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Mudanças sociais e familiares na atualidade: reflexões à luz da
história social e da sociologia
Social and family changes: reflections in the light of social history
and sociology
João
Carlos Petrini
Universidade Católica de Salvador
Brasil
Resumo
Analisa-se
o processo de racionalização característico da sociedade moderna
e a crise da razão iluminista. Com a desconstrução do passado
são abandonadas promessas de felicidade, consideradas
metanarrativas destituídas de credibilidade: as possibilidades
de satisfação se concentram no presente, na sucessão das modas. O
império do efêmero (Lipovetsky) libera o indivíduo do peso de
sistemas de significado que exigiam dedicação e sacrifício. A
colonização do mundo-da-vida por parte do mercado traz como
conseqüência a banalização da existência (Arendt). Configura-se
uma mutação antropológica, iniciada pela ruptura do
entrelaçamento entre amor, sexualidade e procriação. Apontam-se
mudanças na família: o valor da igualdade no quotidiano,
originando formas mais democráticas de partilhar tarefas e
responsabilidades; a exigência de satisfação no presente
questiona o ideal de sacrifício da pessoa pelo bem da família.
Na pluralidade de opções, os indivíduos movem-se entre a sedução
do mercado e a autonomia da liberdade. Nesse contexto,
desenvolvem-se as políticas familiares.
Palavras-chave:
mudança social; família; história
social da família. |
Abstract
This study focuses on the process of rationalization
characteristic of modern society and the crisis of Illuministic
reason. Deconstruction of the past caused abandonment of the
promises of happiness, considered as metanarratives without
credibility. The empire of the ephemeral (Lipovetsky)
frees the individual from the weight of systems of significance
that demanded dedication and sacrifice. The colonization of the
world-of-life by the market brings banalization of existence
(Arendt). We observe an anthropological mutation, started by the
rupture of the interweaving of love, sexuality and procreation,
and changes in family: the value of equality in daily life; the
need of satisfaction in the present calls into question the
ideal of personal sacrifice for the wellness of the family. In
the plurality of options, the individuals move between seduction
of the market and autonomy of freedom. The politics regarding
family are developed in this context.
Keywords:
social change; family; social history of family. |
Introdução
A sociedade moderna caracteriza-se por mudanças de grande porte nos campos
da economia, da política e da cultura, com repercussões significativas em
todos os aspectos da existência pessoal e social. Estas mudanças assumem,
no Brasil, um ritmo particularmente acelerado depois da Segunda Guerra
Mundial, criando um novo cenário sociocultural, especialmente nos maiores
centros urbanos. Trata-se de mudanças profundas e permanentes, que dizem
respeito à atividade produtiva e à organização do trabalho, aos processos
educativos e de comunicação, até a socialização das novas gerações, ao
universo de valores e critérios que orientam a conduta no quotidiano.
Essas mudanças,
concentradas e aceleradas, repercutem significativamente na vida familiar,
desde a concepção de masculinidade e feminilidade e a forma de compreender
a sexualidade e a relação entre os sexos, até a maternidade e a
paternidade, a relação entre as gerações, principalmente no tocante à
atividade educativa e de socialização.
O presente estudo
visa aprofundar o conhecimento de alguns aspectos da mudança social e
cultural que caracterizam a sociedade moderna, considerados relevantes
pelas repercussões que produzem no conjunto da sociedade brasileira e,
particularmente, nas relações familiares, com o objetivo de identificar os
vetores mais significativos dessas mudanças, para compreender suas
origens, as dinâmicas de desenvolvimento, as conseqüências e implicações
em diversos aspectos da existência, de forma a ampliar o espaço da
liberdade com a qual os cidadãos podem orientar suas escolhas e formar
seus juízos, agindo como sujeitos da própria história, a partir de uma
consciência informada, reduzindo a percepção de confusão e de turbilhão (Berman,
1988) que ameaça arrastá-los.
O
processo de racionalização
O fenômeno que mais profundamente identifica a modernidade é o processo de
racionalização, vislumbrado por Descartes, promovido pelo Iluminismo e
consolidado durante o século seguinte, o século de Comte e de Marx, mas
também o século de grandes descobertas científicas e realizações
tecnológicas. Basta pensar na abertura do Canal de Suez e na construção da
Torre Eiffel, como símbolos de uma época que apostava tudo no poder da
racionalidade, aplicada à solução de problemas práticos e técnicos, para
melhorar as condições materiais da existência. Durante séculos, a
racionalidade tinha permanecido como monopólio de filósofos e teólogos que
procuravam responder às grandes questões relativas à origem e ao destino
último, bem como à arte de bem viver (a ética) e de bem governar (a
política), enquanto a atividade produtiva e as outras esferas das
atividades práticas permaneciam quase sem mudança, até o momento em que,
depois de Leonardo, Galileu, Descartes, Newton, para citar somente alguns
ilustres cientistas, foram descobertas conexões entre os mecanismos da
racionalidade de tipo matemático e o comportamento da natureza. A razão,
que tinha sido exaltada, durante a revolução francesa, como a divindade
capaz de inaugurar novos tempos, passou a ser sistematicamente aplicada
com um fervor quase religioso aos diversos aspectos da realidade.
Quando a máquina a
vapor realizou o primeiro movimento mecânico que revolucionaria o modo de
organizar a produção industrial, com a estruturação da empresa
capitalista, pareceu que uma nova era estava despontando, semelhante à que
fora inaugurada quando Prometeu roubou o fogo aos deuses e o entregou aos
homens, dando início, assim, ao processo civilizatório. Não faltaram,
depois disso, empreendimentos científicos e técnicos, de grande
envergadura, que faziam pensar a história humana como habitada por
gigantes. Estes, sim, finalmente seriam capazes de trazer felicidade e paz
sobre a terra.
De fato,
especialmente na primeira etapa do processo de racionalização, a sociedade
moderna mostra as suas conotações mais positivas, apresentando-se como uma
formação social que multiplica sua capacidade produtiva, pelo
aproveitamento mais eficaz dos recursos humanos e materiais, graças ao
desenvolvimento técnico e científico, de modo que as necessidades humanas
possam ser respondidas da forma mais satisfatória possível e ao uso mais
rigoroso e sistemático da racionalidade. Problemas que antes pareciam
insolúveis são resolvidos, enquanto são criados artefatos que proporcionam
benefícios antes impensáveis.
Além disso, o
período moderno caracteriza-se pela forma participativa das tomadas de
decisão na vida social, valorizando o método democrático, a igualdade de
direitos e de oportunidades e a liberdade de expressão e de agregação. A
liberdade, entendida como autonomia do sujeito, finalmente saído da
menoridade, foi o ideal formulado por Kant, que mais intensamente
influenciou a modernidade nas suas diversas etapas. O objetivo da
sociedade moderna é oferecer uma condição digna de vida, na qual cada um
possa realizar as diversas dimensões de sua personalidade, abandonando as
restrições impostas pela menoridade, as constrições de autoridade externas
e ingressando na plenitude expressiva da própria subjetividade. Nesse
sentido, a sociedade moderna acolhe e valoriza um pluralismo religioso,
ético e cultural, é a sociedade da liberdade individual tanto quanto da
racionalidade e da tecnologia.
A paz preservada com
raríssimas e pouco significativas exceções, por um século, de 1814 a 1914,
possibilitou a expansão das finanças e do mercado capitalista e parecia
confirmar a expectativa de um crescimento socioeconômico e político linear
e indefinido, como é descrito por Polanyi (2000). Tratava-se apenas de
vencer a ignorância através da educação e de eliminar as superstições que
mantinham as pessoas amarradas a tradições estéreis.
Um eco da
grandiosidade das visões e das expectativas geradas nesse período e, ao
mesmo tempo, do drama que se vinha delineando, pode ser reconhecido no
Fausto de Goethe. Planos audaciosos são executados com trabalho febril e
todos os obstáculos são removidos para alcançar os objetivos propostos. O
que, no entanto, de início tinha o aspecto de uma esperada libertação,
começa a mostrar seu rosto de opressão, de violência e de sangue
(1).
O processo de
racionalização está presente no quotidiano através de “sistemas peritos”,
isto é, de “sistemas de excelência técnica ou competência profissional que
organizam grandes áreas dos ambientes material e social em que vivemos
hoje” (Giddens, 1991, p. 35). Estes ambientes transformam-se pela presença
de instrumentos que tornaram a existência mais confortável e menos
sacrificada. Os artefatos, frutos inesperados da criatividade técnica,
afirmam-se como sedutores, por causa da utilidade e da novidade que
apresentam, inaugurando outras características da modernidade.
Max Weber reconheceu
o processo de racionalização como o fenômeno mais significativo da
sociedade moderna, processo que foi absorvendo todas as esferas do agir
humano, passando a ter uma particular relevância na estruturação da
empresa capitalista e na organização da moderna burocracia estatal (Weber,
1980). Weber, apesar da admiração pela capacidade da razão de calcular e
de mover-se para realizar fins determinados, alertava a respeito da
jaula de aço que essa nova etapa histórica estava preparando para o
ser humano (Weber, 1965)
(2).
Apesar de todo o cuidado para manter-se distante de juízos de valor e de
fé, não resiste à tentação de manifestar, com tons proféticos, o seu
julgamento: “Então, de qualquer forma, para os últimos homens desta
evolução da civilização poderá ser verdadeira a palavra: ‘Especialistas
sem inteligência, gozadores sem coração: este nada imagina ter subido a um
grau de civilização jamais antes alcançado’” (Weber, 1965, p. 306).
Anteriormente, já
Marx e Engels falaram com acentos de admiração e de entusiasmo das novas
possibilidades técnicas e produtivas, ao mesmo tempo em que
denunciavam a exploração e a opressão da classe trabalhadora por parte da
emergente burguesia industrial (Marx e Engels, 1998)
(3). Uma terra de igualdade e de
justiça ainda deveria ser conquistada e o esforço para analisar a
sociedade com o rigor da ciência parecia a tarefa indispensável para
alcançar esse objetivo. Anthony Giddens (1991, p. 16) faz uma reflexão
semelhante, quando afirma: “a modernidade tem também um lado sombrio, que
se tornou muito aparente no século atual”. A razão não deve superar
somente a ignorância e a superstição, consideradas legados do passado, mas
deve desvendar os males que se escondem nas relações sociais modernamente
construídas. A cultura tradicional é rejeitada e destinada a ser
suplantada pela nova ordem, mas esta não parece isenta de injustiças e
violências até maiores que as antigas. Afirma Giddens (1991, p.17): “Na
esteira da ascensão do fascismo, do Holocausto, do stalinismo e de outros
episódios da história do século XX, podemos ver que a possibilidade de
totalitarismo é contida dentro dos parâmetros da modernidade ao invés de
ser por eles excluída”.
A crise da
modernidade é a crise da razão
A crise da modernidade, na realidade, é a crise da razão de matriz
iluminista
(4). Trata-se de um
processo que se impõe à atenção por causa dos graves problemas sociais,
que emergem como sintomas e como conseqüências.
A Primeira Guerra
Mundial, com seu lastro de destruição e morte, as épocas dos
totalitarismos nazista e stalinista, com sua lógica de opressão e negação
da dignidade humana como jamais se tinha visto (Arendt, 1989), a Segunda
Guerra Mundial e a destruição produzida pelas bombas atômicas, os regimes
ditatoriais do Terceiro Mundo, a constante violação dos direitos humanos,
o desastre ecológico, a fome de mais de um terço da população mundial, a
massa de excluídos nos próprios países ricos, a extensão do comércio de
armas e o narcotráfico, a crise do mundo socialista, constituem um chamado
de atenção a respeito da “crise da modernidade” (Lyotard, 1984; Touraine,
1994), sintomas que apontam para a crise da razão. Nota-se, desde logo,
que esses elementos de crise da modernidade não têm suas origens nas áreas
“atrasadas” do mundo, nos setores que ainda não são modernos, pelo
contrário, especialmente no caso da produção das armas e da devastação
ecológica, é exatamente a parte mais avançada da sociedade moderna, que
tem a maior responsabilidade.
Realizou-se um
grande desenvolvimento nos domínios das ciências e da técnica, mas o
esforço para dominar a natureza e a história acabou conduzindo a razão a
servir o poder: econômico, militar, político e ideológico. Tendo
abandonado as exigências elementares como ponto de referência para a sua
atividade, restou à razão colocar-se a serviço do poder e do mercado (Petrini,
2003a)
(5). A Escola de Frankfurt
elaborou a crítica mais consistente à razão de matriz iluminista,
afirmando que “na era industrial, a razão tornou-se um instrumento, algo
inteiramente aproveitado no processo social. Seu valor operacional, seu
papel no domínio dos homens e da natureza tornou-se o único critério para
avaliá-la” (Horkheimer, 1976)
(6).
A sociedade moderna,
então, não entra em crise por um excesso de racionalidade, que tornaria
árida a convivência social, devendo-se dar mais espaço ao sentimento para
equilibrar a situação. A sociedade moderna entra em crise por uma carência
da razão, usada segundo o paradigma iluminista, que não é mais capaz de
dar conta de todos os fatores da realidade, de orientar suas conquistas
para responder às exigências humanas. Com efeito, a razão não mais compara
seus produtos com as exigências elementares do ser humano, com as
exigências de liberdade, justiça, verdade, felicidade, e sim com as
exigências do mercado, isto é, do lucro e do poder.
A implosão do tempo
O processo de racionalização, que interessou todos os aspectos da
existência pessoal e social, afirmou-se em contraposição à história e à
cultura precedente. A tendência que progressivamente se foi consolidando
de forma continuada foi a desvalorização do passado, considerado como o
tempo da tutela de autoridades externas percebidas como contrárias à razão
e à liberdade, época das superstições, do acúmulo de erros. O centro de
gravidade da cultura deslocou-se do passado para o futuro, isto é, para a
experimentação, que inaugura o novo. Os motivos da esperança não estão
mais depositados na memória dos fatos passados, dos heróis e dos santos,
como arquétipos fundadores de nacionalidades e modelos de civilização, mas
no futuro, nas realizações que a razão técnica e científica poderiam
proporcionar. A perspectiva otimista da cultura do século XIX era
alimentada pelo avanço do conhecimento científico e suas conquistas e
pelas poderosas ideologias que foram elaboradas nesse mesmo século.
Com a crise da
modernidade, no entanto, o futuro luminoso anunciado como certo, quer no
plano político e social, quer no técnico-produtivo, começou a receber
sérias criticas. As construções utópicas que procuravam esboçar a imagem
do progresso e acelerar o seu advento, passaram a ser abandonadas. Os
próprios ideais do Iluminismo foram postos em questão. Discursando no
Conseil des Universités de Québec, a respeito da situação do
conhecimento em época de alta tecnologia nas sociedades avançadas, Lyotard
chamou os grandes ideais que se originaram no Iluminismo de “metanarrativas”,
afirmando que elas são destituídas de credibilidade. “Simplificando ao
extremo, eu defino o pós-moderno como incredulidade com relação às
metanarrativas” (Lyotard, 1984, p. 99-100). Na primeira etapa da
modernidade havia sido desconstruído o passado, agora era a vez do futuro
perder validade: as promessas utópicas dos mais variados tipos que adiavam
o tempo da realização perderam credibilidade.
As possibilidades de
vida e de satisfação passaram a concentrar-se no tempo presente. “Às
visões entusiásticas do progresso histórico sucediam-se horizontes mais
curtos, uma temporalidade dominada pelo precário e pelo efêmero [...]
marcada pela primazia do aqui e agora” (Lipovetsky, 2004b, p. 51). A moda
é considerada como o fenômeno que mais significativamente encarna esta
nova sensibilidade moderna. Os significados e as influências da moda
transbordam dos salões a ela reservados, tornando-se a forma da economia,
da cultura e do comportamento social. A forma moda caracteriza-se pela
diversificação dos produtos, pela lógica da renovação precipitada e pela
sedução das novidades oferecidas, pelo deslumbramento que os objetos
suscitam, na sua efêmera frivolidade. A moda, assim entendida, deixa de
ser privilégio de uma elite para tornar-se um fenômeno de massa. Não tem
mais a função de marcar certa diferenciação social, de afirmar distância,
recriando desigualdade cultural e discriminação social, como pensava
Baudrillard. “O que se busca, através dos objetos, é menos uma
legitimidade e uma diferença social do que uma satisfação privada
cada vez mais indiferente aos julgamentos dos outros.”
(Lipovetsky, 1989b, p. 172-173).
O mercado passa a
ser fonte de satisfação, nele concentram-se, agora, as esperanças de
realização individual.
Inaugura-se um tempo
separado de suas origens e de seu destino: homens e mulheres sem raízes e
sem metas, a não ser a fruição dos bens que a modernidade oferece, numa
nova edição do carpe diem. Com a desvalorização do passado, a
derrocada das construções voluntaristas do futuro e com o triunfo dos
modelos consumistas concentrados no presente, o período pós-moderno reduz
de forma inédita o arco do tempo ao momento presente; não faltaram alertas
para os problemas de uma cultura que corta suas raízes (Weil, 2001; Bosi,
1977).
A grande maioria da
população do primeiro mundo pode festejar esse dinamismo de consumo, que
institucionaliza o efêmero, em benefício de uma emancipação e de uma
des-padronização sem precedentes da esfera subjetiva. Através dele, “o
indivíduo tornou-se um centro decisório permanente, um sujeito aberto e
móvel através do caleidoscópio da mercadoria” (Lipovetsky, 1989b, p.175).
Esta capacidade de realizar-se através do consumo e da moda, de gozar
imediatamente a existência, de cultivar uma mentalidade desentravada e
fluida, pronta para a aventura do novo, “estimula cada um a tornar-se mais
senhor e possuidor de sua própria vida, a auto-determinar-se em suas
relações com os outros, a viver mais para si próprio”, assevera ainda
Lipovetsky (1989b, p. 176).
Esta análise,
certamente sugestiva, é elaborada por um autor francês e descreve o
ambiente que quotidianamente ele pode observar. Por efeito da globalização
e da difusão em escala mundial da cultura dominante, certos modelos de
comportamento também podem ser reconhecidos presentes em países
periféricos, especialmente nos ambientes de classe media. Mas fica difícil
compreender nesse horizonte a massa dos pobres, aos quais é negado o
acesso ao mercado, nos países em desenvolvimento bem como nos bolsões de
pobreza que crescem nos próprios países ricos. Os pobres vêem-se
condenados à exclusão mais radical. Eles já foram desapropriados do
passado, isto é, das fontes onde poderiam atingir esperanças e energias
para enfrentar os desafios do presente. Foi retirado de seu horizonte um
futuro luminoso, já que são fracas as perspectivas de crescimento
econômico do país em que moram e escassas as possibilidades de serem
absorvidos pelo mercado de trabalho com níveis salariais satisfatórios.
Também são raras as políticas públicas de inclusão, pelas quais possam
tornar-se protagonistas de uma mobilidade social ascendente, por meio de
qualificação profissional e outros mecanismos de redistribuição da renda.
Eles não podem tomar parte da festa que o mercado organiza. O presente
impõe-se aos pobres como carregado das preocupações com a sobrevivência
imediata, fonte de humilhação, sendo negado a eles o acesso ao ideal de
consumo insistentemente apresentado nos meios de comunicação.
Individualismo,
fragmentação e pluralismo
A glorificação do presente e das satisfações que o mercado pode oferecer,
ainda que efêmeras e frívolas, vai reformando a cultura da solidariedade e
faz emergir um acentuado individualismo. “A moda consumada tem como
tendência a indiferença pelo bem público, a propensão a ‘cada um por si’,
[...] a ascensão dos particularismos e dos interesses corporativistas, a
desagregação do senso do dever ou da dívida em relação ao conglomerado
coletivo” (Lipovetsky, 1989b, p. 177).
O individualismo
moderno, alimentado pela sedução do novo, segundo os modelos oferecidos
pela moda, promoveu uma ética lúdica e consumista, que foi abandonando não
somente os valores das tradições religiosas, mas qualquer sistema de
significado que exigisse disciplina, rigor, sacrifício, fidelidade aos
compromissos assumidos, para perseguir as metas propostas. A afirmação de
um estilo de vida independente, autônomo, caracterizado por escolhas
livres, deu origem a um indivíduo instável, de convicções voláteis e
compromissos fluidos. Por isso, o indivíduo moderno não pode conviver com
disciplinas e enquadramentos, com a obediência a prescrições antigas. A
cultura do efêmero não tem alguma pretensão de mudar a sociedade ou as
pessoas, de organizar o futuro. Apenas quer utilizar, de maneira
pragmática, os gostos por bem-estar, novidades, satisfações materiais. “Os
sistemas ideológicos pesados não cessam de perder autoridade”, afirma
Lipovetsky (1989a, p. 226), configurando-se uma desafeição pelos sistemas
de sentido.
Na realidade, essas
observações descrevem uma parte, apenas, da cultura contemporânea, ainda
que seja a que mais chama a atenção e a que delineia a tendência
dominante no conjunto da sociedade atual. Um tal tipo de individualismo
tornou-se mais efetivo naquelas circunstâncias nas quais a organização
social da existência não exige comportamentos disciplinados segundo
padrões de eficiência rigorosamente controlados, isto é, no espaço de
lazer, no tempo das férias e em atividades que não requerem uma especial
responsabilidade. Com efeito, o ambiente da produção industrial, os
centros de pesquisa, as instituições financeiras e toda a área de serviços
caracterizam-se por uma disciplina de horários, de ritmos de trabalho, de
qualidade da produção, de eficiência, que não deixam brechas para o
“império do efêmero”, exaltado por Lipovetsky. Nesses ambientes, apesar de
serem cultivados sonhos de autonomia e momentos de evasão “virtual”, são
reduzidos os espaços de flexibilidade e de livre escolha. O mundo do
trabalho exerce uma pressão sobre seus funcionários, percebida, muitas
vezes, como sufocante. É nos momentos de lazer e nas férias que as pessoas
procuram expressar a liberdade e a autonomia que lhes são vedadas no
trabalho.
No entanto, uma
grande parte da juventude do primeiro mundo e parcela significativa da
classe media dos países emergentes prolongam seu período de permanência na
escola, até os 25-30 anos, relativamente livres de responsabilidades,
recebendo apoio logístico da família de origem. Eles estão mais
disponíveis para a cultura do efêmero. Em situação semelhante encontram-se
algumas categorias de profissionais liberais e os que, por outras razões,
estão à margem do sistema produtivo, da necessidade de prestar conta
detalhadamente de cada movimento.
A antiga querelle
des anciens et de modernes é ainda hoje, muitas vezes, reeditada para
condenar a modernidade ou para legitimar suas realizações, podendo-se
encontrar interpretações catastróficas, apresentadas com linguagem
apocalíptica, ou uma compreensão entusiasta e ingenuamente otimista. Na
realidade, essas posturas aparecem como inadequadas, pois não dão conta da
complexidade segundo a qual a cultura e a sociedade moderna se configuram.
As conquistas científicas e técnicas, bem como os maiores níveis de
liberdade, de conforto, de qualidade e de expectativas de vida não
eliminam as contradições da existência, o drama da liberdade. Por isso, no
cenário da sociedade atual, convivem simultaneamente fenômenos
diferenciados, contraditórios entre si e ambivalentes. Posturas
entusiasmadas com as possibilidades do progresso científico e técnico se
projetam com empenho voluntarista para um futuro feliz. Simultaneamente,
pode ser encontrada uma vertiginosa e inebriante devoção ao presente e aos
prazeres que é capaz de oferecer, livre de preocupações e de
responsabilidades com o futuro, enquanto posturas niilistas negam qualquer
condição de vida que mereça dedicação e sacrifício. Não falta quem tenta
resgatar do esquecimento e do abandono as raízes culturais e suas
identidades, incluindo preocupações com possíveis catástrofes ambientais e
sociais.
Uma simultânea
convivência de posições contrastantes verifica-se na sociedade, inclusive
no interior das famílias e dos diversos grupos, mas, até mesmo nos
indivíduos podem-se encontrar fragmentos contraditórios e heterogêneos de
consciência. E, além disso, uma massa de jovens na periferia do mundo
gobalizado debate-se entre estratégias de sobrevivência e projetos de vida
para vencer sua condição de pobreza e de exclusão social. Em todos os
níveis da convivência social, verifica-se a fragmentação, uma fluidez da
realidade, de modo que “tudo o que é sólido desmancha no ar”,
segundo a bela frase de Marx retomada por Berman (1988).
O que importa é que
o indivíduo seja ele próprio, e tudo e todos tenham direito de cidade e a
serem socialmente reconhecidos, sendo que nada deve doravante impor-se
imperativa e duradouramente, e todas as opções, todos os níveis, podem
coabitar sem contração nem relegação (Lipovetsky, 1989a, p. 12).
Ainda se espera que
a ciência resolva muitos problemas, especialmente os relativos à saúde,
mas o futuro mostra-se problemático, inquietante, cheio de incertezas e de
riscos. Neste ambiente de fragmentação, emergem as mais diferentes
tentativas de resposta à aflição e ao vazio, dando origem ao pluralismo
cultural, religioso e ético, que se configura como um conjunto de ofertas
à disposição dos indivíduos. Estes, de acordo com suas preferências,
procuram fazer uma composição de elementos mais ou menos coerentes e
homogêneos para organizar a existência dentro de um horizonte de
significado. Não desaparece o culto do presente, mas se conjuga com
preocupações éticas: “É incontornável a questão sobre os limites do nosso
poder tecnocientífico. Até onde ir? Que se pode ou não se pode fazer? O
questionamento ético surge como uma necessidade de limites e de proteção
para o homem diante da tecnociência e da autonomia individualista” (Lipovetsky,
2004a, p. 32).
A cultura
contemporânea procura assimilar esta fragmentação, valorizando os aspectos
positivos do pluralismo cultural, ético e religioso, reconhecendo sua
conveniência para a realização da liberdade individual e para a
consolidação da democracia social.
O mercado vitorioso
abre espaço a uma pós-modernidade na qual a lógica do capitalismo
globalizado mostra seus lados sombrios, com a redução dos quadros
funcionais nas empresas e nas administrações públicas, com a ameaça de
desemprego, com as exigências de competitividade, de qualidade e de
dedicação ao trabalho que absorvem as melhores energias das pessoas, com
violências e guerras que mal encobrem com o ideal das liberdades
democráticas interesses menos elevados. “A sensação de insegurança invadiu
os espíritos: a saúde se impõe como obsessão das massas, o terrorismo, as
catástrofes, as epidemias são regularmente notícias de primeira página” (Lipovetsky,
2004b, p.64). Este novo cenário não dispõe mais das utopias que já foram
desconstruídas. A vida aparece como estressante e apreensiva, prevalecem
as preocupações com a segurança, com a proteção, com a defesa das
conquistas sociais, com a ecologia.
Ainda se espera que
a ciência resolva muitos problemas, especialmente os relativos à saúde,
mas o futuro mostra-se problemático, inquietante, cheio de incertezas e de
riscos. Neste ambiente de fragmentação, emergem as mais diferentes
tentativas de resposta à aflição e ao vazio, dando origem ao pluralismo
cultural, religioso e ético, que se configura como um conjunto de ofertas
a disposição dos indivíduos. Estes, de acordo com suas preferências,
procuram fazer uma composição de elementos mais ou menos coerentes e
homogêneos para organizar a existência dentro de um horizonte de
significado. Não desaparece o culto do presente, mas se conjuga com
preocupações éticas: “É incontornável a questão sobre os limites do nosso
poder tecnocientífico. Até onde ir? Que se pode ou não se pode fazer? O
questionamento ético surge como uma necessidade de limites e de proteção
para o homem diante da tecnociência e da autonomia individualista” (Lipovetsky,
2004a, p. 32).
As insuficiências da
pós-modernidade, os medos que ela suscita, as angústias e os
questionamentos que provoca são aproveitados pelo mercado que é capaz de
oferecer uma grande variedade de repostas, sob a forma de mercadorias.
O
Mercado coloniza o mundo da vida
Nesses contextos socioculturais, o mercado tornou-se um poder impessoal
capaz de condicionar não somente os cidadãos que querem estar nele
incluídos, para desfrutar dos benefícios que ele disponibiliza, mas os
próprios Estados. Estes, com efeito, devem adaptar seus programas de
desenvolvimento e suas políticas econômicas ao comportamento do mercado. O
seu “nervosismo” torna-se motivo de apreensão para os investidores e de
perda de credibilidade para os estados, com repercussões relevantes sobre
o desempenho econômico. Nestes últimos anos, grandes potências políticas e
militares entraram em colapso e diversas economias nacionais foram
conduzidas à bancarrota por jogos especulativos.
O poder maior do
mercado, no entanto, manifesta-se na capacidade de introduzir nas relações
humanas, isto é, no tecido fino das relações quotidianas, os critérios, os
valores, os métodos que lhe são próprios, sinteticamente indicados como
intercâmbio de equivalentes. O mercado coloniza o mundo da vida, reduzindo
não somente os espaços da gratuidade, tudo calculando em função da
conveniência e da utilidade, mas restringindo a própria abertura da razão,
que passou a ignorar a busca da felicidade e dos significados,
aplicando-se à produção do lucro e do poder.
É interessante, a esse respeito, a observação da geneticista Eliane
Azevedo (2000), quando aponta as conseqüências não previstas e não
desejadas do diagnóstico pré-natal na cultura atual. Imaginemos uma mulher
que faz diagnóstico pré-natal com a intenção de abortar, caso o feto não
seja saudável. Imaginemos que o feto esteja em ótimas condições de saúde e
venha, portanto, a nascer. Provavelmente, aquele filho, chegando aos 15
anos, ficará sabendo que houve uma condição para ser acolhido: a condição
de ser saudável. O cálculo da conveniência invadiu o espaço do
acolhimento, até então, incondicional. Imaginemos, agora, aquela mãe idosa
e doente. Poderá ela esperar que o filho a acolha e cuide dela, agora sem
saúde, já que ela não tinha essa disponibilidade para com o filho, quando
ele era bebê? Pouco a pouco, cria-se uma mentalidade dominada pelo cálculo
das conveniências, que se move no horizonte do mercado, reduzindo-se o
espaço da gratuidade.
Limitar o interesse da realidade aos aspectos que podem ser
compreendidos pela razão científica e manipulados pela capacidade técnica
teve como conseqüência a coincidência do horizonte do conhecimento com o
horizonte do mercado: o que vale a pena conhecer é o que está ao alcance
da razão calculante, é o que pode ser apreendido, analisado, avaliado em
sua utilidade, valorizado pelo lucro e pelo poder que proporciona.
É significativo
dessa postura o que afirma Dewey numa obra dos anos trinta (1930, p. 529):
“abandonar a busca da realidade, do valor absoluto e imutável pode parecer
um sacrifício, mas esta renúncia é condição para empenhar-se em uma
vocação mais vital”, a saber, empenhar-se na solução de problemas práticos
e técnicos e na procura de valores compartilhados por todos. O abandono do
interesse pelo significado da existência conduziu, inevitavelmente, a uma
visão banal da realidade e isto abriu as portas para graus antes
desconhecidos de violência, especialmente nos centros urbanos.
Desenvolve-se, na cultura dominante, um processo de
banalização pelo qual tende-se a reduzir o significado das coisas (Petrini,
2000). E verifica-se uma desvalorização da vida semelhante à descrita por
Arendt. “O aspecto provavelmente mais surpreendente e
desconcertante da fuga da realidade [...] é o hábito de tratar os fatos
como se fossem meras opiniões [...] Todos os fatos podem ser mudados e
todas as mentiras tornadas verdadeiras” (2003, p. 25-26). Na mesma
perspectiva, pode-se ler em Malraux: “Não há ideal ao qual possamos
sacrificar-nos, porque de todos nós conhecemos as mentiras, nós que não
sabemos o que é a verdade” (1926, p. 216). Consuma-se, dessa maneira,
segundo alguns autores, a liberação do indivíduo pós-moderno, finalmente
satisfeito pelo acesso a sempre novos bens de consumo, livre dos grandes
problemas existenciais e das responsabilidades pelo andamento do mundo.
“Todos os ‘cumes’ se abatem pouco a pouco, arrastados pela vasta operação
de neutralização e banalização sociais. Só a esfera privada parece sair
vitoriosa desta vaga de apatia: [...] viver sem ideal e sem fim
transcendente tornou-se possível” (Lipovetsky, 1989a, p. 48-49).
A cultura de massa especializou-se em oferecer produtos
cuja principal marca é a superficialidade, juntamente com certa retórica
da vulgaridade. Impossível não reconhecer, na esteira de Hannah Arendt
(1989; 1999), uma conexão entre a cultura da banalidade e o crescimento
vertiginoso da violência urbana, especialmente na última década.
Uma
mutação antropológica
As
mudanças que se verificaram ao longo da modernidade, algumas das
quais foram aqui descritas pela relevância de que se revestem,
configuram um panorama social diferente do antigo, desenhando
outros cenários nas mais diversas esferas das atividades humanas.
Isto repercute não somente em alguns comportamentos humanos, mas
faz emergir uma imagem de homem e de mulher totalmente diferente
da que presidiu ao processo civilizatório ocidental, que tem na
antiguidade clássica grega e romana e na cultura judaico-cristã
suas matrizes estruturantes. Trata-se de uma alternativa global
de homem e de mulher, do modo de conceber e de viver a sexualidade,
a paternidade e a maternidade, a família, a procriação dos filhos
e toda a esfera da vida privada (Petrini, 2003b). “Para além da
moda e da sua espuma ou de certas caricaturas que se fazem [...]
devemos ter em conta, em toda a sua radicalidade, a mutação
(7)
antropológica que se realiza diante de nossos olhos”, afirma Lipovetsky
(1989a, p. 48).
Na etapa inicial da modernidade, o cristianismo era considerado
funcional aos interesses do capitalismo emergente, garantindo
o respeito e a aceitação das normas que regulamentavam a convivência
social, mesmo que alguns pontos da moral fossem contestados. Num
segundo momento, a ética herdada da tradição pareceu apresentar
mais problemas do que soluções para uma sociedade que necessitava
de outros valores e de outros direitos, quase sempre divergentes
dos consolidados na tradição. Assim, o cristianismo deixou de
ser funcional ao moderno processo produtivo.
O entrelaçamento de
amor, sexualidade e fecundidade que, tradicionalmente, constituiu o núcleo
do matrimônio e da família, nestas últimas décadas, foi rompido,
podendo-se viver a sexualidade sem a fecundidade, a sexualidade sem o
amor, a fecundidade sem a sexualidade. Estes três elementos se
distanciaram, cada um percorrendo um itinerário próprio, distinto dos
outros, com conseqüências importantes. A dimensão lúdica parece esgotar o
significado da sexualidade humana, que não encontra mais limites,
podendo-se eliminar dela qualquer responsabilidade ou vínculo que estenda
seus efeitos para além do momento em que se realiza como jogo.
De forma análoga, a
procriação separada do exercício da sexualidade e do amor aproxima-se da
atividade produtiva, segundo a lógica do mercado capitalista, incluindo a
avaliação de custos e benefícios. Nesse ambiente, é fácil que o amor seja
vivido como sentimento efêmero ou paixão, perdendo aquela riqueza de
experiência e de humanidade, que a literatura mundial de todos os tempos
documenta amplamente. As novas tecnologias de fecundação artificial,
clonagem e manipulação genética apresentam novas questões, ainda em
debate. Com efeito, parece próxima a possibilidade de procriar sem o
exercício da sexualidade. A fecundidade desligada de uma relação de amor
aparece agora como definida pela decisão individual e pelo acesso à
tecnologia sofisticada.
Mudanças
familiares
A família participa dos dinamismos próprios das relações sociais e sofre
as influências do contexto político, econômico e cultural no qual está
imersa. A perda de validade de valores e modelos da tradição e a incerteza
a respeito das novas propostas que se apresentam, desafiam a família a
conviver com certa fluidez e abrem um leque de possibilidades que
valorizam a criatividade numa dinâmica do tipo tentativa de acerto e erro.
A família
contemporânea caracteriza-se por uma grande variedade de formas
que documentam a inadequação dos diversos modelos da tradição
para compreender os grupos familiares da atualidade (Saraceno,
1997). A família patriarcal, estudada por Freyre (1992) (8),
que se afirmou no contexto da cultura rural, entrou em colapso
há tempo. Os modelos de comportamento que regulamentavam as relações
entre os sexos e as relações de parentesco foram abandonados,
ainda que, em algumas regiões e nas classes sociais menos escolarizadas
e menos expostas à influência da cultura atual, possam ser reconhecidas
sobrevivências de valores e de comportamentos passados que, no
entanto, não gozam mais de legitimidade social, sendo reduzida
a possibilidade que se reproduzam nas novas gerações. A família
emerge como “o local para as lutas entre a tradição e a modernidade,
mas também uma metáfora para elas” (Giddens, 2000, p. 63).
Manuel Castells, no
seu trabalho sobre o poder das identidades, dedica um longo
capítulo à crise do patriarcado, entendido como “enfraquecimento de um
modelo de família baseado no estável exercício da autoridade/domínio do
homem adulto, seu chefe, sobre a família inteira” (Castells, 2003, p.
151). Em seguida, ele observa que “a crise do patriarcado, induzida pela
interação entre capitalismo informatizado e movimentos sociais pela
identidade feminista e sexual, manifesta-se na crescente variedade de
modos nos quais as pessoas escolhem conviver e criar as crianças” (Castells,
2003, p. 241).
O valor da igualdade
foi progressivamente assimilado ao quotidiano da convivência familiar,
dando origem a formas mais democráticas e igualitárias de partilhar
tarefas e responsabilidades entre marido e mulher. São abandonados os
modelos tradicionais que atribuíam o primado ao marido, reservando para as
mulheres tarefas prevalentemente domésticas, mas não emergem novos modelos
familiares que tenham uma validade universalmente reconhecida e aceita.
A exigência de
satisfação no presente colocou em questão o ideal do sacrifício individual
para o bem da família. O limite da disponibilidade individual ao
sacrifício para o bem do outro ficou mais baixo, sendo mais rapidamente
alcançado o ponto de saturação no relacionamento conjugal. A independência
econômica dos cônjuges configura uma responsabilidade familiar mais
compartilhada e uma posição social igualitária e, ao mesmo tempo, facilita
a ruptura do vínculo familiar, quando a convivência não é mais fonte de
satisfação e de prazer.
As mudanças atingem
simultaneamente os aspectos institucionais da realidade familiar bem como
as identidades pessoais e as relações mais íntimas entre os membros da
família. Nesse sentido, Castells observa que “ao nível dos valores
sociais, a sexualidade torna-se uma necessidade pessoal que não deve
necessariamente ser canalizada e institucionalizada para o interior da
família” (2003, p. 261). Por outro lado, a possibilidade de gerar filhos
sem o concurso da relação sexual “abre horizontes inteiramente novos à
experimentação social”, dissociando-se, dessa maneira, a reprodução da
espécie das funções sociais e pessoais da família (2003, p. 262).
Os aspectos
“objetivos” da convivência familiar cedem o passo a aspectos “subjetivos”,
por definição mais instáveis e flutuantes, decorrentes do dinamismo que as
relações familiares assumem no mundo moderno. Verifica-se uma
desinstitucionalização da família, no sentido de considerá-la como uma
realidade privada, relevante apenas para o percurso existencial dos
próprios membros. Prevalece a legitimação da família como grupo social
expressivo de afetos, emoções e sentimentos, diminuindo o seu significado
público. Reduz-se, assim, a importância da família como instituição,
assentada na dimensão jurídica dos vínculos familiares.
Aumentam as
separações e os divórcios, os jovens casam mais tarde, em comparação a
duas décadas atrás, diminui também significativamente o número dos
casamentos, aumenta o número de famílias reconstituídas, as uniões de
fato, as famílias monoparentais e as chefiadas por mulheres (Berquó, 1998)
(9). As tarefas educativas e de
socialização são cada vez mais compartilhadas com outras agências,
públicas ou privadas (Goldani, 1994). As mudanças são de tal magnitude e
influenciam de tal maneira a família que esta parecia desaparecer. É dos
anos 70 o livro de Cooper (1994), que anunciava “a morte da família”.
Muitos fatores
externos à família entram em jogo para redefinir os valores e os
critérios, os modelos de comportamento de cada membro. Influência
significativa é exercida pela escola que os filhos freqüentam, nas
diversas etapas de seu desenvolvimento, pelo ambiente de trabalho do homem
e da mulher, por outras instâncias formativas, por clubes, associações,
comunidades religiosas, cursos que podem introduzir no diálogo familiar
elementos de discussão e até de conflito. A família moderna vê-se
permanentemente desafiada pela variação, às vezes vertiginosa, dos limites
propostos, das aspirações de consumo pretendidas, das experiências
perseguidas, devendo reconquistar a cada dia as razões para conviver, a
consciência do bem que os membros da família têm em comum, dos bens
relacionais cujo valor perdura no tempo.
Mudam as relações de
casal e as entre pais e filhos (Féres-Carneiro, 1999; 2003). A paridade
entre o homem e a mulher, juridicamente consolidada, começa a ter
crescente relevância nas relações familiares, ainda que com diversidades
apreciáveis em função da escolaridade e da classe social do casal.
Gêneros e
gerações
A família, nas diversas modalidades que assumiu na história,
caracteriza-se pelo modo específico de viver a diferença de gênero que,
nesse âmbito, implica, via de regra, a sexualidade e a procriação e,
portanto, as relações entre as gerações e o parentesco. “A família, afirma
Donati, é aquela relação que nasce especificamente na base do casal
homem/mulher para regular suas interações e trocas de modo não casual”
(1998, p. 127). É diferente o debate a respeito do gênero, quando é
referido às relações familiares ou quando é pensado fora da família.
Nesta, “duas diversidades bio-psíquicas se encontram, interagem, se
compensam e entram em conflitos, se ajudam e disputam entre si, trocam
muitas coisas, se redefinem uma em relação à outra, repartindo tarefas,
negociando espaços de liberdade e de recíproca prestação de contas (Donati,
1998, p. 123).
Atualmente, alguns
aspectos e âmbitos da vida social atenuam a diferença entre o masculino e
o feminino, como efeito da luta contra as assimetrias prefixadas entre os
sexos. Parecem ampliadas as margens de indeterminação, de tal modo que a
definição de gênero resulta ter limites culturais imprecisos, sendo
passível de interpretações subjetivas, que admitem um amplo espectro de
variação. Enquanto antigos símbolos da diferenciação de gênero são
desconstruídos, outras diferenciações emergem, espontaneamente, nos jogos
de crianças e adolescentes, ou por indução do mercado, segundo seus
interesses. É nesse sentido que, ainda Donati afirma (1998, p.135): “Não
temos um código simbólico adequado para tratar o jogo das diferenças de
gênero em condições de elevada complexidade”.
A igualdade entre os
sexos estende-se do quotidiano familiar até o trabalho profissional e ao
empenho cultural e político, com uma progressiva tendência a não
identificar nenhum trabalho como tipicamente masculino ou exclusivamente
feminino. Estas mudanças foram incorporadas ao código civil, que
reformulou o direito de família de modo a atender às modernas exigências.
A perspectiva de
realização pessoal pôs um fim à definição da mulher como rainha do lar e
abriu as portas das empresas ao trabalho feminino. Isto aumentou
sensivelmente os rendimentos domésticos e as possibilidades de consumo
familiar e, simultaneamente, reduziu a dedicação às tarefas domésticas e à
educação dos filhos.
A inserção da mulher
no mercado do trabalho oferece espaço de realização, especialmente quando
entra em jogo uma específica competência e, portanto, certo protagonismo.
Em alguns casos, o exercício de um trabalho remunerado, quando não
corresponde a uma premente necessidade de contribuir para as despesas
familiares, abre para a mulher uma relativa autonomia de consumo,
orientado para necessidades dos filhos ou da casa ou para algum interesse
próprio. Ela conquista um espaço de autonomia, livre das diferentes
prioridades de gastos do marido, que implicariam condicionamentos e
conflitos.
A mulher entrou no
mundo do trabalho e no âmbito social, aproximando-se de modelos
anteriormente masculinos mais de quanto o homem tenha-se envolvido com as
tarefas domésticas, podendo-se notar uma menor aproximação dele aos papéis
tradicionalmente femininos.
A política de baixos
salários pressiona a mulher para trabalhar. Sua entrada no mercado de
trabalho, que nasceu de uma reivindicação de maior liberdade, responde, às
vezes, à necessidade de cobrir o orçamento familiar. A discriminação de
gênero mostra-se nos salários, para a mulher quase sempre mais baixos, em
paridade de funções, dos que são pagos aos homens. Dessa maneira, o
sistema produtivo também se beneficia das mudanças que ocorrem na família.
O aumento das
famílias monoparentais chefiadas por mulheres indica uma crescente
matrifocalidade. A mulher fica, nesses casos, com as maiores
responsabilidades para sustentar e educar os filhos, devendo administrar a
casa e ter, de fato, dupla jornada de trabalho. A esse respeito, Jablonski
(1999, p. 64) afirma: “Essa disparidade é vivenciada pelas mulheres de
forma bastante dolorosa, uma vez que há uma promessa no ar de igualdade de
funções [...]. Um respeitável contingente de mulheres urbanas de classe
média sente-se traído e iludido por estas promessas não cumpridas”.
As relações entre
pais e filhos ganham respeito e flexibilidade, deixam os modelos centrados
na autoridade e na disciplina, enquanto são incorporados os valores de
diálogo, negociação, tolerância, no horizonte de um amplo pluralismo ético
e religioso (Kaloustian, 1994). Verifica-se uma intensidade maior de
dedicação e de investimento de recursos, especialmente com relação à saúde
e à educação. Estes comportamentos estão associados ao número menor de
filhos que o casal está disposto a criar, de acordo com um planejamento
mais ou menos rigoroso. Com isso, aumenta a expectativa de gratificação
emocional e afetiva dos pais em relação aos filhos (Campanini, 1989, 24 e
ss.). Observa-se, nesse campo, certa diversidade de orientação e de
comportamento em função da classe social, da renda familiar e da
escolaridade dos cônjuges.
A família sempre foi
o lugar do encontro entre diferentes gerações, a história é constituída
por uma seqüência de gerações, ora prevalecendo a cooperação, ora o
conflito. Nas últimas décadas, as novas gerações divergem da geração dos
adultos e dos avós, quanto às metas que merecem ser perseguidas, aos
valores que devem ser respeitados e aos critérios para discernir o que
vale ou o que deve ser descartado. Por essas e por outras razões, as novas
gerações experimentam, muitas vezes, uma distância e uma estranheza com
relação aos pais e à geração mais velha em geral. Um confronto sistemático
a respeito de aspectos relevantes da existência, em geral, é recusado,
sendo considerado desgastante e improdutivo, enquanto costuma ser
valorizado o ambiente da afetividade familiar, mesmo sem estendê-lo a uma
comparação mais empenhativa. No quotidiano, prevalecem formas de
acomodação prática e o diálogo é substituído por negociações pontuais.
Os vínculos de
pertença, que ligam os pais aos filhos e vice-versa, tendem, nesse
ambiente, a serem mais frouxos. Os pais reclamam que o mundo ao qual os
filhos se referem como “superado”, na realidade é por eles ignorado e
descartado sem o receio de perder algo de interessante. A relativa
freqüência de paternidade e maternidade precoces documenta a complexidade
dessas relações. Nos últimos tempos, a imprensa noticiou atos de grave
violência entre pais e filhos, chegando ao parricídio, ao matricídio e ao
assassinato do filho por parte do velho pai, deixando entrever quão
profunda e grave é a distância que foi construída entre as gerações. Por
outro lado, às vezes, os adultos aderem à frivolidade das modas, segundo
modelos de comportamento semelhantes aos da nova geração.
O aumento da
esperança de vida faz com que se encontrem, na mesma família, três ou
quatro ou até cinco gerações simultaneamente presentes. Por outro lado, os
filhos tendem a permanecer na casa dos pais durante muitos anos, até
terminarem os estudos e conseguirem uma situação profissional que lhes
permita sair de casa e, possivelmente, construir sua própria família.
Muitas vezes retornam para a família de origem com um ou dois filhos,
quando se divorciam. As relações familiares tornam-se mais delicadas
quando, filhos já adultos, mas dependentes economicamente, comportam-se
com uma autonomia nem sempre considerada positiva pelos pais (Donati,
1998).
No lado oposto, os
filhos adultos que saem de casa, deixam os pais na necessidade de
reorganizar sua convivência e as relações de amizade, para cobrir o vazio
deixado pelos filhos. Além disso, por causa da freqüência do divórcio,
criam-se complexos entrelaçamentos de parentesco, em virtude das famílias
reconstituídas, podendo acontecer que um divórcio venha a cortar a cadeia
geracional para os avós, como no caso em que o divorciado não tem a guarda
do próprio filho. Para os pais do divorciado, a experiência de ser avós
modifica-se significativamente, em alguns casos, aumentando a
responsabilidade com relação aos netos e, em outros, reduzindo os
contatos. Por fim, está ainda por ser adequadamente avaliado o eclipse da
figura paterna em muitas famílias modernas. Nestas últimas décadas foi
crescendo a densidade, empiricamente comprovada, do alerta de Mitscherlich
no início dos anos 70, segundo o qual, se caminhava para uma sociedade sem
pais (1970).
Entre
sedução do mercado e autonomia da liberdade
As mudanças acima lembradas oferecem, na maioria das vezes, um verdadeiro
salto de qualidade na convivência familiar e sinalizam uma mais elevada
possibilidade de realização e de satisfação pessoal para os casais e para
os seus filhos. Os valores que presidiram à constituição da modernidade
renovam o ambiente familiar de maneira significativa. A falta de modelos
familiares universalmente aceitos abre para conquistas irrenunciáveis em
termos de qualidade de vida para os casais e para as jovens gerações, mas
abrem, simultaneamente para a ausência de pontos de referência e para
experimentação sem limites que, se resolvem problemas típicos da família
patriarcal, às vezes, geram novas situações problemáticas, que comprometem
a qualidade de vida.
As lutas para a
libertação da mulher promoveram a dignidade, conquistando liberdades para
a condição feminina e igualdade de oportunidades com o homem, impensáveis
até poucas décadas atrás. Mas, às vezes, a mulher vê aumentar os pesos e a
dureza da vida diante de responsabilidades que deve administrar
solitariamente. Outros exemplos podem ser dados a respeito da figura
masculina, que tarda a recompor sua identidade nas novas condições
socioculturais e tende a desaparecer da família. De maneira análoga, os
filhos são chamados a carregar pesos de ausências, de rupturas de
vínculos, às vezes excessivos para eles.
Se na sociedade
pluralista tudo deve ser negociado preventivamente, a vida de casal também
é submetida a uma crescente negociação. Na medida em que prevalecem
critérios próprios do mercado (o cálculo das conveniências, a troca de
equivalentes), reduz-se a experiência da gratuidade e do acolhimento
incondicional no quotidiano.
Bauman observa a
mesma influência da lógica do mercado nas relações amorosas e usa a
linguagem da economia, do investimento financeiro, para referir-se aos
modernos jogos da intimidade “Guiada pelo impulso, a parceria segue o
padrão do shopping e não exige mais que as habilidades de um consumidor
médio, moderadamente experiente. Tal como outros bens de consumo, ela deve
ser consumida instantaneamente e usada uma só vez, “sem preconceito” (Bauman,
2004, p. 27-28).
Uma relação amorosa,
na sociedade moderna, parece abandonar rapidamente o sonho romântico, que
persiste às vezes, em alguns momentos da adolescência, passando a medir as
vantagens que cada uma das partes pode extrair do relacionamento. Sua
estabilidade será justificada até quando cada parte considerar suficientes
os benefícios obtidos. É ainda Giddens (1993, p. 73) que entende como
decisiva uma espécie de paridade das contas entre dar e receber ou, nas
suas próprias palavras uma certa “igualdade na doação e no recebimento
emocionais”. Na mesma obra ele afirma: “se entra em uma relação social
pelo que pode ser derivado por cada pessoa [...] e que só continua
enquanto ambas as partes considerarem que extraem dela satisfações
suficientes, para cada uma individualmente, para nela permanecerem.” (Giddens,
1993, p. 68-69).
Na pós-modernidade
convivem as posições mais extremadas, na busca daquela satisfação
imediata, que aposta tudo no “aqui e agora”, livres de referências ao
passado, rigorosamente rejeitado e sem projeto claro de futuro. Os
indivíduos parecem dispor de uma liberdade total, sem limites
(10). Prosperam nestas
circunstâncias as modas, com seu poder de sedução, que procuram orientar
para um significado econômico mais definido os impulsos da liberdade
individual, segundo os interesses do mercado. Por causa disso, é
importante estudar a família, numa postura de diálogo interdisciplinar,
para elucidar as razões que sustentam as diferentes modalidades de viver o
amor humano, alimentando assim a liberdade para escolher. Somente uma
liberdade adequadamente informada e, portanto, capaz de levar em conta
todos os fatores que estão em jogo num certo estilo de vida, poderá
avaliar a conveniência de uma opção ou de outra.
Nesse sentido, uma
extensa gama de relações de intimidade pode situar-se ao longo da linha
que une dois pólos bastante diferenciados: o da relação nupcial e o da
relação ocasional. A escolha poderá ser diferente, dependendo da autonomia
da pessoa no uso de sua liberdade ou da influência que exerce a pressão do
mercado. A categoria de relação nupcial e, como contraponto com ela, a de
relação ocasional constituem instrumentos que permitem estudar diversas
formas de agregação familiar, analisando a maior ou menor capacidade de
estabelecer relações de cooperação entre os sexos e entre as gerações. A
relação nupcial descreve uma parcela significativa do universo familiar e
apresenta características em geral pouco consideradas pelos estudos sobre
família, que de preferência concentram suas atenções sobre aspectos
inéditos e transgressivos do universo axiológico tradicional.
A relação nupcial
identifica um projeto comum de vida entre um homem e uma mulher, que
começa a ser partilhado desde o início do namoro e que se consolida no
matrimônio. Essa relação vai incorporando preocupações concretas, tais
como o trabalho, a moradia, a procriação de filhos e a educação deles,
numa responsabilidade partilhada que se desdobra no tempo (Petrini,
2003a).
No caso da relação
ocasional, não é elaborado um projeto comum de vida, aliás este é
explicitamente recusado. A relação nupcial tende a acolher a totalidade
das pessoas envolvidas, numa aceitação recíproca que valoriza as
qualidades e convive com as limitações e com os defeitos, já conhecidos e
assumidos como parte integrante do relacionamento. Refere-se a uma relação
que tende à totalidade não somente num determinado momento, mas também no
seu desenvolvimento ao longo do tempo. Por isso, relações de nupcialidade,
lá onde podem ser reconhecidas, constituem uma companhia para a vida
inteira com suas inevitáveis variações, uma companhia à tarefa de cada um
e à construção da existência, resultando importante para o percurso humano
de quem está envolvido. Nela o ser humano faz a experiência elementar,
realística e benéfica de uma pertença que o faz crescer e que o torna
protagonista da própria existência. Uma comunhão de habitação, de tarefas
e de recursos concretiza uma história comum, que tem, no matrimônio e na
família, a sua realização.
A relação ocasional
caracteriza-se pelo exercício de uma sexualidade que não quer criar
vínculos, a não ser momentâneos. Considera-se ocasional uma relação que
não se torna projeto comum de vida, não está aberta à procriação, não gera
algum tipo de vínculo e é parcial, na medida em que do outro interessa
apenas um pormenor, por uma porção limitada de tempo. A parcialidade que
ignora o outro no seu significado pessoal e o reduz a instrumento do
próprio interesse, descreve o contexto no qual surgem os abusos e as
violências sexuais. Estes também constituem relações ocasionais, nas quais
a parcialidade do interesse pela outra pessoa alcança o limite máximo e
explode em violência.
É verdade que muitas
vezes os vínculos de pertença foram motivo de opressão nas relações
familiares. Por isso afirmou-se, em época recente, o ideal da liberdade,
entendida como autonomia para determinar o próprio percurso de vida.
Ampliou-se a disponibilidade a quebrar vínculos familiares, quando
percebidos como limitadores da própria expressividade. Nesse contexto,
compreende-se como, na relação ocasional é exaltada a autonomia de cada
um. Nesse sentido, a observação encontra freqüentemente características da
relação nupcial e da relação ocasional misturadas segundo uma
extraordinária variedade de formas.
Na sociedade atual,
a nupcialidade poderá ser vivida só como conseqüência da compreensão da
importância que ela contém para a realização da pessoa. Não será mais um
conjunto de circunstâncias biológicas, históricas e culturais que poderá
induzir as pessoas a viverem a sexualidade no horizonte do amor nupcial,
mas uma livre decisão, movida por uma autoconsciência capaz de escolher o
que reconhece como mais adequado para proporcionar uma qualidade de vida
melhor.
Conclusões
Nesse ambiente de profundas mudanças que atingem a família e que continuam
a suceder-se em ritmo acelerado, os contextos familiares existentes, na
pluralidade de configurações historicamente observáveis, parecem ser
impelidos a uma permanente reformulação dos significados vividos, das
metas propostas e dos métodos para que a convivência familiar continue
sendo fonte de satisfação e de esperança quanto à utilidade dos
sacrifícios enfrentados.
Das mudanças
observadas e brevemente descritas, algumas são irrenunciáveis, como
definitivas conquistas do espírito humano, porque ampliam o espaço da
liberdade, realizam relações mais igualitárias, correspondem às exigências
de realização das pessoas envolvidas. Outras mudanças correspondem a
outros interesses. São muitas, então, as novas formas de organizar a
intimidade. A concreta experiência humana poderá indicar, no tempo, a
qualidade de cada componente deste mosaico em construção, avaliando a
capacidade de responder mais ou menos adequadamente às necessidades
humanas e de construir uma sociedade menos agressiva e violenta, mais
justa e solidária. Com efeito, na variação de modelos familiares que se
sucedem e se misturam no tempo, uma característica permanece como
decisiva: a cooperação entre os sexos e entre as gerações.
Castells alerta para
o fato de que as mudanças em andamento não são necessariamente uma
conquista positiva, no sentido de uma melhor qualidade de vida. “Não
estamos marchando triunfalmente – afirma ele – rumo à nossa libertação, e
caso fossemos persuadidos do contrário, melhor seria considerar onde estes
luminosos caminhos acabam por nos conduzir” (2003, p. 264). E, juntamente
com a possibilidade de retrocessos na fruição das liberdades já
conquistadas, pela reação de movimentos e de interesses contrários, indica
um obscuro horizonte de convulsão social, quando afirma que o fim da
família patriarcal e da mediação realizada pela família entre a dimensão
pública e privada abre o caminho à expressão do desejo na forma de uma
violência não-instrumental. “Ainda que este desenvolvimento possa parecer
libertador, a crise da família patriarcal de fato está cedendo o passo
[...] a um transbordar na sociedade de uma violência insensata, através
dos meandros do desejo mais selvagem, ou seja, da perversão” (Castells,
2003, p. 263).
Diante desse
contexto, a sociedade civil começa a organizar-se para encontrar respostas
aos desafios enfrentados. Multiplicam-se os estudos que documentam como a
família gera e administra um capital humano de extraordinária importância,
os bens relacionais (Donati, 1998). São criados, no mundo inteiro, centros
de pesquisa em família, a terapia familiar tornou-se uma nova profissão,
são elaboradas políticas públicas, para que a família tenha uma liberdade
maior diante das pressões que de muitos lados a constrangem. As
autoridades públicas, no Brasil, bem como no exterior, estão tomando
consciência do recurso social representado pela família, especialmente
para socializar seus membros jovens, cuidando das etapas iniciais do
desenvolvimento e dos estágios primários da educação. Por isso, crescem as
políticas públicas que procuram fortalecer as famílias, de forma tal que
sofram menos os condicionamentos de circunstâncias adversas e tenham mais
condições de desempenhar funções educativas e de amparo (Donati, 2003).
No contexto do
pluralismo religioso, ético e cultural, todas as formas de vivência da
intimidade e de arranjos familiares têm direito de cidadania. Muito
provavelmente não mais haverá um modelo de família predominante,
universalmente aceito, ao qual se reconheça um significado normativo. O
processo de fragmentação da cultura moderna possivelmente continuará a
multiplicar novas possibilidades e opções inéditas. Somente a experiência
poderá mostrar, no tempo, quais opções se revelam mais favoráveis para a
construção de uma vida familiar e social mais correspondente às exigências
humanas ou se todas terão cumprido a única finalidade de satisfazer o
ímpeto de liberdade individual, independentemente das concretas
realizações a que dão vida.
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Trad.). Milano: Università Bocconi Editore. (Original publicado em 1997).
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(Org.). (2003). Família e casal: arranjos e demandas
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Freyre,
G. (1992). Casa Grande e senzala: formação da família
brasileira sob o regime da economia patriarcal. 28a ed. Rio de
Janeiro: Record.
Notas
(1)
Um casal de velhos
camponeses, Filemon e Baucis, habita uma casinha nas dunas, ao lado de uma
capela com um pequeno sino. Eles representam o mundo da tradição, mas com
seu apego ao antigo estilo de vida, põem limites à expansão do poder de
Fausto. Eles não aceitam vender sua propriedade. A casa, então, é
incendiada e os velhos são mortos. Mefistófeles se encarrega de
eliminá-los.(volta).
(2)
Especialmente interessante è a seguinte passagem: “A construção daquele
potente ordenamento econômico moderno, ligado aos pressupostos técnicos e
econômicos da produção mecânica, hoje determina com extraordinário poder
de constrição, e talvez continuará a determinar, até que não seja
consumado o último quintal de carvão fóssil, o estilo de vida de cada
indivíduo, que nasce nesta engrenagem. [...] Mas o destino fez do manto
uma jaula de aço” (Weber, 1965, p. 305). E mais adiante afirma: “Ninguém
sabe ainda quem no futuro viverá nessa jaula e se no final deste enorme
desenvolvimento surgirão novos profetas ou o renascimento de antigos
pensamentos e ideais” (Idem, p. 307).(volta).
(3) “A
burguesia [...] foi quem provou o que a atividade dos homens pode
realizar: criou maravilhas maiores que as pirâmides egípcias, os aquedutos
romanos e as catedrais góticas; levou a cabo expedições de maior porte que
as antigas migrações e as cruzadas. (...) A contínua subversão da
produção, o ininterrupto abalo de todas as condições sociais, a permanente
incerteza e a constante agitação distinguem a época da burguesia de todas
as épocas precedentes. Dissolvem-se todas as relações sociais antigas e
cristalizadas, com o seu cortejo de representações e concepções
secularmente veneradas; todas as relações que as substituem envelhecem
antes de se consolidarem. Tudo o que era sólido e estável se dissolve no
ar, tudo o que era sagrado é profanado e os homens são enfim obrigados a
encarar, sem ilusões, a sua posição social e as suas relações recíprocas”
(Marx & Engels, 1998, p.8).(volta).
(4) Alguns
autores consideram ainda válidos os ideais da primeira modernidade, outros
entendem que se trata de uma etapa histórica já concluída. Para uma
primeira aproximação do tema, ver: Touraine, 1994; Petrini, 2003b; Harvey,
D. (1992). Condição pós-moderna. São Paulo: Loyola; Santos, B.S.
(1999). Pela mão de Alice: o social e o político na
pós-modernidade. São Paulo: Cortez; Rouanet, S.P. (1993). Mal-estar na
Modernidade. São Paulo: Companhia das Letras; Ianni, O. (1992). A
sociedade global. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira; Connor,
S.(1993). Cultura pós-moderna: introdução às teorias do
contemporâneo. São Paulo: Loyola; Bauman, Z. (1998). Mal-estar da
pós-modernidade. Rio de Janeiro: Jorge Zahar; Kaplan, E.A. (1993).
O Mal-estar no pós-modernismo: teorias, práticas. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar.(volta).
(5) Cf.
Petrini, 2003a, particularmente pp. 25-56.(volta).
(6) “É como
se o próprio pensamento se tivesse reduzido ao nível do processo
industrial, submetido a um programa estrito, em suma, se tivesse tornado
uma parte e uma parcela da produção. [...] O significado é suplantado pela
função ou efeito no mundo das coisas e eventos. [...] A verdade e as
idéias foram radicalmente funcionalizadas. A afirmação de que a justiça e
a liberdade são em si mesmas melhores do que a injustiça e a opressão é
cientificamente inverificável e inútil. Começa a soar como se fosse sem
sentido, do mesmo modo que o seria a afirmação de que o vermelho é mais
belo que o azul, ou de que o ovo é melhor do que o leite. Quanto mais
emasculado se torna o conceito de razão, mais facilmente se presta à
manipulação ideológica e à propagação das mais clamorosas mentiras” (Horkeimer,
1976, p. 27-32).(volta).
(7)
Grifo do Autor.(volta).
(8)
Cf. Freyre, 1992, particularmente pp. 64-66 ss.(volta).
(9) Cf.
Berquó, 1998, particularmente p. 411-438.(volta).
(10)
É significativo que a propaganda de uma famosa marca de cigarros
terminasse com a frase escrita na tela: “no limits”.(volta).
Nota
sobre o autor
João
Carlos Petrini é Doutor em Ciências Sociais,
Coordenador do “Mestrado em Família na sociedade contemporânea”
da Universidade Católica de Salvador, Brasil. Contato:
jcpetrini@terra.com.br
Data de
recebimento: 13/12/2004
Data de
aceite: 25/04/2005
Memorandum 8,
abr/2005
Belo Horizonte: UFMG; Ribeirão Preto: USP.
http://www.fafich.ufmg.br/~memorandum/artigos08/petrini01.htm
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