconsciente” seria nada mais que um adjetivo, que indica que um objeto de origem psíquica não faz parte da consciência. No entanto, qualificar de “inconsciente” pensamentos, impulsos, desejos, emoções, interesses e outros elementos da vida psíquica não é algo tão simples como à primeira vista pode parecer. Afinal, o que dá garantia de existência das nossas emoções e conteúdos interiores, é o fato de que podemos experimentá-las. Mas como se pode chegar à conclusão que existem conteúdos subjetivos com os quais o indivíduo não pode, por definição, ter acesso imediato? A melhor resposta seria: da mesma forma que os cientistas, para explicarem a deformação na órbita de Saturno, foram forçados a inferir a existência de Plutão, antes mesmo de observá-lo. Isto é, podemos afirmar que supor a existência de conteúdos inconscientes é uma inferência necessária para que vários fenômenos possam ser explicados.

No séc. XIX, segundo aponta Ellenberger (1970/1991), a idéia de inconsciente, como uma região psíquica com conteúdos inconscientes, foi introduzida para se resolver a problemática da memória. Pois onde ficam nossas lembranças quando não estão presentes na consciência? A resposta mais atraente seria considerar estas memórias como temporariamente inconscientes, podendo estas emergir novamente à consciência.

A questão da relação entre inconsciente e memória se destaca em dois contos de Machado, presentes no livro Várias Histórias (1896) que serão explorados mais adiante: “Um homem célebre” e “O cônego ou metafísica do estilo” publicados pela primeira vez, respectivamente, em 1888 e 1885 (2). Este último conto apresenta especial importância, pois será utilizado para se fazer uma articulação com três das quatro principais concepções da atividade inconsciente presentes ao final do séc. XIX.

O conto é uma narrativa sobre um cônego que está sentado, escrevendo um sermão. A princípio, sua escrita flui naturalmente, mas, de repente, surge na cabeça do protagonista uma dúvida quanto ao adjetivo a ser usado. Aqui o narrador convida o leitor a subir até da personagem, e apresenta ao leitor uma estapafúrdia teoria “psico-léxico-lógica” na qual as palavras têm sexo. O estilo seria o casamento delas e, ainda, os substantivos nascem em um lado do cérebro, ao passo que os adjetivos nascem do outro. O conto prossegue com o narrador mostrando a busca do adjetivo pelo substantivo na cabeça do padre. O substantivo encontra várias “damas” em seu caminho, mas recusa a todas, pois está predestinado a um único adjetivo.

O cônego, sem tomar conhecimento dos seus processos inconscientes, sente-se com a inspiração “travada”. E, por não conseguir encontrar o adjetivo adequado, resolve se levantar, vai até a janela, passando a se ocupar de outros afazeres. Nem se lembra mais da busca pelo adjetivo. Contudo, apesar da atividade consciente ocupada com estes pequenos afazeres, o seu inconsciente está em plena atividade. Nesta passagem, portanto, encontra-se não somente a idéia de um inconsciente tópico - isto é, como uma região psíquica passiva onde se armazenam as memórias, região esta subordinada à consciência - mas também a idéia de um inconsciente funcional, dinâmico, isto é, de caráter ativo, que possui atividades relativamente independentes do próprio pensamento consciente. Vejamos: “Enquanto o cônego cuida de cousas estranhas, eles (o adjetivo e o substantivo: n.d.r) prosseguem em busca um do outro, sem que ele saiba ou suspeite nada.” (p.274, V.14).

Logo após, o narrador torna explícita a noção de inconsciente, convidando o leitor a acompanhar, no inconsciente do cônego, a busca do substantivo pelo adjetivo:

Agora, porém, o caminho é escuro. Passamos da consciência para a inconsciência, onde se faz a elaboração confusa das idéias, onde as reminiscências dormem ou cochilam. Aqui pula a vida sem formas, os germens e os detritos, os rudimentos e os sedimentos; é o desvão imenso do espírito. (1896/1961, V.14, p.275).

A descrição deste inconsciente prossegue, revelando-se como um lugar obscuro, efervescente, onde estão guardadas as memórias remotas, as emoções e “idéias grávidas de outras idéias”. É a fonte geradora da linguagem, a partir da qual se articulam as idéias conscientes.

O ensaio de Ivo Barbieri O cônego ou a invenção da linguagem (1998) aponta o fato de que o bruxo do Cosme Velho encontrou forte inspiração para descrição do inconsciente na obra do filósofo alemão, Édouard von Hartmann (1842-1906): Philosophie de l’inconscient, publicado pela primeira vez em 1877, livro este que pode ser encontrado no restante do acervo da biblioteca pessoal de Machado de Assis. Neste livro, um dos capítulos é dedicado a explanações sobre o estilo literário e a atividade criativa. Sobre este assunto, Hartmann, citado por Ivo Barbieri (1998), afirma que a invenção e a realização do belo deriva de processos inconscientes, cujo resultado se traduz na consciência através do sentimento do belo. E esse sentimento é a matéria bruta, pela qual o artista, por meio da reflexão, irá construir sua obra; mas, a cada momento, o inconsciente deve fazer certas intervenções. Ainda, segundo o mesmo autor, o processo inconsciente, que é o princípio de toda criação, escapa completamente ao “olhar da consciência”.

Neste conto de Machado, a descrição do “desvão do espírito” não se restringe a aspectos relativos ao processo criativo, sendo que outras qualidades podem ser evidenciadas. De fato, ao final do século dezenove, segundo aponta o historiador Ellenberger (1970/1991), a questão do inconsciente era abordada sob diversos pontos de vista. Para mostrar um quadro completo, podemos dizer que no ano de 1900 havia quatro diferentes aspectos de sua atividade: conservativo, dissolutivo, criativo e mitopoético. Destas quatro concepções, três aparecem presentes nesse conto, com exceção da função dissolutiva. Vejamos as principais concepções e suas relações com este conto e outros.

 

As funções do inconsciente

A função conservativa era identificada com a memória, o registro de um grande número de recordações; também de recordações de percepções que a mente consciente que ficavam armazenadas e das quais a personalidade consciente não sabia absolutamente nada. Tais fenômenos eram observados, por exemplo, em casos clínicos de pacientes que, durante estados febris, falavam uma língua que haviam aprendido quando crianças e que depois haviam esquecido. Além disso, o hipnotismo forneceu inúmeros casos de “hipermnésia”. Um argumento muito debatido ao fim do séc. XIX, tanto na filosofia quanto na psicologia, era se no indivíduo havia recordações inconscientes de tudo o que havia encontrado na vida. A presença desta função conservativa do inconsciente pode ser muitas vezes encontrada em “O cônego ou metafísica do estilo”, em passagens como: “Ficai aí, perfis meio apagados de paspalhões que fizeram rir ao cônego, e que ele inteiramente esqueceu.” (p.277). Ou ainda:

Cá estão as vozes remotas da primeira missa; cá estão as cantigas da roça que ele ouvia cantar às pretas, em casa; farrapos de sensações esvaídas, aqui um medo, ali um gosto, acolá um fastio de cousas que vieram cada uma por sua vez, e que agora jazem na grande unidade impalpável e obscura. (p.276).

Outro conto em que temos referência à função conservativa é “Um homem célebre”. Trata-se do drama de um compositor de polcas, Pestana, que apesar dos sucessos destas, mantém-se frustrado. Isto porque deseja fazer obras em formas clássicas, como sonatas, ao estilo de um Beethoven ou um Mozart. Contudo, apesar de constantes tentativas, nunca consegue compor nada deste gênero. Em uma das passagens da narrativa, Machado refere-se ao inconsciente como o lugar de onde provem a inspiração:

Às vezes, como que ia surgir das profundezas do inconsciente uma aurora de idéia; ele corria ao piano, para aventá-la inteira, traduzi-la em sons, mas era em vão; a idéia esvaía-se. Outras vezes, sentado ao piano, deixava os dedos correrem, à ventura, a ver se as fantasias brotavam deles, como dos de Mozart; mas nada, nada, a inspiração não vinha, a imaginação deixava-se estar dormindo. Se acaso uma idéia aparecia, definida e bela, era eco apenas de alguma peça alheia, que a memória repetia, e que ele supunha inventar. Então, irritado, erguia-se, jurava abandonar a arte, ir plantar café ou puxar carroça; mas daí a dez minutos, ei-lo outra vez, com os olhos em Mozart, a imitá-lo ao piano. (Assis, 1961, V.14, p.72).

Restava a Pestana apenas compor polcas. Certo dia, entretanto, Pestana começou a compor uma sonata, que lhe pareceu belíssima. Sua mulher, porém, que estava por perto a escutar, percebeu, para o seu desconsolo, que aquela obra não era dele, mas sim de Chopin. Isto é, a música não era fruto de sua inspiração, mas sim de sua memória. Segundo o ensaio de Augusto Meyer (1965) sobre a psicologia da criação artística em Machado: Sílvio e Sílvia, o que o ocorre, no caso de Pestana, é que a música foi “trasladada inconscientemente”. 

A função criativa do inconsciente já era sublinhada desde o tempo do romantismo. Segundo esta concepção, o ato de criação tem origem no inconsciente. Esta idéia aparece em E. Hartmann, sendo posteriormente desenvolvida, segundo Ellenberger (1970/1991), por eminentes psiquiatras, como Francis Galton (1822-1911), e de um modo mais psicológico por Theodore Flournoy (1954-1921).  A presença desta função criativa do inconsciente em “O Cônego ou metafísica do estilo” é evidente, como já foi exposto anteriormente.

A função mitopoética (termo cunhado pelo psiquiatra Frederick Myers (1841-1901)) era uma “região média”, subliminar, de onde se desenvolvia continuamente uma estranha produção de fantasia interior. Um grande explorador desta faculdade foi Flournoy, que pesquisou, sob a perspectiva psicológica, um famoso médium de sua época. Em sua concepção, o inconsciente se ocupa continuamente de criar mitos e fantasias, que muitas vezes permanecem completamente inconscientes, manifestando-se com maior freqüência nos sonhos. Algumas vezes, no entanto, estas fantasias se manifestam mesmo no estado de vigília, através de diferentes formas: delírio, do sonambolismo, hipnose, mitomania, transes, possessões. Segundo alguns outros psiquiatras da época, estas fantasias poderiam ter expressões somáticas, residindo nesta classe de fenômenos a etiologia da histeria.

 

Na descrição do inconsciente por Machado de Assis em “O cônego ou metafísica do estilo” esta função parece ser sugerida na seguinte passagem:

Platão traz os óculos de um escrivão da câmara eclesiástica; mandarins de todas as classes distribuem moedas etruscas e chilenas, livros ingleses e rosas pálidas; tão pálidas, que não parecem as mesmas que a mãe do cônego plantou quando ele era criança. (Assis, 1961, V.14, p.275).

A função dissolutiva do inconsciente compreendia duas classes de fenômenos. A primeira era composta daqueles fenômenos psíquicos que antes eram conscientes, mas que, com o tempo, se tornaram automáticos (como se verifica nos hábitos adquiridos). A segunda era composta de alguns fragmentos cindidos da personalidade que interfeririam no processo normal. Esta hipótese encontrou forte argumentação no fato de se conseguir, através de sugestão hipnótica, gerar no indivíduo comportamentos específicos, mesmo depois de desperto do sono hipnótico, sendo que estes comportamentos eram induzidos sem que o indivíduo tivesse consciência da real razão de seu ato. Estes fenômenos levaram Janet (1859-1947) e outros eminentes psiquiatras do final do séc. XIX à conclusão de que vários distúrbios tinham origens psíquicas, devido à força destes fragmentos cindidos que permaneciam inconscientes. Assim, muitos psicólogos da época consideravam a histeria como uma espécie de possessão da consciência por esta parte cindida da personalidade.

A existência de uma parte cindida da personalidade que permanece oculta leva-nos à hipótese da existência de “desejos inconscientes”. Em relação ao desejo, entretanto, o problema se torna mais complexo que em relação à memória, pois tratamos aqui de um elemento da psique que impele o indivíduo ao comportamento. Mas, afinal, como um desejo pode ser inconsciente, se ele necessita do comportamento para a sua satisfação? Se um desejo é inconsciente e se, por definição, só se pode chegar a ele de forma indireta, quais são os sinais, os indícios, ou os fenômenos que garantiriam a sua existência? Pois afirmar a existência de um desejo só faz sentido na medida em que seja possível encontrar ao menos uma manifestação do mesmo. Mas se o fim de um desejo é o comportamento, como poderia chegar a tal fim sem passar pela consciência? Poderíamos complicar ainda mais: e por que motivo haveria um desejo de se esconder?  E como isso poderia ser observado na literatura?

Buscaremos desenvolver estas questões usando como ponto de partida a obra de um contemporâneo de Machado, Os irmãos Karamazov (1866/2001), de Dostoievski. O intuito de introduzir a questão por meio desta obra é de se apresentar um panorama mais rico das idéias psicológicas no séc. XIX no âmbito da literatura, não se restringindo somente ao âmbito das teorias da psicologia científica.

O romance gira em torno da família Karamazov, composta por Fiódor Pávlovitch, homem vulgar, bufão e imoral, e seus três filhos: Alieksiéi, um asceta; Ivan, tipo mais comedido e controlado; e Dimítri, homem impetuoso, que por uma série de razões odeia seu pai. A tensão entre Fiódor e Dimítri aumenta ainda mais devido ao fato de ambos apaixonarem-se por uma mesma mulher, o que leva Dimítri a ameaçar seu pai de morte. Enquanto isso, Fiódor, para conquistar a moça, começa a consumir seu patrimônio, dando a ela presentes caros e prometendo-lhe dinheiro: se a união fosse concretizada, seria o fim da herança para os filhos. É nesse contexto que um dos agregados da casa, Smerdiakov, possível filho bastardo de Fiódor, começa a sugerir a Ivan que irá assassinar seu pai, pois todos pensariam que o assassino seria o filho mais velho, Dimítri. No entanto, Ivan não chega formular em pensamento a intenção do agregado; o que lhe ocorre - além de profundas insônias e tormentos mentais - é apenas um sentimento inexplicável de asco e ódio a Smerdiakov. A presença de Ivan na casa de seu pai seria de grande importância para que fosse evitado um possível assassinato de seu pai. Todavia Ivan resolve viajar, afastando-se da situação. O agregado, que sente grande simpatia por Ivan, entende a viajem como um sinal de aprovação, pois, dentre outras coisas, Ivan é um intelectual cético que defende a supremacia da vontade pessoal frente aos valores morais, sendo dele a famosa frase: “Se Deus não existe, tudo é possível”. Durante sua viagem, seu pai morre assassinado. Quando Ivan regressa, enlouquece algum tempo depois de saber da notícia, mas a loucura chega ao auge quando fica sabendo que o verdadeiro assassino é Smerdiakov. Tudo leva a crer que o fator responsável por sua insanidade é a culpa. O livro parece sugerir que a culpa existe porque, inconscientemente, ele queria a morte do pai, afastando-se de casa e deixando o campo aberto para o assassinato. Provavelmente até soubesse inconscientemente das intenções de Smerdiakov (afinal por que tanta raiva dele?). Tudo indica que Ivan não formula seu desejo de modo explícito a fim de se proteger da dor moral da culpa pelo seu desejo parricida, gerado pelo interesse (na herança). Porém, o conflito inconsciente se manifesta na insônia e no sentimento de ódio profundo ao agregado (possível projeção de ódio e asco ao próprio desejo parricida).

Se no romance de Dostoievski o desejo inconsciente é apenas sugerido, em “Uma senhora”, de Machado de Assis, o desejo inconsciente é evidente. Neste conto, presente em Histórias sem Data (1884) a protagonista, D. Camila, não formula para si o desejo de que sua própria filha não se case:

Um dia, poucos meses depois, apontou no horizonte o primeiro namorado. D. Camila pensara vagamente nessa calamidade, sem encará-la, sem aparelhar-se para a defesa. Quando menos esperava, achou um pretendente à porta. Interrogou a filha; descobriu-lhe um alvoroço indefinível, a inclinação dos vinte anos, e ficou prostrada. Casá-la era o menos, mas, se os seres são como as águas da Escritura, que não voltam mais, é porque atrás deles vêm outros, como atrás das águas outras águas; e, para definir essas ondas sucessivas é que os homens inventaram este nome de netos. D. Camila viu iminente o primeiro neto, e determinou adiá-lo. Está claro que não formulou a resolução, como não formulara a idéia do perigo. A alma entende-se a si mesma; uma sensação vale um raciocínio. As que ela teve foram rápidas, obscuras, no mais íntimo do seu ser, de onde não as extraiu para não ser obrigada a encará-las. (1961, V.13. p.171).

Mesmo com D. Camila não formulando em nível consciente o seu desejo, este, por outros meios, atinge seu comportamento. O meio pelo qual o desejo se realizará será através do sentimento de desagrado que D. Camila tem em relação aos namorados de sua filha, vendo-lhes apenas defeitos, e, assim, criando empecilhos ao casamento da mesma. Vale também notar que D. Camila procurou atrasar ao máximo o amadurecimento da filha, tratando-a como criança e vestindo-a como menina até o momento em que não lhe foi mais possível. Em D. Camila, como no caso de Ivan Karamazov, o desejo permanece inconsciente, livrando-a, deste modo, de uma dor moral, pois tomar consciência do ato de “atrasar” a vida da própria filha não poderia passar sem o peso da culpa. Todavia, se em Ivan a motivação é o dinheiro, em D. Camila a motivação é a vaidade. Interessante notar as idéias de Matias Aires (3), autor que, segundo Alfredo Bosi, seria uma das fontes para se construir uma “genealogia do olhar machadiano” (1999) Numa perspectiva histórico-psicológica, Massimi observa que

Há outros aspectos do pensamento do autor (Matias Aires: n.d.r) acerca de vaidade que o aproximam de Freud. O primeiro é a hipótese da existência de censura: no prólogo vimos que o autor acena à possibilidade de que sensação e paixões com conotações éticas negativa, fugiam da lembrança e do conhecimento do sujeito que as experimenta. O segundo aspecto é a afirmação de que a vaidade é uma paixão ‘escondida’ (em termos freudianos “inconsciente”): ela “se esconde de tal sorte, que a si mesma se oculta, e ignora; ainda as ações mais pias nascem muitas vezes de huma vaidade mystica, que quem a tem, não conhece nem distingue.” (Massimi, 1984, p.107).

Fato notável: Matias Aires em 1752 já supunha a existência de uma censura inconsciente. E talvez censura seja o nome mais adequado para o que ocorre neste conto, pois o desejo pressupunha uma conotação ética negativa.

Nem sempre, porém, é a “dor moral” o único fator que faz com que o desejo permaneça inconsciente – temos que somar a esta a “inconveniência”. Em alguns contos de Machado, o desejo pode até ser formulado, mas a psique arranja meios de suspendê-lo, de distorcê-lo e de afastá-lo da consciência. É o caso de “Uns braços”, (1986/1961).

Em “Uns braços” temos o problema do desejo de uma mulher casada, de vinte e sete anos, D. Severina, por um rapazinho de quinze anos, Inácio, que se hospeda em sua casa para ajudar seu marido nos serviços do escritório.

O que nos interessa neste conto é o fato do narrador descrever detalhadamente todas as etapas de desenvolvimento do desejo em D. Severina. Mesmo depois do desejo já estar instalado, a própria personagem não se dá conta de sua existência. O narrador vai mostrando ao leitor vários sinais que indicam a presença do desejo, até que este, finalmente, penetre na consciência da personagem. Este conto apresenta uma grande riqueza na descrição dos processos psíquicos. O narrador mostra com pormenores o desenrolar do desejo, que ora se esconde, ora se disfarça, mas que, entretanto, dirige o comportamento da mulher no sentido de sua satisfação.

Primeiramente é o menino, Inácio, que se apaixona pela mulher. Todavia este só a encontra praticamente três vezes ao dia, no café da manha, no almoço e no jantar. Inácio, em virtude da paixão, começa a se distrair constantemente, esquecer das coisas e devanear. O tempo passa e a paixão de Inácio não diminui. Inácio, entretanto, tenta ao máximo disfarçar sua paixão. Mas, certo dia, D. Severina suspeita de Inácio:

Tudo parecia dizer à moça que era verdade; mas essa verdade, desfeita a impressão do assombro, trouxe uma complicação moral, que só conheceu pelos efeitos, não achando meio de discernir o que era. Não podia entender-se nem equilibrar-se, chegou a pensar em dizer tudo ao solicitador (seu marido: n.d.r), ele que mandasse embora o fedelho. Mas que era tudo? Aqui estaco: realmente, não havia mais que suposição, coincidência e possivelmente ilusão. Não, não, ilusão não era. E logo recolhia os indícios vagos, as atitudes do mocinho, o acanhamento, as distrações, para rejeitar a idéia de estar enganada. Daí a pouco (capciosa natureza!) refletindo que seria mau acusá-lo sem fundamento, admitiu que se iludisse, para o único fim de observá-lo melhor e averiguar bem a realidade das coisas. (p.54).

Após alguns dias, D. Severina confirma sua hipótese e resolve não contar nada a seu marido, para evitar desgosto a ambos. O narrador então vai mostrando como D. Severina vai fugindo ao seu desejo pelo mocinho: “(...) já se persuadia bem que ele era uma criança, e assentou de o tratar secamente até ali, ou ainda mais.” (p.55). Mas, no entanto, o narrador vai revelando em D. Severina, através dos comportamentos, de pequenos gestos, o verdadeiro sentimento da mulher:

Inácio começou a sentir que ela fugia com os olhos, ou falava áspero, como o próprio Borges. De outras vezes, é verdade que o tom da voz saía brando e até meigo, muito meigo; assim como o olhar, geralmente esquivo, tanto errava por outras partes, que, para descansar, vinha pousar na cabeça dele; mas tudo isso era curto. (p.55).

Com o transcorrer do tempo, D. Severina passa a tratar Inácio mais carinhosamente, dando conselhos: não beber água fria depois de café quente, etc. Ao mesmo tempo: “A agitação de Inácio ia crescendo, sem que ele pudesse acalmar-se nem entender-se.” (p.56). Aqui o narrador parece sugerir um fenômeno parecido com o presente em “Missa do Galo”, publicado pela primeira vez 1893, em que o protagonista sente, através de “sensações”, o desejo de sua tia por ele, e o dele por ela. Entretanto, não o formula em nível consciente, como “pensamento”. “Nunca poderei entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela trinta.” (Assis, 1899/1961, V.15, p.91). E ainda:

Há impressões desta noite que me parecem truncadas ou confusas. Contradigo-me, atrapalho-me. Uma das que ainda tenho frescas é que, em certa ocasião, ela, que apenas era simpática, ficou linda, ficou lindíssima. (p.99).

Podemos dizer que é o mesmo caso o de D. Severina, que sente, mas não sabe, no plano consciente, de desejo por Inácio.

Finalmente D. Severina saberá de seu desejo. Isso ocorre através de uma espécie de “possessão”. Certa vez, D. Severina sente-se atordoada: “Parecia fora do natural, inquieta, quase maluca.”(p.55), fazendo atos sem propósito, vai à janela e confirma que seu marido foi embora, senta-se na cadeira e lembra que Inácio comera pouco, e resolve (“capciosa natureza”) ir observá-lo para ver se não estava doente. Aqui, o narrador parece deixar claro que não foi este o real motivo que faz D. Severina ir ao encontro de Inácio.

Inácio está dormindo na rede quando D. Severina vem sorrateiramente observá-lo, porém ao observá-lo, o desejo aparece em nível consciente. D. Severina começa uma luta interior com seu desejo por Inácio; sua arma contra este desejo consiste em considerá-lo uma criança:

E mirou-o lentamente, fartou-se de vê-lo, com a cabeça inclinada, o braço caído; mas, ao mesmo tempo que o achava criança, achava-o bonito, muito mais bonito que acordado, e uma dessas idéias corrigia ou corrompia a outra. (p.61).

De repente, D. Severina começa a andar e beija a boca de Inácio. Logo em seguida, ela recua, envergonhada do ato, não acreditando em sua atitude. Apesar do beijo, Inácio não acorda, está sonhando justamente que a própria D. Severina está lhe beijando. O conto finaliza com Inácio sendo mandado embora de sua casa, sem que ele saiba o porquê.

Há muitas idéias psicológicas presentes no conto, porém o que mais se destaca são malabarismos do desejo não admitido, que, por meios ardilosos, levam a personagem a efetuar comportamentos no sentido de sua satisfação.

 

Conclusão

A noção de uma atividade inconsciente se manifesta na ficção machadiana em diferentes níveis e sob diversos aspectos. Através da análise de alguns contos, encontramos passagens em que a atividade consciente não corresponde à totalidade psíquica, sendo aquela apenas uma parte desta. Em virtude disso, podemos concluir, no que diz respeito às modalidades com que Machado descreve os estados subjetivos de suas personagens, que por trás de várias intenções conscientes, existem finalidades ocultas, inconscientes, como é o caso dos contos “Uma senhora” e “Uns braços”. De fato, Machado constantemente apresenta personagens dotadas de uma consciência conflituosa, confusa, pouco transparente a si mesma. Algumas vezes, mesmo a atividade da memória, de recordar-se, é submetida a filtros ou barreiras como podemos observar em “Missa do Galo”.

Em outro nível, Machado faz referência à concepção de um inconsciente vinculado à inspiração musical, como é o caso de “Um homem célebre”, “Cantiga de esponsais” e literária em “O cônego ou metafísica do estilo”.

Podemos afirmar, portanto, que o conceito de inconsciente ou de forças inconscientes que movem o indivíduo foi disseminado em solo brasileiro através da literatura, antes mesmo do surgimento da própria Psicanálise.

 

Referências bibliográficas

Aires, M. (1752). Reflexão sobre a vaidade dos homens. Officina de Francisco Luís Ameno: Lisboa.

Assis, M. (1961). Obras completas. São Paulo: Editora Brasileira. 32 volumes

Barbieri, I. (1998). O cônego ou a invenção da linguagem. Tempo Brasileiro, 133-134, 23-34.

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Ellenberger, H. (1991). La scoperta dell’inconscio. (N. Nunes & O. Mendes, Trad.) Torino: Bolati Bognieri. (originalmente publicado em 1970)

Leite, D. M. (1967). Psicologia e literatura. São Paulo: Companhia Editora Nacional.

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Meyer, A. (1965). Sílvio e Sílvia. Em A. Meyer (Org.). Forma Secreta. (4.ed). (pp.39-41). Rio de Janeiro: Lidador.

 

Notas

(1) Os nomes dos livros estão grafados em itálico, já o nome dos contos estão entre aspas.

(2) Machado de Assis, durante a vida, publicou cerca de duzentos e dez contos em revistas, jornais e livros. Muitos dos contos presentes em seus livros foram anteriormente divulgados em revistas e jornais. Assim sendo, a ordem cronológica da produção dos contos não corresponde com exatidão à ordem de publicação de seus livros de contos.

(3) Matias Aires foi um importante pensador brasileiro do séc. XVIII, influenciado pelo pensamento racionalista, La Rochefoucauld, Pascal e outros, escreveu obras dos mais variados gêneros. Porém destaca-se dentre estas obras “Reflexões Sobre a Vaidade dos Homens”, obra em que o autor procura entender o ser humano, partindo do conceito central da vaidade. Interessante notar que modo semelhante de pensamento é encontrado em Pascal, outra forte influencia do pensamento de Machado, segundo apontam muitos críticos.

 

Nota sobre os autores

Sávio Passafaro Peres é formado em Psicologia pela Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Área de pesquisa: história das idéias psicológicas e realizou esta pesquisa como bolsista da FAPESP. Contato: relatoriomachado@yahoo.com.br.

Marina Massimi é Livre Docente e trabalha junto ao Departamento de Psicologia e Educação na Faculdade de Filosofia Ciências e Letras da Universidade de São Paulo, Campus de Ribeirão Preto, Brasil. Especialista na área de História das Idéias Psicológicas na Cultura Luso-Brasileira. Contato: Avenida Bandeirantes, 3900 - 14040-901 - Ribeirão Preto (SP) / Brasil. E-mail: mmarina@ffclrp.usp.br.

Data de recebimento: 09/02/2004
Data de aceite: 29/09/2004
 

Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP. 
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/peresmassimi01.htm

 

 

 

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