O presente estudo entende as televisões públicas como importantes instrumentos que democratizam a informação, a cultura e a educação, principalmente nos países onde o índice de analfabetismo é elevado, como na América Latina. Para apresentar as características e as dificuldades enfrentadas para a constituição deste espaço mediático diferenciado, o trabalho analisa a cobertura da crise política do governo Luís Inácio Lula da Silva – de junho a dezembro de 2005 - realizada pelo programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo. Apesar da emissora não ser um veículo realmente público, a série de programas do Roda Viva sobre a crise política demonstra a preocupação do canal em utilizar a mídia como um espaço mais democrático para o debate de idéias, sendo este um dos pontos fundamentais para a discussão sobre uma futura televisão pública brasileira.
televisão pública, públicos fortes e fracos, esfera pública política, espaço público mediatizado.
Televisão pública, segundo Regina Mota (1998) (1), é um veículo de comunicação que não pode estar associado a interesses imediatos nem de governos e nem comerciais. No caso do Brasil a TV pública, como espaço democrático de formação do cidadão, está em construção. A cobertura da crise política do governo Lula (2) pelo programa Roda Viva (3) da TV Cultura de São Paulo será aqui analisada como exemplo dessa realidade diferenciada no espaço mediático televisivo brasileiro. Embora a TV Cultura não seja pública na acepção teoricamente entendida aqui como a mais adequada, a emissora parece dedicar-se, por definição, à produção de programas que formem um público crítico (capaz de assistir, refletir e opinar sobre os fatos).
De junho a dezembro de 2005, intervalo pré-definido para o estudo, o Roda Viva se destacou, em relação ao restante da mídia, no tratamento da crise política do governo federal iniciada com as denúncias de corrupção na Empresa Brasileira de Correios e Telégrafos. No acompanhamento da série de acontecimentos da crise, o programa atuou como veículo preocupado com a formação do cidadão, seguindo princípios ligados à construção de uma televisão pública no Brasil. Por conseguinte, configurou-se como um espaço mediático dedicado a ampliar e a pré-estruturar a mídia como esfera pública.
Esse fenômeno é especialmente importante se considerarmos, tal qual Martín-Barbero (2002), a televisão como um espaço estratégico para a produção e reivindicação das imagens que o público tem da sociedade e deles mesmos, o que permite o acesso dos telespectadores ao mundo. No Brasil, a tendência à padronização é um recurso muito utilizado pelas emissoras de televisão, pois, quanto mais a programação televisiva for recorrente, circulando e reiterando idéias, maior é a chance de aproximação e conquista de públicos. Por meio da interpenetração, a TV envolve o telespectador em um processo de vibração e aproxima-se de seu público. Nesse contexto, releva-se a dimensão do trabalho diferenciado de uma televisão como a Cultura, sendo importante considerar a complexidade do processo comunicacional, que envolve diversos aspectos cuja análise requer múltiplas abordagens.
Dentre as abordagens consideradas neste trabalho, vale destacar o caráter ambivalente presente na TV Cultura de São Paulo, que ora apresenta-se como uma emissora de interesse público, ora como uma televisão de interesse estatal. Considerando essa ambivalência, este trabalho pretende mostrar como a emissora trabalha para formar cidadão mais crítico e informado, utilizando como exemplo dessa busca, a cobertura feita pelo Roda Viva sobre crise política em 2005.
Segundo Dominique Wolton (1995), o espaço público é um espaço simbólico onde se opõem e são respondidos os discursos, em sua maioria contraditórios, realizados por diferentes atores políticos, sociais, religiosos e outros. É um espaço que precisa de tempo para formar um vocabulário e valores comuns que tenham legitimidade para deliberação na sociedade. Por isso, a importância adquirida pelo espaço mediático faz com que os atores se reportem aos mass media para legitimar seus discursos. Habermas (1999) reforça essa idéia em “O espaço público 30 anos depois” dizendo que o espaço público tornou-se um espaço de luta por temas, não somente para a influência, como também para um controle de fluxos de comunicação eficazes.
A relação entre o espaço público e a mídia também é abordada nos trabalhos recentes de Avritzer e Costa (2004); e Habermas (1990), que ponderam sobre a necessidade da Teoria Crítica, considerar o conceito de esfera pública contemporânea nas análises das relações sociais da segunda metade do século XX. Neste novo contexto as esferas públicas acabam conectadas, tendo a mídia um papel de reflexividade central para essas conexões. "É por isso que o espaço público contemporâneo pode ser designado por espaço público mediatizado, no sentido em que é funcional e normativamente indissociável do papel dos media" (WOLTON, 1995: p.167).
Nos países da América Latina o uso mais importante e generalizado do conceito de espaço público acontece nas pesquisas sobre os meios de comunicação. Além disso, no caso da esfera pública política na América Latina, as realidades sociais se diferem das européias devido ao contexto histórico e as diferentes constituições das sociedades. Nos países latinos, os mass media ocupam o lugar das mediações sociais como importante espaço para intercâmbios urbanos.
Vale ressaltar que o conceito de esfera pública política abordado neste trabalho considera, assim como Avritzer e Costa (2004), este espaço como majoritariamente constituído por parlamentos e a grande mídia, prevalecendo como estruturas fechadas e inacessíveis à pluralidade de públicos alternativos. Por esse motivo, o surgimento dos novos tipos de organizações políticas acaba funcionando como importante instrumento para a implantação de mudanças nesta estrutura fechada, possibilitando a participação de um maior número de atores nos mass media.
No caso da análise do espaço público na América Latina, Martín-Barbero (2002) esclarece que muitas vezes este espaço aparece confundido com a questão estatal. O que ocorre neste tipo de configuração social é que o Estado se apresenta como um mecanismo para contrabalançar e centralizar as forças de dispersão, passando a ser a competência comunicativa um local para a convocação e integração da sociedade. Então, a mídia passa a ser um poderoso meio para renovação da política, o que pode acabar por enfraquecer os fundamentos do caráter público e dos processos de deliberação e crítica.
Maia (2003) chama atenção para um outro aspecto que é a tentativa dos políticos e das elites de administrar a visibilidade e fazer repercutir seus discursos nos mass media, constituindo a mídia como espaço estratégico. O espaço mediático não pode ser um local para a manipulação unificada ou visar atender a interesses particulares. “A mídia deve garantir a competição mais equilibrada entre os representantes e os representados na cena midiática” (MAIA, 2003: p.20).
Para Evelina Dagnino (2002), os espaços públicos democráticos podem ser locais apropriados para uma dimensão realmente pública, distinta da lógica de mercado e de Estado. A participação de atores sociais nesses espaços é fundamental na constituição da sociedade civil através de diversas ações, o que não se trata de um processo linear. Os diferentes atores sociais buscam influenciar nos processos decisórios, tendo os atores poderosos mais acesso a recursos comunicativos e facilidade para serem incorporados à agenda pública.
Habermas, ao desenvolver a Teoria da Ação Comunicativa, lembra que nas interações comunicativas não pode prevalecer a vontade individual dos cidadãos, mas que deve ser resultado do processo comunicativo de formação da opinião e da vontade coletiva, para que sejam tomadas as decisões instituídas pela ordem democrática. Porém, o modelo habermasiano não considera as relações assimétricas de poder na constituição das esferas públicas contemporâneas. Já Costa (1997) aborda a complexidade das relações assimétricas lembrando que todos os atores buscam agir estrategicamente na defesa de interesses específicos, sendo a mídia um espaço estratégico para a defesa de pontos de vista e para atingir o público carente de informação.
Na atual conjuntura política, marcada por uma forte influência da mídia, o espaço para argumentos racionais, debates profundos e diferenciados, não são muito freqüentes, prevalecendo a simpatia e a capacidade dos políticos de conquistar os públicos. Neste contexto, a televisão tem um papel primordial, sendo que os políticos já perceberam que não basta assegurar espaço nas televisões para convencer a opinião pública, pois os públicos não são manipuláveis como se acreditou por muito tempo (4). No caso do Brasil, o papel da comunicação na política apresenta-se como propício para a discussão de temas que influenciam no processo de decisão democrática. Esse quadro vulnerável reforça a importância de meios de comunicação críticos e também da preservação de espaços públicos primários.
Para Martín-Barbero (2002), a televisão é o meio de comunicação que mais reflete as contradições da modernidade latino-americana, por ser um meio acessível às maiorias, tanto econômica como culturalmente. A televisão é hoje o meio onde se tecem poderosas relações de cumplicidade e interações da cultura oral com a visualidade eletrônica.
Outro aspecto importante da televisão é o fato de ela se constituir como um ator decisivo para as mudanças que a política atravessa, sendo o espaço onde as pesquisas de opinião convocam a participação do cidadão e onde o espetáculo do debate político é maquiado. Com base nos diferentes aspectos que compõem a televisão pode-se dizer que o meio é um importante espaço estratégico, sendo uma “esfera pública eletrônica (5) ” que apresenta possibilidades para a democratização dos costumes e da cultura política.
Uma das grandes dificuldades enfrentadas na delimitação do caráter público televisivo está associada ao fluxo incessante de discursos e imagens reproduzidos por este meio, o que contribui para que o caráter público esteja cada vez mais impreciso politicamente e cada vez mais identificado com o encenado pela mídia. Neste sentido, a opinião pública reproduzida pela mídia através das pesquisas de opinião e levantamentos contém cada vez menos debate e crítica e cada vez mais simulacro, o que faz que a sociedade perca na sua heterogeneidade.
Como exposto, os meios de comunicação, principalmente a televisão, são importantes atores no processo de construção política e social para o povo latino-americano. No Brasil nos últimos anos, a televisão vem se transformando no meio de comunicação mais difundido, como constado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, que identificou 90% dos domicílios brasileiros com televisões (IBGE, 1995). É exatamente por esta importância estratégica que tem hoje a televisão que se faz necessário discutir e entender as televisões públicas operantes nos países latino-americanos. O tema tem sido objeto de debates e estudos principalmente na Europa, e ainda, de forma marginal, na América Latina.
No processo de representação das identidades na TV, os "públicos fracos” (6) (Maia, 2004) costumam não ter espaço e as televisões limitam-se a produzir um imaginário fortemente nivelador e igualitarista. Desta forma, os diferentes atores sociais buscam influenciar nos processos decisórios, tendo os “públicos fortes” mais acesso a recursos comunicativos e facilidade para serem incorporados à agenda pública. Com isso, a multiplicidade de identidades não é representada na mídia de uma forma igualitária.
A proliferação das identidades está relacionada com a modernização, passando a solidez antes relacionada à noção de comunidade, a uma identidade situada, considerando que as pessoas participam de diversos espaços e esses influenciam na formação de sua identidade. Neste caso, a televisão se constitui como um espaço importante para a manifestação dos discursos produzidos pelos diferentes atores. Dessa forma, as identidades distintas são criadas a partir de fragmentos de influências culturais e associação de visões, formando-se então uma identidade multi-localizada.
A mídia é um espaço disputado pelos atores sociais com suas identidades multi-localizadas, sobretudo no campo político. Dessa forma, a função de vigilância da mídia de estar “atenta ao ambiente sócio-político, expondo a corrupção oficial, os escândalos e as falhas do governo ou de organizações sociais, podem ser – e freqüentemente são – utilizadas de maneira ardilosa pelos atores políticos em conflito” (MAIA, 2003: p.19).
De uma maneira geral, as televisões comerciais operam sob economia temporal, em razão dos interesses econômicos e a presença de anunciantes, sendo os debates promovidos sob essas circunstâncias marcados pelo ritmo acelerado, sem intervalos para pausas ou reflexões. Para Martín-Barbero (2002), a televisão pública é aquela que interpela o público, incluindo o consumidor enquanto cidadão. Na América Latina, as televisões públicas são espaços decisivos para a inscrição de uma maior diversidade de atores sociais. É o espaço onde os conflitos de interesses dos políticos e públicos fortes não podem prevalecer, prejudicando a formação social.
As primeiras televisões públicas na Europa surgem em um quadro marcado por uma concepção elitista, com a participação de intelectuais e artistas que acreditavam saber o que as massas precisavam, prevalecendo os programas culturais (Wolton, 1996). No caso dos países latino-americanos, as televisões nascem estatais antes que públicas, uma vez que surgiram durante os regimes políticos ditatoriais na América Latina, sendo importantes instrumentos de persuasão para os governos.
Os regimes autoritários, a partir da idéia de interesse público à informação, administravam as emissoras com características estatais como se esses fossem veículos públicos de informação. Existe, porém, uma diferença conceitual na constituição destes dois tipos de televisão. Uma TV estatal é subsidiada por governantes políticos, de forma que, por mais que o canal tenha o compromisso de atender ao interesse público, a autonomia para a divulgação das informações é parcial. Já o modelo de emissora pública considerado neste trabalho tem a autonomia financeira, podendo atender aos interesses públicos de uma forma mais democrática e igualitária.
Porém, hoje dentre os modelos de televisão presentes, o que predomina é o modelo de televisão comercial voltado para o consumo. Este modelo se desenvolveu nos Estados Unidos da América e se difundiu pela Europa, América Latina e outros. Com o rápido crescimento do público e do interesse pelo consumo, as produções nos paises latino-americanos passaram a estar cada vez mais dependes da programação e do modelo de produção norte-americano.
Como argumentado por Brian Martin (1998), uma alternativa à mídia comercial é o serviço público de mídia, caracterizado pela mídia financiada pelo governo (como a ABC na Austrália; BBC na Inglaterra; e a CBC no Canadá) combinada à regulamentação governamental da mídia comercial. Laurindo Leal Filho (1997) reforça as colocações de Martin, no livro “A melhor TV do mundo”, que exemplifica com relato de casos e dados quantitativos, o modelo britânico de televisão pública, a BBC. O livro mostra que quanto menos o veículo de comunicação tiver intervenção financeira, seja do Estado ou de instituições privadas, e quanto maior for a participação de membros interessados em informar os fatos, como, por exemplo, acontece no conselho da BBC, maior a chance dos interesses realmente públicos serem atendidos.
Os veículos de comunicação pública tentam legitimar o espaço público na mídia. Apesar de no Brasil não termos televisão realmente pública, a TV Cultura pode ser um exemplo de tentativa de utilizar a mídia como um espaço democrático para o debate de idéias, um espaço público mediatizado. Vale relembrar a ambivalência da TV Cultura destacada na introdução deste trabalho, pois o canal depende financeiramente do governo do Estado de São Paulo. Por outro lado, a proposta editorial da emissora busca atender aos interesses públicos mediante de programas informativos, como parece propor a cobertura feita pelo programa Roda Viva durante a crise política do Governo Federal em 2005.
O conceito de qualidade para a TV Cultura está associado a vários critérios, principalmente a forma como o canal se relaciona com o público para atingir os resultados educativos, informativos e culturais. Esta preocupação da emissora é exemplificada pela diversidade de espaços da grade de programação voltada para informar e formar o público. No total são 11 programas jornalísticos, 12 programas educativos, 13 programas musicais, cinco programas de documentários, 36 programas de variedades e 5 programas de esporte.
Na luta pela programação de qualidade, a TV Cultura enfrenta vários desafios, assim como outras televisões do gênero em todo o mundo. Ao longo dos últimos anos, o canal trabalha na mudança do perfil de sua programação, adaptando-se às exigências dos novos tempos e estabelecendo uma política ativa de relacionamento com o público. Nesta tentativa de conquistar o público a emissora apresenta várias características de ambivalência, como exposto por Maurício Reimberg (2006), que destaca as mudanças na programação da emissora nos últimos anos.
A programação é cada vez mais entremeada por comerciais de bancos, carros, lojas etc. Em princípio, manteve-se dentro dos parâmetros que poderiam ser delineados como “culturais”. Mas as mudanças logo se fizeram sentir. Foram contratados apresentadores como Silvia Poppovic, que faz um programa nos mesmos moldes do que realizava em emissoras comerciais (REIMBERG, 2006).
A TV Cultura tem como maior acionista o poder público estadual e apresentou sempre uma programação de alta qualidade com direito a vários prêmios internacionais. Porém, nos últimos tempos, isso se traduziu num caráter cada vez mais comercial. Mesmo com os problemas destacados acima, o canal parece ser um veículo mais preocupado em atuar como espaço público mediatizado. Uma análise mais aprofundada sobre os aspectos presentes no programa Roda Viva, pode ajudar a compreender as características de caráter público presentes na emissora.
Dentre as considerações feitas por Wolton (1995) sobre as contradições presentes no espaço público mediatizado, está o reducionismo das informações. Com base nesta idéia exposta por Wolton, é possível entender porque a discussão sobre a crise política do governo Lula está ligada aos fatos imediatos, dando os veículos, em geral, pouco espaço para a discussão mais aprofundada e analítica. O grande problema da simplificação é que a sociedade e a política não funcionam no ritmo dos acontecimentos retratados pela mídia. O programa Roda Viva, da TV Cultura de São Paulo, tem abordado a complexidade da crise de uma maneira mais ampla, abrindo espaço para uma discussão mais aprofundada.
O programa tem acompanhado a crise política menos preocupado com a urgência da informação e voltando-se mais para a discussão da gravidade do tema. Nos outros canais de TV aberta não existem programas que escutaram os diferentes atores envolvidos com semelhante espaço e aprofundamento, o que comprova a tendência de simplificação dos mass media. Um exemplo claro da atuação do programa é a entrevista com o na época deputado Roberto Jefferson (PTB), que propiciou ao Roda Viva uma das maiores audiências de sua história (7). A entrevista gerou debates na sociedade e o posterior aprofundamento do tema em outras mídias.
O maior destaque do programa na cobertura da crise política em 2005, no entanto, foi a entrevista com presidente Luís Inácio Lula da Silva (8), em que foram debatidos vários assuntos polêmicos como o fato do presidente conhecer ou não o chamado “mensalão (9) ” e a participação de seus familiares em desvio de verba pública. Vale ressaltar que o Roda Viva foi o primeiro veículo de comunicação a que Lula concedeu entrevista exclusiva, tendo dado apenas uma entrevista coletiva desde o início do mandado. Somente após o programa, possivelmente com influência dos entrevistadores que questionaram o presidente sobre o fato dele não conceder entrevista, já foram realizadas matérias para outros canais, como para a Rede Globo de Televisão.
Outros entrevistados envolvidos na crise política também passaram pelo programa, entre eles: o presidente da CPMI dos Correios, Delcídio Amaral; parlamentares da oposição e do governo em diferentes rodadas de discussão; o vice-presidente do país, José Alencar; juristas e especialistas na área. A maioria das entrevistas do Roda Viva sobre a crise repercutiram na mídia no dia seguinte, por ter sido o programa um espaço mais amplo para o debate onde idéias importantes foram apresentadas pelos diferentes atores muitas vezes em primeira mão.
Um exemplo da ampliação do debate gerado pelo Roda Viva é a declaração da senadora Heloísa Helena, que na edição do programa do dia 11 de agosto de 2005, afirmou estar em poder da CPMI fitas de vídeos que mostravam políticos com muito dinheiro em festas com garotas de programa em Brasília. No dia seguinte à entrevista da senadora, a polêmica das festas começou a ser discutida e apurada. Outro fato de destaque foi a entrevista com o ex-presidente do PT, José Genoino, além de afirmar ter assinado os documentos em confiança a Delúbio Soares, hoje ex-tesoreiro do PT, ele se emocionou ao falar da época do regime militar. No dia seguinte, a Folha de São Paulo noticiou os dois fatos, que também foram debatidos pela sociedade.
Na ampliação da discussão sobre a crise política, a mídia tem sido um importante meio de influência, utilizado para que os atores sociais e políticos exponham suas idéias, sendo o Roda Viva um veículo de comunicação que se destaca nesta abordagem. O espaço que está sendo dado às questões que envolvem a crise política do governo Lula no programa pode ser um exemplo prático da utilização da mídia como um espaço importante para pré-estruturar a esfera pública. A preocupação do Roda Viva, segundo o apresentador Paulo Markun, é reunir as idéias, refletir sobre os fatos, analisar os desafios que estão sendo colocados para os chamados homens públicos e, com isso, pensar o rumo dos acontecimentos.
1. Diferentes atores participantes do Roda Viva
Rousiley Maia (2003) chama atenção para a tentativa dos políticos e das elites em administrar a visibilidade e fazer repercutir discursos no espaço de visibilidade mediática, constituindo a mídia como espaço estratégico. Considerando as idéias de Maia, é possível analisar o tratamento dado pelo Roda Viva aos diferentes atores em comparação aos outros canais comerciais na cobertura da crise. O programa está acompanhando o desenrolar dos fatos através da participação efetiva do público. Os outros canais de televisão do sistema aberto produzem, na maioria das vezes, matérias curtas, com as últimas novidades, espaço somente para os principais envolvidos, muitas vezes de forma desigual, sem dar espaço para os “públicos fracos”. Nas edições do Roda Viva sobre a crise, é possível observar diferentes atores políticos e sociais envolvidos na crise participando de entrevistas e debates. A pluralidade de debates do programa permite a participação de um maior número de atores sociais do que, por exemplo, a cobertura feita pela TV Câmara (10), que apesar de divulgar todos os acontecimentos relativos à crise, não possibilita uma interatividade do público com os debates exibidos. Além disso, o canal está em um sistema pago de televisão, o que limita o público em apenas 10% dos 90% de telespectadores brasileiros (11). Com essa limitação de acesso e de interação, mesmo com uma cobertura dos fatos por mais tempo, o canal não permite a ampliação do número de participantes.
Um outro questionamento interessante que pode ser feito ao analisar-se a cobertura do Roda Viva é a comparação com outros programas que também propiciam a interatividade. A diferença aqui demonstrada é que o programa não propicia uma interatividade vazia de conteúdo, uma vez que possibilita aos participantes opinarem sem ser através de uma votação que oferece as opções sim ou não. Dois exemplos práticos deste tipo de interação com respostas prontas são o Big Brother Brasil e o já extinto Você Decide, ambos exibidos pela Rede Globo de Televisão.
O Roda Viva está acompanhando o desenrolar dos fatos mediante de entrevistas de estúdio, participação dos telespectadores por meio de telefonemas e emails enviados durante o programa, além de cidadãos convidados para assistir o programa no estúdio. Apesar do espaço não ser igual para os telespectadores, pelos motivos anteriormente expostos, o Roda Viva abre espaço para a participação. Durante o programa, o apresentador coloca as questões feitas pelo público aos entrevistados. Ao observar as edições sobre o tema, percebe-se que advogados, telefonistas, auxiliares de serviços, donas de casa, ou seja, diferentes atores sociais participam.
O objetivo do programa parece não ser propiciar aos telespectadores a falsa sensação de participação no processo. O Roda Viva comprova preocupação em incluir o telespectador no debate qualificado, porém a própria estrutura do meio de comunicação limita essa interatividade. Além disso, como já exposto anteriormente, os “públicos fortes” acabam tendo mais recursos para se inserir no espaço mediático, sendo que, no caso específico da crise, a exposição dos pontos de vista dos envolvidos qualifica o debate e ajuda a sociedade entender melhor os fatos.
No Roda Viva exibido no dia 15 de agosto, seis telespectadores tiveram as suas questões lidas pelo apresentador, dentre elas a do representante comercial Antônio Gabriel, que questionou: “se tivesse lei da mordaça e se a fita dos três mil reais do correio não tivesse aparecido. Qual seria a chance do Brasil descobrir esse mar de lama?” Com depoimentos como esse o Roda Viva busca cumprir sua função de tentar equilibrar a cena política.
Para exemplificar a relevância do programa na cobertura da crise política em 2005, vale destacar a entrevista com presidente Luís Inácio Lula da Silva, onde foram debatidos vários assuntos polêmicos que tiveram grande repercussão no dia do programa. Um total de 1500 internautas participaram com perguntas por email, a maioria dos questionamentos foram voltados para as questões políticas, o que correspondeu a 25% do total de emails enviados.
O debate não se encerrou ao final do programa. O assunto repercutiu no dia seguinte à entrevista concedida ao Roda Viva pelo presidente Lula, que estava na capa de nove jornais impressos analisados (12), sendo quatro veículos locais de Minas Gerais e os outros cinco de âmbito nacional. O assunto ganhou destaque principal na capa de oito dos nove jornais analisados, devido à importância e ao ineditismo da entrevista feita pela Roda Viva. Os temas destacados foram basicamente os mesmos, sendo o principal assunto a cassação do então deputado José Dirceu e a opinião do presidente sobre a existência do Caixa 2.
A repercussão nos jornais impressos continuou no dia nove de novembro com a participação, além dos colunistas dos jornais, dos leitores através das colunas de cartas. Para exemplificar, vale destacar o espaço do jornal Estado de São Paulo, intitulado de “Fórum de Debate”, onde 11 leitores do jornal, que assistiram ao programa, comentaram sobre a entrevista:
Depois de assistir a entrevista no Roda Viva, acho que Lula acredita em Papai Noel... (Adilson Gasparotto, São Paulo)/ Após observar bem o presidente Lula na entrevista ao Roda Viva cheguei à conclusão de que ele, como corintiano, é imbatível na política brasileira... (Silvano Corrêa, São Paulo)
O tema também foi debatido em rodas de discussão da sociedade e na internet. Um exemplo é a discussão do tema em uma comunidade do Roda Viva em uma página de relacionamentos da internet, onde participam de discussões sobre o programa 2719 pessoas. A repercussão da entrevista com o presidente Lula foi debatida por aproximadamente 150 internautas na comunidade. Nas discussões foram apresentadas diferentes opiniões, comprovando a importância que os assuntos abordados pelo Roda Viva adquiriram para a sociedade.
Assisti a entrevista e sinceramente esperava mais do programa, não ouve esclarecimento sobre as denuncias do dinheiro de Cuba, fiquei um pouco decepcionada. (Ana Claudia) / Uma coisa ninguém pode negar: esse programa foi o mais polêmico entre os 1000 do Roda Viva. (Franklin) / Não podia ser outro o nome do entrevistado pra essa edição histórica, parabéns RODA VIVA. (Renato)
Como exposto por Martín-Barbero (2002), a televisão é um espaço estratégico, a utilização feita pelo Roda Viva deste espaço gerou debates na mídia e na sociedade, sendo possível iniciar uma discussão teórica mais aprofundada sobre o papel da emissora para a construção de um espaço público mediatizado preocupado em ampliar a mídia como um espaço para pré-estruturar a esfera pública e formar cidadãos mais críticos, seguindo os princípios ligados a construção de uma televisão pública no Brasil.
As televisões públicas passaram e passam por dificuldades. Martín-Barbero (2002) argumenta que uma das saídas é a reconstrução do projeto público de televisão que, com base nas novas condições de produção, oferta, ofereça o reconhecimento da diversidade cultural, represente a pluralidade ideológico-política e propicie informação independente e inclusiva. Essa necessidade se justifica pela crescente fragmentação introduzida pelo mercado, sendo o modelo de TV pública uma opção mais preocupada em formar um público crítico.
Devido ao caráter comercial do mercado, incluindo o televisivo, mais do que nunca é importante debater e lutar pelo espaço da TV pública no Brasil. Neste contexto fica evidente a importância da participação da TV Cultura no processo de formação de um canal de televisão realmente público no país, apesar das limitações e características de ambivalência do canal apresentadas neste trabalho. A emissora pode ser um espaço para a inclusão dos públicos no processo comunicativo, e também um lugar de inscrição de novas cidadanias.
Apesar das dificuldades enfrentadas pela TV Cultura, ainda assim a emissora se destaca como veículo preocupado em atuar como espaço público mediatizado, propiciando espaços para um debate mais amplo e crítico dos temas relevantes para a sociedade. Na busca pela programação de qualidade, o grande desafio da emissora é conseguir aliar a qualidade de informação sem impor e excluir e, ao mesmo tempo, atender às exigências impostas pelo mercado, sem que isso interfira no conteúdo.
Como analisado nas edições do Roda Viva sobre a crise política do governo Lula, a participação do programa para a inclusão dos públicos na discussão sobre a situação política do país em 2005 foi muito importante como um espaço propício para a discussão mais aprofundada. Na série de programas analisados sobre a crise foi possível observar diferentes atores políticos e sociais envolvidos na crise participando de entrevistas e debates, espaço para os chamados “públicos fracos”, além da grande repercussão das entrevistas em jornais e na sociedade.
O Roda Viva se destacou na ampliação do debate sobre a crise, dando espaço para a discussão mais aprofundada, indo na contramão da “cultura do espetáculo”. Menos preocupado em responder o que é atual ou anacrônico, o programa parece acompanhar a crise política voltando-se para a discussão da gravidade do tema.
1 Tanto a natureza jurídica das emissoras educativas e culturais quanto as formas de financiamento do sistema e o controle público do serviço são fatores relevantes para se garantir a autonomia nas televisões públicas.
2 Mais informações sobre a Crise Política do Governo Lula acesse: http://www.midiaindependente.org/pt/blue//2005/07/323641.shtml.
3 O programa Roda Viva é um dos mais importantes programas de entrevista da televisão brasileira desde 1986, quando foi criado. Os convidados a participar do programa colocam-se diante de jornalistas e especialistas convidados para expor suas opiniões e esclarecer questões relevantes para a sociedade.
4 Segundo Mauro Wolf (1987) a Teoria Hipodérmica é baseada no pensamento político conservador do século XVIII e defendia uma relação direta entre a exposição às mensagens e comportamento – se uma pessoa é “apanhada” pela propaganda, pode ser controlada, manipulada, levada a agir. Esta teoria foi critica por vários trabalhos posteriores que avaliaram o efeito limitado dos meios de comunicação como o modelo de Lasswell em 1948.
5 O conceito usado por Martin-Barbero (2002), no livro Televisão pública: do consumidor ao cidadão, se refere às possibilidades para a democratização dos costumes e da cultura política, a partir dos meios de comunicação eletrônicos. Já Brian Martin (1998), chama atenção para um problema da esfera eletrônica, que é a limitação dos meios eletrônicos, que se caracterizam como conteúdos produzidos por poucos indivíduos se comparado com o número de receptores. A opção para ampliar a participação, segundo Martin, são os diferentes mecanismos de participação como escutar como a mídia constrói a realidade e participar de grupos de discussão sobre mídia.
6 Maia (2004) faz uma distinção entre “públicos fortes” e “públicos fracos”, a partir do poder de decisão de cada um. Os “públicos fortes” são aqueles grupos representantes do sistema político e às elites. Já, os “públicos fracos” são os sujeitos da opinião pública, desatrelados do poder de decisão.
7 A entrevista do ex-deputado Roberto Jefferson ao programa Roda Viva, dia 21/06/05, quase triplicou a audiência do programa, passando da faixa do 1,1%, para 2,9% da audiência. Além disso, a gravação em DVD do programa vendeu cerca de mil cópias, recorde entre os entrevistados políticos.
8 A milésima edição do Roda Viva foi exibida no dia 7 de novembro, sendo o escolhido para a importante ocasião histórica do programa o presidente Luiz Início Lula da Silva. O apresentador Paulo Markun destacou a importância da milésima edição ser com o presidente do país em um momento tão importante para a política brasileira. Nesta edição o programa não foi exibido ao vivo no tradicional estúdio do Roda Viva, e sim gravado no Palácio do Planalto, sendo os participantes ex-apresentadores do programa. Porém, o espaço para a participação do público com perguntas foi mantido.
9 A expressão mensalão foi difundida pelo deputado Roberto Jefferson, a partir de junho de 2005, quando ele afirmou ser a expressão conhecida pelos deputados para intitular o valor pago aos deputados que apóiam o partido e os aliados ao governo federal.
10 A TV Câmara é o canal de televisão em sistema fechado da Câmara Federal em Brasília que faz a cobertura jornalística das Comissões Parlamentares de Inquérito e audiências do órgão. O canal está acompanhando a crise através da exibição ao vivo das acariações e depoimentos dos envolvidos na crise política do governo Federal desde junho de 2005.
11 Vale destacar que a audiência da TV Cultura dentre as emissoras de canal aberto também não muito expressiva, girando entorno de 1,5%. Porém, a possibilidade de acesso do público não passa por restrições rígidas de acesso como as colocadas para os canais do sistema fechado.
12 Foram analisadas as capas do dia 8 de novembro dos jornais: Diário da Tarde, Estado de Minas, Hoje em Dia, O Tempo, Folha de São Paulo, Estado de São Paulo, Jornal do Brasil, O Globo e a Gazeta Mercantil.
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