A incorporação de novas fontes no ofício do historiador desde meados do século XX nos colocou um problema. Novas fontes implicavam em dominar novas linguagens. Isto permitiu um considerável avanço na disciplina tanto na perspectiva metodológica quanto na do conhecimento acumulado.
Por
outro lado, as questões que emergiram daí nos levam a repensar nossa
fonte tradicional: o documento. A noção de documento foi
(re)qualificada sendo associado à de monumento, através
da qual sua dimensão de intencionalidade e construção/artefato foram
enfatizadas. O documento deixou de ser visto exclusivamente como chave
e evidência que permitia equacionar questões e análise de processos,
mas ele próprio foi elevado à condição de problema e de processo. A
linguagem da fonte escrita passa ser tratada como um objeto ao invés de
uma simples janela para o passado (BURKE, 1993). A fonte e a história das fontes históricas tornaram-se preocupação.
A partir destas certezas uma terceira questão emerge no trato das fontes escritas: sua sintaxe e gramática.
A necessidade de dominarmos a linguagem das fontes emergiu quando da
incorporação de novos tipos de fontes. Agora é o momento de colocarmos
esta mesma questão onde ela parecia não ter procedência: nas fontes
escritas. Faz-se necessário incorporarmos toda uma discussão da
lingüística, sociolingüística e sobre a linguagem no trato das
mesmas. O caminho se revela profícuo se considerarmos diferentes
ensaios apresentados por Burke e Porter, nas coletâneas publicadas no Brasil (1993. 1997-a, 1997-b). A
questão se revela importante se considerarmos as análises apresentadas
por outros autores acerca da linguagem e seus efeitos na
definição/instituição de papéis, hierarquias, práticas e lugares
sociais.
A
importância da linguagem, analisada sob a perspectiva lingüística, como
procedimento fundamental para compreensão dos processos e ações sociais
foi destaca por Hymes.
“Você
trabalha com aquilo que as pessoas dizem e escrevem; elas fazem isto
por meio de estruturas e elementos que podem condicionar o que é feito é (sic), o que você considera seu material. Você poderia não atentar para esses elementos e estruturas, desconsiderando-os?” BURKE, 1993:433)
Esta
indagação pretende realçar a importância da linguagem na análise dos
processos sociais: 1) relação entre forma e conteúdo; 2) quem em que
condições comunica o que e a quem; e 3) a diferença entre escrita e
recepção.
Assim, configura-se uma área de estuda relativamente nova: a História Social da Linguagem.
A preocupação com a linguagem e seu lugar na cultura busca
problematizar o falar, o ouvir, a escrita e a leitura, enfim, a
comunicação entre os membros de uma sociedade. Algumas certezas
justificam esta problematização. O reconhecimento da linguagem como
instituição social, como parte da cultura e da vida cotidiana, que
constitui um meio para melhor compreensão das fontes orais e escritas
pela via da consciência de suas convenções lingüísticas e que as formas
de comunicação não são neutras (BURKE, 1995:10).
O
que se pretende então é buscar instrumental da lingüística e da
sociolingüística para uma crítica das fontes escritas que considere
forma, conteúdo, a relação entre ambos e desta com os diferentes grupos
sociais, bem como seus significados. Resumidamente as principais idéias
que se pretende buscar para esta análise são as seguintes:
1) grupos sociais diferentes usam variedades diferentes de língua;
2) os mesmo indivíduos empregam variedades diferentes de língua em situações diferentes;
3) a língua expressa a sociedade ou a cultura na qual é usada;
4) a língua molda a sociedade na qual é usada;
5) a forma (condições de enunciação) informa e é parte das mensagens.
A importância das palavras em uma conjuntura de mudanças foi destacada por Furet (1988) na
análise sobre a Revolução Francesa. O poder durante a Revolução
caracterizava-se por aparecer a todos como um vazio, disponível,
propriedade da sociedade, que devia investi-lo e submetê-lo às suas
leis. Além dessas mutações, a Revolução promove uma sacralização
inversa à do Antigo regime: o povo é o poder. Essa equação só pode
existir na e pela opinião, afirmará o autor. Neste caso, o discurso e a
palavra ocupariam papel central na Revolução, pois será através destes
que aquela equação será viável.
“A
palavra substitui-se ao poder como única garantia de que o poder
pertence ao povo, isto é, a ninguém. E contrariamente ao poder, que tem
a doença do segredo, a palavra é pública, e por isto submetida ela
própria ao controle do povo.”(FURET, 1988:75)
O resultado desta dinâmica seria a disputa para “saber quem representa o povo, ou a igualdade, ou a nação” (FURET, 1988).
“A
Revolução substitui à luta dos interesses pelo poder uma competição dos
discursos para apropriação da Legitimidade. Os seus dirigentes
desempenham outra ‘função’ para além da acção; são intérpretes da
acção.” (FURET,1988:76-77).
Em
que pese as especificidades da análise citada, a indicação de que na
luta pelo poder o uso da palavra pública ocupa uma posição primordial
nos parece útil para nossa questão. Ou seja, podemos afirmar que o
conflito político passa pela procura dos grupos em aparecerem como
portadores dos valores, virtudes, soluções e propostas,
representando-os. A luta e conflitos políticos seriam, assim, também
“luta entre representações, quer no sentido de imagens mentais, quer
naquele outro sentido de manifestações sociais destinadas a manipular
as imagens mentais” (BOURDIEU, 1998:108). O aparecer é constitutivo do ser, as representações são um momento reale imaginário, observa Chauí (1978:11);
“o mundo social é também representação e vontade; existir socialmente é
também ser percebido, aliás, percebido como distinto”, afirma Bourdieu (1998:112).Neste sentido as lutas sociais e políticas são também lutas permanentes para definir esta “realidade” (BOURDIEU, 1998:112).
Nesta
perspectiva o debate e conflito de falas nos quais podemos perceber
disputas pela atribuição do sentido do mundo social e das posições
políticas faz-se necessário aprofundar as análises com recursos da
sociolingüística. Discordâncias aparentes podem estar obscurecendo uma
concordância de suma importância: a dos termos da discórdia. Como
observou Bourdieu:
“Embora
os homens cultivados de uma mesma época possam discordar a respeito da
questão que discutem, pelo menos estão de acordo para discutir certas
questões. (...) O desacordo supõe um acordo nos terrenos do desacordo,
e os conflitos manifestados entre as tendências e as doutrinas
dissimulam, aos olhos dos que dele participam, a cumplicidade em que
implicam e choca o observador estranho ao sistema." (1987:207)
Se
a sugestão de Bourdieu nos permite enxergar o consenso por trás do
aparente dissenso, não nos autoriza a ignorar o dissenso real. Se há concordância quanto aos temas do desacordo, esses nem sempre devem ser entendidos da mesma forma, o que nos permite falar em desentendimento:
“Por
desentendimento entenderemos um tipo determinado de situação de
palavra: aquela em que um dos interlocutores ao mesmo tempo entende e
entende o que diz o outro. O desentendimento não é o conflito entre
aquele que diz branco e aquele que diz preto. É o conflito entre aquele
que diz branco e aquele que diz branco, mas não entende a mesma coisa,
ou não entende de modo nenhum que o outro diz a mesma coisa com o nome
de brancura.” (RANCIÈRE, 1996:11)
A
partir das sugestões desses dois autores podemos perceber uma situação
de disputa. De um lado, só há disputa quando há território ou valores
comuns (o acordo quanto ao desacordo) em torno dos quais se estabelece
uma contenda; por outro, neste território o desentendimento é possível
na medida em que sob os mesmos valores nomeados escondem diferentes de
substâncias. A situação de disputa configura-se quando o acordo dos
termos permite o a compreensão e o diálogo entre as partes, condição sine qua non para
que haja o desentendimento em torno das substâncias que se escondem sob
os nomes, ou seja, “a disputa sobre o que quer dizer”.
“Os
caso de desentendimento são aqueles em que a disputa sobre o que quer
dizer falar constitui a própria racionalidade da situação da palavra.
Os interlocutores então entendem e não entendem aí a mesma coisa nas
mesmas palavras. Há todas as espécies de razão para que um X entenda e
não entenda ao mesmo tempo um Y: porque, embora entenda claramente o
que o que o outro diz, ele não vê o objeto do qual o outro lhe fala; ou
então porque entende e deve entender, vê e quer fazer ver um objeto
diferente sob a mesma palavra, uma razão diferente no mesmo argumento.” (RANCIÈRE, 1996:12)
Em a Economia das Trocas Lingüística, Bourdieu (1998:81-125) discute
a representação como variável cons/instituinte do social, e suas
proposições nos parecem de grande relevância para o trabalho que
pretendemos fazer.
Na
construção do mundo social as palavras adquirem poder estruturante
(“sua capacidade de prescrever sob a aparência de descrever, ou então,
de denunciar sobre a aparência de enunciar”). A linguagem e os esquemas
de percepção e de pensamento por elas propiciados tornam-se poder
instituinte. As palavras tornam-se poderosas, capazes de orientar e
informar a percepção da realidade, por receberem o cetro: tornarem-se
falas autorizadas e serem reconhecidas como tais pelos ouvintes.
Sendo
assim, pretendemos fugir de uma concepção que opõe a objetividade de um
lado e o subjetividade de outro. Entendemos que as formas de perceber o
mundo social têm um efeito definidor do mesmo. Precisamos incorporar na
análise do social os feitos da teoria na própria constituição desta
dinâmica. Denuncia e enunciado, prescrição e descrição confundem-se nas
falas. Na instituição de uma nova percepção do social apresentada como
fundamentada na razão e/ou em valores, as novas representações
apresentam como enunciados e descrições o que pode ser percebido como
denuncias e prescrições. Isto é, escondem-se em uma suposta
objetividade racional, falas que são subjetivas e valorativas.
A
palavra, o ato de nomear, transforma o mundo exterior, material e
objetivo ao dotá-lo de significado (valor, utilidade, etc). Se isto é
verdadeiro para o mundo das “coisas”, dos objetos inanimados que nos
cercam, quanto mais para o universo das práticas sociais, as
representações podem contribuir para produzir o que aparentemente
descrevem (BOURDIEU, 1998:107). A ação política
“tem
como objetivo produzir e impor representações (...) do mundo social
capazes de agir sobre esse mundo, agindo sobre as representações dos
agentes a seu respeito. Ou melhor, tal ação visa fazer ou desfazer os
grupos (...) produzindo, reproduzindo ou destruindo as representações
que tornam visíveis esses grupos perante eles mesmo e perante os demais” (BOURDIEU, 1998: 117).
Decorre
disto que a subversão política é também uma subversão cognitiva, ou
seja, visa a destituir uma visão de mundo substituindo-a por outra,
romper com a ordem e produzir um novo senso comum.
Assim,
a linguagem é fator primordial na (des)construção do mundo social, nos
informando sobre aspectos fundamentais dos atores sociais na sua luta
por instituir e manter suas práticas, valores e interesses. A linguagem
é não só o suporte de diferentes idéias e conteúdos, mas é ela própria
aspecto constitutivo da idéia. Em sendo assim, ela assume, no nosso
caso, uma dupla significação: é fonte e objeto.
(Belo Horizonte, 2005)
BOURDIEU, Pierre. “Sistemas de ensino e sistemas de aprendizagem.” A Economia das Trocas Simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 1987.
BOURDIEU, Pierre. “Linguagem e poder simbólico”. A Economia das Trocas Lingüísticas – O que falar quer dizer. São Paulo: Edusp, 1998.
BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). Linguagem, Indivíduo e Sociedade. São Paulo: Unesp, 1993.
BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). História social da linguagem. São Paulo: Unesp/ Cambridge, 1997-a.
BURKE, Peter e PORTER, Roy. (orgs). Línguas e Jargões. São Paulo: Unesp/ Cambridge, 1997- b.
BURKE, Peter. A arte da conversação. São Paulo: Unesp, 1995.
FURET, François. Pensar a Revolução Francesa. Lisboa: Edições 70, [1988].
RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – Política e filosofia. São Paulo: Edit. 34, 1996.
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