O Ritual Antropofágico (Carlos Fausto)*

 

 

            “A festa começava alguns dias antes da execução propriamente dita, com a chegada dos convidados e o início das danças e cauinagens. Durante esse período, o cativo era preparado para execução num processo crescente de ‘re-inimização’: no dia que antecedia o massacre [...] encenavam uma tentativa de fuga do prisioneiro e sua captura. Era-lhe dado também o direito de vingar antecipadamente a própria morte: amarrado pelo ventre por uma grossa corda de algodão ou embira, chamada mussurana, recebia pedras, frutos, cacos de cerâmica, que deveria lançar contra a audiência, mostrando sua ferocidade e coragem [...].

            A manhã fatal chegava com o fim do cauim na noite anterior: bebida e comida não se misturavam – para os Tupinambá uma coisa era cantar e beber, outra matar e comer. Levado ao terreiro, pintado e decorado, preso pela mussurana, o cativo esperava seu carrasco que, portando um diadema rubro e o manto de penas de íbis vermelha, aproximava-se de sua presa, imitando uma ave de rapina. Recebia a maçã, a ibirapema, das mãos de um velho matador, e então tinha início o famoso diálogo ritual com a vítima [...] ‘Não sabes tu’, dizia o carrasco, ‘que tu e os teus mataram muitos parentes nossos e muitos amigos? Vamos tirar a nossa desforra e vingar essas mortes. Nós te mataremos, assaremos e comeremos’.

            Ao que replicava a futura comida dos raptores: ‘Pouco me importa [...] Tu me matarás, porém eu já matei muitos companheiros teus. Se me comerdes, fareis apenas o que já fiz eu mesmo. Quantas vezes me enchi com a carne de tua nação! Ademais, tenho irmãos e primos que me vingarão’.

            Após esse breve ‘colóquio’ em que cada parte reafirmava vinganças passadas e anunciava vinganças futuras, um golpe concreto e presente, desferido contra a nuca do cativo, rompia-lhe o crânio e lançava-o ao chão. De imediato, acudiam as velhas com cabaças para recolher o sangue que se espalhava. Nada deveria ser perdido, tudo precisava ser consumido e todos deviam fazê-lo: as mães besuntavam seus seios de sangue, para que seus bebês também pudessem provar do inimigo. Se a comida era pouca e muitos os convivas, desfrutava-se do caldo de pés e mãos cozidas; se, ao contrário, o repasto era farto, os hóspedes levavam consigo partes moqueadas.

            O único que não comia era o matador, que iniciava um período de resguardo, no qual deveria se abster de uma série de alimentos e atividades. Recluso, despossuído de seus bens pessoais, escarificado e tatuado, o homicida toamava, enfim, um novo nome que [...] só revelaria durante uma cauinagem no final do resguardo.”

 


 

Mulheres da Tribo pintando o Ibirapema e o rosto do prisioneiro para execução,

Theodore De Bry. São Paulo, Biblioteca Municipal Mário de Andrade

 

 

 

 

 * Extraído de FAUSTO, Carlos. Fragmentos de História e Cultura Tupinambá: Da etnologia como instrumento crítico de conhecimento etno-histórico. In: CUNHA, Manuela Carneiro da. (org.). História dos Índios no Brasil. Fapesp/ SMC: Companhia das Letras, 1992. (p. 391-392).