Dor e sofrimento alheio. Definitivamente não é sobre isso que se falará aqui. A tragédia veio e está. O pivô da narrativa. Mas e a estética? Há estética na representação do trágico? Para solucionar estas e outras questões procedeu-se uma discussão sobre a película O Pianista de Roman Polanski (2002). Pede-se que os leitores deste artigo sejam condescendentes e tenham bom senso quando se depararem com sentimentos de revolta, ou mesmo de um esgotamento insuficiente das questões aqui propostas. Obviamente, a Shoah, é uma página vergonhosa na história da humanidade, que tange ao irrepresentável, como veremos adiante. E é exatamente por isso que aqui não se falará da dor e do sofrimento alheio. Não há como definir o indefinível, explicar o inexplicável. Não há como saber a dor dos outros.
Cinema, tragédia, representação, estética.
O presente trabalho propõe reflexões acerca de um campo da estética que, apesar de datar dos estudos aristotélicos, muitas vezes é relegado a um segundo plano. Não por não merecer estudos de mais profundidade, mas, sobretudo porque, algumas vezes, tende-se a não constatar uma experiência estética em algo que invariavelmente causa repulsa, aversão, horror. Trata-se da tragédia.
É importante ressaltar que não se trata da tragédia humana cotidiana, a tangível. A estética contida no trágico depende de uma série de fatores para existir, como, por exemplo, sua fixação em um campo definido como o do palpável, não-ficcional, e o do imaginário artístico, conceitos que serão elucidados ao longo deste artigo. Perpassa, ainda, a relação que o homem estabelece com a desventura. A tragicidade [1] é uma característica inerente à condição humana.
O objeto de estudo selecionado para elucidar as diferenças existentes entre as relações que o homem funda com o trágico e como podem inspirar o prazer estético e o filme O Pianista de Roman Polanski (2002). Trata-se de uma metáfora da tragédia, uma representação da Shoah [2].
Para que isto seja discutido e ilustrado com clareza, a linha adotada por esta ponderação seguirá uma cronologia que propicie a contextualização do objeto em um determinado período da história. Assim serão levantados argumentos que consolidam a afirmação inicial de que, também na representação da tragédia, pode residir a experiência estética a medida em que, de acordo com Aristóteles, a tragédia suscita a compaixão e o terror. Tais conceitos serão aprofundados posteriormente.
Deslocando-se o eixo desta discussão para o campo dos estudos de Aristóteles, é plausível afirmar que este não enxergava na tragédia apenas a desgraça, o sofrimento e a tristeza. Ao contrário, o filósofo compreendia a tragédia como o ápice da arte.
Para embasar tal afirmação, Aristóteles alegava que a tragédia é capaz de colocar o ser humano em contato com seus aspectos primordiais e mais elevados. Isto porque a narrativa trágica carrega consigo um alto valor moral e de edificação. Em seu decorrer desditoso apresenta um outro ser humano, diferente daquele representado pela comédia. Assim, dizia que nem todo homem poderia representar um personagem trágico, mas somente aquele que compreende seus atos como detentores de um imenso valor moral.
O pensador avança, afirmado que a narrativa trágica com um desfecho infeliz colocaria o espectador em um estado de reflexão. Tal estado é caracterizado por Aristóteles como katharsis, que em grego é comumente traduzida como “purificação”. “Ao mostrar as paixões extremas, a tragédia libera o expectador da carga passional que lhe pesa e, desta maneira, exerce um efeito saudável deleitando ou com uma linguagem deleitosa [...]” (Vázquez, 1999:253). Em outras palavras, a experiência procedente da obra trágica é da ordem da comiseração e horror diante de uma imitação, ou reconstituição. Desta forma, se na vida real testemunhar uma situação trágica proporciona sensações de terror sem uma perspectiva estética prazerosa, na ficção produz um sentido catártico de depuração.
Entretanto, é importante deixar claro que Aristóteles entende que esse sentimento catártico depurador se origina do sentimento de compaixão pelo imerecido da desgraça sofrida por um determinado personagem. É bom lembrar que nem tudo merece compaixão.
Uma cena do filme que ilustra bem tais afirmações é o momento em que o oficial do exercito alemão é capturado pelos russos e se vê confinado em um cercado esperando para viver ou morrer. Alguns podem identificar este homem como merecedor de compaixão, por não ter delatado o pianista quando podia tê-lo feito. Ainda que isso não o redima de todas as atrocidades cometidas anteriormente, ao espectador, é ruim perceber que ele não será da mesma forma, salvo, pois o judeu que passa por ele não consegue ouvir seu nome para repeti-lo a Szpilman.
Em contrapartida, a imagem de todos aqueles carrascos que dizimaram milhões de vidas confinados no cercado, pode proporcionar ao espectador um sentimento de justiça. Assim, nem todo sofrimento é por si só trágico, é preciso, antes de tudo, conhecer o contexto, os elementos que levaram determinado personagem a um fim desditoso. Observa-se também, aí, um cunho fortemente ideológico, moralizador, valorativo ou religioso que pode ser ou não inerente a cada espectador.
O filme de Roman Polanski foi construído a partir de uma adaptação da biografia de Wladyslaw Szpilman, um polonês nascido em 1911, em Sosnowiec.
O filme tem início em 1939 em Varsóvia, na Polônia. Szpilman está trabalhando na rádio da cidade quando as primeiras bombas atingem a região. O pianista se recusa terminantemente a parar de tocar, e assim começa a encarnar o papel de “herói por acaso”. Será este o homem que sobreviverá a todos os percalços, tristezas e humilhações. É assim que ele se apresenta ao espectador.
Em 1492 Szpilman tem sua família deportada para morrer em um campo de concentração, enquanto, com a ajuda de um guarda também músico, precisa escolher entre viver e deixar sua família morrer, ou morrer com ela. Szpilman foge e é levado de volta ao gueto de Varsóvia.
Não se pode esquecer, no entanto, que se trata de uma representação do episódio, algo que só se aproxima da realidade, não se constituindo em um relato de fidelidade incontestável. Ao contrário, fica claro que o que Polanski retrata é a perspectiva fragmentada de um sobrevivente daquele horror.
O que se vê é o que os olhos de Szpilman vêem, o que se sabe é somente aquilo que ele sabe. Trata-se de uma perspectiva parcial do fato. Mais que isso, sua condição de produtor da subjetividade, que alcança através da música, acaba supostamente sendo uma das características que contribuem para que ele consiga suportar certas situações com as quais se depara. Assim, diversas vezes, Szpilman aparece tocando um piano imaginário que, em sua mente, produziria as melodias que conhecera antes da guerra.
A tez ingênua de Adrian Brody reforça ainda mais a idéia de que o pianista é despreparado demais para lutar por sua própria vida e de que só se salva pela força do acaso.
Durante toda a reconstituição, é possível enxergar uma perspectiva trágica que perpassa a obra. Entretanto, é relevante e interessante diferenciar o que relegaria tais fatos a uma perspectiva trágica.
Adolfo Sánchez Vázquez (1999) explica que, se as milhões de mortes ocorridas durante a Shoah forem tomadas como objeto de análise, elas poderiam ser identificadas como trágicas, visto que muitos daqueles que pereceram não tiveram escolha:
“Nessas relações humanas ocorrem situações, comportamentos, atos ou resultados de suas ações que podemos classificar de trágicos. Assim, por exemplo, são trágicos os amores dos jovens que, ante a impossibilidade de transpor os obstáculos insuperáveis que se opõem a sua união, optam – em um pacto suicida – por dar fim à vida (as crônicas da imprensa diária registraram mais de uma vez, esse acontecimento real); é trágico o destino da menina judia Anne Frank, que, escondida durante meses no sótão de uma casa holandesa sobe a ocupação nazista; acaba morrendo em um campo de concentração; ” (Vázquez, 1999:245-246).
A bibliografia acerca da Shoah elucida que os campos de concentração espalharam-se por toda a Europa, com novos campos sendo criados perto de centros de densa população judia, freqüentemente focando a elite intelectual polaca, comunistas, ou ciganos. A maior parte dos campos situava-se na área de Governo Geral.
Campos de concentração para judeus também existiram na própria Alemanha, no leste europeu e a maioria na Polônia. É relevante ressaltar que muitos prisioneiros dos campos de concentração morreram também por causa das más condições sanitárias. As epidemias proliferavam e exterminavam quase tanto quanto os campos de concentração. Alguns campos, tais como o de Auschwitz-Birkenau, combinavam trabalho escravo com o extermínio sistemático.
Ao chegar a esses campos, os prisioneiros eram divididos em dois grupos: aqueles que eram demasiado fracos para trabalhar eram imediatamente assassinados em câmaras de gás (que por vezes eram disfarçadas de chuveiros) e seus corpos eram queimados, enquanto que os outros eram primeiro usados como escravos em fábricas e zonas industriais localizadas nas proximidades do campo.
Os alemães também organizavam grupos de trabalho auto-sustentável entre os prisioneiros, para trabalhar na reciclagem dos cadáveres. Alguns relatos revelam que os dentes de ouro eram extraídos dos cadáveres e cabelos (raspado das cabeças das vítimas) antes de entrarem nas câmaras incineradoras. Acredita-se que o ouro era fundido e usado na confecção de jóias, enquanto que o cabelo era transformado em tecido, tapetes e meias, além da gordura, convertida em combustível.
Cinco campos — Belzec, Chelmno, Maly Trostenets, Sobibor, e Treblinka II — foram usados exclusivamente para o extermínio. Nestes campos, apenas um pequeno número de prisioneiros foi mantido vivo para assegurar a tarefa de desfazer-se dos cadáveres de pessoas mortas nas câmaras de gás. O transporte era feito em condições terríveis, usando vagões ferroviários de carga, abarrotados e sem quaisquer condições sanitárias.
Em contrapartida, há casos de desenlace, fracasso e infortúnio que, de acordo com Sánchez Vázquez (1999), ainda que tristes, não podem ser considerados trágicos. Como exemplo, pode-se citar os judeus que morreram no levante do gueto de Varsóvia ocorrido em 18 de abril de 1943. Este episódio, também relembrado no filme de Polanski, revela a resistência que se articulou para fazer frente a um massacre iminente, que havia sido planejado pelos alemães. Muitos dos judeus que lutaram morreram, mas morreram lutando, o que faz deles heróis e não vítimas. Desta forma, pode-se dizer que os que pereceram lutando tombaram heroicamente e não tragicamente, visto que conseguiram resistir de forma expressiva ao exército alemão, muito mais numeroso e equipado.
Porém, se a proposta for a de examinar a questão do extermínio em massa imposto aos judeus, que realmente aconteceu e perdurou por seis anos, não é possível encontrar em tais fatos uma perspectiva estética. O que se faz aqui é uma análise da representação artística de tais fatos. Aqueles acontecimentos remetem muito mais a sentimentos de ira, indignação e horror. Pode haver quem consiga encontrar prazer em ver Varsóvia em ruínas, ou mesmo uma montanha de cadáveres empilhados e prontos para a incineração, entretanto, também para Sánchez Vázquez (1999), isso configuraria uma relação perversa do ser humano com a tragicidade estética.
O cinema é, antes de mais nada, uma arte, um espetáculo artístico. É também uma linguagem estética, poética ou musical – com uma sintaxe e um estilo; é uma escrita figurativa, e ainda uma leitura, um meio de comunicar pensamentos, veicular idéias e exprimir sentimentos. Uma forma de expressão tão ampla quanto as outras linguagens (literatura, teatro, etc.), bastante elaborada e específica. Fazer um filme é organizar uma série de elementos espetaculares a fim de proporcionar uma visão estética, objetiva, subjetiva ou poética do mundo. Com coisas e não com palavras, numa linguagem que cabe a nós decifrar, o cineasta oferece-nos uma visão pessoal, insólita e mágica do mundo.
Gerard Betton
Para entender o trabalho de reconstituição metafórica dos fatos a que se propõe não só Roman Polanski como outros cineastas que escolheram retratar a Shoah, é preciso primeiramente entender o conceito de representação.
Santaella e Nöth apresentam este conceito a partir do seguinte raciocínio: O mundo das imagens deve ser dividido em dois. O primeiro domínio é o das imagens como representações visuais, tais como os desenhos, as pinturas e fotografias. Nesse sentido, imagens podem ser entendidas como materiais, signos de representação do meio ambiente visual. O segundo domínio é o imaterial, constituído por imagens mentais. Ambos domínios não podem existir separados, visto que não há representações mentais que não tenham surgido de signos materiais, e representações materiais que tenham surgido sem antes serem construídas no campo da imaginação.
O conceito de Representação é entendido como “sinônimo de signos, imagens, formas ou conteúdos de pensamentos”, já as mediações, se referem, grosso modo, “às nossas práticas sociais, à nossa inserção na cultura, na história e no cotidiano” (França, 2003:3). Devemos trabalhar, portanto, com os dois conceitos, representação e mediação, para entender o que são as imagens e a forma com que os espectadores lidam com ela.
Partindo do entendimento do que são as representações constatou-se que este conceito está ligado à apresentação e à imaginação.
Após essa breve elucidação sobre o conceito de representação, a presente análise transporá a definição para o contexto do filme, à procura de estabelecer conexões que endossem as idéias que serão propostas adiante.
No decorrer da película, Szpilman testemunha e algumas vezes protagoniza situações verdadeiramente dramáticas. O pianista se vê às voltas com diversos personagens que possuem algo em comum: a tragédia em suas vidas.
Neste momento, é prudente retomar a discussão sobre a noção de irrepresentabilidade. Apesar de se tratar de uma produção européia O Pianista utiliza-se sensivelmente de um fetiche hollywoodiano no desenrolar de sua trama. Em determinadas passagens é plausível afirmar que o diretor tentar conferir à narrativa um caráter documental, uma “verdade” que, ainda que ele mesmo tenha presenciado, merece ser traduzida à luz de uma contemplação mais cautelosa.
Ora, eis a Shoah: um sem fim de homicídios, tortura, expropriações, extermínio. Será mesmo possível para quem assiste ao filme ter uma leve noção do que realmente aconteceu naquele período. A dor alheia, o sentimento de impotência diante dela e, mais que isto, a imobilidade ante o inevitável, não parece ser algo tão simples de ser representado.
Por mais que se trate de uma narrativa sobre um fato histórico, ainda assim é cinema, reconstituição, representação, edição. Ainda assim é impossível, mesmo diante de cenas hediondas, mensurar o que tudo aquilo, de fato, significou. Conforme elucida Jean-Louis Comolli, as telas funcionariam, também, como “[...] superfícies do apagamento, tanto quanto de inscrição[...]” (Comollie, 2001: 3). Não seria possível, por conta disso, consultar o filme como um documento, sobretudo pelo fato de que, ainda que tenha como referência o acontecimento tangível, desenrola-se no campo do ficcional e do construído. Talvez, em alguns momentos, tais características até mesmo facilitem a experiência estética na tragicidade. Afinal, é compreensível que se sinta esteticamente estimulado quando é possível estabelecer um afastamento daquele determinado contexto, ou seja, “é lamentável, eu me compadeço, mas esta tragédia não me pertence”.
Como exemplo, pode-se tomar a cena em que, antes que embarquem nos trens para os campos que matariam seus pais, duas irmãs e um irmão, o personagem principal divide com eles um caramelo cortado em seis pedaços. O que é construído para parecer a última refeição feita pela família reunida, acaba por se transformar em uma cena que espetaculariza o sofrimento e tenta emocionar o espectador por meio de clichês que chegam tomar ares cômicos. Ora, um caramelo não mata a fome de uma pessoa, quanto mais de seis.
Outro recurso utilizado pelo diretor é o de usar cenas curtas para compor a trama. Em cada uma dessas cenas é possível contemplar um drama pessoal, uma desventura vivida pelo personagem principal ou mesmo por figuras que perpassam a narrativa, possivelmente como tentativa de relegar a ela uma densidade emocional e, mais que isto, cativar o espectador para que ele a acompanhe até o seu desfecho.
A criança que tenta escapar pelo buraco no muro e morre espancada, o paraplégico que é arremessado da sacada pelos soldados, a mãe que sufoca seu próprio bebê por medo de ser descoberta, a senhora que cambaleia fantasmagoricamente pela multidão a procura de seu marido desaparecido.
Em outra passagem, os judeus que não haviam sido levados para os campos de extermínio e estavam sendo usados como mão-de-obra escrava na cidade estão terminando um dia de trabalho e preparam-se para voltar para o gueto de Varsóvia. Antes, porém, um oficial alemão ordena que oito homens dêem um passo a frente e fiquem deitados de peito para o chão. Em seguida procede ao fuzilamento de um por um em uma cena que dura cerca de 30 segundos. Há, porém, durante a cena uma passagem que chama bastante atenção pela dramaticidade com que é conduzida. Ao se deparar com sua última vitima, o algoz percebe que sua munição acabou. Assim, calmamente recarrega o resolver em uma seqüência que dura 13 segundos, enquanto o personagem aguarda para ser executado.
É aceitável afirmar que a cena parece ser constituída para criar uma atmosfera de incerteza, além da sensação de que, para os personagens que vivenciaram-na, a situação pareceu ter durado uma eternidade. Ora, isto é cinema. Quantos planos, quantas seqüências chegam a durar horas? Tem-se novamente, mais um exemplo de superficialidade na representação do tema escolhido por Polanski. Este recurso que pode, muitas vezes, ocasionar uma fragmentação da narrativa, Comollie (2001) define como zapping generalizado:
“Passar, partir, voltar e passar de novo. Não permanecer no lugar, numa duração, numa cena, num cenário, numa idéia, num tema, num motivo, numa decisão, num argumento, mas ir e vir, começar e acabar. Etambém: golpear repentinamente, jogar na cara as afirmações, multiplicar as imagens-choque, emitir pequenas frases, fazer cintilar toda uma explosão de planos breves [...] Pólvora permantente aos olhos da montagem espetacular [...]” (Comollie, 2001: 3)
Esta lógica da fragmentação é um recurso que perpassa toda a narrativa: o Jump-cut. Utilizado livremente nos documentários, este artifício consiste em uma interrupção no contínuo temporal. Desta forma, a narrativa saltita dentro de seu enredo e estilhaça aparentes propósitos, sentidos e situações. Terror e sangue, cadáveres espalhados pelas calçadas, ignorados pela multidão faminta e desesperada, funcionam claramente como aquilo que realmente são: elementos dispersos na trama, montagens, alegorias, que se distanciam das reais vítimas da Shoah.
Os diálogos também são curtos e fragmentados, tal a durabilidade das cenas. É como se os personagens só se comunicassem por meio de recados, quase que telegráficos. É desta forma que Polanski segura o fio que conduz sua narrativa e, com ela, o espectador.
Paralelamente, após esta cena, podem-se apontar diversos elementos que colaboram para a criação de uma obra do estético trágico. A situação angustiante dos personagens diante da morte iminente, a fila de soldados anônimos e inexpressivos que não faz outra coisa a não ser contemplar a ocasionar a desgraça alheia. Os judeus que não foram escolhidos para morrer naquela hora, precisam continuar na agonia constante e cotidiana de não saber qual será o dia de sua morte e se ela realmente virá ou não. Todas estas perspectivas acabam por induzir o espectador a uma espécie de compaixão. Desta forma, o público simpatiza com aqueles que vão morrer, com sua tragédia, se compadecendo de sua desventura.
No filme, Polanski, que perdeu a mãe em um campo de concentração e vagou durante a guerra pelo gueto de Cracóvia, até reencontrar seu pai, constrói seu auto-retrato com a ajuda de um outro auto-retrato. Tanto no livro como no filme, o pianista desperta diversos sentimentos nos espectadores.
Quem assiste ao filme não fica imune aos apelos feitos e ao sentimento de comiseração por todos aqueles que morrem antes mesmo de serem conhecidos pelo espectador. Mais que isso, é plausível descrever um sentimento de revolta e repulsa que se abate sobre aqueles que contemplam a obra.
Assim, pode-se afirmar que, de acordo com o que elucidou Aristóteles encontra-se no filme de Polanski uma perspectiva estética no trágico. Isto porque, além da tragédia apresentada, da desgraça e do infortúnio de um povo ali retratado, encontra-se a esperança de um homem que luta para continuar vivo. Além disso, mesmo aqueles que morrem ou optam pelo sacrifício de forma heróica têm sua condição humana exaltada e enobrecida de forma a inspirar humanização e compaixão. Observa-se então a katharsis, a purificação, e, enfim, a experiência estética.
Como foi dito na introdução, a Shoah, é uma página vergonhosa na história da humanidade, que tange ao irrepresentável. Em muitos momentos do filme de Polanski a dor alheia é espetacularizada, o que culmina com uma trama superficial que beira ao dramalhão. Usando de artifícios diversos, o diretor apela para a emoção fácil, o que faz com que o tema seja, em algumas passagens banalizado. Assim, é pertinente concluir este trabalho relembrando uma passagem que exprime essa impossibilidade de se representar o sofrimento do outro fielmente.
Após sua trajetória desditosa Szpilman se animaliza, desprendendo-se de sua condição humana e, sobretudo de músico. Parte de sua identidade, e talvez, a parte mais proeminente, é subtraída durante os anos em que perdurou a guerra. Questionado pelo oficial alemão acerca de sua formação intelectual, Szpilman apenas responde: “_Eu sou... Eu era um pianista...”. Afinal, o que é não ser mais aquilo que se foi um dia? É possível recuperar um pouco do que se foi?
Aqui, o cinema registra ou tenta registrar algo que não lhe pertence, algo que é mais forte que ele e que as pessoas envolvidas na confecção do filme. Tudo aquilo aconteceu e não há como encontrar uma proporção entre o que foi mais fiel ou não á realidade. O que se sabe é que a dor dos outros ainda é muito difícil de entender, quanto mais de explicar.
No fim, a experiência estética se deu, porém de uma forma claramente conduzida e balizada. Polanski, como sobrevivente da Shoah, mostrou o caminho. Os atores que trabalharam no filme, em especial, Brody, fizeram exatamente o necessário para comover platéias no mundo inteiro. E isto aconteceu. Possivelmente, não do jeito que eles contaram.
1 Termo usado pelo autor Adolfo Sänchez Vázquez no livro Convite à Estética (1999).
2 Shoah em língua iíndiche significa calamidade, sendo o termo deste idioma para o holocausto. É usado por muitos judeus e por um número crescente de cristãos devido ao desconforto teológico com o significado literal da palavra, que tem origem no grego e conota higienização por incineração.
AUMONT, Jacques... et al. A Estética do Filme. São Paulo: Papirus, 1995.
COMOLLI, Jean-Louis. Fim do fora-de-campo?. Belo Horizonte, 2001
BETTON, Gerard. Estética do Cinema. São Paulo. Martins Fontes, 1983.
DEVIRES – cinema e humanidades/ Universidade Federal de Minas Gerais. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (Fafich) – v.3 n.1 (2006) – Anual.
NÖTH, Winfried & SANTAELLA, Lúcia. Imagem: cognição, semiótica e mídia. São Paulo: Iluminuras, 1998.
PAZZINATO, Luiz Alceu & SENISE, Maria Helena Valente. História moderna e contemporânea. São Paulo: Ática, 1995.
SÀNCHEZ Vázquez, Adolfo, 1915; tradução Gilson Baptista Soares. Convite à Estética– Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1999. O Pianista (The Pianist, França, Alemanha, Polônia, Inglaterra, 2002, 148 minutos).