Apresentação

Olharemos para essas belas coisas com certa melancolia, pensando naquele verso de Rilke que fala nos olhos das rendeiras deixados sobre as rendas. O que há nestes desenhos além dos fios! O que não se vê, sendo tão presente.
Cecília MeirelesCidade Líquida, in Crônicas de Viagem 2.

Every revision of antiquity is always archaeological, or, if you will, constitutes a reverse archaeology of the present from which we repose the question of origin (arche) […] Thanks to the cunning of Athena, daughter of Metis, Perseus was able to behead the monster by tapping her reflection on his shield. In this moment, the gaze (the Real) is replaced by the reflection (the Apparatus).
Yorgos TzirtzilakisMetis, in Liquid Antiquity, Brooke Holmes; Karen Marta (Ed.).

Com alegria damos as boas-vindas a todos/as os interessados em participar do Simpósio Lendo, Vendo e Ouvindo o Passado, que em sua nona edição tem como tema Diálogos entre Arqueologia, História, Literatura e Filosofia.

Previsto para ser realizado em maio último, presencialmente, como foram todos os simpósios até agora, ele foi transferido para novembro, na modalidade virtual e, considerando as especificidades das atividades on-line, com uma carga horária menor que a dos anteriores. Incluímos, ainda, a participação dos debatedores (respondents) com uma intervenção mais ativa, comentando as exposições e moderando as perguntas enviadas por escrito pelos participantes. Se, por um lado, o formato virtual traz apreensão (por eventuais problemas técnicos, interrupções etc..), por outro, ele é vantajoso, pois possibilita a participação de convidados de vários lugares. Desde já, registramos aqui nosso agradecimento a todos/as, que, certamente, estão com uma agenda bem mais densa do que antes da pandemia, sem deixar também de agradecer àqueles (colegas, alunos, monitores) que possibilitaram a realização deste encontro.

Como pode ser visto no histórico, em seus 16 anos – co-organizado por um grande número de colegas muito queridos/as, aos quais fica o nosso agradecimento –, o Simpósio passou por outras mudanças significativas. No entanto, sempre foram mantidos com afinco e esforço: a interdisciplinaridade, o pressuposto de que imagem e som sempre foram considerados no modo como (re)construímos o passado e, ainda, a própria (meta)reflexão sobre o passado. É oportuno lembrar que o Simpósio surgiu pelo interesse na discussão e divulgação de temas das culturas dos períodos antigo e medieval – em particular do mundo greco-romano e sua recepção (um diálogo de mão dupla, deve-se frisar) –, no âmbito de um grupo de estudos com alunos dos cursos de História e de Pedagogia, na Universidade do Estado de Santa Catarina, os quais participavam de um curso livre de Introdução ao grego antigo. O título e o tema do primeiro Simpósio foram inspirados em um livro que estudávamos naquele momento, o Lendo o Passado. Do cuneiforme ao alfabeto, a escrita antiga, editado por J. T. Hooker, e, com alegria, enfatizo que reencontro vários desses alunos, hoje como colegas (um deles, Ricardo Sontag, na Faculdade de Direito da UFMG, com quem tenho projeto em parceria), e constato que o entusiasmo deles pela abordagem transdisciplinar e a atenção aos estudos das imagens não arrefeceu. Destaco, por fim, a participação, aqui, da professora Márcia Ramos de Oliveira, cara colega com quem organizei o primeiro simpósio – e o entusiasmo de recém-doutoras com a docência é revitalizado, agora, com o planejamento de futura parceria interinstitucional, em um momento em que a união das universidades públicas se faz tão necessária.

Nesse contexto, é ainda oportuno lembrar as dificuldades de lidar com imagens (e cultura material) em um ambiente em que a palavra escrita sempre foi privilegiada. E não apenas no campo da filosofia, que tradicionalmente considerou a imagem como auxiliar (subalterna) na aquisição do conceito, objeto último do conhecimento que se pretenda universal, em que pese todo o uso de metáforas do olhar e da visão na história da filosofia, como podemos constatar pela leitura do instigante texto Janela da Alma, de Marilena Chauí. Também em outras áreas, o peso do preconceito se manifesta ainda hoje. Como exemplo significativo, trago as palavras da historiadora Lilia Schwarcz, nessa entrevista recente (aos 16 min.), enfatizando que “a banca fez questão de não ver a exposição antes do exame de sua dissertação” (Cientistas, instituições e questão racial no Brasil do século XIX), devido aos preconceitos com o uso de imagens como fontes de pesquisa para teses e dissertações. A defesa que a renomada professora faz do diálogo com as imagens, como algo muito mais do que mera “ilustração” (no sentido literal de apenas dar o lustro, ornamento dispensável), é uma posição que vem ao encontro da nossa e que se reflete no espírito desses simpósios em todas as suas edições.

Em relação às edições anteriores, destaco a inclusão de colegas da arqueologia, e, naturalmente, a inserção de questões ligadas à cultura material. A razão desse início de reflexão sobre cultura material (e também sua divulgação) é a conclusão do primeiro triênio do projeto Tocando o Passado, coordenado pela arqueóloga Érica Angliker e por mim. Ao longo de três anos, o projeto organizou viagens e cursos na Grécia, bem como a participação de voluntários nas escavações em Strophilas, Andros, (2017), Despotiko, Paros (2018) e Eleutherna, Creta (2019, na qual estiveram duas das co-organizadoras deste Simpósio, Júlia Avellar e Sandra Bianchet) e visita a Tenea (2019), dirigidas, respectivamente, por Christina Televantou, Yannos Kourayos, Nicholas Stampolidis e Elena Korka. O objetivo principal do projeto (que encerrou sua primeira fase com uma exposição e um colóquio em Atenas, no qual participaram vários palestrantes que estão nesse IX Simpósio) é o de que estudantes e professores que não são da área de arqueologia participem de escavações e visitas a museus e sítios, a fim de ter contato com a cultura material e a experiência do trabalho arqueológico, ampliando sua compreensão da antiguidade, também pela experiência sensorial.

Se as áreas de pesquisa dos organizadores desse IX Simpósio estão voltadas para o mundo clássico greco-romano, isso não significa falta de interesse no diálogo com outros campos de pesquisa, que, doravante (esperamos!), poderemos ampliar. Com entusiasmo recebemos a confirmação da presença de colegas que desenvolvem trabalhos com arqueologia no Egito e no Brasil. Aliás, um diálogo sobre “nosso passado” na América e aquele greco-romano, tratado, em parte com razão, como berço da civilização ocidental, é tema instigante e que merece nosso olhar cuidadoso (quiçá seja ele tema do próximo simpósio, em 2022). Como bem apontou André Prous, no seu esmerado livro Arqueologia Brasileira: a pré-história e os verdadeiros colonizadores (lançado em 2019), é fundamental refletirmos sobre os “limites estáveis” com os quais nos habituamos e nos quais transitamos muitas vezes sem compreender que essa “paisagem fixa” – o “território” – perde o sentido para outros povos, cuja existência se define pela “sociedade e objetos que os rodeiam” (p. 86-7). Essa concepção vai ao encontro do conceito iluminador de Liquid Antiquity, exposto no livro do qual retirei uma das epígrafes acima. Um diálogo sobre as implicações (e pressupostos) filosóficas dessas novas abordagens e seus desdobramentos é, cremos, tema promissor de pesquisa interdisciplinar, aliando informações sobre textos e objetos da cultura material.

Concluindo, talvez seja prudente alertar que não fazemos coro a Diotima (naquele outro Simpósio, em que se defende a busca de um amor mais elevado, celestial e não pandêmico) em sua orientação de que devemos nos afastar desse mundo ligado aos sentidos, dessas “fluarias”, a fim de buscar “o próprio belo, nítido, puro, simples, e não repleto de carnes humanas, de cores e muitas outras ninharias mortais, mas o próprio divino belo […]” (Simpósio, Platão, 212e, trad. J.C. de Souza). Queremos não apenas chegar mais perto das palavras, para, como Drummond, ver que “Cada uma tem mil faces secretas sob a face neutra”, como também das coisas a que elas se referem, e compreender, ainda que especularmente, com os aparatos das metodologias de pesquisa, o olhar que transformou pedra, barro, mineral, voz, desejo e vida em objetos e palavras.

Maria Cecília de Miranda Nogueira Coelho, Coordenadora geral do Simpósio