O artigo discorre sobre a narrativa gonzo jornalística de Hunter Thompson na obra Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas. As relações entre jornalismo e literatura, as considerações sobre o livro-reportagem e o jornalismo convencional, bem como a análise do contexto social em que o gonzo jornalismo teve a sua gênese são discutidas na introdução deste artigo. Posteriormente, aborda-se as técnicas de tratamento da linguagem, a subjetividade extrema e a imersão cálida do jornalista no objeto de sua reportagem, o que delineia uma experiência que confere autenticidade à narrativa.
gonzo, jornalismo, experiência, subjetividade
Função informativa é, pois, o primeiro e precípuo fim do jornalismo. É para isso que o jornalista tem de estar a par das coisas. [...] É para isso que ele tem de viver no meio dos acontecimentos, em pleno fluxo vital. [...] É nadando que melhor poderá informar sobre as ondas. [...] O jornalista é o homem mergulhado no Entwuif (Heidegger), no Project (Sartre), na Potência (Aristóteles-Tomás), no Fenômeno (Kant), no Vir-a-Ser, no Devenir dos filósofos evolucionistas do século passado, no Elan-Vital (Bergson), em tudo o que os filósofos exprimem, diferentemente, como sendo o domínio do Acontecimento e da Ação.
Alceu Amoroso Lima
A história da permutação do jornalismo com o poder arrebatador da arte – manifestado pela incorporação de elementos da literatura – se transcende no espaço e se dissipa no tempo. A Crónica Geral do Reino de Portugal, de Fernão Lopes (13--), em que o escritor alia a investigação à preocupação pela busca da verdade, ou mesmo a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500) à coroa portuguesa sobre o descobrimento da Ilha de Vera Cruz podem ser considerados relatos jornalísticos. Assim como a cobertura feita por Euclides da Cunha da guerra de Canudos (1896-7) para o jornal Estado de S. Paulo, que deu origem ao livro Os Sertões, um marco do jornalismo e da literatura.
Já na década de 1960, os maiores expoentes do jornalismo literário eram Truman Capote, Tom Wolfe, Gay Talese, Jimmy Breslin, Lillian Ross e Norman Mailer, considerados os precursores do new journalism. Esses jornalistas opunham-se ao esquema de pirâmide invertida e ao texto superficial e impessoal corrente na época. Utilizando recursos de observação e redação inspirados pela ou originários da literatura, o new journalism trouxe de volta à tona a prática da “grande reportagem”. Talese explicou que procurava captar o que os personagens estavam pensando, no momento em que escrevia sobre eles. “Não se tratava, porém, de inventar, mas sim de penetrar no íntimo dos indivíduos focalizados na reportagem” (ERBOLATO, 1991, p. 44). Em A sangue frio, obra de 1963, Capote combina a técnica literária do romance com o estilo jornalístico e rompe com a idéia de objetividade existente no jornalismo, mantendo uma perspectiva humanista em sua abordagem, contrariando o distanciamento do jornalismo praticado na época. Após dedicar seis anos para redigir o livro, Capote tipificou a obra como novela não-ficção, baseada em fatos reais – o assassinato de uma família e os seus desdobramentos. Segundo o escritor e jornalista, “o jornalismo é a mais subestimada, a menos explorada das formas literárias” (CAPOTE apud GHIVELDER, 1971, p. 23). Reinaugurava-se a construção de narrativas romanescas, de situações e reações pelas quais o repórter passou, com intenso viés sociológico. Em entrevista a uma publicação hebdomadária, o expoente da “literatura não-ficção” – termo cunhado pelo próprio autor –, afirmou:
Creio que uma reportagem possa ser feita de forma tão interessante e tão artística quanto a ficção. Não quero dizer com isto que uma forma seja superior à outra. Mas penso que a reportagem criativa foi negligenciada e que ela tem grande importância na literatura do século vinte (CAPOTE apud GHIVELDER, 1971, p. 23).
Vertente peculiar do new journalism, o gonzo jornalismo foi criado no final da década de 60 pelo jornalista Hunter Thompson e acrescentava marginalidade e subversão ao estilo de Capote, Talese e Wolfe. Inversão dos paradigmas estabelecidos pela grande mídia, como completo desprezo à pirâmide invertida, provocação à sociedade, humor sarcástico, bizarrices escatológicas, anarquia e liberdade criativa, são princípios indeléveis do gonzo jornalismo. Partindo da premissa de William Faulkner de que “a melhor ficção é infinitamente mais verdadeira que qualquer tipo de jornalismo”, Thompson escarnece com a idéia de que o jornalista deve buscar a objetividade. Pelo contrário, suas matérias são subjetivas ao extremo, trata-se de um ser humano relatando suas experiências. Se o new journalism utilizava a técnica antropossociológica da observação participante, o gonzo institui a participação observante, na qual o repórter torna-se o protagonista da reportagem.
O resultado é tão instigante e improvável que um amigo, ao ler um manuscrito do Dr. (como Hunter ficou conhecido), disse, admirado e confuso: ‘Cacete! Isto está completamente... Gonzo!’ Nenhum deles sabia o que a expressão queria dizer, mas era um rótulo engraçado. A partir de então, Thompson passou a dizer que faz jornalismo gonzo (THOMPSON, 2004).
No Brasil, o colunista da revista Trip Arthur Veríssimo é o repórter que mais se assemelha ao estilo gonzo. Contudo, existem obras pontuais de autores como o diretor de redação do jornal Folha de S. Paulo, Otavio Frias Filho, que em 2004 lançou o livro-reportagem Queda livre – ensaios de risco. Frias classifica a obra como “investigações participativas”, mas representam também o que ele denomina como “descidas até os círculos do inferno pessoal” (FRIAS, 2003).
Em um trabalho de suor, sangue e gasolina, o jornalista estadunidense Hunter Thompson narra um período de convivência de cerca de 18 meses com um bando de motociclistas californianos fora-da-lei denominados Hell’s Angels [Anjos do Inferno], no livro-reportagem Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas . Trata-se da obra de estréia do jornalista, publicada em 1966 – época do ápice contracultural. Impregnado de técnicas literárias, antropossociológicas e até mesmo cinematográficas, o citado livro, salvo algumas exceções, é considerado o marco iniciativo do gonzo jornalismo.
Uma forma de jornalismo em que o repórter é chamado para fazer um artigo sob encomenda [...] mas acaba escrevendo uma curiosa forma de autobiografia. Não se trata de uma autobiografia no sentido usual, porque o escritor se coloca na ação sem outro motivo que o de escrever algo. O tema acaba por ser puramente casual e o escritor tem de usar o talento para enganar o leitor, fazendo com que aquilo pareça fascinante. Hunter Thompson é o mestre desta forma, que se denomina gonzo jornalismo (WOLFE, 1976, p. 95).
Os axiomas e postulados do gonzo são indissociáveis à história pessoal de seu criador, Hunter Stockton Thompson. Nascido em julho de 1939 no estado sulista estadunidense do Kentucky, cidade de Louisville, Thompson possui obsessão por três macro-temáticas: política, sexo e drogas. Como Hemingway, que tanto o influenciou, Thompson pôs, ele mesmo, um fim em sua vida; suicidou-se em fevereiro de 2005, com um tiro na cabeça.
O jornalismo gonzo é uma vertente distinta e anárquica do new journalism. O gênero estilístico criado por Hunter Thompson é, desse modo, caracterizado pela maximização e radicalização das características do estilo inaugurado por Wolfe, e, somado a isso, possuinte de um forte viés antiideológico. Além disso, o new journalism, e, por conseguinte, o gonzo jornalismo, podem ser considerados manifestações literárias de caráter informativo, que procedem sob o influxo das longas e detalhadas pesquisas de campo que os escritores de romances de realismo social faziam nos anos 30, como Ernest Hemingway, James Cain, John dos Passos, John Steinbeck, Scott Fitzgerald e William Faulkner. Esses gêneros jornalísticos são influenciados, ainda, pela literatura de ficção européia do século XIX, representada por escritores como os franceses Gustave Flaubert e Honoré de Balzac.
Após os tópicos tratados nesse prolegômenos, relevantes para fornecer ao leitor subsídios para uma melhor compreensão da temática abordada, o desenvolvimento deste artigo versará sobre a questão da experiência, em que serão utilizados aportes conceituais de autores como Walter Benjamin, Silviano Santiago e Bruno Leal.
O declínio da arte de narrar é tratado pelo filósofo da Escola de Frankfurt Walter Benjamin no artigo “O narrador: considerações sobre a obra de Nikolai Leskov”, de 1936. Benjamin disserta que, uma vez substituídas por formas expressivas diferenciadas, como o romance e a informação jornalística moderna, “a arte de narrar está em vias de extinção” (BENJAMIN, 1994, p. 197). Ou seja, com o conjunto de transformações promovidas pelo sistema capitalista, a arte de contar a mesma história oralmente, geração após geração, cedeu lugar às novidades. Outrossim, o declínio da experiência (concernente à memória e à tradição) corresponde a uma intensificação da vivência (relativa à mera vivência individual) no universo da modernidade, em que o gradativo depauperamento da memória faz com que o homem perca o liame com a tradição.
Utilizando uma acepção ampliada do conceito de narrador alvitrado pelo filósofo germânico no artigo “O narrador pós-moderno”, o crítico literário Silviano Santiago discorre acerca do distanciamento experiencial. Segundo Santiago, o narrador jornalístico – reconhecido por rechaçar a experiência – é paradigma cabal da tese do narrador pós-moderno. É a noção de autenticidade que está em pauta, pois o narrador pós-moderno “[...] narra a ação enquanto espetáculo a que assiste (literalmente ou não) da platéia, da arquibancada ou de uma poltrona na sala de estar ou na biblioteca; ele não narra enquanto atuante” (SANTIAGO, 1989, p. 39). Desse modo, o narrador de Santiago difere do clássico narrador benjaminiano, que narra imerso no fluxo de suas próprias experiências, transmitindo uma sabedoria – “o conselho tecido na substância viva da existência” (BENJAMIN, 1994, p. 200). Como se quer demonstrar, o narrador pós-moderno está consciente de que o real e o autêntico são construções lingüísticas, bem como de que a ação relatada é produto de observação, porquê deriva de uma vivência alheia a ele. Tal narrador seria, pois, uma espécie de leitor qualificado, um articulador do olhar.
Ao considerar que o jornalismo é um modo de ver, um olhar construído na torrente da história, o pesquisador Bruno Leal (2006) assevera que a credibilidade do relato depende, de modo intenso, da verossimilhança – o que tende a tornar a narrativa homogeneizada, marcada pelo caráter formulaico dos textos jornalísticos. Um relato frio e desapaixonado na maior parte das vezes, “[...] transformando o narrador num olhar vazio, tal o distanciamento do relato e da matéria narrada” (LEAL, 2006, p. 3). Para o referido autor, “a emergência dessas narrativas prontas, pré-fabricadas, ao invés de valorizar o jornalista como contador de histórias, faz que este se apague e veja diminuída sua capacidade narrativa” (LEAL, 2006, p. 4).
Os princípios de objetividade, factualidade e isenção, dos quais o jornalismo hodierno faz tanto alarde, conforma-o a uma lógica produtiva estandardizada, a uma uniformização das experiências sob um olhar absoluto redutor e, por conseguinte, tende a maximizar o vazio da narrativa. Ao “experienciar” e narrar, Hunter Thompson resgata um saber e aponta para um transcendente, além do aqui e agora – a que Leal (2006) se refere. É no desvelar das entranhas da América que a experiência thompsoniana engendra no relato gonzo jornalístico uma aura de autenticidade.
Os elementos e métodos captatórios diferenciados utilizados por Hunter, entre eles, a “participação observante” – uma imersão cálida do jornalista no universo reportado – configuram uma captação de certo modo caótica do autor, no processo de elaboração da narrativa. As técnicas de tratamento da linguagem, verificada na redação contingente do autor, bem como a descrição das técnicas e do registro empregado são resultado do fluxo de experiências pelas quais Thompson atravessou. A sistematização dos elementos caracterizadores do gonzo jornalismo na obra Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas tem o intuito de demonstrar de que modo ocorre a experiência do narrador e como tal experiência promove uma ruptura com o periodismo praticado na grande imprensa.
No new journalism, segundo Tom Wolfe (1973), o processo de captação atingiu um nível até então só presenciado na melhor literatura de ficção de autores clássicos consagrados, como Honoré de Balzac, Dostoiévski e Charles Dickens.
O prêmio mais cobiçado dos escritores free-lancers daquele ano foi para um obscuro jornalista da Califórnia chamado Hunter Thompson, que ‘se enturmou’ com os Anjos do Inferno por dezoito meses – como repórter, não como integrante, o que teria sido mais seguro – a fim de escrever Hell’s Angels: the strange and terrible saga of the outlaw motorcycle gang. Os anjos fizeram o último capítulo por ele, ao deixarem-no meio morto de pancada numa estalagem a cinqüenta milhas de Santa Rosa. Por todo o livro, Thompson buscara o insight psicológico que resumisse tudo o que ele havia visto, o aperçu único e dourado; e enquanto jazia no chão cuspindo sangue e dentes, o que procurava há muito veio-lhe num brilhante instantâneo do coração das trevas: “Exterminem os brutos” (WOLFE, 1973, p. 26).
Além da entrevista, da observação e da documentação realizadas em uma produção jornalística convencional, a construção do livro-reportagem Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas experimenta formas diferenciadas de captação, pois está “liberto da objetividade reducionista e puramente tecnicista que habitualmente impera na imprensa regular” (LIMA, 1995, p. 84).
Observe como Hunter relata o início do seu contato com os motoqueiros: “Eu conheci uma meia dúzia de Angels de San Francisco numa tarde no bar de uma espelunca velha chamada DePau Hotel [...]. Meu contato foi o Frenchy, um dos menores e mais malandros dos desordeiros” (THOMPSON, 2004, p. 54). E prossegue: “Quando o jogo de sinuca acabou, Frenchy se sentou na frente do balcão e perguntou o que eu queria saber. Conversamos por mais de uma hora, mas seu jeito de conversar me deixava nervoso” (THOMPSON, 2004, p. 55).
A captação/apuração espontânea e de certo modo intuitiva, só é conseguida após a conquista da confiança dos companheiros, como pode ser conferido no trecho que segue: “Numa festa muito tempo depois que conheci os Angels, quando eles já não estavam se incomodando mais com a minha presença, eu presenciei algo que ainda não se definiu [...] entre uma orgia sexual amigável ou um estupro coletivo completo” (THOMPSON, 2004, p. 194). Ainda sobre esse episódio:
Eu guardo um papel amassado e amarelado com anotações sobre aquela noite. Nem tudo o que está escrito é decifrável, mas uma parte diz o seguinte: “Garota bonita, mais ou menos 25 anos deitada no piso de madeira, dois ou três em cima dela o tempo todo, um ajoelhado em suas pernas, um sentado no seu rosto e mais alguém segurando seus pés... dentes, línguas e pêlos pubianos, pouca iluminação numa cabana de madeira, suor e sêmen brilhando nas suas coxas e na barriga, vestido vermelho e branco puxado até o peito... pessoas em volta gritando, sem calça, esperando pela primeira, segunda ou terceira vez... garota estremecendo e gemendo, sem oferecer resistência, agarrando, parece bêbada, incoerente, sem saber de nada, se afundando...” (THOMPSON, 2004, p. 194).
Após a enumeração caótica proferida, o Dr. Gonzo finaliza garantindo que “No total, ela foi penetrada de várias maneiras pelo menos cinqüenta vezes, provavelmente mais” (THOMPSON, 2004, p. 194).
Enfim, no new journalism, segundo Tom Wolfe (1973), o processo de captação atingiu um nível até então só presenciado na melhor literatura de ficção de autores clássicos consagrados, como Fiódor Dostoiévski e Charles Dickens. Mas, ao invés dos sofisticados recursos de captação do new journalism e da captação essencialmente telefônica do jornalismo convencional, o gonzo jornalismo prima pela espontaneidade e até mesmo pela urgência.
A coleta de dados no gonzo se desenvolve por meio de anotações e esboços desleixados, rascunhos e um gravador, que Thompson, por sinal, sempre carrega consigo: “Entre uma travessia de riacho e outra, eu me divertia contando para o gravador como era esquisito estar seguindo uma gangue de psicopatas da cidade grande num lugar como aquele” (THOMPSON, 2004, p. 128). Em determinado momento, quando Ginsberg e Hunter aproximam-se de policiais: “A nossa idéia era chegar à cena da apreensão com um gravador [...]” (THOMPSON, 2004, p. 233). O gonzo jornalista chega a ponto de utilizar o instrumento como um artigo de proteção: “Fiz questão de falar no meu gravador, na esperança de que, ao verem isso, não atirassem em nós três perante uma ordem repentina pelo rádio de ‘tomar a atitude apropriada’” (THOMPSON, 2004, p. 132).
Apesar de primar pelo imediatismo e espontaneidade, Hunter percebe detalhes que pessoas comuns não conseguem captar: “Dadas as circunstâncias, eu prestei atenção na sua voz para ver se identificava nela um tom que denunciava uma certa loucura” (THOMPSON, 2004, p. 149). Numa demonstração de captação praticamente intuitiva, Hunter conversa ao telefone com o prefeito da Lacônia: “Quase na metade da nossa conversa, eu senti um forte cheiro do fator metamorfose, mas eu não estava preparado para o toque especial que o prefeito daria nele” (THOMPSON, 2004, p. 226).
Hunter referindo-se a dificuldades que ocorrem durante a apuração: “Uma noite eu tentei marcar um encontro com um jovem Angel chamado Rodger, um ex-DJ. Foi impossível. Ele não fazia idéia de onde estaria de um dia para o outro” (THOMPSON, 2004, p. 154).
O capitão, que estava refletindo sobre as credenciais de imprensa falsas que eu havia lhe dado, disse então que não poderíamos ir embora. Isso motivou uma longa discussão, que tinha a ver com a liberdade de imprensa, o direito do cidadão de comprar cerveja em qualquer horário legal e a possibilidade de que os Angels fossem procurar cerveja por conta própria caso nos mandassem de volta (THOMPSON, 2004, p. 182).
Continuamente, o autor reflete sobre o processo captatório: “Por volta das onze, eu me retirei para o carro e trabalhei nas minhas gravações durante algum tempo, mas o meu monólogo era constantemente interrompido por pessoas enfiando a mão pelas janelas de trás e tentando abrir o porta-malas à força” (THOMPSON, 2004, p. 170).
Devido às liberdades de tempo, fontes e espaço que o gonzo jornalismo desfruta, é possível, por exemplo, a comparação de um relatório oficial, emitido pela Procuradoria Geral do Estado da Califórnia, com depoimentos de fontes não-oficiais, como o da senhora Whitright, que teve contato com os Angels e ocupa espaço considerável, de cerca de uma página. Algo que não ocorreu em outras publicações da grande imprensa.
Além da entrevista, da observação e da documentação realizadas em uma produção jornalística convencional, na construção do livro-reportagem presentificam-se elementos de captação diferenciados como a observação participante, uma modalidade de captação trazida das ciências sociais. “Pela reconstrução que faz o narrador, é ultrapassado o limite seco, diminuto, da informação nua e chega-se a uma dimensão superior de compreensão tanto dos atores sociais como da própria realidade maior em que se insere a situação examinada” (LIMA, 1995, p. 99). Os jornalistas tentam viver, na pele, as circunstâncias e o clima inerente ao ambiente de seus personagens, por meio de um “mergulho e envolvimento total nos próprios acontecimentos e situações” (LIMA, 1995, p. 96).
Mais do que um mero espectador passivo, o gonzo jornalista vivencia a experiência, participa de uma imersão extrema no objeto de suas reportagens, ultrapassando os limites da observação participante da antropologia. Faz-se necessária a instituição de um novo termo para qualificar a forma de captação instituída pelo gonzo jornalismo, a “participação observante”: “No meio do verão, eu tinha me envolvido tanto com o ambiente dos desordeiros que não tinha mais certeza se estava fazendo uma pesquisa sobre os Hell’s Angels ou se estava, aos poucos, entrando para o grupo” (THOMPSON, 2004, p. 57). “Quando me dei conta, estava passando dois ou três dias da semana em bares dos Angels, na casa deles, em viagens e festas” (THOMPSON, 2004, p. 57). “[...] quando eu disse aos Angels que estava pensando em comprar uma moto eles ficaram ansiosos em ajudar” (THOMPSON, 2004, p. 99).
Em dado momento, todavia, os fora-da-lei começaram a ficar hostis a tudo relacionado à imprensa: “Os Angels queriam me dar uma surra de correntes por questão de princípios. Depois disso, quando encontrei os Angels de Oakland, havia uma conversa sobre botar fogo em mim por causa do que a Newsweek tinha feito” (THOMPSON, 2004, p. 65). De acordo com o autor, somente depois que o seu artigo sobre motos foi publicado no The Nation os fora-da-lei realmente acreditaram que ele não estava os enganando todo o tempo. “‘Que inferno! A gente devia dar umas porradas em você só por ser um repórter’” (THOMPSON, 2004, p. 177).
A experiência de imersão de Thompson no objeto de sua reportagem rendeu mais do que apenas informações para Hunter, mas hematomas: “No Dia do Trabalho de 1966, eu abusei um pouco da sorte e apanhei feio de quatro ou cinco Angels que pareciam achar que eu estava me aproveitando deles. Um desentendimento sem muita importância se tornou muito sério de repente” (THOMPSON, 2004, p. 275). “Entrei no carro e saí a toda velocidade, cuspindo sangue no painel num ziguezague entre as duas pistas da rodovia no meio da madrugada, até o meu olho que não estava machucado entrar em foco” (THOMPSON, 2004, p. 275). A próxima parada de Hunter foi um hospital em Santa Rosa. “Eu estava cansado, inchado e arrasado. Parecia que o meu rosto tinha sido forçado contra os raios de uma Harley a alta velocidade, e a única coisa que me mantinha acordado eram os espasmos da dor de uma costela quebrada” (THOMPSON, 2004, p. 276).
“Para oferecer uma maior dimensão de informações, ele próprio precisa viver a experiência. Tornando-se parte do objeto da reportagem, o gonzo jornalista acaba interferindo – ainda que involuntariamente – no destino da história” (CZARNOBAI, 2003, p. 37). Como se pode inferir, devido a essa imersão cálida no objeto de suas reportagens, o jornalista é capaz não apenas de influir, mas também de determinar o rumo da história que faz parte, pois se envolve umbilicalmente com o universo reportado.
As técnicas de redação utilizadas por Hunter Thompson, conforme veremos posteriormente, remetem às utilizadas pelos beatniks, como observa Czarnobai (2003). Jack Kerouac menciona, na introdução de O livro dos sonhos: “É bom que o leitor saiba que este livro não passa de uma compilação de sonhos anotados às pressas, à medida que ia despertando – e estão todos escritos da maneira mais espontânea e fluida” (KEROUAC, 1998).
Em um misto de narração, descrição e exposição, marcada pela fusão da primeira com a segunda pessoa, Hunter redige uma poética sublime sobre duas rodas:
[...] eu colocava a primeira marcha, esquecia os carros e deixava a fera se soltar... 60, 70 km/h... depois a segunda, resmungando para passar pelo sinal da Lincoln Way, sem me preocupar se estava verde ou vermelho [...]. [...] depois a terceira, a marcha da potência, chegando a 120 km/h e ao começo dos gritos estridentes do vento no ouvido, uma pressão no globo ocular como um mergulho na água de um trampolim bem alto. [...] então o pedal vai para cima, para a quarta, e agora não se ouve nenhum som a não ser o do vento. Todo esticado, tateando o guidão para elevar o feixe do farol, o ponteiro encosta no 160, e os globos oculares ardentes lutam para enxergar o centro da pista mesmo com a pressão do vento. É preciso deixar uma margem para os reflexos. Mas com o acelerador no máximo a margem é muito pouca, e não existe nenhuma possibilidade de erro. Tudo tem que ser feito certo... e é aí que a música estranha começa, quando você abusa tanto da sorte que o medo se transforma em alegria e vibra pelos seus braços. A 160 km/h, mal dá pra enxergar, as lágrimas são jogadas para trás tão rápido que evaporam antes de chegarem às orelhas. Os únicos sons são o do vento e um zunido surdo que vem dos amortecedores. Você vê a linha branca e tenta virar junto com ela... urrando numa curva para a direita, depois para a esquerda e na longa descida para Pacifica... menos intenso agora, atento para a presença da polícia, mas só até o próximo trecho escuro e mais alguns segundos no limite... O Limite... Não existe nenhuma forma genuína de explicá-lo porque as únicas pessoas que realmente sabem onde ele está são aquelas que o ultrapassaram. As outras – as vivas – são as que forçaram seu controle até onde sentiram que podiam agüentar, e depois recuaram, ou reduziram a velocidade, ou fizeram o que quer que tinham que fazer quando chegou o momento de escolher entre o Agora e o Depois. Mas o limite ainda está lá. Ou talvez Aqui. A associação que se faz entre motocicletas e LSD não é um acidente de publicidade. Os dois são meios para se chegar a um fim, ao lugar das definições (THOMPSON, 2004, p. 271).
Hunter Thompson assume a primeira pessoa em relação à narrativa de Hell´s Angels: medo e delírio sobre duas rodas, enquanto que, no jornalismo convencional, o mais comum é o ponto de vista em terceira pessoa. Tal opção pelo foco narrativo gera um discurso em tom lírico e confessional: “Minhas relações com os Angels duraram cerca de um ano e nunca acabaram de verdade. Cheguei a conhecer bem alguns deles, e a maioria dos outros, o suficiente para ficar tranqüilo ao lado deles” (THOMPSON, 2004, p. 54). “Depois de ter andado com os Angels durante um certo tempo, eu fiquei tão acostumado a ver faixas, ataduras, tipóias e rostos inchados que comecei a achar normal e parei de perguntar o que tinha acontecido” (THOMPSON, 2004, p. 103). “Ele nem me conhecia, e com certeza não havia nada na minha aparência esquelética que indicasse que eu poderia fazer qualquer coisa a não ser vender o carro e o equipamento na primeira oportunidade” (THOMPSON, 2004, p. 205). “Mas nós não estávamos nem um pouco perto de uma cidade grande, eu também sabia, por experiência de longa data, que lojas pequenas em regiões distantes às vezes tiram a sua política de preços do manual da extorsão” (THOMPSON, 2004, p. 142).
Para Edvaldo Pereira Lima, já é ponto pacífico que neutralidade não existe nem mesmo na produção de conhecimento científico, já que “a própria visão de mundo do experimentador, por si só, condiciona a experiência” (LIMA, 1995, p. 68). Segundo Edvaldo, a questão da objetividade jornalística parece nos dias de hoje ter atingido a condição de mito e até mesmo de utopia. “Os mecanismos da captação do real são condicionados por uma série de fatores pessoais – do repórter, sua formação, sua cosmovisão – e conjunturais – da empresa jornalística, seu escopo ideológico, seus comprometimentos [...]” (LIMA, 1995, p. 80).
Dentro da imperfeição inerente à percepção humana, porém, e considerando a relatividade de tudo, o livro-reportagem é o instrumento que apresenta, de momento, ao menos em tese, o melhor potencial para diminuir os vieses de leitura com que o jornalismo tem encarado habitualmente o real (LIMA, 1995, p. 68).
“A proposta da objetividade converteu-se em camisa-de-força para o desempenho profissional dos jornalistas. Na medida em que sua feição determinante passa a ser a economia de palavras, imagens e sons, o trabalho do jornalista burocratiza-se” (MELO, 1985, p. 13). Segundo José Marques de Melo (1985), além de tolher a criatividade do jornalista, o culto da objetividade – sacramentado nos manuais de redação, canonizado pelas instruções de serviço – significou a diminuição de sua capacidade de aferir a realidade.
Não se trata, contudo, de negar certa racionalidade útil da prática jornalística dita objetiva quando a temática abordada tem durabilidade menor e, portanto, caráter efêmero. “Historicamente, o desenvolvimento das técnicas amarradas por esse conceito de objetividade trouxe à prática algo de benéfico, possibilitando critérios mais precisos na seleção e ordenamento dos elementos que compõem uma leitura do real” (LIMA, 1995, p. 81).
Adelmo Genro Filho assevera que a crítica da “ideologia da objetividade” é recorrente, mas invoca uma apreensão mais madura da questão.
A maioria dos autores reconhece que a objetividade plena é impossível no jornalismo, mas admite isso como uma limitação, um sinal de impotência humana diante da própria subjetividade, ao invés de perceber essa impossibilidade como um sinal da potência subjetiva do homem diante da objetividade (GENRO, 1998, p. 186).
Em entrevista, Thompson certa vez declarou: “Todos procuramos por ela [objetividade], mas quem pode apontar a direção? Não se dê ao trabalho de procurá-la em mim – não sob nenhuma linha escrita por mim; ou por qualquer outro em que se possa pensar” (CZARNOBAI, 2003). Hunter sopesa que é possível ser muito fiel à realidade mediante o emprego de técnicas habitualmente utilizadas em romances; afinal, uma das funções da literatura é, justamente, informar.
Adjetivação, inferências, subversão, iconoclastia, digressões, opinião. Como o gonzo jornalismo é redigido sob o foco narrativo de primeira pessoa, as idiossincrasias do escritor resplandecem aos olhos do leitor, e ele pode, desse modo, concordar ou não com o autor da reportagem. “O uso do foco narrativo em primeira pessoa é a negação da imparcialidade jornalística sem comprometer o objetivo inicial de informar alguma coisa a alguém” (CZARNOBAI, 2003, p. 57).
A brutal subjetividade de Hunter Thompson é também expressa no relato de suas experiências com o uso de psicoativos, pois gozando do “[...] respaldo concedido pela Primeira Emenda da Constituição dos Estados Unidos da América, Thompson sentia-se livre para falar sobre suas experiências da forma mais visceral possível” (CZARNOBAI, 2003, p. 72).
Com gasolina na moto, álcool no sangue e LSD no cérebro, Thompson é considerado um ídolo da contracultura. Suas experiências com um sem-número de tipos de drogas desenvolveram-se durante a redação da obra Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas. Tanto que o seu primeiro contato com o ácido lisérgico se deu nessa época:
A minha própria experiência com ácido é limitada em termos de consumo total, mas bastante variada quanto à companhia e às circunstâncias... e, se eu pudesse escolher qualquer uma da meia dúzia de surtos dos quais me lembro e repeti-lo, escolheria uma daquelas festas dos Hell’s Angels em La Honda, completa, com toda aquela iluminação maluca, policiais na estrada, uma escultura de Ron Boise que aparecia indefinida no meio da floresta e todos os grandes autofalantes vibrando com “Mr. Tambourine Man”, de Bob Dylan (THOMPSON, 2004, p. 237).
O aspecto transgressivo e alucinatório: “Por razões que nunca chegaram a ser conhecidas, eu arrebentei minhas janelas dos fundos com cinco tiros de uma escopeta calibre 12, que foram seguidos, minutos depois, por seis tiros de uma Magnum calibre 44” (THOMPSON, 2004, p. 58). Mais adiante, contudo, ele admite: “Foi uma explosão prolongada de tiroteio intenso, risadas bêbadas e vidro quebrando” (THOMPSON, 2004, p. 24).
A veleidade pelo álcool: “O meu gosto pela cevada é muito poderoso, e eu não tinha nenhuma intenção de passar um fim de semana sem cervejas no sol de rachar” (THOMPSON, 2004, p. 141). “Ao término do fim de semana, eu tinha tomado três ou quatro vezes mais do que o que eu tinha trazido comigo... E, hoje, pensando no ano quase inteiro em que fiquei bebendo cerveja com os Angels, acho que saí ganhando” (THOMPSON, 2004, p. 141).
Durante a jornada de Bass Lake: “As horas entre as dez e a meia-noite foram dedicadas ao consumo pesado” (THOMPSON, 2004, p. 170). “Terry o Vagabundo, que imediatamente se encheu de LSD e passou as doze horas seguintes trancado na traseira de uma perua de entregas, gritando e chorando sob o olhar atento de algum deus que ele quase havia esquecido” (THOMPSON, 2004, p. 170). “A essa altura, os efeitos de várias drogas se misturavam com a bebedeira e ninguém sabia o que as pessoas seriam capazes de fazer. Gritos e ataques de loucuras irrompiam no meio da escuridão” (THOMPSON, 2004, p. 171).
“Há quem diga que os fora-da-lei não precisam de comida porque tiram toda sua energia dos estimulantes. Mas essa idéia é um pouco forçada. A substituição não funciona, como qualquer pessoa que já tentou fazer isto pode testemunhar” (THOMPSON, 2004, p. 175).
“Os Angels insistem que não existem viciados no clube, e isso é verdade pelas definições médicas e legais. Os viciados têm um único foco. A necessidade física do que quer que tenham dependência os força a serem seletivos” (THOMPSON, 2004, p. 213). Na concepção de Hunter, os Angels não têm um foco: “Eles devoram drogas como vítimas da fome soltas no meio de um raro banquete, usam qualquer coisa que esteja disponível – se o resultado for um delírio agudo. Assim seja” (THOMPSON, 2004, p. 213).
As anfetaminas (“bolinhas” ou “rebites”) fazem parte da dieta básica dos fora-da-lei, assim como maconha, cerveja e vinho. Mas, quando eles falam em “ficar chapado”, a ação parte para um outro nível. O passo seguinte na escala é o Seconal (“vermelhas” ou “demônio vermelho”), um barbitúrico que normalmente é usado como sedativo ou tranqüilizante. Eles também usam Amital (“céu azul”), Nembutal (“capa amarela”) e Tunial. Mas preferem as vermelhas, que tomam com cerveja e bolinhas “para não ficar com sono”. A combinação resulta em alguns efeitos infernais. Barbitúricos e álcool podem dar uma mistura fatal, mas os fora-da-lei combinam estimulantes suficientes com depressivos para, pelo menos, ficarem vivos, ainda que não racionais (THOMPSON, 2004, p. 214).
“Enquanto isso, as festas ficavam cada vez mais barulhentas e agitadas. [...] O pessoal de Kesey estava muito preocupado em abrir a mente. [...] Outros luminares perambulavam pela festa (particularmente o poeta Allen Ginsberg e Richard Alpert)” (THOMPSON, 2004, p. 232).
Mais uma observação da relação indissociável entre a objetividade e a subjetividade é elaborada por Adelmo: “Sabemos que os fatos não existem previamente como tais. Existe um fluxo objetivo na realidade, de onde os fatos são recortados e construídos obedecendo a determinações ao mesmo tempo objetivas e subjetivas” (GENRO, 1998, p. 186).
O lead permite que, através da natureza lógica e abstrata da linguagem, constituída pela generalidade intrínseca dos conceitos, seja retomado o percurso que vai do abstrato ao concreto, não pela via da ciência, mas pela reprodução do real como singular-significativo. O real aparece, então, não por meio da teoria, que vai apanhar o concreto pela sua reprodução lógica, mas recomposto pela abstração e pelas técnicas adequadas numa cristalização singular e fenomênica plena de significação, para então ser percebido como experiência vivida (GENRO, 1998, p. 140).
No gonzo jornalismo, o símbolo-mor da objetividade jornalística (lead) é completamente refutado, evidenciando-se um cabal desprezo à pirâmide invertida. Não obstante, o ponto que mais provoca restrições do gonzo por jornalistas e pesquisadores mais conservadores é a permissividade quanto à utilização da ficção. Destarte, o pilar básico da verdade do jornalismo convencional é substituído pela verossimilhança – isto é, algo semelhante à verdade – no gonzo. De acordo com o jornalista André Felipe Pontes Czarnobai, “é possível ser verossímil sem ter um compromisso estrito com a verdade, desde que o autor esteja devidamente inserido naquilo sobre o que está escrevendo” (2003, p. 35).
Prováveis demonstrações de verossimilhança no livro Hell’s Angels: medo e delírio sobre duas rodas:
“Diz a lenda que os motoqueiros [...]” (THOMPSON, 2004, p. 74).
[...] na tentativa de controlar 3 mil motociclistas (a polícia diz 4 mil, os motoqueiros veteranos dizem 2 mil, então 3 mil deve estar perto do número certo). Mas ficou estabelecido, sem sombra de dúvida, que Hollister estava tão cheia de motos que mil a mais ou a menos não fariam muita diferença (THOMPSON, 2004, p. 74).
“Talvez as histórias sejam verdadeiras, talvez não. Mesmo assim, o argumento ainda é válido” (THOMPSON, 2004, p. 96).
Outro agravante do discernir entre ficção e realidade é o uso de psicoativos, comum no gonzo jornalismo: “Com todas as pessoas bêbadas, chapadas e loucas, não havia ninguém em condições de fazer anotações objetivas [...] falta de controle total” (THOMPSON, 2004, p. 235).
Alterando o enfoque, segue um relato gonzo-psicológico, no qual Hunter discorre acerca do estupro – em que estão presentes elementos como verossimilhança, referências, sarcasmo e, obviamente, subjetividade:
Ninguém é objetivo em relação a estupros. Trata-se de um horror, uma excitação e um mistério, tudo ao mesmo tempo. As mulheres têm pavor de serem violentadas, mas, em algum lugar no fundo de qualquer útero, existe um nervo rebelde formigando de curiosidade toda vez que a palavra é mencionada. Isso é ainda mais aterrorizante uma vez que sugere depravações e desejos secretos perigosos demais para até mesmo passarem pelo pensamento. Os homens falam de estupradores com ódio e se referem às vítimas como se elas carregassem uma espécie de marca trágica. Eles são solidários, mas sempre conscientes. Há mulheres violentadas que recebem pedido de divórcio do marido que não suportaria viver com o peso de algo tão terrível, das visões, da possibilidade de que não tenha sido realmente um estupro. Existe uma questão dura de resolver, um mistério indizível. Todo mundo já ouviu a piada sobre a advogada que usou uma pena e uma tinteira para conseguir a absolvição do cliente acusado de estupro. Ela disse ao júri que não existia estupro e provou pedindo a uma testemunha para tentar colocar a pena no frasco de tinta, o qual ela manipulou com tanta habilidade que a testemunha finalmente desistiu. Isso parece uma das piadas de Cotton Mather, ou de alguém muito parecido com ele, que tenha a mesma sabedoria – alguém que nunca tomou uma chave de braço. Qualquer advogado que diga que não existe estupro deveria ser arrastado até um local público por três pervertidos bem fortes e violentado em plena luz do dia, observado por todos os seus clientes (THOMPSON, 2004, p. 157).
Segundo Czarnobai (2003), uma vez que o gonzo jornalismo coleta mais informações, e de uma maneira copiosamente mais intensa que o convencional, pode-se supor que essas reportagens sejam mais fiéis à realidade. José Marques de Melo (1985) concorda que o culto da objetividade significou a diminuição da capacidade de o jornalista aferir a realidade. “A inserção da ficção no gonzo jornalismo não só contribui para a desenvoltura da narrativa como ainda fornece um nível de informação muito mais profundo do que uma reportagem tradicional, o que vem ao encontro da definição de Faulkner [...]” (CZARNOBAI, 2003, p. 67).
Os Angels como um fenômeno midiático altissonante era algo tão surreal para Hunter que ele chega a relatar: “tinha a sensação de que, a qualquer momento, um diretor iria aparecer balançando cartazes com as palavras ‘Corta’ ou ‘Ação’. [...] No entanto, a ação tinha sido certificada pela Times, Newsweek e pelo The New York Times” (THOMPSON, 2004, p. 121).
Devido à subjetividade idiossincrática, o relato gonzo jornalístico é mais autêntico e, num certo sentido, pode ser mais informativo do que o do jornalismo convencional e sua suposta objetividade, por vezes manipulada de modo sub-reptício ou espúrio.
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