Apresentação

Guarda também estes seis versos, se os julgares dignos 
de serem antepostos no frontispício do livrinho: 
“Quem quer que sejas, que tocas rolos órfãos de pai,  
ao menos lhes dês asilo em tua cidade;  
para melhor os acolher, não foram publicados pelo próprio amo, 
mas como se roubados de seu funeral.  
Qualquer defeito, então, que o rude poema possuir, 
se fosse permitido, eu haveria de corrigir”. 

(Ovídio, Tristia 1.7.33-40, trad. Júlia Avellar – Epígrafe às Metamorfoses) 

Olhei: a barata era um escaravelho. Ela toda era apenas a sua própria máscara. Através da profunda ausência de riso da barata, eu percebia a sua ferocidade de guerreiro. Ela era mansa, mas a sua função era feroz. Eu sou mansa mas minha função de viver é feroz. Ah, o amor pré-humano me invade. Eu entendo, eu entendo! 

(Clarice Lispector, A paixão segundo GH)

O Simpósio Lendo, Vendo e Ouvindo o Passado chega, em 2022, à sua 10.ª edição. Em tempos tão difíceis para a universidade pública brasileira, no ensino, na pesquisa e extensão, há que se celebrar com todos e todas que ao longo de 18 anos contribuíram para a sua realização. Assim, proposto como edição comemorativa, o evento terá todas as mesas-redondas moderadas pelos co-organizadores das nove edições anteriores. Neste ano, ele é realizado em parceria com a Universidade Federal de Uberlândia (UFU), e este trabalho cooperativo de regionalização (e também da internacionalização) tem ocorrido de forma profícua desde a 4.ª edição (2010), quando, vindo de Santa Catarina para Minas Gerais, começou a ser organizado com outras universidades do interior do estado. 

A escolha do tema desta 10.ª edição, “Metamorfoses e metamorfoses”, tomou como ponto de partida discutir alguns aspectos do célebre e influente poema de Ovídio. Se, por um lado, a obra dialoga com o passado mítico grego, bem como com a poesia (em forma e conteúdo) e filosofia, por outro, sua recepção posterior na literatura, nas artes plásticas, no cinema e na escultura é riquíssima e inspiradora. Além da discussão do magnum opus de Ovídio, neste simpósio também nos propomos, em diálogo interdisciplinar, reunindo professores de língua, literatura, história da arte, história, estudos fílmicos, arqueologia e filosofia, investigar o termo “metamorfose” e conceitos correlatos a ele, como transformação, alteração, mudança, mutação, transfiguração, transmutação, transubstanciação, devenir e movimento. 

Assim, a proposta feita a todos os convidados, aos quais somos muito gratos/as por terem aceitado este desafio, foi a de discutir os conceitos complexos em diferentes campos de conhecimento e/ou articulá-los a este marco na literatura ocidental: as Metamorfoses. Naturalmente, é uma tarefa ousada, a ser levada a cabo em três dias, ainda que alinhada a duas outras atividades: uma mostra de filmes e um seminário, ambos organizados pela UFMG, que, respectivamente, precedem e sucedem o simpósio (e que, diferentemente do evento, serão presenciais). Como todo encontro que busca tanto divulgar pesquisas de ponta como abrir aos participantes (tanto jovens quanto pesquisadores mais experientes) um rico e complexo universo de autores e problemas em tantas áreas de estudo e na cultura em geral, acreditamos que vale a pena — ou melhor dizendo, o prazer — mergulhar nas Metamorfoses e metamorfoses. 

Metamorfoses. Nessa obra de Ovídio, que busca narrar os “corpos mudados em novas formas” desde as origens do mundo até os tempos do próprio poeta, a transformação é a tônica não só no assunto, mas também na própria forma poética. A rápida sequência de imagens metamórficas, expressas em narrativas que se entrelaçam ou se encaixam mutuamente, faz com que o leitor atual vislumbre diante dos olhos um universo plástico, inacabado e em constante mutação. Não por acaso, ao refletir depois, nos versos dos Tristia, sobre suas Metamorfoses, Ovídio, supostamente exilado, compõe a posteriori uma epígrafe para o poema, deixado sem a última demão. Assim como o mundo formado na cosmogonia ovidiana é “rude”, tambémseu próprio poema é assim caracterizado, pois incompleto e em construção, aberto a múltiplas significações e interpretações, indecidível, fluido e… em metamorfose. 

Metamorfoses. Ao termo “metamorphosis”, constituído pelas palavras gregas meta e morphē, podemos associar termos correlatos que foram (e ainda são) utilizados para traduzir ou abarcar o campo semântico de outras palavras gregas (como kinesis, metábole, alloiōsis, physis ou heterotēs). Aqui, saímos do sentido mais imediato de narrativas sobre transformações corporais, nas histórias sobre deuses e heróis, principalmente, a fim de explorar questões como o problema filosófico herdado dos pré-socráticos, buscando estudar o movimento para encontrar os princípios (archai) ou as causas (aitiai) que o expliquem e produzam, ou como a própria interrogação, alicerçando a fundação da ciência moderna por Galileu, sobre o valor do pressuposto da superioridade da imutabilidade. De Aristóteles a Darwin (no âmbito da investigação sobre a geração e corrupção dos seres, e a própria teoria da evolução), de Apuleio a Kafka e Clarice Lispector (no âmbito da discussão sobre nossa humanidade e animalidade), de Platão a Méliès (no âmbito das narrativas imagéticas ilusórias), temos — apenas para citar alguns exemplos — um riquíssimo campo de estudo para compreender os termos e as palavras correlatas desse universo das reflexões e ações relacionadas aos processos (mais concretos ou abstratos) das metamorfoses. Nesse universo incluem-se ainda, por exemplo, elementos como o vinho, a tecelagem e a cerâmica, que suscitam reflexões sobre práticas que, se prosaicas, carregam, intrinsicamente, uma mudança que o homem opera, transformando natureza em cultura, para sua própria sobrevivência.  

Nossa uma dúzia de sessões é, assim, uma pequena amostra do tanto que há para estudar, investigar e apreender. Deixamos, portanto, o convite a todas/os as/os interessadas/os nos temas aqui presentes, a partir de uma abordagem interdisciplinar, abarcando diversos campos do conhecimento, desde a Antiguidade até o mundo atual, para ler, ver e ouvir os clássicos, de um passado que é, de fato, ainda presente, pois, em sua plasticidade, essas obras são capazes de contínua “deformação” e mutação, sem chegar à ruptura. Esperamos um profícuo engajamento e interação de todos, em diálogo que, queremos crer, será iluminador e instigante. 

As/os organizadoras/es.