Silva, P.J.C. (2004). Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623). Memorandum, 7, 88-101.   Retirado em   /  /  , do World Wide Web: http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm

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Um só regime para o corpo e a alma: os tratados de Luigi Cornaro (1467-1566) e Leonard Lessius Sj (1554-1623)

 A single regimen for body and soul: Luigi Cornaro (1467-1566) and Leonard Lessius (1554-1623) treatises

 Paulo José Carvalho da Silva
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
Brasil

Resumo
Fontes variadas dos séculos XVI e XVII combinavam diferentes tradições de saber a fim de sistematizar modos de conservar a saúde do corpo e da alma. Pode-se destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservação da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, publicado em 1613 pelo teólogo jesuíta da Universidade de Louvain Léonard Lessius, a partir do Trattato della vita sobria do veneziano Luigi Cornaro, de 1558. Conclui-se que o regime proposto por Lessius prescreve uma disposição de comportamento, adquirida por meio da vontade e do hábito, que promete o melhor desempenho das funções corpóreas e anímicas necessárias, enquanto meios concretos, para que o indivíduo possa ter uma vida, ao mesmo tempo, saudável, virtuosa e satisfatória. O que estaria baseado em uma refinada convergência de saberes médicos, da filosofia da alma e da ética aristotélicas e da espiritualidade inaciana.

Palavras-chave: regime de vida; psicologia aristotélica; medicina; espiritualidade jesuíta; séculos XVI e XVII.

Abstract

Varied sources of the sixteenth and seventeenth centuries mix different knowledge traditions to develop ways of preserving body and soul’s health. A significative example it the Dois tratados de regime de vida para a conservação da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, published in 1613 by the Jesuit Theology professor of the university of Louvain Léonard Lessius from his translation of the Trattato della vita sobria, 1558, by the Venetian Luigi Cornaro. These systematic advices teach how to behave looking for a better performance of the functions of body and soul, which are necessary for a healthy, virtuous and satisfactory life. They are based on a refined combination of medical regimen tradition, Aristotelian philosophy of the soul and Ethics, and Ignatian spirituality.

Keywords: regimen; Aristotelian psychology; medicine; Jesuit spirituality; sixteenth and seventeenth centuries.

Convergência de saberes e ars vivendi

A elaboração de saberes sobre o bem viver no início da Idade Moderna deu-se através de conflitos e conciliações de diferentes tradições do pensamento, o que resultou em diferentes modos de adesão, refutação e síntese de saberes, cuja difusão estendeu-se ao longo dos séculos XVI e XVII. Em particular, o aristotelismo renascentista foi uma das abordagens filosóficas que mais embasou propostas de regime de vida neste período. Contudo, mesmo que tenha havido um grande interesse por Aristóteles nos mais diversos contextos de pensamento, durante o período que se estende entre o final do século XIV e a metade do século XVII, há poucas pesquisas atuais sobre o assunto (1). De modo específico, apesar de sua considerável difusão, não há ainda estudos que abordam os múltiplos regimes de vida fundamentados na filosofia aristotélica da alma e na tradição médica das dietas produzidos nos séculos XVI e XVII.

Por sua vez, sabe-se que os jesuítas foram responsáveis pela defesa e renovação do aristotelismo neste período. Exemplo disto é o programa de estudos sobre a definição de alma e de vida desenvolvido nas escolas da antiga Companhia de Jesus. A partir de leituras do De anima e do Parva Naturalia, complementadas pelo estudo dos livros da Ética de Aristóteles, para os jesuítas do fim do século XVI e início do século XVII, salvo algumas nuances, a alma é o princípio de vida, una e individual, constituída de três partes funcionais coordenadas: a alma vegetativa (responsável pelo crescimento, nutrição e geração de todos os seres vivos); a sensitiva (sede dos sentidos, paixões, imaginação, memória e locomoção dos animais e seres humanos) e a racional, exclusiva dos humanos, (a qual pertence à razão e à vontade). O que estaria sistematizado em comentários escolásticos, sobretudo nos tratados do coimbrão Manuel Góis, datados do final do século XVI, conhecidos como tratados conimbricenses (2).

Estes tratados jesuíticos sobre a alma podem ser considerados uma resposta a dois amplos projetos: estabelecer os princípios de uma ciência da vida, e neste sentido, o estudo da alma não funcionava apenas como os prolegômenos da filosofia moral e da teologia, mas era a base para o estudo de todos os seres vivos, e demonstrar, através de argumentos racionais, a imaterialidade e a imortalidade da alma humana (3).

Como se sabe, era imprescindível fixar a concepção de alma num contexto de debate travado contra posições que rivalizavam com o aristotelismo cristão dos jesuítas. Havia os galenistas que davam maior relevo à  matéria do que a corrente  tomista,  bem  como  a  polêmica  visão  de  Pietro Pomponazzi (1462-1525), filósofo aristotélico da Universidade de Pádua, segundo o qual nem conforme Aristóteles, nem conforme a razão, a alma seria imortal, contrariando com esta afirmação o quinto Concílio Laterano, de 1513, ou ainda outros paduanos partidários do pensamento de Averrois (Ibn Rushd) (1126-1198), que defendiam a existência de um intelecto ativo comum a todos os seres racionais, a partir da leitura do filósofo, médico e juiz andaluz, maior comentador de Aristóteles em língua árabe (4).

Em escritos direcionados à atividade pastoral ou à vida cotidiana, os jesuítas das primeiras gerações sistematizaram diversificados procedimentos de caráter bastante metódico, funcional e coerente com as idéias apresentadas nos tratados teóricos publicados pela Companhia no mesmo período. Para além dos debates acadêmicos, alguns jesuítas exploraram, de maneira particular e em diferentes contextos, conseqüências desta concepção de alma com três partes funcionais, inclusive, sistematizando modos de harmonizá-las, por meio do ordenamento de seus acidentes e na melhor aplicação de suas faculdades. São diferentes práticas que se fundamentam em uma refletida conciliação de saberes sobre a natureza humana que inclui a espiritualidade inaciana, a psicologia e a ética aristotélicas e até mesmo a tradição médica.

Pode-se destacar o Dois tratados de regime de vida para a conservação da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice, publicado em 1613, pelo teólogo e professor da Universidade de Louvain Léonard Lessius (1554-1623) e reeditado em várias línguas ao longo de três séculos, que prescreve justamente conselhos para a conservação da integridade das funções somáticas e anímicas (5). Propõe-se, portanto, uma análise deste manual de medicina do corpo e da alma com o objetivo de explicitar a convergência de saberes médicos e da filosofia da alma aristotélica, o que pode contribuir para a compreensão da organização do conhecimento sobre o bem estar humano no início da Idade Moderna.

 

Elogio da vida sóbria

O Dois tratados de regime de vida para a conservação da saúde do corpo e da alma até a extrema velhice é composto de um tratado complementar à obra do veneziano Luigi Cornaro, Trattato de la vita sobria, cuja primeira edição data de 1558.

Cornaro (1467-1566) escreveu tal manual de saúde entre os 85 e 95 anos para relatar que, após uma vida de excessos que arruinara sua saúde, descobrira as virtudes dos regimes alimentares. O autor retoma os lugares comuns sobre os efeitos da temperança, renovando a tradição, ao multiplicar os conselhos e insistir, através de um relato em primeira pessoa, nas delícias e prazeres que a sobriedade e a moderação podem proporcionar.

Trata-se, na realidade, de uma longa tradição. A escola hipocrática produziu, no final do século V a.C., um tratado sobre o Regime de vida, que estabelece os postulados fundamentais dos cuidados com a alimentação, atividades físicas, sexualidade, idade e lugar de residência. Cláudio Galeno (129-199) sintetizou idéias hipocráticas, aristotélicas e de outras tradições helenísticas, em seu tratado de Higiene, que defende a idéia da saúde como um equilíbrio perfeito interno e com o meio externo. Além das regras monásticas da alta Idade Média e dos textos de origem árabe, como o Canon de Avicena, os regimina sanitatis medievais mais conhecidos, embora não sejam os únicos, são os versos didáticos atribuídos à Escola de Salerno, século XI, o Regimen sanitatis salernitanum, e o livro de saúde de Aldebrando de Siena publicado no século XIII.

Na Itália do início da modernidade, vários médicos difundiram modos de conservar a saúde. Pode-se destacar, nesta empreitada, o médico e professor da Universidade de Pádua Michele Savonarola (1384-1469). Seu pequeno manual de longo título, o Libreto delo Excellentissimo physico Maistro Michele Savonarola: De tutte le cose che se mangiano comunamente: quale sono contrarie e quale al proposito: i como si apparecchiano: i di quelle se beveno per Italia : e de sei cose non naturale : i le regole per conservare la sanità deli corpi umani, sistematiza os princípios considerados necessários para a conservação da boa saúde por muitos anos, retomando noções hipocrático-galênicas e adaptando-as a sua realidade local e atual.

Conforme esta tradição hipocrático-galênica reiterada no Renascimento, a combinação harmoniosa, quantitativa e qualitativa, entre os líquidos corporais chamados de quatro humores (sangue, fleuma, bile amarela e bile negra ou melancolia) é uma condição para a saúde. Para que isto se mantenha é necessário o equilíbrio entre a entrada de alimentos e o gasto com os esforços corporais. O objetivo do regime é regular este equilíbrio de modo a garantir uma boa proporção entre calor e umidade (6).

Por sua vez, o veneziano Cornaro apresenta seus conselhos afirmando que há três grandes males introduzidos na Itália pelos maus costumes: a adulação das cortes, a maneira de viver conforme a opinião e doutrina de Lutero e as indignidades. Seu tratado exorta a uma maneira de viver considerada mais honesta, católica e digna através da busca da justa medida e da sobriedade no viver, que se inicia pelo regime alimentar. Assim, propõe uma medicina de si mesmo que abrange a conservação do corpo em saúde e o predispõe a colaborar com os exercícios de devoção que visam à salvação da alma (7).

O Trattato della vita sobria aparenta-se ao gênero dos tratados de civilidade difundidos na Itália de sua época. Da racionalidade de corte, Cornaro parece guardar a ênfase na razão e no prazer que comportam o senso de medida e o controle de si. Entretanto, restringe-se aos aspectos médicos e à conveniência do bom regime: seu livro expõe os passos a serem tomados por aquele que deseja conservar, por longos anos, a boa saúde, entendida como parte inalienável da idéia de dignidade, que pressupõe virtudes políticas e intelectuais como a prudência e a discrição (8).

Siraisi (1997) lembra que nos Quinhentos e Seiscentos italianos, o público para este tipo de manual de saúde não se restringia aos médicos, mas abrangia também as cortes e a intelectualidade urbana, em especial os idosos destas classes. A proliferação dos manuais de higiene e sobretudo das dietas está relacionada certamente ao aumento na sofisticação das refeições e dos rituais comensais das prósperas classes altas e o interesse, marcante do humanismo, nos escritos clássicos sobre este tema.

No Trattato de Cornaro, gosto e conveniência são apresentados em oposição, para, com o relato da experiência, posteriormente, comprovar serem, pelo contrário, conciliáveis na prática do regime. O que prenuncia o espaço que o campo do desejo ocupa enquanto operador do modo de vida temperante na versão de Lessius.

Tal como outros escritos do período, o autor expõe sua experiência como exemplo, inclusive relatando como venceu suas próprias dificuldades em realizar o regime prescrito pelos médicos. Parece com isso querer convencer o leitor do caráter concreto de seus conselhos e da verossimilhança de seus resultados, atraindo a confiança do leitor para o seu conceito público de homem idoso, pleno de saúde e sabedoria. Mesmo havendo recebido a regra segundo a qual se deve comer os alimentos e beber o vinho convenientes e em pequena quantidade, Cornaro relata que seguia seu próprio gosto. Mas após resolver seguir a temperança e a razão, vendo que não há nenhuma pena nisso e que se trata de um dever, afirma:

Após haver decidido ser continente e razoável, vendo que não se trata de algo difícil, pelo contrário, um dever do homem, dispus-me de tal maneira a seguir este modo de vida, que jamais caí na desordem em coisa alguma; e fazendo-o, em pouco tempo, percebi que esta vida me agradava e que em menos de um ano (o que poderá parecer inacreditável para alguns) curei-me de cada uma de minhas enfermidades (Cornaro, 1616, p. 7, trad. nossa).

Apoiando-se na tradição dos quatro elementos e das quatro qualidades, bem como no sistema de correspondências entre as ordens do macrocosmo da natureza e do microcosmo do corpo humano, Cornaro repropõe a conservação de uma certa regra no comer e no beber que proporcionaria benefícios no domínio individual e em organizações maiores como a família, a cidade ou o reino.

Tais considerações sustentam a conclusão de que a vida regrada é o fundamento e o meio mais certo de uma vida saudável e longa, além de ser a verdadeira e única medicina para muitos males. Nota-se que, embora Cornaro proponha um método para prolongação da vida, ele não recorre aos saberes alquímicos, astrológicos ou mágicos que tradicionalmente visavam tal fim, conservando-se estritamente dentro do gênero dos regimes e com isto atribuindo uma eficiência ainda maior à dieta sóbria (9).

Trata-se, porém, de uma certa medida a ser encontrada e não uma regra geral pré-determinada. Cornaro professa um acento na individualidade, pouco comum até então. É a própria pessoa que pode conhecer através da sua experiência quais são os alimentos e bebidas mais ou menos convenientes, pois somente esta conhece as condições de sua natureza e suas propriedades ocultas:

Na verdade, o homem não pode ser médico perfeito de outrem além de si mesmo; e a razão é porque cada um é que pode, com diversa experiência, conhecer sua compleição perfeitamente e as suas propriedades mais ocultas; e o que tal vinho, tal alimento provoca no seu estômago. (...) Não havendo, portanto, melhor médico do que si mesmo, nem melhor medicina do que a vida ordenada (Cornaro, 1616, p. 16, trad. nossa).

Vigarello (Cornaro, 1558/1991) sustenta que esta observação íntima, e o conseqüente saber intransferível e necessário sobre as disposições particulares, não existiam nos regimen sanitatis medievais. Sendo Cornaro pioneiro ou não, nota-se que esta medicina de si mesmo parece ter se tornado um ideal dos séculos XVI e XVII. Ela comparece, por exemplo, como objetivo de uma obra de Levinio Lemnio publicada em Veneza nos anos de 1561 e 1564. O médico holandês fornece os meios pelos quais o leitor possa investigar a si mesmo e medicar-se, finalidade explicitada no título: Della complessione del corpo humano Libri III da quali a ciascuno sará agevole di conoscere perfettamente la qualitá del corpo suo, e i movimenti dell'animo e il modo di conservali del tutto sani. Tal finalidade comparece ainda no encerramento do discurso sobre como se manter bem na velhice, de André du Laurens: Discours de la conservation de la vue, des maladies melancholiques, des catarrhes, & de la vieillesse, de 1630. Nele, o médico de Henri IV e professor de Montpellier afirma que é necessário que cada um aprenda a conhecer o “seu natural” e aquilo que lhe cai bem ou mal tornando-se senhor e médico de si mesmo.

Exame e julgamento da própria natureza e exame e ordenação do próprio desejo equivalem-se no ponto de partida para a escolha da vida sóbria no tratado de Cornaro. O que é bastante compreensível em um texto que visa demonstrar os efeitos de uma maneira de viver tradicionalmente concebida como hábito virtuoso (10).

Os contra-argumentos aos lugares comuns evocados pelo autor e que poderiam constituir-se em impedimentos à prática de seus conselhos são todos eles voltados para o domínio da vontade. Por exemplo, em resposta à opinião de que é melhor viver pouco, mas de acordo com o próprio apetite, do que muito, retendo e forçando a natureza, ele vai dizer que os grandes livros da doutrina foram escritos por homens maduros, que atingiram um estado em que o prazer da boca não conta tanto.

Ele insiste também em dar o próprio exemplo no sentido de provar que é possível ter uma vida prazerosa em idade avançada, guardando a sobriedade. Afirma que muito se deleita com conversações, leituras, viagens, etc., em suma, a vida que leva é agradável e alegre: vida viva e não morta.

A importância da escolha da vida sóbria dentre as experiências possíveis do corpo e da alma é enfatizada ao longo de seu livro em seu caráter de facilidade, prazer e utilidade:

Esta é aquela sobriedade divina, grata a Deus, amiga da natureza, filha da razão, irmã da virtude, companheira do viver de modo temperante, modesta, gentil, contente com pouco, regulada e distinta em suas operações (Cornaro, 1616, p. 23, trad. nossa).

A sobriedade purga os sentidos, torna o corpo ágil, o entendimento vivo, a memória boa, os movimentos flexíveis e as ações fáceis. As potências conservam uma grande harmonia. Além de tudo, permite uma maior capacidade de seguir a vida espiritual. Enfim, a própria sobriedade constitui-se em uma medicina da disposição da alma e do corpo:

Ó santíssima e inocentíssima Sobriedade, único refresco da natureza, mãe benigna da vida humana: verdadeira medicina do ânimo bem como do nosso corpo; quanto devem os homens louvar-te e agradecer-te os teus corteses dons? (Cornaro, 1616, p. 33, trad. nossa).

 

Temperança: entre medicina e teologia

Não obstante a proibição das Constituições e regras do fundador Inácio de Loyola de se ensinar medicina nas escolas jesuítas, eles prestaram serviços médicos durante as epidemias que assolaram a Europa no século XVI e nas missões no Oriente e na América, organizaram saberes e práticas sobre o corpo e seus males, divulgaram meios de manter a saúde e apropriaram-se de conceitos e procedimentos da arte médica para dirigir a vida no interior da Companhia (11).

Em particular, o comentário de Lessius ao Trattato della vita sobria segue os mesmos princípios e baseia-se nos mesmos pressupostos médicos e éticos de Cornaro, porém apresenta os argumentos de maneira mais sistematizada, mais explicativa e enriquecida de detalhes e exemplos. As comodidades apresentadas por Cornaro são modeladas e desenvolvidas por Lessius em uma exposição que as divide nas que concernem principalmente ao corpo e, logo em seguida, nas que dizem respeito mais à conservação da alma. Seu tratado é estruturado em três etapas. Primeiro, explica-se o que se entende por sobriedade no viver; em um segundo momento, define-se por que via e meio se pode ordenar uma justa medida; e enfim aborda-se quais são os frutos e comodidades que dela se obtém.

Lessius justifica seu interesse pela medicina em geral e especificamente pelo tratado de Cornaro, não somente a partir da experiência pessoal de cura de seus males com o regime, mas através do argumento que o autoriza enquanto teólogo a enveredar-se no campo da medicina. Trata-se do que considera ser um ponto em comum entre as duas disciplinas: a temperança como virtude de justa medida operante tanto na ordem da alma como na ordem do corpo:

Mas esta matéria não deve ser considerada distante da minha vocação, a da Teologia, e não a da Medicina. Pois, ainda que eu não tenha dedicado tempo ao estudo da medicina, esta empresa não é em nada afastada do objetivo de um teólogo, sendo este o discurso da Temperança, que é uma virtude muito bela, e do que ela consiste, de suas extremidades, da medida de seu objeto, como se deve procurar esta medida, e, por conclusão, quais os frutos que dela se pode colher. (Lessius, 1623, pp. 527-8, tradução nossa).

A sobriedade no viver demarca uma regra no beber, no comer e em outros excessos, de maneira que o homem beba ou coma de modo a nutrir o corpo e não perturbar a alma: “à medida que a constituição natural o requer, sem impedir as funções da alma. Isto chamaremos de regime de vida, vida regrada e temperante.” (Lessius, 1623, pp. 530, trad. nossa).

Nos monastérios, havia, desde muito, uma ordem estabelecida de distribuição parcimoniosa de alimentos e bebidas a todos os religiosos, o que determinava a frugalidade necessária das refeições. Seguindo a doutrina aristotélico-tomista, as indicações de Inácio de Loyola a propósito do respeito ao indivíduo e as orientações previamente expendidas por Cornaro, Lessius adverte não ser adequada uma regra geral sem considerar as diferenças nos corpos, sobretudo no tamanho, na idade e na compleição dos mesmos. O que não significa relegar a medida à própria vontade, pois as paixões podem levar à confusão entre necessidade e volúpia. Portanto, não sendo evidente, torna-se imprescindível descrever por quais meios se pode buscar a medida.

Uma maneira de verificar o limite do corpo é estar atento justamente às alterações das disposições da alma. Deve-se medir o ânimo e a aptidão para atividades tais como a oração, meditação ou estudos das letras. Se estas se encontram prejudicadas, certamente houve excesso no beber e no comer. Este, ao sobrecarregar a parte vegetativa da alma, impede o exercício de faculdades superiores, como os sentidos, a imaginação, a intelecção e a memória (12).

Lessius, porém, parece partir do princípio de que não basta conhecer as vantagens da justa medida; colocá-la em prática pressupõe o domínio dos próprios apetites e das faculdades da alma. A sétima regra, por exemplo, discorre sobre a dificuldade na observância de uma justa medida porque o apetite é, freqüentemente, incitado pela imaginação dos alimentos como prazerosos e agradáveis. Neste caso é preciso corrigir a imaginação, representando o alimento como abjeto, para temperar o apetite excessivo com uma dose de repulsa. Bem como é oportuno não se expor aos perfumes ou à visão dos alimentos porque a presença do objeto dispersa a potência e torna mais difícil a abstenção. Recomenda-se representar os alimentos não como agradáveis à visão, ao olfato e ao paladar, mas “mal cheirosos, sujos, infectos e detestáveis como logo se tornarão” (Lessius, 1623, pp. 564-5, tradução nossa). Assim como se deve (conforme determinava Hipócrates no décimo quinto aforismo) adaptar ao inverno e ao verão o uso dos alimentos, temperando frio e calor, é também oportuno temperar o querer, através do controle da presença real ou representada dos objetos, para se atingir a sobriedade no viver (13).

Segundo o autor, são grandes as comodidades que a sobriedade traz à alma e ao corpo. Ela protegeria o homem de quase todas as doenças, prevenindo e curando ao temperar os humores e conservar sua boa proporção qualitativa e quantitativa. Além disso, a sobriedade tornaria o corpo leve, ágil, robusto e disposto em todos os seus movimentos. Retirando pela dieta a abundância de humores, o peso se vai, a preguiça o deixa, e os condutores dos espíritos ficam livres e abertos. Esta mesma dieta promoveria uma boa digestão, engendraria um sangue louvável e dela procederia uma quantidade de espíritos purificados, os quais tornam o corpo vigoroso e disposto (14).

Lessius argumenta que a sobriedade também traz o mesmo número de comodidades à alma. Em primeiro lugar, ela conserva os sentidos exteriores em integridade e vigor. Ademais, ela diminui e suaviza grandemente as paixões que inquietam a alma, principalmente as da cólera e da melancolia, temperando toda impetuosidade desordenada. O que, por si só, justificaria uma grande estima pela sobriedade:

Pois é algo vergonhoso não poder dominar a cólera e estar sujeito à melancolia, às importunas solicitações da fantasia e se deixar levar por um cego apetite da boca e da sensualidade (Lessius, 1623, p. 616, trad. nossa).

As paixões desregradas seriam reações não apenas desonestas e contrárias à virtude, como também inimigas da saúde e impróprias para pessoas honrosas. A sobriedade remediaria facilmente todos estes males por uma diminuição ou correção dos humores que são uma de suas causas. A relação causal entre humores e paixões é explicada pelo autor através da evidência de que aqueles que estão repletos de humores biliosos são coléricos e impacientes e que os melancólicos são tristes e medrosos. Ou ainda, se a melancolia esquenta-se no cérebro, ela engendra a frenesia e a mania; se o humor é ácido e colado aos tecidos do estômago, ele causa um apetite insaciável de comer; se o corpo está repleto de sangue ardente, ele incita à sensualidade exagerada.

Lessius explica que os humores dominantes também definiriam o campo das fantasias e dos sonhos que seguem as paixões da alma.  Ele aponta que o excesso de um humor perverte a natural constituição da fantasia e da apreensão. A bile, por exemplo, que é muito amarga e grandemente contrária à natureza, faz com que a fantasia apreenda os discursos e ações dos outros como coisa que lhe é contrária, inimiga e injuriosa, e, como se trata de um humor ardente e impetuoso, ele faz com que a apreensão seja impaciente e veemente e faz o homem perseguir a vingança. O humor melancólico, por sua vez, é pesado, frio, seco, mole, ácido, de cor negra e muito prejudicial ao coração. Ele faz com que a fantasia apreenda todas as coisas como lhe sendo contrárias e inimigas, tristes e tenebrosas, mas por sua frieza e seu entorpecimento levaria ao medo e à fuga. Já a pituíta ou fleuma é fria e úmida, o que converte a apreensão em algo prosternado, sem vigor, nem alegria. Da mesma maneira que a bile torna os homens coléricos e turbulentos, audaciosos e desagradáveis, a pituíta faria com que nada lhes contente, tornando-os maledicentes e implicantes.

A dieta é um soberano remédio para a maior parte destes incômodos. Inácio de Loyola, nos Exercícios Espirituais, já havia acatado a idéia de que a alimentação influencia os estados da alma. Segundo Lessius, por seu meio, os maus humores diminuem, e, pouco a pouco, a natureza os consome e os expulsa. Após a intempérie do corpo se corrigir, o sangue purifica-se e tempera-se, sem nenhuma mistura de cruezas, sem humores supérfluos. Tanto que se vê normalmente quanto as pessoas sóbrias são aprazíveis, afáveis, corteses, alegres, acessíveis e moderadas em todas as suas ações.

As explicações de Lessius ratificam a idéia de que o suco de uma natureza benigna torna benignos os afetos e costumes e o suco maligno torna os afetos e costumes malignos e furiosos. O que não significa que ele concorde com a idéia de que a alma reduza-se ao temperamento do corpo. Lessius parece pressupor muito mais do que uma coincidência, uma interação entre os domínios dos afetos e dos humores.

Ele afirma que as paixões também exercem uma alteração nos próprios humores por efeito de correspondência. Pode-se constatar quando, por exemplo, a imaginação é retida longamente em uma injúria e, por causa disto, a emoção da ira cresce e aquece os espíritos e o humor da bile por uma certa simpatia. O humor biliar, estando aquecido, faz com que a fantasia apreenda as coisas com mais força e veemência e que qualquer injúria pareça ainda muito maior do que é. O que desencadeia um ciclo vicioso. A tristeza também pode oprimir o coração por meio de alguma simpatia e impedir sua livre função. Daí procede que o humor melancólico queima-se e seus vapores não podem ser dissipados. Tornando-se ainda mais maligno, aumenta a tristeza, freqüentemente causa desespero e leva a resoluções desagradáveis.

Disto se depreende que para controlar a paixão da ira é aconselhável temperar o fluxo de bile, da mesma forma que para mantê-lo temperado é indicado distrair o pensamento das injúrias recebidas. De igual maneira, controla-se a paixão da tristeza agindo sobre o fluxo melancólico e tempera-se a melancolia dissipando-se as lembranças de acontecimentos tristes (15). O que não estaria em desacordo com a distinção fixada pelo coimbrão Manuel Góis, no seu comentário ao Parva Naturalia, de 1593, segundo a qual tais perturbações teriam duas causas: uma formal; o impulso da alma, e outra material, a alteração orgânica dos espíritos vitais.

Lessius não pretende, com este tratado, elaborar nenhuma teoria especulativa acerca da natureza da alma. A intersecção entre medicina e teologia explorada pelo jesuíta restringe-se ao campo das funções atribuídas ao corpo e à alma e visa à definição do método de uma ação possível sobre estas funções. Por se tratar de uma defesa de uma dieta sóbria, é compreensível que realce os processos desencadeados pela causa material dos movimentos das funções vegetativa e sensitiva da alma. Usando a terminologia aristotélica, pode-se dizer que se trata dos acidentes, e não da natureza substancial da alma, o que experimentaria modificações na aplicação do seu método de conservação da saúde (16).

De qualquer modo, reduzir a alma ao temperamento do corpo seria incompatível, não somente com a psicologia aristotélico-tomista, como também com as máximas teologais, sobretudo com o pressuposto católico contra-reformado, bem ao gosto jesuítico, de uma predisposição natural virtualmente boa que se encontra em estado de corrupção, por causa do pecado original, mas que pode ser superado, por ação da graça e do uso correto do livre arbítrio. Isto através da aquisição de um hábito virtuoso, efetivado no exercício prolongado das boas obras, o que Lessius propõe com o exercício da sobriedade, valendo-se também de argumentos do saber médico, como a descrição dos processos fisiológicos envolvidos.

A terceira comodidade que a sobriedade promoveria no campo anímico é a conservação da memória, ao impedir o resfriamento do cérebro, causado pelo excesso de humores desta qualidade. A quarta vantagem da sobriedade seria o vigor do entendimento para pensar, raciocinar, inventar, julgar e uma especial disposição para receber as iluminações divinas. De onde procede que aqueles que aderem à sobriedade sejam vigilantes, circunspetos, de bom conselho, possuam um julgamento sadio e sejam excelentes nas ciências a que se dedicam, além de obter um prazer indescritível ao dedicar-se à oração, à meditação e à contemplação. Em suma, o exercício das virtudes provenientes da fé é facilitado quando se segue um regime sóbrio de vida. O que se explica pelo fato de que a fé seria o intrínseco primeiro e principal fundamento, por meio do qual todas as outras virtudes são sustentadas, e a temperança seria o extrínseco e segundo fundamento, que afasta os impedimentos à fé, ao liberar as funções da potência intelectiva, tornando o exercício das virtudes mais fácil e deleitável:

Pois todo o progresso espiritual depende do intelecto e da fé que nele reside. Não podemos amar um bem e usufruí-lo, nem odiar algum mal, e reiterar o ódio por ele, se não formos impelidos e movidos pelo mesmo intelecto (...) Pois a vontade se conforma facilmente ao julgamento do intelecto, quando este lhe propõe algo (Lessius, 1623, p. 633, trad. nossa).

A sobriedade, pelo fato de ter o poder de suprimir os obstáculos que impedem as livres ações do entendimento, configura-se como segundo fundamento da sabedoria e do progresso espiritual. Pois as coisas que causam o impedimento da contemplação são a excessiva umidade do cérebro, a abundância de vapores e fumaças, a obstrução dos seus condutores, a grande quantidade de sangue, o furor dos espíritos provenientes do sangue e da bile, os vapores biliosos, ou a melancolia adusta (queimada) que ganham o cérebro. Todos estes impedimentos poderiam ser prevenidos, se não remediados, com a ajuda da sobriedade. Ela ofereceria os meios de se ter um “sangue bem temperado, e, conseqüentemente, os espíritos bem purificados e um cérebro livre de humores supérfluos.” (Lessius, 1630, p.640, trad. nossa).

A quinta comodidade é que a sobriedade diminuiria a violência da sensualidade e forneceria uma soberana tranqüilidade ao corpo e à alma. Ela retrairia a causa material, a causa impulsiva e a causa excitante envolvidas na atividade sexual. Pela matéria, entende-se a abundância de esperma (criado pelo excesso de alimento, o que é uma explicação aristotélica); por causa impulsiva, o espírito animal que serve à expulsão e por causa excitante, a imaginação dos prazeres sexuais.

Enfim, para Lessius, a sobriedade é a verdadeira medicina do corpo e da alma, enquanto disposição de comportamento adquirida por meio da vontade e do hábito que, a partir da ordenação de causas materiais e formais, promete o melhor desempenho das funções corpóreas e anímicas necessárias, enquanto meios concretos, para que o indivíduo possa ter uma vida, ao mesmo tempo, saudável, virtuosa e satisfatória.

O regime de Lessius pressupõe a integração das três funções coordenadas da alma aristotélica. É a alma vegetativa que está no centro de suas prescrições por ser aquela que agiria diretamente nos processos da digestão. Mas, à medida que os afetos também estão implicados na prática da sobriedade, a chamada alma sensitiva é colocada em ação. Finalmente, por ser a temperança um hábito racional é a razão que dirige todo o processo de conservação da saúde do corpo e integridade da alma.

Trata-se de um repertório sistemático de conselhos práticos que, em harmonia com a concepção de alma defendida nos debates acadêmicos por expoentes da Companhia de Jesus e sem transgredir a proibição inaciana de envolvimento com a medicina, dialoga e contribui com a tradição dos regimes do corpo em plena modernização. Ao ampliar e difundir o elogio à temperança do Trattato della vita sobria, Lessius endossa noções e procedimentos da medicina preventiva, na qual se inserem as dietas, sem, com isto, tornar-se médico e deixar de ser um teólogo, e propõe um só regime para o corpo e a alma.

Referências bibliográficas
Fontes primárias

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Fontes secundárias

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Notas

(1) Sobre a circulação de escritos aristotélicos neste período ver F.E. Granz, (1984). A bibliography of Aristotle editions: 1501-1600.

(2) Vide M. Gois (1593). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in Libros Aristotelis qui Parva Naturalia appellantur; M. Gois (1583). Disputas do curso sobre os livros da Moral da Ética a Nicomaco, de Aristóteles em que se contêm alguns dos principais capítulos da Moral, e M. Gois (1602). Commentarii Conimbricensis Societatis Jesu, in tres libros de Anima. Fundada por Inácio de Loyola, juntamente com uma dezena de condiscípulos da Espanha, França e Savoia, que se diplomaram pela Universidade de Paris, a Companhia de Jesus foi oficialmente reconhecida por Paulo III em 1540. Em menos de um século de existência, eles implantaram na maior parte da Europa, e mesmo fora dela, uma rede de estabelecimentos de ensino, entre colégios e universidades, assim como observatórios astronômicos, gabinetes de curiosidade, bibliotecas e casas de edição, nos quais as lições de Aristóteles ganharam múltiplos usos. C. H. Lohr (1995) discute as especificidades do aristotelismo professado pela antiga Companhia de Jesus. Vide ainda C. B. Schmitt (1992). Aristote et la RenaissanceM. Massimi tem dirigido diversas pesquisas sobre as vertentes da chamada psicologia jesuítica e sua influência na história das idéias psicológicas no Brasil, vide, entre outros, M. Massimi e P.J.C. Silva (Org.). (2001). Os olhos vêem pelo coração. Conhecimentos psicológicos das paixões na cultura luso-brasileira dos séculos XVI e XVII.

(3) Para uma exposição detalhada sobre os debates realizados pelos jesuítas, interno e externamente à Companhia, sobre a definição de alma e vida, suas potências, divisões e unidade, ver D. Des Chene (2000). Life’s form. Late Aristotelian conceptions of the soul.

(4) L. Giard (1986 e 1993) articula os aspectos conceptuais ao caráter institucional destas querelas, examinando, com isto, a inserção dos jesuítas nas discussões universitárias do período. Ver ainda A. Simmons, Jesuit Aristotelian Education: The anima Commentaries. Em J. O’Malley (Org.). (1999). The Jesuits. Cultures, Sciences, and the Arts, 1540-1773 (pp. 522-537).

(5) Léonard Lessius nasceu em Brecht, próximo a Anvers em 1554 e entrou no noviciado em 1572. Lecionou filosofia durante sete anos em Douai e de 1585 a 1600, teologia em Louvain, onde morreu em 1623. Seu Hygiasticon sev vera ratio valetudinis bonae et vitae unà cum sensuum, iudicii, et memoriae integritate ad extremam senectutem conservandae teve várias traduções em francês, inglês, holandês, italiano, polonês e castelhano entre os séculos XVII, XVIII e XIX. Este estudo foi baseado na comparação de uma edição latina (1613) e de uma edição francesa de época (1623), além de duas edições do texto de Cornaro (1616) e (1558/1991).

(6) G. Vigarello, em sua introdução à edição moderna do livro de Cornaro (1558/1991), De la sobriété. Conseils pour vivre longtemps, o situa em uma posição inédita entre tradição e modernidade, sobretudo no seu caráter metódico acerca do procedimento concreto da sobriedade e a conservação do corpo, em comparação aos textos medievais. Para um panorama geral e exame das diferentes tradições de regimes de saúde na Antiguidade e na Idade Média, ver P. G. Sotres (1995). Les régimes de santé. Em M. D. Grmek (Org.). Histoire de la pensée médicale en Occident. Antiquité et Moyen Age (Vol. I, pp. 257-281). Ver ainda N. Siraisi (1997). Time, body, food: The Parameters of Health. Em N. Siraisi, The Clock and the Mirror. Girolamo Cardano and Renaissance Medicine (pp. 70-90).

(7) De uma parte, a divulgação de regimes na Itália pode integrar uma campanha contra a crítica protestante à normativa dietética da Igreja romana. Vide M. Montanari (2003). A fome e a abundância: história da alimentação na Europa. Por outro lado, conforme N. Siraisi (1997), o próprio hipocratismo renascentista pressupõe uma conexão entre a mistura de calor e umidade no corpo e o funcionamento das faculdades e potências da alma. Conseqüentemente, um melhor regime pode melhorar as condições da alma como do corpo. Por exemplo, menos comida e mais exercícios fariam pessoas “lentas” mais saudáveis e mais prudentes ou perceptivas. Pessoas já dotadas pela natureza com almas perceptivas poderiam tornar-se ainda melhores com o correto regime; elas deveriam comer peixe ao invés de carne, evitar esforços violentos e reduzir sua massa corporal.

(8) Os modelos deste gênero de livros de civilidade são O livro do Cortesão (1528) de Baldassare Castiglione e o Galateo dos Costumes (1558) de Giovanni della Casa, aos quais A. Pécora (2001) aplica sua Máquina dos gêneros (pp. 69-77 e pp. 79-90).

(9) Sobre os saberes e práticas alquímicas vide A. M. Alfonso-Goldfarb (1987). Da Alquimia à química. Um estudo sobre a passagem do pensamento mágico-vitalista ao mecanismo.

(10) A sobriedade está baseada na temperança, isto é, na virtude do justo meio entre duas qualidades morais, ideal difundido na cultura grega, sistematizado nos tratados da ética de Aristóteles e reelaborado por São Tomás. O que concorda com o ideal de equilíbrio entre as qualidades físicas dos elementos, que serve de base para a medicina hipocrático-galênica, ainda em prática nos séculos XVI e XVII. Concordância que Lessius também revisita em chave de leitura católica contra-reformada.

(11) Sobre a ação jesuíta nas epidemias do século XVI, ver A. L. Martin (1996). Plague? Jesuit accounts of the epidemic disease in the 16th Century. Sobre as missões médicas ver o exemplo dos trabalhos jesuítas na Índia, no mesmo século, como médicos, organizadores e médicos de almas, em I. Zupanov (2002). Drugs, health, bodies and souls in the tropics: Medical experiments in Sixteenth-century Portuguese India. The Indian Economic and a Social history Review. 39, (1), 1-43. Ver também M. Massimi (2000). La teoria dei temperamenti nei cataloghi dei gesuiti in missioni in Brasile nei secoli XVI e XVII. Physis, 37 (1), 137-149, que analisa o uso da categoria medicinal de complexio na seleção dos missionários jesuítas.

(12) Lessius logo explica que o impedimento se deve à quantidade de vapores enviados ao cérebro. Porque estes provêm sobretudo dos alimentos que o estômago recebeu, indica-se a sobriedade que corrige pouco a pouco este mau hábito e leva a uma mediocridade na quantidade e na qualidade, o que poupa a cabeça dos tais vapores. O médico francês André du Laurens (1630) prescreve o método de levantar-se da mesa ainda com fome como meio de chegar à conveniente medida no comer e beber e também adverte para os efeitos maléficos dos excessos alimentares na alma, explicando-os através da alteração no calor natural.

(13) Vide Hipócrates (1994), aforismo número 15, p. 440, trad. nossa: “No inverno e na primavera, o ventre fica naturalmente mais quente, e o sono mais longo; é necessário, portanto, nestas estações, alimentar-se mais, já que, o calor inato estando mais abundante, necessita-se de maior quantidade de alimento, como testemunham os jovens e os atletas.”

(14) Por espírito entende-se, neste caso, a versão para spiritus, tradução latina de pneuma. Na fisiologia galênica o pneuma é algo como um sopro; um elemento nem físico, nem transcendente. É o pneuma que mediaria a ação da alma sobre processos somáticos, interagindo com os diferentes tipos de humores: o pneuma psychicon, produzido no cérebro, rege as atividades mentais; o pneuma zotichon, gerado no coração, age em órgãos e funções vitais; e o pneuma physicon, produzido no fígado, participa da nutrição.

(15) A propósito das doenças melancólicas e da maneira de curá-las, A. du Laurens (1630) também afirma que este mal pode ser gerado tanto pelo humor natural que a causa como por sintoma ou acidente da imaginação ou razão perturbada. Ele lembra que nem todos os que são de compleição melancólica são importunados pela paixão da melancolia e que existem diferentes tipos do mal conforme as diversas misturas cujo humor predominante é o melancólico. De qualquer forma, para Laurens e para Lessius, a imaginação pode seguir tanto a disposição do corpo quanto a maneira de viver e são os instrumentos da alma que são afetados pelos excessos não sua essência.

(16) Por substância, designa-se aquilo que o ser é em si mesmo, o que pode ser simples (Deus), ou composto (os demais seres). Acidente é o que decorre da matéria de que os entes são compostos e aquilo que, embora pertença necessariamente a um ser, não permite identificá-lo como sendo este e não outro. A análise destas duas categorias fazia parte das diferentes leituras de Aristóteles empreendidas pelos jesuítas, como, por exemplo, o De communibus omnium rerum naturalium principiis et affectionibus, de 1576, concebido por Benito Pereira do Collegio Romano, ou as Disputationes metaphysicae de Francisco Suarez, professor do Collegio Romano e posteriormente das universidades de Alcalá, Salamanca e Coimbra. Vide C. H. Lohr (1995). Les jésuites et l’aristotélisme du XVIe siècle. Em L. Giard (Org.). Les jésuites à  la Renaissance. Système éducatif et production du savoir (pp. 79-91).

 

Nota sobre o autor
Paulo José Carvalho da Silva é psicólogo, mestre em História da Ciência pela PUC-SP e doutor em Psicologia pela USP, faz parte do corpo docente do Programa de estudos pós-graduados em História da Ciência da PUC-SP e leciona História da Ciência na Universidade Ibirapuera em São Paulo, Brasil. Contato: paulojcs@hotmail.com

 

Data de recebimento: 29/07/2004
Data de aceite: 17/10/2004

 Memorandum 7, out/2004
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos07/silva02.htm

 

 

 

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